Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
837/17.1T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: FALSAS DECLARAÇÕES
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 348.º-A DO CP; ART. 29.º, N.º 1, DA CRP
Sumário: I – As diversas acções típicas susceptíveis de preencher o tipo objectivo do crime de falsas declarações p. e p. no art. 348.º-A do CP encontram-se descritas de forma suficientemente precisa e inteligível, permitindo, com adequada precisão, que os destinatários da norma orientem, em conformidade, o seu comportamento.

II – Acresce que, por reporte ao segmento final do art. 348.º-A, podendo uma mesma conduta criminosa preencher vários ilícitos penais, o referido tipo legal de crime resolveu a questão do concurso de crimes, tornando claro que o agente apenas será punido por um deles, a saber, o crime que previr a pena mais grave.

III – Em toda a sua dimensão normativa, o artigo 348.º-A do CP não viola o princípio da legalidade criminal e, consequentemente, o artigo 29.º, n.º 1, da CRP.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por sentença de datada de 24 de janeiro de 2020, proferida pelo Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J1, da Comarca de Castelo Branco, no processo comum n.º 837/17.1T9CTB, foi decidido:
- Condenar a arguida L., pela prática de um crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, no montante total de € 715,00, convertível, em caso de incumprimento, em 73 dias de prisão subsidiária.

2. Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida L., formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):
1. (…)
2. Com a devida vénia, a Recorrente não entende assim, considerando que existe um erro notório na apreciação da prova.
3. Deram-se como provados os factos constantes dos pontos … 8 a 17, 20, 22 a 27 da matéria de facto provada que se impugnam e devem ser considerados não provados.
4. O Douto Tribunal a quo considerou como provado nos factos constantes dos pontos 8 e 9 dos factos provados, que a Arguida, e ora Recorrente, apresentou nas finanças dois requerimentos, contudo, tal afigura-se falso, porquanto tais requerimentos foram apresentados pela mãe da Arguida e assinados por esta a rogo daquela por não saber assinar.
5. Foi também considerado provado nos factos constantes do ponto 10 dos factos provados, que a Arguida, e ora Recorrente, quis justificar a “casa nova”. 
6. Tal não corresponde à verdade.
7. A Recorrente quis, na verdade, justificar a “….” e a “….” que tinha comprado na reunião de agosto de 2006 e à Assistente, sua irmã, respetivamente.
8. Por outro lado, entendeu o douto Tribunal a quo que a Arguida sabia que o prédio que justificara não lhe pertencia.
9. Contudo, o artigo rústico, conforme justificado, não existe, pelo que o objeto da escritura inexiste. A Arguida, tal como os seus irmãos, pensava que a única coisa excluída da Varzea era a casa nova, que para eles era no (…). 
10. Disse a Arguida que “A Varzea para nós era ali aquele bocado” (depoimento da Arguida gravado na audiência de julgamento em 16-12-2019, iniciado às 16:10:49h e terminado às 17:50:03h, minutos 44:33 a 44:36); “mas é como eu digo a casa nova nos dizíamos situada no (…)” (depoimento da Arguida gravado na audiência de julgamento em 16-12-2019, iniciado às 16:10:49h e terminado às 17:50:03h, minutos 44:42 a 44:47); “Porque eu acho que os meus irmãos também estão conscientes como a mim que a casa nova nós não sabíamos que estava na Varzea… uh… Para mim, para mim era mesmo verdadeiramente os terrenos da dos pilares, porque a casa está sobreposta, dos pilares da varanda, estou a falar, agora vou falar uh… da casa da minha mãe. Daí para baixo aquilo é a barreira, uh, para baixo que era a parte das capoeiras, da coisa da furda, aquelas coisas ali do barracão do trator, da casa que era do chão da adega, a (…), e o bocadinho da ribeira. Para nós Várzea era isso” (depoimento da Arguida gravado na audiência de julgamento em 16-12-2019, iniciado às 16:10:49h e terminado às 17:50:03h, minutos 44:56 a 45:26)
11. E não é isso que transparece do levantamento topográfico junto aos autos a fls. … pois a casa nova também está incluída na Varzea. Ora, isto não vai ao encontro do que a Recorrente justificou, pelo que o prédio justificado não existe.
12. Por outro lado, o teor da escritura de justificação trata-se de um expediente técnico utilizado em todos os atos notariais de justificação. 
13. Ora, em conformidade com as regras da experiência comum, não é plausível que a Arguida se tenha dirigido ao cartório e dito o que consta da escritura de justificação.
14. Pelo que não é possível aferir o que efetivamente foi dito pela Arguida, dado que a escritura de justificação não espelha as declarações prestadas pela Arguida por ser impossível que a mesma utilizasse discurso tão técnico e específico.
15. Acresce que resulta da prova documental junta aos autos fls … (documento elaborado na sequencia da reunião de 06/08/2006) que a Arguida comprou a (…) com quintal e furda e barracão do trator por 2.100 €, que pagou aos irmãos conforme docs das fls …, que configuram declarações datadas de julho de 2007, feitas na localidade de (…), assinadas pela Assistente e seus irmãos, nas quais declararam ter recebido a importância de 210,00 € relativos à aquisição da (…). Mais tarde, comprou a (…) à Assistente.
16. E foi isto que a Arguida quis justificar, apenas a “….” e a “(…)”.
17. Serviu de convicção ao douto tribunal a quo a ata do auto de declarações da Arguida/Recorrente em sede de processo de inventário. 
18. Todavia, tal documento não poderia ter sido valorado pois em processo penal, apenas as declarações do Arguido que sejam prestadas no processo devidamente acompanhado por defensor podem ser valoradas, pois não estão salvaguardadas as garantias legalmente e constitucionalmente consagradas do arguido. 
19. Porquanto, não sabemos em que condições foram prestadas, nem qual o aconselhamento jurídico prestado à Arguida na altura. Acresce que tais declarações são antagónicas com a PI do processo n.º (…), que corre os seus termos no Juízo Central Cível de Castelo Branco – Juiz 2, no qual a ora Recorrente figura como Autora.
20. Pelo que sempre se dirá que tais declarações não podem ser consideradas, além de que, ao valorar tais declarações, não estão salvaguardadas as garantias do arguido em processo penal.
21. Quanto ao elemento objetivo, é imposto pelo art. 117.º-C, do Código do Notariado, que para se justificar um prédio, tem de se apresentar três testemunhas que atestem a veracidade do declarante. 
22. In casu, a Arguida apresentou, como testemunhas, os Srs. J., A. e JD..
23. As ditas testemunhas confirmaram as declarações prestadas pela Recorrente.
24. As declarações da Arguida por si só juridicamente nada valem, pelo que não poderia nunca a Arguida, sozinha, cometer o crime pelo qual foi em 1.ª instância condenada.
25. As declarações da Recorrente para terem relevância jurídica é necessário serem corroboradas por três testemunhas. Assim sendo, não poderá nunca estar preenchido o tipo objetivo do crime, pois só com as suas declarações não seria possível fazer a escritura de justificação por usucapião.
26. Por outro lado, face aos factos provados e ao levantamento topográfico junto aos autos verifica-se que o prédio rústico justificado não existe com a composição, área e confrontações constantes da escritura. Assim, o crime é de consumação impossível, uma vez que o objeto da declaração falsa (prédio justificado) não existe. Não existindo qualquer declaração com relevância jurídica falsa, da parte da recorrente.
27. O crime de falsas declarações, p. e p. art. 348.º-A, n.os 1 e 2 do Cód. Penal, trata-se de um crime doloso, pelo que tem de haver dolo do agente para se encontrar preenchido o tipo legal.
28. A Recorrente não prestou falsas declarações, porquanto, exerceu a posse, à vista de todos e sem oposição de ninguém, fez obras, agricultou e pagou tudo quanto era necessário, tendo a convicção de que não lesava ninguém. Mais, pagou aos seus irmãos aquilo que justificou – a (…) e a (…).
29. Acresce que a Arguida, para que os seus irmãos não ficassem prejudicados, em face da doação da casa nova que os seus pais lhe fizeram, resolveu pagar-lhes a quantia de 14.500,00 €, através de transferência bancária para a Assistente, em virtude de esta ser a Cabeça-de-Casal, para que esta dividisse tal quantia por todos os irmãos em partes iguais.
30. Pelo que, no seu entendimento, a Arguida prestou declarações verdadeiras, não tendo agido com dolo. 
31. (…)
32. A Arguida, quando declarou que era possuidora do prédio sito em Varzea, referia-se à “(…)” e à “….”, prédios que adquiriu aos seus irmãos. 
33. Pelo que, não podia a Arguida, ora Recorrente, ser pronunciada pelo crime de falsas declarações p. e p. art. 348.º-A do Cód. Penal, e, salvo o devido respeito que o douto tribunal a quo é merecedor, não poderia nunca ter sido condenada.
34. Nestes termos, e conforme o que já foi dito supra, e em suma, a Arguida não prestou falsas declarações, pois tem a convicção de que não estava a mentir, porque tinha comprado o prédio que justificou, ou seja, a “….” e a “….”.
35. Estamos, por um lado, perante um erro sobre as circunstâncias do facto, em conformidade com o que dispõe o art. 16.º do Código Penal. Por outro, perante um erro sobre a ilicitude, nos termos do disposto no art. 17.º, n.º 1 do Cód. Penal.
36. Mais, podemos ainda dizer que estamos perante uma causa de exclusão da ilicitude e da culpa, uma vez que a Arguida, ora Recorrente, agiu no exercício de um direito próprio, tal como está previsto no art. 31.º, n.º 2, al. b), também do Cód. Penal, uma vez que, conforme já foi dito, a Arguida justificou apenas o que tinha comprado aos seus irmãos, contudo, tal não corresponde à realidade cadastral, o que a Arguida desconhecia por completo.
37. Não obstante, a Notária ter advertido do crime de falsas declarações, o que é certo é que a Arguida estava convicta de que o que estava a declarar correspondia à verdade, pelo que estamos perante uma situação à qual se aplica o disposto no art. 16.º do Código Penal. 
38. Decorre do art. 29.º da Constituição, cuja epígrafe é “Aplicação da lei criminal” e do Princípio da Legalidade, previsto no art. 1.º do Cód. Penal, que não há crime sem lei e, consequentemente, não há pena sem lei. Tal configura o princípio nulla poena sine lege. Princípio este que compreende vários requisitos, sendo um deles a certeza da lei penal.
39. Ora, o crime do qual o Arguido, ora Recorrente, foi acusado e condenado, tem um caráter residual, o que impede a certeza da lei penal que é exigida constitucionalmente, uma vez que este crime só se aplica se outro, mais grave, não se aplicar.
40. Assim, e salvo melhor entendimento, estamos perante um tipo legal que está ferido de inconstitucionalidade.

 

3. O Ministério Público, em primeira instância, e a assistente I. responderam ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida.

4. Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso.  


I. SENTENÇA RECORRIDA

(transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso)

«Factos provados: (…) 
1. No dia 9 de janeiro de 2014, a arguida L. outorgou, perante a notária Dr.ª M., uma escritura de justificação notarial, no Cartório Notarial sito na Rua (…) , em Castelo Branco;
2. Nessa escritura, a arguida declarou “que, com exclusão de outrem, é dona e legítima possuidora do prédio rústico sitio em (…), na freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, que se compõe por cultura arvense de regadio, citrinos, figueiras, oliveiras, leitos de curso de água e construção rural, com a área de novecentos e vinte metros quadrados, a confrontar do norte com (…), sul com (…), nascente com (…) e outro e do poente com herdeiros do (…), inscrito na matriz cadastral sob o artigo (…) secção AA, com o valor patrimonial tributário e atribuído de treze euros e setenta e seis cêntimos, omisso na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco”;
3. A arguida mais declarou “que este prédio veio ao seu domínio e posse no ano de mil novecentos e noventa e um, por doação verbal de seus pais (…) e mulher (…), residentes em (…), na freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, sem que no entanto tivesse chegado a ser lavrado o respetivo título” e “Que, porém desde essa data, entrou na posse do mencionado prédio, que sempre cultivou e explorou agricolamente, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce um direito próprio e na firma convicção de não lesar direitos alheios”;
4. A arguida declarou também naquela escritura “Que a posse que invoca é assim uma posse pacífica, contínua e pública, exercida em nome próprio há mais de vinte anos, pelo que adquiriu o prédio por usucapião, não tendo todavia dado o modo de aquisição documentos que lhe permitam fazer prova do seu direito de propriedade plena”;
5. A arguida declarou ainda “Que não é possível estabelecer a correspondência entre o actual artigo e os artigos anteriores”;
6. Consta da referida escritura que a arguida exibiu perante a Notária um «duplicado do requerimento que havia apresentado no Serviço de Finanças de Castelo Branco – 2, em (…), no qual requer que na parcela 2 onde consta urbano, passe a constar construção rural»;
7. Aquando da outorga da referida escritura, a arguida foi advertida pela Notária que incorria nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações se, dolosamente e em prejuízo de outrem as tivesse prestado, tendo tal advertência ficado a fazer parte integrante da referida escritura de justificação;
8. A arguida, em (…), apresentou, no Serviço de Finanças de Castelo Branco - 2, um requerimento no qual requeria que fosse retificada, no prédio rústico sito em (…), na freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz cadastral sob o artigo (…) secção AA, a parcela 2 da qual consta urbano, no sentido de que a mesma passasse a construção rural;
9. No dia (…), depois de outorgar a referida escritura pública, a arguida apresentou um requerimento, naquele serviço de finanças, em que desistiu do requerimento referido em 8., tendo, nesta sequência, o processo de cadastro sido arquivado;
10. Contudo, a referida «construção rural» a que se reportava a arguida, quer no requerimento apresentado no serviço de finanças, quer na escritura de justificação, correspondia ao prédio urbano («casa nova») inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), da freguesia de (….);
11. Os factos declarados pela arguida naquela referida escritura são falsos, por não corresponderem à verdade;
12. Os pais da arguida, (…) e (…), não lhe doaram em vida o supra mencionado prédio, nem a parte rústica, nem a parte urbana;
13. Por outro lado, a arguida não tem vindo a cultivar e explorar agricolamente o prédio conforme referido na escritura;
14. No supra mencionado prédio está implantada a casa de morada de família, conhecida no seio familiar da arguida por «casa nova», dos de cujus (…) e mulher (…), falecidos respetivamente em 20 de fevereiro de 1996 e 23 de janeiro de 2014;
15. Assim, foi nesta casa de habitação que (…) ali viveu até à sua morte, em 1996, e (…) até ter sido internada num Lar de idosos, em 2009;
16. Era, assim, na parte urbana do prédio, na casa nova, que os de cujus residiam, dormiam, tomavam as refeições, recebiam visitas, filhos e família e aí faziam vida social;
17. Por outro lado, os pais da arguida sempre cultivaram e exploraram agricolamente a parte rústica do prédio (até aos períodos descritos em 15.); 
18. Era também na parte rústica do prédio que os de cujus edificaram, pelo menos, dois barracões onde acondicionavam um trator agrícola, alfaias agrícolas, produtos agrícolas e ferramentas várias e uma capoeira onde criavam galinhas;
19. Correu termos no Cartório Notarial de Castelo Branco, a cargo da Notária Dr.ª (…), sito na Rua(…), em Castelo Branco, os «Autos de Inventário n.º (…)», onde se discutia (entre outros) a propriedade do imóvel inscrito na matriz cadastral, na parte rústica, sob o artigo (…) da secção AA, e do imóvel inscrito na matriz predial urbana, na parte urbana, sob o artigo (…);
20. No âmbito deste referido processo de inventário, no dia (…), em declarações de parte, a arguida confirmou ter outorgado a escritura de justificação aqui em causa, tendo registado em seu nome o artigo (…) secção AA, sito na (…), com uma construção rural neles existente, mais dizendo que «a construção rural ali existente é a casa nova que corresponde atualmente ao artigo (…)», e que «não justificou a casa por não ter licença de utilização»;
21. Os «Autos de Inventário n.º (…)» foram suspensos e remetidos para os meios judicias comuns, correndo assim termos no Tribunal Judicial da Comarca da Castelo Branco, no Juízo Local Cível – Juiz 2, a ação de processo comum n.º (…);
22. Ao atuar conforme o descrito, apresentando o referido requerimento no serviço de finanças, prestando as referidas declarações em sede de outorga da escritura de justificação e ali exibindo os referidos documentos, pretendeu a arguida obter um título justificativo da aquisição da propriedade do imóvel sito em (…), no lugar de (…), freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, que sabia não lhe pertencer (quer a parte rústica inscrita na matriz sob o artigo (…) da secção AA, quer a parte urbana, inscrita na matriz predial sob o artigo …..);
23. Ao atuar conforme o descrito, prestando as referidas declarações na escritura de justificação, sabia a arguida que iria fazer constar da escritura de justificação, que sabia ser documento autêntico, um facto juridicamente relevante pois o imóvel (parte rústica e urbana) não era propriedade da arguida;
24. Ao declarar, nos termos supra referidos, factos que bem sabia que não correspondiam à verdade, a arguida fez crer no Cartório Notarial que as declarações que prestou eram verdadeiras, logrando, assim, que a escritura fosse lavrada, para obter a inscrição e registo do prédio a seu favor;
25. A arguida sabia que prestava as declarações supra referidas perante uma Notária no exercício das suas funções;
26. A arguida sabia que estava obrigada a prestar declarações com verdade e que, mentindo, incorria em responsabilidade criminal; não obstante esse conhecimento, a arguida prestou declarações falsas, depois de ter sido advertida que era obrigada a declarar com verdade, sob pena de não o fazer incorrer em responsabilidade penal, tendo perfeita consciência da falsidade do declarado e que com este comportamento defraudava a fé pública e a credibilidade de que goza uma escritura notarial, o que era da sua vontade;
27. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, perfeitamente ciente do carácter proibido que a sua conduta assumia e que a mesma era punida por lei penal e, não obstante todo este conhecimento, a arguida não se absteve de agir da forma descrita.

Mais se provou que:

(…).

III. III. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

(…)

IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS

(…).

V. ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA

(…).


*

QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

É o que sucede no caso dos autos, no tocante ao pedido de substituição da pena de multa por uma admoestação (art. 60º) ou dispensa de pena (art. 74º do Código Penal) efetuada pela recorrente no final das suas conclusões – e apenas no petitório.

Na verdade, compulsada toda a motivação do recurso, em lado algum a recorrente coloca em causa quer a medida da pena concretamente aplicada, quer a sua substituição, sendo a motivação completamente omissa no que toca à pena aplicada.

Não se encontrando motivado, nem, em rigor, constando das conclusões formuladas, não será atendido, nesta parte, o pedido formulado pela recorrente.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

a) Utilização de meio de prova proibido;

b) Matéria de facto: erro notório na apreciação da prova;

c) Preenchimento dos elementos do tipo legal de crime e verificação de causas de exclusão da ilicitude e da culpa; e

d) Inconstitucionalidade do tipo legal de crime.


*

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Meio de prova proibido

O art. 355º do Código de Processo Penal estabelece os princípios vigentes em sede de proibição de valoração de provas, da seguinte forma:

1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos seguintes.”

O art. 357º do Código de Processo Penal, por seu turno, rege a admissibilidade da reprodução da leitura de declarações anteriormente feitas no processo, e reduzidas a auto, nos termos dos arts. 99º, n.º 1, e 275º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo a leitura de ficar a constar da ata de julgamento para as declarações em causa poderem ser consideradas meio de prova válido - sujeitas, naturalmente, ao principio da livre apreciação consagrado no art. 127º do mesmo Código.

Relativamente à prova documental constante dos autos, nomeadamente a indicada como meio de prova na acusação, tem sido unanimemente entendido não ser necessária a sua leitura ou exibição em audiência, porquanto a sua análise está ao dispor dos sujeitos processuais, que relativamente à mesma são livres de exercer o contraditório em sede de julgamento, pela forma que considerem adequada (veja-se, a título exemplificativo, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 87/99, disponível em www.pgdlisboa.pt).

A recorrente coloca em causa a valoração das declarações que prestou no âmbito de processo de inventário, uma vez que não foi assistida por defensor, condição para que as mesmas pudessem ser valoradas.

No entanto, parece a recorrente ignorar que as declarações em causa não foram prestadas no âmbito do processo, nem num outro processo penal, tratando-se de declarações extraprocessuais, referindo-se a fundamentação da matéria de facto vertida na sentença recorrida às declarações constantes da Ata de Declarações de Parte no processo de inventário que constam de fls. 21 a 26 dos autos.

Desde logo, compulsada a fundamentação da matéria de facto dada como provada, constata-se que é afirmado, na sua pág. 8, ter este documento (onde e encontram vertidas declarações prestadas pela arguida naquele processo de inventário) sido determinante para dar como provada a matéria constante dos pontos 10 e 20 – a saber, que a “construção rural” a que se reportava a arguida na escritura de justificação correspondia à “casa nova”; e que na data mencionada na ata de declarações de parte a arguida produziu tais declarações. 

Atendendo ao teor daquele facto provado em 20, e tendo em consideração o crime que é imputado nos autos à recorrente (falsas declarações), as declarações extraprocessuais proferidas pela arguida constituem elas próprias elemento do crime, sendo imprescindível a consideração de depoimento ou declaração proferida como facto constitutivo do crime, relevante para a decisão da causa penal.

No caso, trata-se de declarações que foram consideradas de uma forma muito limitada, e que foram consideradas em conjunto com o alegado em requerimentos apresentados pela recorrente no processo de inventário, o requerimento apresentado no Serviço de Finanças relativamente ao prédio, a que se refere o facto provado em 10, e as declarações prestadas pela recorrente em audiência de julgamento.

Atendendo ao teor dos factos 10 e 20, impõe-se concluir que o meio idóneo para a sua prova é a certidão extraída do processo em que a recorrente profere as declarações em causa, a qual, para todos os efeitos, está sujeita ao regime próprio da prova documental.

Acresce que “a valoração da prova documental não se encontra sujeita às mesmas restrições que a prova pessoal, não estando dependente da sua exibição, leitura ou audição em julgamento” (cf. Ac. da Relação de Évora de 8.3.2018, no proc. 35/16.1T9STR-E1, em www.dgsi.pt) – nem, naturalmente, a prova documental que consubstancia o próprio facto dado como provado.

Pelas razões expostas, e atendendo aos limites com que foi considerado o documento que contém as declarações da arguida, conclui-se que a valoração feita pelo Tribunal a quo é lícita.

Consequentemente, não haverá lugar à invalidação do juízo de prova que assentou nessa valoração.

                                                           *


2. Matéria de facto: erro notório na apreciação da prova

Na conclusão 3 do seu recurso, a recorrente anuncia pretender impugnar os factos provados nos pontos 8 a 17, e 22 a 27 da matéria de facto provada.

E, ao longo da sua motivação recursiva, a recorrente invoca ainda padecer a decisão do vício de erro na apreciação da prova.

Importa, em primeiro lugar, efetuar a distinção entre as duas vias possíveis de efetivar o recurso sobre a matéria de facto, e que são as seguintes:

1º - através da arguição de vício de texto da decisão recorrida, nos termos do art. 410º, n.º 2, do CPP; ou

2º - através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.

No primeiro caso, trata-se de um vício da decisão, sendo considerado como incidente sobre matéria de direito, porquanto terá de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e versar sobre uma das seguintes vertentes:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou seja, que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento dos factos (e não da prova) necessários à decisão de direito;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, a contradição na própria matéria de facto fundamento da decisão de direito, seja entre os factos declarados provados e não provados, quer entre a fundamentação probatória da matéria de facto (v. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8ª ed., pág. 77-78);
c) Erro notório na apreciação da prova, que é a desconformidade entre os factos provados e a prova produzida em audiência, o erro ostensivo e evidente que qualquer homem de formação média dele dá imediatamente conta, através do que consta da decisão recorrida, por se fundar em juízos ilógicos, arbitrários ou que desrespeitem as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis (cf. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pág. 72 e ss., e Germano Marques da Silva, direito Processual Penal Português, Do Procedimento, Univ. Católica, 2018, pág. 323 e ss.).

Porém, e salvo o devido respeito, não se enquadra a sua motivação recursiva em qualquer dos vícios da decisão previstos na norma referida (art. 410º, n.º 2). Na verdade, nenhuma insuficiência ou erro notório na apreciação da prova vêm invocados na motivação e nas conclusões enunciadas pelo recorrente, antes resultando que a recorrente pura e simplesmente discorda da avaliação da prova produzida efetuada pela primeira instância – recorrendo inclusive a elementos exteriores à própria sentença para fundamentar a sua conclusão recursiva.

Refira-se, aliás, que compulsada a factualidade apurada e a fundamentação vertida na decisão recorrida, não se vislumbra, através da análise do texto da decisão (requisito fundamental para a aplicabilidade do n.º 2 do art. 410º do CPP), a existência de qualquer de erro notório, nos termos acima enunciados. Por outro lado, constituindo o erro notório na apreciação da prova uma desconformidade com a prova produzida em julgamento ou com as regras da experiência (a saber, decidiu-se contra o que se provou ou não provou, ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido), nunca se inclui no mesmo uma sindicância do recorrente à forma como o tribunal recorrido valorou as provas perante si produzidas em audiência de julgamento, segundo o princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º do CPP.

Em suma, pretendendo o recorrente sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido, e que determinou o assentamento dos factos objeto do presente recurso, encontramo-nos, pois, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412º do CPP.

Neste caso, a recorrente teria de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, devendo especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo a recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

           

E que impugnação é efetuada pela arguida no recurso interposto?

A motivação recursiva refere, de forma genárica, uma impugnação dos factos provados em 8 a 17, e 22 a 27.

Vejamos qual a impugnação efetuada, atentos os requisitos enunciados:


Ø Factos provados em 8 e 9:

8-A arguida, em (…), apresentou, no Serviço de Finanças de Castelo Branco -2, um requerimento no qual requeria que fosse retificada, no prédio rústico sito em (…), na freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz cadastral sob o artigo (…) seção AA, a parcela 2 da qual consta urbano, no sentido de que a mesma passasse a construção rural;

9-No dia (…), depois de outorgar a referida escritura pública, a arguida apresentou um requerimento, naquele serviço de finanças, em que desistiu do requerimento referido em 8, tendo, nesta sequência, o processo de cadastro sido arquivado

Como meios de prova para concluir de forma distinta à consignada como provada, afirma terem tais requerimentos sido apresentados pela mãe da arguida, e por esta assinados por aquela não saber assinar.

No entanto, tal alegação não tem correspondência nos documentos em causa, constantes de fls. 59 e 60 dos autos, porquanto ambos são titulados e assinados pela arguida, L., na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de M..

Tanto basta para a improcedência da impugnação efetuada.


Ø Facto provado em 10:

“10- Contudo, a referida «construção rural» a que se reportava a arguida, quer no requerimento apresentado no serviço de finanças, quer na escritura de justificação, correspondia ao prédio urbano («casa nova») inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…)

A recorrente afirma que pretendeu antes justificar a (…) e a (…), que teria comprado à assistente, sua irmã, em agosto de 2006. Invoca para prova desta versão as suas declarações, prestadas em audiência de julgamento.

Da fundamentação da sentença consta, a propósito, o seguinte: “Acresce que as condutas adotadas pela arguida – que assumiu ter querido adquirir a (…) e também a ‘….’ (…) são manifestamente incompatíveis com a postura que a mesma disse ter assumido, ou seja, a postura de não querer herdar ou ficar com o que quer que fosse e de só ter marcado presença na reunião ocorrida em 2006 por insistência da sua mãe e da assistente, que lhe tentavam fazer ver que era herdeira como os outros (…)

Diga-se ainda que foi notória a fragilidade das declarações da arguida, em particular quando inquirida de forma mais concreta e incisiva sobre algumas das suas atuações, tendo a mesma procurado desresponsabilizar-se, dizendo que tinha assinado o que lhe tinham dado para assinar, que não tinha culpa do que a Dra. (…) fazia e que nem percebia o português (quando é manifesto que, apesar de ter algumas dificuldades, a arguida percebeu perfeitamente o que lhe era perguntado, sabendo igualmente ler nesta língua).

Além de as declarações da arguida terem sido inconsistentes e inverosímeis, há que mencionar que as mesmas foram ainda frontalmente contrariadas pelas declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas de acusação (…)”.

Em suma, de forma lógica, coerente, e consentânea com a experiência comum, não atribuiu o tribunal a quo credibilidade às declarações prestadas pela arguida em julgamento – o que a recorrente pretende inverter, substituindo a sua própria convição à convição do tribunal, o que manifestamente não constitui fundamento para o provimento da sua pretensão.


Ø Quanto aos demais factos:

Não especifica a recorrente quais os pontos de facto em concreto que pretende impugnar através de outros meios de prova que indica, como o levantamento topográfico ou o que designa de “expediente técnico utilizado em todos os atos notariais de justificação”, não correspondendo ao que “efetivamente foi dito pela arguida” – o que não é percetível, uma vez que o que decorre das regras da experiência comum é que os factos transmitidos pelos outorgantes de qualquer ato notarial são expressos em linguagem técnico-jurídica adequada, e nada mais -; ou a prova documental que refere no art. 14º da sua motivação, de forma claramente insuficiente para a respetiva identificação nos autos.

De modo genérico, pretende a recorrente impugnar a prova de que “sabia que o prédio que justificara não lhe pertencia” (art. 9º da motivação), sem esclarecer qual o facto provado que coloca em crise (o 23? 24? 25?...), que “a Arguida quis justificar, apenas, a ‘….’ e a ‘…’ (art. 15º da motivação), sem cumprir o ónus imposto pelo n.º 3 do art. 412º do Código de Processo Penal.

Assim, em lugar de indicar de forma especificada cada um dos factos que pretende impugnar, e carrear, facto a facto, os elementos imprescindíveis à pretendida impugnação, limita-se a discordar, genericamente, das conclusões referidas que o tribunal a quo terá alcançado, efetuando uma distinta interpretação geral da prova produzida.

Em suma, o recurso interposto, nesta parte, não pode ser considerado como incluindo uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pois não é cumprido o ónus da especificação referido no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, na medida em que não são indicados, nem na Motivação nem nas Conclusões, os concretos meios de prova que, para cada um dos factos impugnados, deveriam ser atendidos, indicando o específico conteúdo da prova, efetuando a correspondência aos factos que entende erroneamente julgados, e explicando o motivo pelo qual essa prova impõe decisão diversa (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 1144).

Desta feita, conclui-se pela inexistência de vícios da decisão (art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal), pela improcedência da impugnação da matéria de facto efetuada, e pela rejeição da restante impugnação da matéria de facto anunciada.

3. Preenchimento dos elementos do tipo legal de crime, e verificação de causas de exclusão da ilicitude e da culpa

No tocante ao preenchimento do tipo objetivo do crime de falsasa declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do Código Penal, entende a recorrente que, impondo o art. 117º-C (norma citada certmente por lapso) do Código do Notariado a intervenção de 3 testemunhas para atestar a veracidade das declarações no processo de justificação notarial, as declarações da arguida, só por si, nada valem, não tendo relevância jurídica se não existir tal corroboração – concluindo que não poderá cometer o crime desacompanhada daquelas testemunhas.

Estabelece a norma incriminadora que “Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”; sendo certo que “Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa” (art. 348º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal).

Assim, comete este crime quem:
a) Atestar falsamente a funcionário no exercício das suas funções ou à autoridade pública; ou
b) Declarar falsamente a funcionário no exercício das suas funções ou à autoridade pública;
c) Identidade; ou
d) Estado;
e) Outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos próprios ou alheios.

Nesta última alínea inclui-se a escritura de justificação notarial, cuja outorga se encontra regulada nos arts. 89º e s. do Código do Notariado.

O art. 89º, n.º 1, sob a epígrafe Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, estabelece o seguinte:

1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.

E o art. 96º do mesmo Código do Notariado, no seu n.º 1, dispõe que “As declarações prestadas pelo justificante são confirmadas por três declarantes”.

Ou seja, pressupõe a outorga do documento autêntico (art. 363º, n.º 2, do Código Civil) a emissão de declaração do interessado, e a sua confirmação por 3 testemunhas/declarantes não interessados. A partir do momento em que este requisito (declaração do interessado + confirmação por 3 pessoas não interessadas) se encontre preenchido, e que o documento autêntico seja exarado em conformidade com as declarações do interessado, o crime encontra-se consumado.

É verdade que obstaria à verificação do crime, e mesmo à outorga da escritura de justificação, a não corroboração por 3 pessoas das declarações que o interessado efetue para o fim visado; porém, no caso tal requisito encontra-se preenchido, nada obstando a que seja atribuída relevância jurídica à escritura pública.

Nem a exigência legal de corroboração das declarações do interessado por 3 declarantes impõe que sejam todos acusados e julgados pela prática do crime, opção que cabe ao titular do inquérito, e detentor da competência para acusar: o Ministério Público.

Sendo o crime de falsas declarações um crime comum, a comparticipação criminosa/autorias paralelas rege-se pelas suas regras próprias (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª ed., pág. 1109).

Relativamente ao alegado facto de o prédio justificado não existir, sendo o crime de consumação impossível, não se encontra refletido na factualidade provada, antes constando que a recorrente pretendeu obter um título justificativo da aquisição da propriedade de um prédio rústico com a área de 920 m2, inscrito na matriz sob o art. (…), seção AA, e ainda a parte urbana inscrita na matriz sob o art. (…), prédios esses que existem, tendo sido agricultados pelos pais da arguida, que residiram na casa de habitação aí existente (factos provados em 2, 6, 8 a 10, e 14 a 18).

Improcede, assim, a argumentação da recorrente.

Quanto ao elemento subjetivo do crime:

O crime previsto no art. 348º-A do Código Penal impõe a prova do dolo, em qualquer das suas vertentes (art. 14º do Código Penal).

No caso, a procedência da alegação recursiva da arguida dependia da prévia alteração da matéria de facto, nomeadamente dos factos provados em 22, 23, 24, 25 e 26.

Na sentença crime, o direito é aplicado aos factos declarados como provados, conforme decorre do art. 368º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal. As questões de direito a decidir são, assim, as que os factos provados suscitem.

Assentando a recorrente a sua alegação recursiva em factos contrários aos que ficaram provados, a saber, que prestou declarações verdadeiras ou na convição de que eram verdadeiras (o que não se provou), tanto basta para a improcedência da sua pretensão – concluindo-se, como fez o tribunal a quo na decisão recorrida, pelo preenchimento do elemento subjetivo do tipo legal de crime em causa nos autos.

- Causas de exclusão:

O mesmo se diga quanto à verificação das causas de exclusão cuja aplicação é preconizada pela recorrente.

Estabelece o art. 16º, n.º 1, do Código Penal que “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo legal de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”; acrescentando o nº 2 que “O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”.

Por sua vez, o art. 17º, nº 1, do mesmo Còdigo dispõe que “Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.

Trata-se de causas de exclusão da culpa e/ou ilicitude distintas, que a recorrente não fundamenta, bastando-se com a afirmação de não ter prestado falsas declarações, por ter a convição de não estar a mentir, porque tinha comprado o prédio que justificou.

Esta matéria pressupunha a prévia alteração da matéria de facto, através de uma efetiva impugnação da matéria de facto que a recorrente não efetuou.

Como acima se referiu, a sentença pronuncia-se sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos declarados como provados (art. 368º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Assim, a ausência de factos provados donde se possa extrair a verificação de qualquer uma das mencionadas causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conforme refere a decisão recorrida, determina, sem margem para dúvidas, a improcedência do argumento recursivo em análise.

Reafirma-se, pela sua correção, o que consta da decisão recorrida: “Não se tendo provado quaisquer factos que preenchessem os pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que a arguida cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”.


f) Inconstitucionalidade do tipo legal de crime

A recorrente alega que o crime de falsas declarações tem um caráter residual, impedindo a certeza da lei penal exigida na Constituição da República Portuguesa.

Assim, defende que a expressão “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”, na parte final do n.º 1 do art. 348º-A do Código Penal, viola o princípio consagrado no art. 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se o próprio tipo legal de crime ferido de inconstitucionalidade.

Vejamos:

O princípio constitucional da legalidade penal, mais concretamente, a exigência de determinabilidade do conteúdo da lei criminal, encontra-se consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, e assenta no seguinte pressuposto (citando o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 716/12, de 20.2.2013, rel. João Cura Mariano): “num Estado de direito democrático, a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior», consagrando um dos princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal. Este princípio determina que a descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral”, tomo I, pág. 186, da 2ª ed. da Coimbra Editora). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do direito criminal (cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, ob. cit., pág. 495, e Lopes Rocha, A função de garantia da lei penal e a técnica legislativa, in Legislação – Cadernos de Ciência e Legislação, n.º 6, janeiro-março de 1993, pág. 25).

O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (Constituição Portuguesa Anotada, org. por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora, 2010, pág. 672), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas “normas penais em branco”, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa.»”

Assim, o que está em causa é saber se o crime de falsas declarações, previsto no acima transcrito art. 348º-A do Código Penal, é desconforme à Constituição por não cumprir as exigências do princípio da tipicidade, mercê do conteúdo do tipo legal ser demasiado genérico.

A resposta tem de ser positiva.

Na verdade, as várias ações típicas suscetíveis de preencher o elemento objetivo do tipo de ilícito em questão encontram-se descritas de forma suficientemente precisa e inteligível, permitindo, com suficiente precisão, que os destinatários da norma orientem o seu comportamento.

Acresce que, podendo uma mesma conduta criminosa preencher vários crimes (como sucede, p. ex., com os crimes previstos nos arts. 359º e 360º do Código Penal), o tipo legal de crime resolveu a questão do concurso de crimes, tornando claro que o agente apenas será punido por um deles, a saber, o crime que previr a pena mais grave. Daqui não decorre igualmente a violação do referido princípio constitucional.

Não se mostra, pois, violado, com esta incriminação, o princípio da legalidade criminal.


*

DECISÃO

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso interposto pela arguida L., mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UC’s a taxa de justiça – arts. 513º do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III anexa ao mesmo Regulamento.

Coimbra, 17 de fevereiro de 2021

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora)

João Bernardo Peral Novais (adjunto)