Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/14.0TBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: SEGURO DE GRUPO
DEVER DE INFORMAÇÃO
TOMADOR DE SEGURO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - LAMEGO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 446/85 DE 25/10
Sumário: 1 – O contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto da sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro, e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

2 - O dever de informação e esclarecimento do aderente a um contrato de seguro de grupo recai sobre o tomador de seguro.

3 – O incumprimento desta obrigação/dever por parte do tomador do seguro não é oponível à seguradora, pelo que a cláusula geral não comunicada não se pode ter por excluída do âmbito da adesão ao seguro.

Decisão Texto Integral:







            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

 M (…), P (…) e V (…), vieram intentar contra “C (…) – Companhia de Seguros, S.A.”, sociedade comercial, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta a “indemnizar a Autora por todas as quantias que vem liquidando mensalmente à Ré, pelo referido empréstimo, desde o falecimento de seu marido, J (…), em 26/07/2012 até ao termo do contrato, em 30/09/2014, num total de € 7531.11 (€278.93 x 27 prestações), quantia à qual acrescem juros de mora desde o seu vencimento até efectivo e integral pagamento e bem assim no pagamento das custas e demais encargos legais”.

Alegam, em singela síntese, que a 1.ª A. e o marido celebraram contrato de mútuo, garantido, além do mais, com seguro de vida celebrado com a R., e que, apesar deste ter falecido, a seguradora recusa-se a pagar àquela instituição bancária a quantia ainda em dívida relativa à quantia mutuada.

Regularmente citada, contestou a R., “C (…) – Companhia de Seguros, S.A.”, excecionando a nulidade do contrato de seguro celebrado com o falecido, já que este ao preencher a proposta prestou falsas declarações, quanto ao seu estado de saúde, omitiu patologias e internamentos hospitalares, que a serem conhecidos da R., implicariam a não celebração do contrato.

Posicionaram-se os AA. quanto à invocada exceção de nulidade, salientando que o contrato de seguro dos autos foi negociado no balcão de (...) da Caixa de Crédito Agrícola, tendo sido um funcionário de tal balcão a preencher toda a documentação necessária, não tendo a Autora nem o falecido marido qualquer responsabilidade no preenchimento dos mesmos, tendo-se limitado a assinar nos locais indicados, não possuindo qualquer consciência quanto à declaração emitida, porquanto os documentos foram assinados em branco.

                                                           *

Foi proferido despacho a convidar a Autora a deduzir o incidente de intervenção principal provocada da “Caixa de Crédito Agrícola (…)”, na qualidade de entidade beneficiária do contrato e dos demais herdeiros do falecido segurado.

Os Autores deduziram tal incidente, que foi admitido e, na sequencia, admitida a intervenção principal provocada em causa.

Citados os chamados, veio a dita CCAM deduzir contestação por via da qual pugna pela validade do contrato em causa.

                                                           *

Foi realizada audiência prévia, em cuja diligência foi proferido despacho saneador, tendo-se procedido à identificação do objecto do litígio, e à enunciação da matéria assente e à fixação dos temas da prova.

A ré Seguradora apresentou o articulado superveniente de fls. 348 e ss., por via do qual pugna pelo aditamento de factos entretanto conhecidos através da junção aos autos dos elementos clínicos atinentes ao falecido e, bem assim, pela anulabilidade do contrato de seguro porquanto o falecido, além de ter omitido a diabetes, omitiu o seu historial clinico.

Os Autores, notificados, posicionaram-se no sentido do articulado superveniente não ser admitido, por extemporâneo.

Foi proferido despacho a fls. 371 a admitir o articulado superveniente e a determinar o aditamento da factualidade em causa à já considerada assente.

                                                           *

Foi realizada de seguida a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo (como se alcança da respectiva acta), com discussão nela da prova documental e testemunhal apresentada pelas partes.

