Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
269/16.9GAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: RECOLHA DE AMOSTRA DE ADN
OPORTUNIDADE DA RECOLHA
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L C DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 8.º, N.º 2, DA LEI N.º 5/2008 DE 22-08; ART. 380.º DO CPP
Sumário: I – A nova redacção do n.º 2 do art. 8.º da L. n.º 5/2008, de 22- 08, redacção dada pela Lei n.º 90/2017, de 22.08, não impõe qualquer ponderação sobre a necessidade da recolha de amostra de ADN.

II – Visto o regime constante da conjugação dos n.ºs 2 e 6 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2008, a recolha de ADN, na situação de condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos pela prática de crime doloso, incumbe ao juiz, não se tratando de mera faculdade mas sim de obrigatoriedade legal, o que lhe confere a natureza de um poder-dever.

III – O art.º 380.º consagra a possibilidade de correcção da sentença, enquanto mecanismo excepcional que constitui uma importante e necessária limitação ao império absoluto do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, conferindo ao próprio julgador que proferiu a decisão a possibilidade de, sem contender com o mérito da causa, sanar irregularidades cometidas ou omitidas na sentença.

IV – Determinar agora a observância do disposto no art.º 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, em ponto algum contende com uma modificação do decidido.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I. Relatório.

1.1. Como se mostra certificado nestes autos de recurso em separado, por sentença proferida no dia 21 de Novembro de 2017, no âmbito do processo principal, transitada em jugado no dia 4 de Janeiro de 2018, o arguido …, já melhor identificado, foi condenado enquanto autor de um crime de violência doméstica, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, e de um outro de igual natureza, p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2, ambos do Código Penal, nas penas parcelares de dois anos e três meses de prisão para cada um deles, sendo que em cúmulo jurídico logo operado, ficou o arguido sentenciado na pena única de três anos e seis meses de prisão.

Entretanto, através da promoção que é fls. 17/19 destes autos (certificação de fls. 238/240 dos autos principais), o Ministério Público requereu «o cumprimento do artigo 8.º/2 da Lei n.º 5/2008, de 22.08, no sentido da recolha de amostras de ADN no condenado para inserção na base de dados previstos no referido diploma.»

Exercitado o contraditório, por despacho judicial (fls. 246 dos autos principais e fls. 25 do presente recurso) tal pretensão do Ministério Público foi denegada.

1.2. Porque assim, o mesmo interpôs recurso, sendo que da motivação com que minutou a discordância, extraiu a seguinte ordem de conclusões e pedido (sic):

«1. O despacho recorrido interpretou o preceito constante no artigo 8.º/2 da Lei n.º 5/2008, de 22 de Agosto no sentido de apenas na sentença poder ser determinada a recolha de amostras de ADN no condenado para inserção na base de dados prevista naquele diploma, ficando impossibilitada tal decisão a posteriori do momento da prolação da sentença.

2. Tal fundamenta-se apenas num argumento literal que não coincide com o espírito do legislador, que, com a alteração da redacção do artigo 8.º/2 [«A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respectivo perfil de ADN na base de dado, é sempre ordenada na sentença»], apenas pretendeu por termo à discussão jurisprudencial que existia a propósito da redacção anterior desse preceito [«Quando não se tenha procedido à recolha de amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída»], no sentido de saber se, perante o trânsito em julgado de uma decisão condenatória em pena de prisão igual ou superior a três anos, a decisão de recolha de amostras de ADN devia ser automática ou se, ao invés, dependia também de um juízo sobre a existência de grave perigo de continuação criminosa ou outros receios relevantes que possam ou permitam inferir a necessidade daquela recolha e subsequente conservação.

3. Na perspectiva do Ministério Público, a omissão na sentença de uma decisão relativa à recolha de amostras de ADN não integra a nulidade prevista no artigo 379.º/1 alínea c) do Código de Processo Penal, uma vez que tal questão não integra, em bom rigor, o thema decidendi dos factos submetidos a julgamento; pelo que, o decurso do prazo para a respectiva arguição não determina a respectiva sanação, tratando-se de uma situação similar à decisão – ou omissão de decisão – relativa a eventuais objectos apreendidos nos autos, em termos da respectiva perda a favor do Estado ou restituição a quem de direito.

4. Consequentemente, pugna-se pela revogação do despacho de fls. 246, indeferindo a promovida recolha de ADN a arguido condenado em pena de prisão superior a três anos, e a respectiva substituição por outro que determine tal recolha.»

1.3. Proferido despacho admitindo o recurso (fls. 257 e 33, respectivamente), pese notificado ao efeito, querendo, o arguido não apresentou resposta ao mesmo.

