Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
77/20.2GTVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
TRIBUNAL TERRITORIALMENTE COMPETENTE
ACUSAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 11/09/2020
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ART. 32.º, N.º 1 E 2, AL. B), DO CPP
Sumário: I – Não constando da acusação determinado elemento factual, nunca o juiz pode utilizar, para a determinação da competência territorial do tribunal, o conhecimento que lhe advém por outra via, porquanto os factos constantes daquela peça processual são, também para tal finalidade, o exclusivo suporte.

II – Não obstante, em face do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPP, o início da audiência de julgamento impossibilita, sempre e em qualquer caso, a dedução e declaração da incompetência territorial do tribunal.

Decisão Texto Integral:





I. Relatório:

O Sr. juiz do Juízo de Competência Genérica de Tábua suscitou a resolução do presente conflito negativo de competência, tendo em vista a definição do tribunal territorialmente competente para conhecimento do crime, de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, imputado, na acusação pública, ao arguido A..

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante designado, de forma abreviada, de CPP), apenas o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu pronúncia, no sentido de o conflito dever ser resolvido com a atribuição da competência para o efeito acima referido ao Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão.


*

II. Fundamentação:

A) Elementos relevantes:

1. No âmbito do processo sumário 77/20.2GTVIS, foi deduzida, em 21-08-2020, acusação pública, na qual está imputado ao arguido A. a autoria material do já referenciado crime de condução de veículo em estado de embriaguez, porquanto, em 13/08/2020, “na EN 234-6 – S. João de Areias – Santa Comba Dão”, conduzia um veículo automóvel, sendo detentor de uma TAS de, pelo menos, 2,993g/l.

2. Por requerimento apresentado em 24-08-2020, o arguido solicitou, no Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão, a declaração de incompetência territorial desse Juízo para a tramitação do processo, por entender que, para tanto, a competência cabe ao Juízo de Competência Genérica de Tábua, assentando este entendimento na circunstância de os factos consubstanciadores do aludido ilícito penal terem ocorrido na área geográfica jurisdicionalmente atribuída por lei a este último tribunal.

3. No decurso da audiência de julgamento, após produção de prova (declarações do arguido e inquirição de uma testemunha), tomando posição sobre o dito requerimento, o Sr. Juiz do Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão proferiu despacho deste teor (transcrição parcial):

«(…).

No despacho hoje proferido, foi especificamente referido que, sem produção de prova não é possível decidir a questão da incompetência territorial, ou seja, dos elementos escritos nos autos não seria possível aferir sobre o local da prática dos factos e, consequentemente, decidir pela competência ou incompetência territorial.

(…).

Dos elementos coligidos em sede de produção de prova, constatou-se que o agente autuante faz constar no auto de notícia que os factos ocorreram pelas 17:49 horas, na EN234-6, São João de Areias, área e concelho de Santa Comba Dão.

O arguido afirmou que o local da intercepção pelos militares da GNR ocorreu após a passagem do rio Mondego em direcção a Tábua, o que foi corroborado pelo agente autuante, o qual confirmou que a paragem e fiscalização do arguido ocorreu entre os nós de acesso a Tábua do IC6.

O crime em causa (…) foi praticado de forma prolongada no tempo e no espaço, pois o arguido desde o início da condução – Lapa do Lobo, até ao local da intercepção, praticou o ilícito criminal.

Nos termos do art.º 19º do Código de Processo Penal, o tribunal competente para conhecer de um crime é aquele em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação quando ele se prolonga no tempo.

O crime dos presentes autos cessa no IC6, no concelho de Tábua, pois é esse o momento [em que] o arguido foi mandado parar e realizado o teste de alcoolémia.

Assim, não poderá deixar de se concluir que o crime foi praticado no Concelho de Tábua, fora da área de competência territorial da Comarca de Viseu – Instância Genérica de Santa Comba Dão.

Pelo exposto, declaro territorialmente incompetente o tribunal de Santa Comba Dão e determino que sejam os autos remetidos para a Comarca de Coimbra – Instância Genérica de Tábua – art. 33.º do Código de Processo Penal.

(…)».

4. Por sua vez, a Sr.ª Juiz do Juízo de Competência Genérica de Tábua lavrou, posteriormente, o seguinte despacho (transcrição dos segmentos tidos como relevantes):

«(…).

No que concerne ao momento até ao qual poderá ser suscitada e conhecida a questão da incompetência territorial, crê-se que a norma [art. 32.º, n.º 2, al. b), do CPP] é manifestamente clara quando refere que o limite temporal será o do início da audiência de julgamento, quando se trata de julgamento, como o caso em apreciação.

Efectivamente, à luz do princípio da vinculação temática, o objecto do processo fixa-se com a dedução da acusação pelo Ministério Público e é precisamente no elenco de factos aí vertidos que terá que ser apreciada a questão da incompetência territorial, designadamente aquando do recebimento da acusação.

(…).

Destarte, face ao exposto, da análise cuidada dos presentes autos, resulta que, apesar da tempestividade suscitada pelo arguido, a questão da incompetência territorial do Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão foi apreciada e decidida já após a abertura da audiência de discussão e julgamento e após a produção de prova efectuada especificamente nesse sentido, o que, tal como decorre do entendimento por nós exposto anteriormente e por força do disposto nos artigos 32º nº 2, al. b) e 329º nº 3 ambos do C.P.Penal (…), leva a que se conclua que o tribunal remetente conheceu e declarou a incompetência em momento em que já não o podia fazer, ou seja, no momento em que a sua competência já se encontrava definitivamente estabelecida.