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e não provados, relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que se julgava verificada a anulabilidade do contrato celebrado entre a R. e o falecido J (…), na medida em que este omitiu factos relevantes sobre a sua situação clínica e médica aquando da subscrição do contrato de seguro, o que influiu na existência e nas condições do contrato, pois que se o segurador as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em diversas condições, sendo certo que os factos provados não revelavam, por parte do dito falecido, a falta de consciência da declaração negocial em causa, incapacidade de entendimento do seu sentido ou falta do livre exercício da sua vontade, cujo ónus de prova incumbia à Autora, donde o seguinte concreto “dispositivo”:

«IV. Decisão.

Pelo exposto, o Tribunal decide declarar anulado o contrato de seguro celebrado entre a R. C (…) – Companhia de Seguros S.A. e J (…), titulado sob a apólice n.º (...) , julgando a presente acção improcedente e absolver a Ré do pedido.

Custas a cargo dos Autores, atento o decaimento – art. 527º, n.º 1 e 2 do CPC.

Registe e notifique.»

                                                                  *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Autora recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

          (…)

                                                                       *

            Por sua vez, apresentou a Ré as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte[2]:

            - desacerto da decisão de direito (aspeto do ónus da prova; problemática do dever de informação do segurador)?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que toda essa factualidade não foi expressamente impugnada pela Autora/recorrente.

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:

1. Por documento designado por contrato de mútuo com fiança, datado de 09.10.2009, a autora e o falecido marido J (…) celebraram com a interveniente principal Caixa de Crédito Agrícola (…), CRL, um contrato de mútuo com fiança, mediante o qual esta cedeu àqueles a quantia de 7000€, que se obrigaram a reembolsá-la, em 60 prestações mensais, iguais, constantes de capital e juros, no valor de 278,93€, vencendo-se a primeira um mês a contar da data de outorga do contrato, conforme documento de fls. 12 a 17, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. Por documento denominado protecção crédito pessoal, a autora e o falecido J (…) aderiram a um contrato de seguro de grupo, celebrado entre a ré e a interveniente principal, com início em 01.10.2009 e termo em 30.09.2014, com capital seguro de 7000€, titulado pela apólice (...) , conforme documentos de fls. 18 a 27 e 87 a 102, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

3. O valor seguro, no montante de 7000€, destinava-se a cobrir o valor global do empréstimo bancário, tendo como beneficiário privilegiado, em caso de morte ou invalidez, a interveniente Caixa de Crédito (…) e, na parte remanescente, os herdeiros legais de J (…).

4. J (…) faleceu em 27.07.2012, sendo indicado como causa da morte infecção urinária, conforme certificado de fls. 36, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

5. A ré, através da carta datada de 24.10.2012, informou a autora que, em virtude de terem sido prestadas declarações inexactas por parte do senhor J (…) o citado contrato de seguro foi declarado nulo.

6. A declaração de saúde e os questionários clínicos, relativos à autora e falecido J (…) foram preenchidos por um funcionário do balcão da interveniente Caixa de Crédito Agrícola.

7. J (…), aquando do mencionado em 6, não se encontrava presente no balcão da interveniente.

8. No questionário clínico relativo a J (…), datado de 16.09.2009, assinado pelo próprio, consta, além do mais, resposta negativa na pergunta tem ou teve alguma das seguintes doenças ou distúrbios: metabólicas: diabetes (…), conforme documento de fls. 32 a 35, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

9. No mesmo questionário clinico mencionado em 8, às perguntas sobre se “Toma medicamentos?”, se “Sofre ou sofreu de alguma doença e/ ou está a efectuar algum tratamento médico?”, “Exerce a profissão que desempenha no seu dia-a-dia com alguma restrição provocada por motivos de saúde?”, se Consultou ou prevê consultar algum médico, efectuou ou vai efectuar exames médicos devido a queixas que apresenta?”, se “Esteve internado…?”, se Durante os últimos cinco anos registou alguma ausência ao trabalho por motivo de acidente ou doença?, se “Tem alguma preocupação referente à sua saúde ou nota algum sintoma ou alteração?”, se “Toma ou tomou alguns medicamentos?”, se “Consultou algum médico especialista nos últimos três anos?”, se já esteve internado em algum hospital ou clínica?” e se “Tem ou teve algumas das seguintes doenças ou distúrbios? (…) Olhos: Diminuição da visão ou dificuldade em ver, (…) outras patologias (…) Aparelho circulatório: Hipertensão Arterial (…) Metabólicas: Diabetes (…) Neurológicas ou mentais (…) Outras doenças acima não especificadas. » respondeu que “NÃO

10. “E à pergunta sobre se “Consultou o seu médico Assistente/ Família nos últimos 5 anos?” respondeu que “Sim”, mas sobre os respectivos “…motivo, diagnóstico, resultados de exames e tratamentos efectuados”, respondeu apenas “Rotina

11. J (…), antes da data mencionada em 2, sabia que sofria de diabetes.

12. Nos 9 meses que antecederam a celebração do seguro em causa nos presentes autos, o J (…) teve 12 consultas médicas em que lhe foi sendo prolongada pelo médico de família uma situação de baixa médica que já vinha, pelo menos, desde 11.02.2008 (cfr. fls 281 a 294 dos autos),

13. Com sucessivos exames médicos, incluindo análises, ECG, Ecocardiograma, Colonoscopia e Endoscopia (cfr. fls. 281 a 294 dos autos);

14. Tendo o mesmo, desde 2001, sido sujeito a diversos internamentos:

a) No Centro Regional de Alcoologia do Porto, de 16.04.2001 a 27.04.2001, para “desintoxicação alcoólica” (cfr. fls. 216 dos autos);

b) No Serviço de Endocrinologia do Hospital Geral de Santo António, de 15.04.2004 a 28.04.2004, por “pé diabético infectado” (cfr. fls. 205 dos autos);

c) No Serviço de Endocrinologia do Hospital Geral de Santo António, de 10.05.2007 a 30.05.2007, por “pé diabético infectado” (cfr. fls. 209 dos autos);

d) No Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, de 31.07.2008 a 08.08.2008, por “AVC isquémico cerebeloso” (cfr. fls. 211 dos autos);

e) No Serviço de Endocrinologia do Centro Hospitalar do porto, de 03.11.2008 a 20.11.2008, por “Pé diabético (…) com úlceras profundas com contacto ósseo no topo dos 2.º, 3.º, e 4.º dedos do pé direito” com infecção (cfr. fls. 214 dos autos).

15. Tendo-lhe sido também diagnosticadas duas outras severas complicações da Diabetes: Neuropatia periférica sensitivo motora e Retinopatia diabética (cfr. fls. 209, 214, 280, 283 dos autos),

16. E ainda Hipertensão Arterial (HTA), desde 2006, para a qual era igualmente medicado (cfr. “folha de consulta” a fls. 201 dos autos, onde se pode ler: “17/02/2006 (…) TA 150/90 Blopress 16/12,5”).

17. Aquando do sucedido em 6, as informações de saúde relativas à autora e a J (…) foram prestadas pela autora.

18. A ré apenas aceitou celebrar o contrato de seguro nos termos acordados na convicção que as respostas referidas em 8 a 10 correspondiam à realidade;

19. A ré, aquando da celebração do contrato aludido em 2, desconhecia o mencionado em 11 a 16;

20. J (…), omitiu o mencionado em I, e ocultou voluntariamente factos à ré, determinantes para esta proceder à avaliação do grau risco a cobrir, com o propósito de obter para si uma vantagem;

21. A ré apenas aceitou celebrar o contrato de seguro nos termos em que o fez na convicção que as respostas referidas em 8 eram verdadeiras;

22. Caso a Ré tivesse conhecimento do mencionado em 11 a 16, não teria celebrado o contrato de seguro aludido em 2. ou teria contratado em moldes diferentes, designadamente pelo agravamento dos prémios e cláusulas de exclusão adicionais

                                                                       *

E os seguintes os factos que se consideraram não provados no tribunal a quo:

a) A autora e o falecido J (…) assinaram a proposta de seguro e o questionário clínico em branco;

b) O capital global em dívida por virtude do empréstimo aludido em A. ascende a 7531,11€.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre sem mais entrar na apreciação da questão supra enunciada, diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido desacerto da decisão de direito (aspeto do ónus da prova; problemática do dever de informação do segurador):

Começando pelo aspeto do ónus da prova, preliminarmente se dirá que embora a Autora/recorrente enuncie ao longo das suas alegações recursivas discordâncias várias quanto à matéria de facto dada como “provada” ou “não provada”, mormente sobre a credibilização dos meios de prova feita pelo Tribunal a quo e/ou dos depoimentos testemunhais aos quais foi conferida maior valia probatória, o que é certo é que não foi pela mesma deduzida qualquer impugnação relativamente à decisão sobre a matéria de facto, donde, será em função do acervo factual tal como supra enumerado – o qual constitui a reprodução fiel do que foi como tal enunciado na 1ª instância – que terá de ser feita a apreciação e decisão sobre os fundamentos do recurso.

Sucede que, o que se vem de dizer, constitui, a nosso ver, um dado da maior relevância nesse contexto.

Senão vejamos.

Sustenta a Autora/recorrente que cabia à Ré/recorrida a prova de que a documentação contratual em que se baseou o seguro, designadamente o Questionário Clínico, já se encontrava devidamente preenchida quando foi assinada pelo seu falecido marido.

Na verdade, consta da factualidade supra alinhada concernente aos factos “não provados”, sob a al. “a)” (cf. transcrição supra), o que a este propósito foi oportunamente alegado pela Autora/recorrente no seu articulado de “resposta” – quando confrontada com a invocação da exceção peremptória da nulidade do contrato de seguro pela Ré/recorrida no respetivo articulado de “contestação”.

Ora se assim é, a dita linha de argumentação da Autora/recorrente não tem qualquer sentido nem suporte jurídico-processual.

É que, tendo a Ré/recorrida invocado a invalidade do contrato de seguro ajuizado, por factos imputáveis ao falecido marido da Autora/recorrente – basicamente, por falsas declarações sobre a sua própria saúde e estado clínico – obviamente que em tal se encontra pressuposta a imputação de qualquer responsabilidade nessa matéria ao próprio e/ou à Autora/recorrente que em tal procedimento foi a única dos membros do casal que direta e pessoalmente se relacionou com a contraparte (agência bancária).

Atente-se que resultou expressamente apurado/provado (pela conjugação dos “factos provados” sob “6.”, “7.” e “17.”) que o falecido J (...) assinou a documentação atinente ao contrato de seguro em sua casa e que a mesma foi preenchida de acordo com as instruções fornecidas pela Autora, sua mulher, e que lhe deu a documentação a assinar!

Ademais, o Tribunal a quo teve seguramente presente e ponderou devidamente a demais factualidade instrumental alegada pela Ré com relevância para este efeito, nomeadamente que constava dos impressos e questionários em causa a possibilidade de os mesmos poderem ser validamente preenchidos por terceiro

A esta luz, alegou e provou a Ré/recorrida o que lhe competia na circunstância, a saber, a integral informação/esclarecimento por parte da Autora/recorrente e falecido marido na emissão das respetivas declarações de vontade aquando do preenchimento dos impressos e questionários em causa, e bem assim a validade formal com que as mesmas foram prestadas.

Assim, se a Autora/recorrente veio sustentar no articulado de “resposta” que a própria e o falecido J (…) assinaram a proposta de seguro e o questionário clínico em branco, tal corresponde, afinal, à impugnação motivada da materialidade em causa, sendo certo que resulta não ter ela Autora/recorrente feito contraprova bastante neste particular (cf. art. 346º do C.Civil), donde, o dito facto “não provado” sob a al. “a)”!

Finalmente, não pode deixar de se sublinhar quanto a este aspeto o seguinte: vir a Autora/recorrente invocar – inclusive nesta sede recursiva – que assinaram a proposta de seguro e o questionário clínico em branco, pretendendo prevalecer-se da invalidade que isso constituiria, sempre configuraria um abuso do direito da sua parte, ex vi do art. 334º do C.Civil, na modalidade do “tu quoque[3], pelo que, nunca poderia ser tutelada a sua posição a essa luz.

Termos em que, improcede sob qualquer enquadramento que se faça, o que a Autora/recorrente aduziu sob esta primeira via argumentativa.

                                                           ¨¨

E que dizer do outro argumento invocado para o mesmo efeito, a saber, o atinente à problemática do dever de informação do segurador.

Salvo o devido respeito, a invocação que é feita neste particular afigura-se destituída de qualquer fundamento.

Sustenta, em síntese, a Autora/recorrente que a Ré/recorrida não teria cumprido com os deveres de informação previstos nos arts. 5º e 6º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, e que, por esse motivo, deve responder pelas consequências da ausência dessa informação.

Sendo que prossegue com a invocação de que estão afinal em causa todas as “condições gerais da apólice”, pelo que, no limite, e como não deixa de ser igualmente alegado, nos termos do art. 8º do referido normativo, tinham de se haver como excluídas todas essas cláusulas (?!).

Para rematar nos seguintes termos: «Pelo que dúvidas não subsistem de que a responsabilidade de informar os Segurados sobre as cláusulas gerais do contrato, bem como a importância do preenchimento do questionário clínico recaía sobre a Seguradora, o que não sucedeu no caso sub judice, uma vez que os Segurados não só não obtiveram qualquer informação, como constataram que os questionários clínicos foram preenchidos pelos funcionários da CCAM.»

Que dizer?

Desde logo que tudo isto se trata da invocação de uma questão nova, isto é, apenas suscitada pela mesma nesta sede recursiva.

Ora, consabidamente, “Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.[4]

Pelo que, não sendo na circunstância questão de conhecimento oficioso, logo por aqui improcedia o que foi suscitado a este propósito.

Acresce que, s.m.j., a colocação desta questão denota uma incontornável deficiência de perceção da dogmática em causa.

Senão vejamos.

Estava em causa aquilo que se designa por “seguro de grupo”, que se pode caracterizar da seguinte forma:

«V - O seguro de grupo é um contrato celebrado por um (único) tomador, por conta de vários segurados, ligados ao subscritor por um vínculo distinto do de segurar, cobrindo cumulativamente riscos homogéneos de todos os segurados (terceiros), com perfeita separabilidade e sem uma correlação positiva forte entre os riscos desses terceiros.

VI - A formação do contrato de seguro de grupo estabelece-se em dois momentos distintos: num primeiro momento, o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, estando prevista a possibilidade de virem a existir pessoas seguras, que são aquelas que vierem a aderir e que terão o seguro com as coberturas e nos termos em que foram contratados; num segundo momento, o tomador do seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo, começando o mesmo a produzir efeitos, como seguro, no momento da primeira adesão ou num momento posterior se tal for acordado pelas partes.»[5]

O que, revertendo para o nosso caso, significa que o tomador do seguro seria a instituição bancária (Banco) interveniente principal CCAM (“Caixa de Crédito Agrícola Mutuo (…)”), com a aqui Ré “C (…) – Companhia de Seguros, S.A.” a ter, ela sim, a posição de Seguradora.

Ora se assim é, importa não olvidar que a orientação maioritária da jurisprudência é no sentido de que compete ao tomador do seguro (e não à seguradora) a obrigação de informação das cláusulas contratuais constantes do seguro, bem como o ónus da prova do cumprimento desse dever (art. 4º, nos 1 e 2, do DL nº 176/95, de 26-07).[6]

Do que resulta a completa inconsistência desta argumentação por parte da Autora/recorrente, enquanto assente/estribada no incumprimento de um tal dever por parte da Ré nos autos (a Seguradora), relativamente a quem propôs a ação e que nesta via recursiva insiste em ver condenada…

Com efeito, «(…) não se mostrando legalmente prevista a comunicabilidade à esfera jurídica da seguradora dos efeitos do incumprimento dos deveres legais de informação colocados a cargo do tomador de seguro - e não podendo o tomador de seguro considerar-se juridicamente como intermediário, auxiliar ou comissário da seguradora no momento da concreta adesão das pessoas seguradas - carece de fundamento normativo a pretensão de responsabilização objectiva da seguradora por um comportamento negligente exclusivamente imputável ao outro contraente (…)»[7]

O que bem se compreende, na medida em que, incumbindo ao Tomador do seguro tal dever de informação, não pode ser imputada à Seguradora (de quem o Tomador não é um mero intermediário), nem ser-lhe oposta, a violação do dever de comunicação (a não ser se o contrato previa que a obrigação de informar fosse assumido pela Seguradora), não podendo a mesma ser responsabilizada por um acto ilícito cometido pelo Tomador do seguro…

Donde a incontornável conclusão de que o incumprimento da dita obrigação/ver de informar e esclarecer, por parte do tomador do seguro, não é oponível à Seguradora, pelo que a cláusula geral não comunicada não se pode ter por excluída do âmbito da adesão ao seguro.

Ademais, sem a Autora/recorrente substanciar e individualizar em concreto a razão para sustentar o incumprimento do dever de informar (no contexto de cláusulas contratuais gerais) em relação a toda e qualquer cláusula do contrato, não vislumbramos de todo o fundamento para que se pudesse dar procedência à exclusão de todas as cláusulas…

 Isto sem embargo de que o melhor entendimento neste particular é no sentido de que «III - O regime especial de invalidade das cláusulas contratuais gerais constantes do DL n.º 446/85, de 25-10, tem por referência cada uma das cláusulas proibidas e não abrange, necessariamente, o contrato na sua totalidade»[8], pois que, a entender-se de forma diversa, isto é, que a alegação da Autora/recorrente implicava a invalidade de todo o contrato, então estaríamos reconduzidos a um contra-senso, na medida em que a pretensão trazida a juízo pela Autora, com a propositura da ação, se encontrava precisamente assente e tinha como pressuposto a validade do contrato ajuizado!

Acresce – e decisivamente também quanto a nós, nesta parte se acolhendo o invocado nas contra-alegações recursivas! – que o que está em causa nos presentes autos não é a nulidade de uma clausula contratual mal transmitida ao falecido marido da Autora/Recorrente, mas sim o facto de este ter respondido falsamente às perguntas que a Recorrida lhe colocou no momento da celebração do contrato.

 A esta luz, insofismavelmente se conclui que a invocação do regime das cláusulas contratuais gerais por parte da Autora/recorrente, nesta sede recursiva, transparece como um derradeiro – mas infrutífero! – argumento.

Assim, e sem necessidade de maiores considerações, improcede fatalmente o recurso.

                                                           *

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto da sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro, e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

II - O dever de informação e esclarecimento do aderente a um contrato de seguro de grupo recai sobre o tomador de seguro.

III – O incumprimento desta obrigação/dever por parte do tomador do seguro não é oponível à seguradora, pelo que a cláusula geral não comunicada não se pode ter por excluída do âmbito da adesão ao seguro.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela Recorrente/Autora.

            Coimbra, 12 de Julho de 2017

                                              

                                    Luís Filipe Cravo ( Relator )

                                   Fernando Monteiro

                                    António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] De referir que se considera já ultrapassada, por decidida na 1ª instância, a questão da eventual extemporaneidade do recurso interposto, sendo certo que foi o mesmo considerado tempestivamente deduzido (cf. fls. 457, 1ª parte).
[3]Constitui abuso do direito a invocação ou o aproveitamento de um acto ilícito por parte de quem o cometeu. Trata-se de um caso de violação do dever de honeste agere que é eticamente inaceitável para o Direito (…)” – citámos PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2008, 5ª ed., Livª Almedina, a págs. 275.
[4] Citámos ABRANTES GERALDES, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Livª Almedina, a págs. 88.
[5] Citámos agora o acórdão do mesmo STJ de 30.03.2017, no proc. nº4267/12.3TBBRG.G1.S1, igualmente acessível  em www.dgsi.pt/jstj.  
[6] Neste sentido, inter alia, para além do acórdão citado na nota precedente, vejam-se os acórdãos do mesmo STJ de 9.07.2014 (no proc. nº 841/10.0TVPRT.L1.S1) e de  05.04.2016 (no proc. nº36/12.9TBALD.C1-A.S1),  todos acessíveis  em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Assim, o acórdão do STJ de 25.06.2013, no processo nº 24/10.0TBVNG.P1.S1, também ele acessível em 24/10.0TBVNG.P1.S1.
[8] Neste sentido o acórdão do STJ de 26.02.2015, no proc. nº 738/12.0TBCVL.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.