Ordenada e acatada a instrução do recurso, observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer conducente ao seu provimento.

No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi apresentada a tal parecer.

Aquando do exame preliminar dos autos, porque se não descortinou a emergência de fundamento conducente à sua rejeição liminar ou que obstasse ao seu conhecimento de meritis, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.

Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.


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II. Fundamentação.

2.1. Delimitação do objecto do recurso.

Dispõe o art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido através das conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar (Na doutrina, cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cfr., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193), sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995).

À míngua de questão de que caiba conhecer oficiosamente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente Ministério Público – e que traduzem de forma condensada as razões da sua divergência com a decisão impugnada -, a única questão decidenda consiste em aquilatarmos se deve corrigir-se a sentença prolatada, visto o art.º 380.º do Código de Processo Penal, e, focados que na sua decorrência seja ordenada a mencionada recolha de amostras de ADN do arguido.

Precisando: pese embora a questão colocada, afigura-se-nos porém curial indagar, primeiramente, se é (era) caso de determinar tal recolha (questão, digamos, de índole material), pois só ou apenas sendo a resposta afirmativa assumirá (ou devia ter assumido) conteúdo útil precisar (questão aqui de ordem formal, digamos) o momento adequado em que a mesma haveria/poderia ter sido ordenada: preclusivamente na sentença proferida (tese do despacho recorrido); ou, ainda mesmo posteriormente, como sufraga o recorrente.

Vejamos.

2.2. No sentido de identificar as posições antagónicas postas à nossa consideração, relembremos o teor da promoção apresentada pelo Ministério Público e o despacho judicial que depois sobre ela incidiu. Assim, respectivamente:

[Promoção do Ministério Público]

«A recolha de amostras de ADN a arguido em processo penal encontra-se regulada na Lei n.º 5/2008, de 22.08, cujo primitivo artigo 8.º tinha a seguinte redacção:

“1. A recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172.º do Código de Processo Penal.

2. Quando não se tenha procedido à recolha da amostra nos termos do número anterior, é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída.

3. Caso haja declaração de inimputabilidade e ao arguido seja aplicada uma medida de segurança, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º do Código Penal, a recolha de amostra é realizada mediante despacho do juiz de julgamento quando não se tenha procedido à recolha da amostra nos termos do n.º 1.

4. A recolha de amostras em cadáver, em parte de cadáver, em coisa ou em local onde se proceda a buscas com finalidades de investigação criminal realiza-se de acordo com o disposto no artigo 171.º do Código de Processo Penal.

5. A recolha de amostras de ADN efectuada nos termos deste artigo implica a entrega, sempre que possível, no próprio acto, de documento de que constem a identificação do processo e os direitos e deveres decorrentes da aplicação da presente lei e, com as necessárias adaptações, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais).

6. Quando se trate de arguido em vários processos, simultâneos ou sucessivos, pode ser dispensada a recolha da amostra, mediante despacho judicial, sempre que não tenham decorrido cinco anos desde a primeira recolha e, em qualquer caso, quando a recolha se mostre desnecessária ou inviável.”

Com a entrada em vigor da Lei n.º 90/2017, de 22.08, o referido preceito legal passou a ter a seguinte redacção:

“1. A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.

2. A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.

3 - A recolha de amostra em arguido declarado inimputável a quem seja aplicada a medida de segurança de internamento, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, ainda que suspensa nos termos do artigo 98.º do mesmo Código, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.

4. Em caso de recusa do arguido na recolha de amostra que lhe tenha sido ordenada nos termos dos números anteriores, o juiz competente pode ordenar a sujeição à diligência nos termos do disposto no artigo 172.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

5. A recolha de amostras em cadáver, em parte de cadáver, deixadas em pessoa, animal, coisa ou local, com finalidades de investigação criminal, realiza-se de acordo com o disposto no artigo 171.º do Código de Processo

Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.

6. A recolha de amostras de ADN efetuada nos termos deste artigo implica a entrega, sempre que possível, no próprio ato, de documento de que constem a identificação do processo e os direitos e deveres decorrentes da aplicação da presente lei e, com as necessárias adaptações, da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais).

7. Quando se trate de arguido, em processo pendente ou condenado, em vários processos, simultâneos ou sucessivos, não há lugar a nova recolha de amostra e consequente inserção de perfil, utilizando-se ou transferindo-se o perfil do arguido guardado no ficheiro a que se reporta a alínea g) do n.º 1 do artigo 15.º, exceto se a recolha de nova amostra for considerada necessária pela autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento escrito, que pode ouvir, para o efeito, o INMLCF, I. P., ou o LPC, consoante os casos.

8. Os custos com as recolhas de amostras e com as perícias para investigação criminal são considerados encargos do processo onde são efetuadas, a suportar nos termos gerais.”

Na nova redacção, o n.º 2 do citado preceito limita-se a determinar que, em caso de condenação por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos «é sempre ordenada na sentença» e não após o trânsito em julgado, como anteriormente previsto.

Nesse aspecto, a nova redacção legal não impõe qualquer ponderação sobre a necessidade da recolha de amostra de ADN, o que apenas sucede nos casos previstos na actual redacção do n.º 1: «A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado».

A aludida interconexão consiste no cruzamento do perfil de ADN recolhido ao arguido com os perfis de ADN anteriormente obtidos:

- De amostras recolhidas a arguido em processo criminal pendente; ou

- Por identificação de amostra problema para investigação criminal.

Ora, in casu, não está em causa uma decisão para efeitos de interconexão de perfis de ADN mas, apenas, a mera inserção na base de dados do perfil de ADN de arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos, não sendo aplicável o n.º 1 do artigo 8.º da referida Lei n.º 5/2008, de 22.08.

E, não obstante alguma jurisprudência divergente[1], a mera inserção na base de dados do perfil de ADN de arguido, prevista no n.º 2 do referido artigo 8.º, depende apenas de um único requisito legal e formal: o da condenação «por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos».

Pelos fundamentos supra expostos:

• Promove-se o cumprimento do artigo 8.º/2 da Lei n.º 5/2008, de 22.08, no sentido da recolha de amostras de ADN no condenado para inserção na base de dados previstos no referido diploma.»

[Despacho judicial]

«Fls. 238:

Considerando o teor do citado artigo 8.º, n.º 2 da Lei 5/2008, de 22 de Agosto, que estabelece expressamente que a recolha é ordenada na sentença e não se vislumbrando estarmos perante qualquer situação susceptível de ser enquadrada no artigo 380.º do CPP, indefere-se o requerido.»

2.3. Mostra-se inequívoco, e, em rectas contas sequer tal questão foi controvertida nos autos, saber se, atenta a condenação imposta era caso de se proceder à recolha de amostra no arguido …, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na respectiva base de dados.

Num recente aresto, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, proferido em 18 de Dezembro pretérito, no âmbito do processo n.º 279/16.6PBCTB.C1, sendo Relator o Exmo. Desembargador Luís Teixeira, fez-se um excurso sobre os casos e tempo (logo na sentença ou, posteriormente, e verificados determinados condicionalismos) em que haveria/poderia ordenar-se a recolha de amostras de condenado para posterior inserção do perfil do visado na respectiva base de dados de ADN.

Com referência a dúvidas sobre os pressupostos que alguma jurisprudência colocava acerca dos termos em que haveria de processar-se a ordem de recolha de amostra com vista a obtenção do perfil de ADN do condenado, e com menção, inclusive, a dúvidas igualmente suscitadas sobre o seu alcance constitucional, concluiu-se não emergirem estas últimas e, por outro lado, ser implícita, visto o regime constante da conjugação dos n.ºs 2 e 6 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2008, a aceitação de que a recolha de ADN, na situação de condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos pela prática de crime doloso, incumbir ao juiz, não se tratando de mera faculdade mas sim de obrigatoriedade legal, o que lhe confere a natureza de um poder-dever.

Regime e entendimento que se susceptível de dúvidas no primitivo regime foi definitivamente assumido com a redacção entretanto introduzida ao n.º 2 daquele art.º 8.º, através da Lei n.º 90/2017, de 22.08, cujo passou a ter a redacção seguinte: “A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença.” (sublinhado nosso)

O entendimento acolhido no aresto citado afigura-se-nos efectivamente incontroverso, donde que sem mais delongas concluamos que a resposta à primeira questão é indubitavelmente a de que estando o arguido condenado a uma pena (única) de três anos e seis meses de prisão, se mostrava exigível que, desde logo, a sentença contivesse a ordem de recolha de amostra com vista a obtenção do seu perfil de ADN.

2.4. Mas, e uma vez que tal menção não consta da decisão proferida, qual a sequência? Possível a sua correcção, através da prolação de um distinto despacho ao controvertido como reclama o recorrente, ou precludida a sua possibilidade, visto o elencado art.º 380.º, como decidiu a 1.ª instância?

O mencionado aresto deste TRC recaiu sobre uma decisão da 1.ª instância que não se pronunciou sobre a concreta questão da recolha de amostra de ADN, tendo assumido tratar-se, então, da omissão de um dever de pronúncia, que constituía uma nulidade de sentença, ainda que parcial, restrita a esta mesma questão, ut art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, e, coerentemente com tal entendimento, declarou a nulidade da sentença que havia sido proferida por omissão de pronúncia quanto à questão da recolha de amostra de ADN do arguido para ser inserida na base de dados de perfis de ADN para fins de identificação, e apenas nesta parte, determinando a prolação de uma nova sentença que se pronunciasse sobre esta concreta questão, tendo em conta o legalmente disposto nesta matéria.

No caso que nos ocupa, quiçá por já ter ocorrido o respectivo trânsito em jugado (a 2018.04.01, relembramos) o Ministério Público promoveu a 2018.06.05 no sentido sobredito, decidindo o M.mo Juiz a quo estar-lhe vedada a pronúncia por não ser caso de aplicação do art.º 380.º do Código de Processo Penal.

Na sua obra Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 3.ª edição actualizada, Paulo Pinto de Albuquerque, a págs. 943, em anotação ao art.º 374.º do Código de Processo Penal, epigrafado como Requisitos da sentença, exemplifica que um dos elementos que deve conter o seu dispositivo é a ordem para recolha da amostra com vista a obtenção do perfil de ADN do condenado, constituindo tal omissão nulidade a arguir nos termos contemplados pelo subsequente art.º 379.º.

Tal como a reforma no domínio do processo civil, o processo penal acolhe também no seu art.º 380.º a possibilidade de Correcção da sentença, enquanto mecanismo excepcional que constitui uma importante e necessária limitação ao império absoluto do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, conferindo ao próprio julgador que proferiu a decisão a possibilidade de, sem contender com o mérito da causa, sanar irregularidades cometidas ou omitidas na sentença.

Esta última vertente exactamente a que ocorre no caso presente no qual o M.mo Juiz a quo descurou o art.º 8.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2008, que lhe incumbia ter acatado.

Determinar agora a sua observância em ponto algum contende com uma modificação do decidido, cuja impugnação haveria de estar a coberto do plasmado no art.º 379.º citado, antes se devendo configurar, como exemplifica o recorrente, com a hipótese em que a decisão não tivesse ponderado acerca da perda de objectos a favor do Estado ou sua restituição a quem de direito.

Tudo para concluirmos, assim, que importa proceder à correcção reclamada, e desde já nesta instância – cfr. n.º 2 do citado art.º 380.º -.


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III. Dispositivo.

Ante todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido o qual será substituído pela presente decisão por cujo intermédio se ordena, visto o art.º 8.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2008, a recolha de amostra com vista a obtenção do perfil de ADN do arguido para sua inserção na base de dados prevista no mesmo diploma.

Sem tributação.


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Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019


Brízida Martins (relator)


Orlando Gonçalves (adjunto)



[1] Assim, cf. acórdão do TRL de 11.10.2011 (Agostinho Torres), processo n.º 721/10.0PHSNT.L1-5, publicado em www.dgsi.pt: «A recolha de amostras de ADN, a que se refere o art.º 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/08, de 12-2, não é automática face a uma condenação transitada em julgado, pressupondo a existência de grave perigo de continuação criminosa ou outros receios relevantes que possam ou permitam inferir a necessidade daquela recolha e subsequente conservação; IIº Determinando aquela recolha, a sentença deve fundamentar em concreto aquele perigo, de modo a convencer da sua necessidade e proporcionalidade».
Contra, e no sentido correcto, cf. acórdão do TRL de 05.05.2015 (Alda Tomé Casimiro), processo n.º 241/11.5JELSB.L1-5, publicado em www.dgsi.pt: «Da leitura dos n.ºs 1 e 2 do art.º 8.º da Lei 5/08 de 12.2, resulta que a recolha de ADN é automática, não dependendo de qualquer pressuposto, que a Lei não impõe (com excepção da condenação por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída) e sendo certo que pode ser ordenada logo após a constituição de arguido.
- A automaticidade da recolha resulta ainda da previsão do n.º 6 daquele art.º 8.º, que prevê a possibilidade de ser dispensada a recolha da amostra, mediante despacho judicial, sempre que não tenham decorrido cinco anos desde a primeira recolha e, em qualquer caso, quando a recolha se mostre desnecessária ou inviável. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a possibilidade de dispensa é que terá que ser determinada por despacho fundamentado, não a recolha.
- A intenção do legislador terá sido a de determinar a recolha de ADN como determina a recolha de impressões digitais e, de facto, não se vê como aquela recolha pode restringir direitos fundamentais do arguido, entendendo-se, outrossim, que essa determinação não viola qualquer preceito constitucional».