Deste modo, tal como supra se referiu, uma vez que para a fixação da competência territorial se terá que atender ao local dos factos definido pela acuação (…), estando o mesmo, no caso sub judice, expressamente fixado na acusação do Ministério Público, efectuada por remissão para o auto de notícia, concretamente reportando-o à E.N.234-6 em S. João de Areias, Santa Comba Dão, (…) é o Tribunal de Santa Comba Dão o Tribunal territorialmente competente para o julgamento dos factos em causa nestes autos.

Termos em que, face ao exposto e por força dos artigos 32º nº 2 e 329º nº 3 do C.P.Penal, se declara este Juízo de Competência Genérica de Tábua territorialmente incompetente para o presente processo.

(…).»


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B) Cumpre decidir:

O dissídio fonte do conflito evidenciado nestes autos radica em determinar quem detém competência para intervir no proc. 77/20.2GTVIS, máxime para a realização do julgamento e prolação da sentença: se o Juízo de Competência Genérica de Tábua ou, ao invés, o Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão.

A resposta que se impõe seja dada à questão em análise está suficientemente delineada no despacho, acima parcialmente transcrito, proferido pelo Sr. Juiz do Juízo de Competência Genérica de Tábua, razão por que, mais não seria necessário do que aderir ao que dele consta.

No entanto, para garantir ainda maior consistência às razões determinantes do enquadramento jurídico conducente à solução juridicamente correcta, dir-se-á algo mais.
No nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites da intervenção decisória do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias – Direito Processual Penal, 1.ª edição, 1974, reimpressão, Coimbra Editora 2004, pág. 145 –  nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade, deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo) .
Com efeito, “um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação” – cfr. Ac. do T.C. n.º 130/98, de 05-02-1998, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Assim, na fase processual em que o processo do qual estes autos constituem apenso se encontra – durante a fase de inquérito e nos termos do artigo 264.º do CPP, só está definida a competência do Ministério Público, sendo, naturalmente, possível, a transmissão dos autos para outro Magistrado da mesma Magistratura (com consequente alteração da competência territorial do MP); a competência do juiz, na dita fase, para a prática de actos jurisdicionais apenas está definida em termos de reserva de jurisdição (art. 17.º, 268.º e 269.º do CPP) -, a determinação da competência do tribunal para proceder à realização do julgamento está intimamente dependente do objecto do processo nos termos em que se encontra definido, quer no plano factual quer na dimensão jurídica, pela acusação.
Como está escrito no Ac. do STJ de 21-06-2017 – in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 279, Ano XLII, Tomo III/2017 –, «formulada a acusação ou proferido despacho de pronúncia, que delimitam o objecto do processo, e recebidos os autos para julgamento está vedado ao juiz averiguar onde se consumou o crime, criando v.g. um procedimento incidental atípico. Esse dado de facto consta ou não consta da acusação ou [do] despacho de pronúncia. Apenas os factos descritos e imputados ao arguido na acusação ou pronúncia podem ser atendidos para definir a competência do tribunal, não podendo o tribunal lançar mão de quaisquer outros factos».
Certo é que, em determinadas circunstâncias ditadas pela necessidade de conciliação da celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos de contracção da acusatoriedade pela investigação oficiosa e os princípios do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil, o processo penal admite a condenação por novos factos, ou seja, que traduzem alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.
No entanto, reitera-se, não constando da acusação determinado elemento factual, nunca o juiz pode utilizar, para a determinação da competência territorial do tribunal, o conhecimento que lhe advém por outra via, porquanto os factos constantes daquela peça processual são, também para tal finalidade, o exclusivo suporte (neste sentido, além dos arestos acima referenciados, veja-se ainda o Ac. do STJ de 09-05-2007, CJ, n.º 200, Ano XV, Tomo II/2007, pág. 178/9).

Não obstante, perante a disposição legal contida no artigo 32.º do CPP, a impor a dedução e declaração da incompetência territorial até ao inicio do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução [al. a) do n.º 2] ou, como no presente caso, até ao início da audiência de julgamento [al. b) do n.º 2] – e independentemente de resposta à questão de saber quando se considera iniciada a audiência: se a partir do momento em que se declara a sua abertura (neste sentido, o já mencionado Ac. do STJ de 10-05-2007 ou, diversamente, só depois de ter sido produzido algum elemento de prova (cfr. Ac. do STJ de 25-10-10, proc. n.º 2273/2000 – 3.ª Secção, publicado no Boletim dos Srs. Juízes Assessores do STJ), uma vez que, na situação destes autos, a audiência de julgamento comportou produção de prova (audição do arguido e inquirição de uma testemunha) –, apenas esta conclusão resulta inequívoca: a tramitação do processo visando o conhecimento do crime que na acusação pública está imputado ao arguido A. é da competência (territorial) do Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão.

III. Dispositivo:

Termos em que se dirime o conflito negativo de competência territorial existente entre o Juízo de Competência Genérica de Tábua e o Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão – J2, declarando territorialmente competente, para os efeitos acima referidos, o segundo destes dois tribunais.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 9 de Novembro de 2010

(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado electronicamente pelo signatário – art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Alberto Mira, Presidente da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra