Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/13.9GBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Data do Acordão: 10/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 2, E 143.º, N.º 1, AMBOS DO CP
Sumário: I - O arguido que, no decurso da vivência em comunhão de cama, mesa e habitação com a ofendida, a agarra e empurra, causando-lhe, como consequência directa e necessária dessa conduta, dores e equimoses no tórax e no braço esquerdo, lesões determinantes de cinco dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral, comete, não o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, mas tão só o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do mesmo diploma.

II - Efectivamente, esta ofensa à integridade física, ainda que tenha ocorrido no âmbito de um relacionamento análogo ao dos cônjuges, não tem intensidade adequada a ofender de forma significativa a dignidade da vítima.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório
Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular nº 32/13.9GBLSA do Tribunal Judicial da Lousã, o arguido A..., identificado nos autos, foi submetido a julgamento acusado da prática de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, alíneas a) e 2 do Código Penal.
Realizada a audiência de julgamento, em 2 de Julho de 2013 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente por parcialmente provada a acusação pública, e, por conseguinte, condeno o arguido A...:
a) Pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. b), e c) e nº2 do Código Penal, na pena de 27 meses de prisão (dois anos e três meses).
b) Suspendo a execução da pena de prisão, pelo período de 27 meses (dois anos e três meses), a contar do trânsito em julgado da presente decisão, subordinada ao Regime de Prova, prevista nos artigos 53º a 59º do Código Penal, assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão que permita a consciencialização do arguido da gravidade dos comportamentos violentos e, a sua responsabilização pelos mesmos, com realce para a aprendizagem e utilização de estratégias alternativas ao comportamento violento respeitando a dignidade das pessoas que lhe estão próximas.
c) Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 21º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 112/2009,de 16 de Setembro e 82.º-A do Código de Processo Penal, arbitro à vítima, como indemnização pelas dores, incómodos, constrangimentos e sofrimentos causados, a quantia de 300€ (trezentos euros).
d) Condeno-o ainda nas custas do procedimento criminal, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s, nas quais se inclui: a taxa de justiça, que fixo em três (3) unidades de conta; os demais encargos do processo, que integram a compensação legalmente devida pela intervenção de defensor oficioso (arts. 513º/1 e 514/1, ambos do CPP, e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Inconformado, recorreu o arguido A..., extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. Vai o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssima Juiz do Tribunal Judicial de Lousã, quer quanto à matéria de direito, quer quanto à matéria de facto.
2. O presente recurso é interposto da sentença proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Lousã, pelo qual o Arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, nº 1, al. b), e c) e nº 2 do Código Penal, na pena de 27 meses de prisão, tendo a sua execução sido suspensa por idêntico período subordinada ao regime de prova.
3. Com o devido respeito, o Arguido discorda da decisão proferida por entender que o Tribunal a quo analisou erradamente a prova produzida em audiência de julgamento violando os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
4. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nas declarações do Arguido, nas declarações da testemunha Sr.a C..., nas declarações de dois agentes da GNR do posto da Lousã, num conjunto de post-its e numa comunicação deixada num guardanapo.
5. Sucede que em momento algum ficou demonstrado que o recorrente tivesse ofendido a integridade física da sua companheira.
6. No caso sub judice, a queixosa, nos termos do art.º 134°, alínea a) do Código de processo Penal, declarou não pretender prestar declarações.
7. A Sr.a C..., a par da ofendida, era a única testemunha que poderia esclarecer se o Arguido, motivado por ciúmes, agrediu a sua companheira.
8. Ora o certo é que esta testemunha, no seu depoimento, declarou não ter conhecimento que o recorrente tivesse agredido a sua companheira, a tivesse maltratado ou sequer lhe fechado a porta, sendo desconhecedora do que houvera sucedido entre o casal.
9. Tal testemunho não passa de uma presunção, sendo especulativo e conclusivo.
10. Não se concebe e consente que o Tribunal a quo se tivesse ancorado a tal testemunho, puramente abstracto para dar como provado os pontos 3, 4, 5, 6 e 7 da douta sentença.
11. Transcreve-se na douta decisão, sobre grave erro na apreciação da prova de julgamento, que "Primeiro ponto, não se tratava, pois, de uma banal e frequente conversa entre o casal, mas de uma discussão, e tempestuosa. Note-se que o ruído seria tão forte que foi ouvido pela vizinha do apartamento da frente, a testemunha C... que se encontrava aquela hora já a dormir."
12. Pelas referências a inquirições realizadas pela Meritíssima Juiz, pelo Sr. Procurador Adjunto do Ministério Público e pelo Defensor do Arguido, a mesma testemunha, C..., disse ter sido acordada com o toque da campainha porquanto se encontrava a dormir.
13. De resto, transcreve-se na douta decisão do Tribunal a quo, que "Foi esta vizinha que acabou por chamar a policia que se deslocou aquela hora da manhã ao local, conforme confirmaram os agentes policiais ouvidos pelo tribunal".
14. Todavia certo é que, quer no ponto 8 da fundamentação de facto, quer pelo depoimento do Sr. agente B..., resulta o contrário. Quem chamou a polícia foi a ofendida.
15. Transcreve-se ainda na douta decisão do tribunal a quo, parte de fundamentação de facto, ponto 10, que" .... Não se eximiu ainda o arguido de assim actuar mesmo quando a ofendida se encontrava grávida e, portanto, em situação de maior fragilidade, assim como não se coibiu de o fazer perante a filha menor de ambos e o filho da ofendida". Porém, a verdade é que, conforme o tribunal recorrido considerou, logo no ponto 1 dos factos não provados, sob epigrafe "B) Factos Não Provados", não foi feita prova sobre tal matéria, motivo pela qual nunca poderia constar de matéria dada como assente.
16. O Arguido, sem dever nem temer, não se remetendo ao silêncio como era faculdade, aceitou contar ao tribunal o sucedido, dizendo em verdade precisa e clara o que tinha acontecido na noite do dia 24 de Janeiro de 2013.
17. Do crivo de tal depoimento logrou-se fazer prova de que o que houve foi uma pequena discussão gerada entre o casal, porquanto a sua companheira houvera recebido, no seu telemóvel pessoal uma mensagem de um suposto amigo à qual não logrou dar justificação ao Arguido.
18. Compreensivelmente, sendo natural no seio familiar, o Arguido, cansado de tentar obter justificação da mensagem recebida, abordou-a naquela noite do dia 24 de Janeiro de 2013, sendo que esta não terá reagido bem.
19. Tal como o Arguido referiu gerou-se uma pequena discussão, tendo a ofendida, assim que o menor F... entrou na cozinha, empurrado o Arguido ao qual este ripostou, tendo tal episódio sido singular e pontual na vida do casal.
20. Não se aceita que o tribunal a quo não tenha valorado tal depoimento.
21. Não se apreende que o tribunal a quo não tenha atendido a credibilidade de um depoimento estruturado e com sequência lógica do desenrolar dos acontecimentos.
22. As declarações do Arguido para além de precisas, concretas e consistentes, foram incompreensivelmente desvalorizadas por parte do tribunal.
23. Caiu em excesso o tribunal a quo ao registar o depoimento do Arguido como sendo de parca concretização de factos.
24. Se atentarmos a fls. 11 dos autos, assim como fls. 24 e 25, vemos que o Arguido apresentou participação criminal contra a ofendida, provando-se sob perícia médica, que na ocasião lhe houvera sido realizada, que o próprio apresentava marcas no corpo de agressão física provocados pela ofendida, o que acaba por corroborar a versão apresentada pelo Arguido.
25. Isso mesmo confirmaram os agentes da GNR, guarda principal B... e guarda principal D..., que se deslocaram na noite do dia 24 de Janeiro de 2013 a casa do casal para registar a ocorrência e receber mútuas participações.
26. Não vislumbramos em que sentido podiam os depoimentos dos Senhores Agentes da GNR elucidar factos que em momento algum poderiam ter sido dado como provados.
27. Na verdade, tais depoimentos são elucidativos do que terá ocorrido naquela noite e corroboram na íntegra aquela que foi a versão que o Arguido prestou em sede de audiência de julgamento.
28. Sucede porém que, contrariamente ao que se impunha, negligenciou o Tribunal a quo os depoimentos do guardas principais.
29. Ambos referiram serem visíveis marcas de agressão no corpo do Arguido e não na ofendida.
30. Impunha-se que o Tribunal a quo, ainda que cautelarmente, ponderasse e admitisse a versão que foi apresentada pelo Arguido, dando-lhe credibilidade, porque sólida, segura e, agora, fortalecida com o depoimento destas testemunhas.
31. O crime de violência doméstica encontra-se p. e p. no artigo 152° do Código Penal, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro - vigente a partir de 23 de Março de 2013, sob a epígrafe "Violência doméstica".
32. O objectivo do tipo legal de crime em causa, como é consabido, é a de prevenir as frequentes e subtis, formas de violência no âmbito da família, saúde física e psíquica.
33. A razão de ser deste tipo legal é a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
34. Relevante neste tipo de crime é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam susceptíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
35. A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de "maus-tratos físicos ou psíquicos", que podem incluir, designadamente, "castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais".
36. Da actual descrição do tipo do artigo 152°, supra parcialmente coligido, resulta, a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges.
37. O tipo legal de crime é preenchido mesmo que os maus tratos, ainda que praticados uma só vez, revistam de gravidade suficiente.
38. Por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vitima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
39. Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de "maus tratos".
40. Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, inequivocamente, particularmente censurável aos olhos da comunidade.
41. no que respeita à intensidade, as situações de violência doméstica têm de ser aptas para lesar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
42. Do exposto, e in casu, verdadeiramente o que temos não é, salvo douta e melhor opinião, comportamentos e acções que, em si mesmo, se enquadrem no tipo legal de um crime de violência doméstica.
43. Do exposto, não existe na agressão por parte do arguido, uma intensidade de tal maneira forte que ofenda consideravelmente a integridade física ou psíquica da sua companheira de um modo especialmente desvalioso, particularmente censurável, ou sequer uma ofensa à saúde psíquica, física e emocional que tivesse sido intenso ao ponto de pôr em causa a própria dignidade da sua pessoa.
44. O Arguido, a ser condenado, tendo em conta a prova produzida em audiência de julgamento e operada a alteração da qualificação jurídica prevista no art.º 358.°, n.º 3, do C.P.P., tal como se impunha, haveria de ser sempre por um crime de ofensas a integridade física simples p. e p. no artigo 143.° do Código Penal.
45. Para melhor ilustrar e fundamentar o exposto nesta parte do direito, chamando à colação douta jurisprudência, assim foi sustentado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Setembro de 2012, processo n.º 901/11.0PAPVZ.P1 segundo o qual "Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável".
46. No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03 de Julho 2012, processo n.º 53/10.3GDFTR.E1 segundo o qual "A «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida."
47. No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril 2010, processo n.º 13/07.1 GACTB.C1 segundo o qual" ... O inciso da nova lei «de modo reiterado ou não» não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição firmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, epigrafado de «violência doméstica», a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido ­mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana"
48. No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Novembro de 2010, processo n. 638/09.0 PBFIG.C1. segundo o qual "Integra, tão só, a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143°, n. ° 1 do CP, e não um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152°, n. ° 1, a agressão com duas
bofetadas na cara, presenciada por uma testemunha que ia a passar, não se evidenciando que o arguido tivesse procurado agredir perante terceiros, de forma a sujeitar a ofendida a vexame e humilhação pública, não sendo comportamento reiterado, e não revelando uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. 
49. Conforme afirma Cristina Líbano Monteiro in "Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 11." o principio in dubio pro reo "pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor".
50. Dos factos considerados provados, não consideramos e reputamos por suficientes, tendo em conta a prova em que a condenação é amparada, salvo douta e melhor opinião, para o preenchimento dos elementos do crime em que o Arguido foi condenado.
51. Aliás, toda a fundamentação da sentença, ora objecto de recurso, na realidade e rigor acaba por ser uma consequência de uma construção lógico dedutiva.
52. Assim, salvo douta e melhor opinião, entende o recorrente que o Tribunal a quo decidiu tendo por base factos, que não foram provados, nem sequer foram alegados testemunhalmente, prejudicando o silogismo judiciário.
53. É evidente a insuficiência da prova realizada para aquela que foi a decisão da matéria provada, motivo pela qual estamos, sem dúvida, perante a violação do principio do "in dubio pro reo".
54. É, ainda, de destacar que a condenação em apreço parte, erroneamente, do pressuposto de que o Arguido, pelo facto da sua companheira ter momentaneamente saído de casa, terá sido o autor material de minuciosas agressões dadas como provadas que, por manifesta inexactidão, não se logrou fazer prova em sede de audiência de julgamento.
55. Diremos que o facto da companheira do Arguido ter ido bater à porta da vizinha, sem lhe referir uma única palavra, conforme amplamente provado, foi suficiente para o Tribunal a quo, perante tal facto dado como provado nos autos, enredar o Arguido numa condenação titulada por juízos probabilísticos.
56. Não se poderá aceitar tal condenação, pois que esta apenas se baseou em presunções judiciais.
57. Tal como esta consagrado no artigo 3490 do C.C." presunções são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido." Como tal, não são verdadeiros meios de prova, mas sim meras operações mentais ou lógicas firmadas pelo julgador com base nas regras da experiência.
58. In casu, o Tribunal simplesmente fundamentou a condenação em juízos de probabilidade.
59. Acontece que, no momento da decisão, o juiz, sem partis pris ou prejuízo, deve basear-se apenas em provas para estabelecer a culpabilidade, não devendo partir da convicção ou da suposição de que o Arguido é culpado, sendo certo que o recurso à presunção não pode ser a via aberta para suprir a falta de prova dos factos.
60. Pelo exposto o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.º 2. do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.
61. Em suma, nos presentes autos, não só ficou cabalmente provado que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quantos aos factos pelos quais vem acusado e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido do crime em que foi condenado.
Nestes termos e nos demais de Direito, que doutamente se suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele em consequência, ser revogada a sentença recorrida, tudo com as legais consequências assim se fazendo a já costumada e almejada, JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público apresentou resposta que condensou nas seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo apreciou e valorou correctamente a matéria de facto submetida a julgamento, através de um exame crítico, objectivo, imparcial das provas produzidas e examinadas em audiência, à luz do princípio da livre apreciação da prova a que alude o artigo 127.°, do Código de Processo Penal.
2. Os considerandos explanados pelo arguido sobre o que deveria ou não ter sido dado como provado, fundam-se na sua própria e compreensivelmente interessada valoração das provas produzidas, não podendo proceder em detrimento da convicção crítica, isenta, imparcial e objectiva que entendemos ter presidido à apreciação e valoração da prova feita pelo Tribunal.
3. A matéria de facto que o Arguido impugna foi devidamente alicerçada a formação da convicção do Tribunal, não ocorrendo qualquer erro na apreciação da prova, a qual foi cabal no sentido de o Arguido ter praticado os factos.
4. O arguido prestou declarações, as quais não se revelaram credíveis, pois negaram o essencial e foram contrárias à restante prova produzida em audiência de discussão e julgamento, desde logo, às declarações prestadas pelas demais testemunhas. O mesmo apresentou uma postura de negação da sua responsabilidade, negou integralmente os factos, mas admitiu algumas discussões anterior aos factos, para além de ter apresentado um discurso construído, com poucos detalhes, o qual demonstrou uma reflexão prévia, o qual não foi suficiente para abalar a restante prova produzida, designadamente das testemunhas inquiridas.
5. A prova produzida em audiência de julgamento revelou-se, conjugada na sua globalidade, capaz de levar a um convencimento do tribunal e da agora respondente, para além de qualquer dúvida razoável, diga-se, de que o arguido praticou os factos de que foi acusado e condenado.
6. Ficou provado que o comportamento do arguido assumiu uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal da ofendida. Ficou pois provada gravidade dos factos suficiente tal que permitiu ao Tribunal concluir por um tratamento desumano infligido pelo arguido à ofendida.
7. Está patente, pois, uma actuação patentemente violentadora da dignidade e integridade pessoal da ofendida que se possa configurar como integrante do tipo objectivo previsto no artigo 152.°, nºs 1, b) e c) c 2 do Código Penal e não o tipo do artigo 143.°, n.º 1, do Código Penal, como sustenta o arguido.
8. Do texto da decisão recorrida não resulta, com base na experiência comum ou em juízos lógicos sobre a factualidade em apreço, que o tribunal recorrido tenha dado como provados os factos que como tal especificou tendo ou devendo ter dúvidas sobre algum ou alguns deles, é óbvio que não pode invocar-se no caso em apreço a violação do princípio do in dubio pro reo.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.  
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
***
            II. Fundamentos da decisão recorrida
A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:
Factos Provados
1. O arguido e a ofendida G... viveram em comunhão de cama, mesa e habitação desde data não concretamente apurada do final de 2008 e até ao dia 25 de Janeiro de 2013, na (...), Lousã.
2. Do agregado familiar fazia ainda parte F..., nascido a 12 de Junho de 2005, filho da ofendida, e E..., filha do arguido e da ofendida, nascida a 17 de Maio de 2012.
3. No dia 24 de Janeiro de 2013 o arguido chegou a casa cerca das 00 horas 30 minutos e de imediato surgiu uma discussão entre o casal em virtude das insinuações do arguido em relação a uma alegada “traição” da vítima com um “amigo enfermeiro”.
4. Na sequência desta discussão o arguido agarrou-a de imediato pelos pulsos, agarrou-a pelos braços, puxou-lhe os cabelos e empurrou-a contra a parede.
5. Nesse momento, o menor F..., que estava a dormir, acordou e entrou na cozinha onde ainda viu o arguido a agarrar a mãe.
6. Aquando da entrada do menor na cozinha a ofendida conseguiu fugir de casa e pedir ajuda à vizinha C..., ao que o arguido fechou a porta do apartamento, deixando-a no exterior.
7. Escassos minutos depois o arguido abriu a porta, tendo a ofendida regressado ao interior do apartamento, momento em que o arguido voltou a agredi-la, apertando-lhe o pescoço com as mãos e dizendo-lhe que daquele dia não passava, pois tinha-o traído.
8. A ofendida conseguiu libertar-se do arguido e chamar a GNR que compareceu no local, tendo-se ausentado da residência com os filhos por temer as atitudes agressivas do arguido.
9. Como consequência directa e necessária desta última conduta do arguido, sofreu a ofendida as dores e as lesões melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 28 a 30, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente dores nos pulsos e nos braços e equimoses no tórax e no braço esquerdo, que determinaram um período de cinco dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral.
10. Em todas as ocasiões supra referidas actuou o arguido com o propósito concretizado de atingir a ofendida G... na sua honra, dignidade e consideração. Quis e conseguiu molestar o corpo e a saúde da mesma, provocando-lhe dores e causando-lhe as lesões acima assinaladas, assim como a fez temer pela sua vida e integridade física, já que actuou de forma séria e intimidatória. Não se eximiu ainda o arguido de assim actuar mesmo quando a ofendida se encontrava grávida e, portanto, em situação de maior fragilidade, assim como não se coibiu de o fazer perante a filha menor de ambos e o filho da ofendida.
11. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como ilícito criminal.

Mais se provou que:
12. Consta averbada no Certificado de Registo Criminal do arguido uma condenação no âmbito do processo nº441/06.0PBCBR, do 4º Juízo Criminal de Coimbra, pela prática em 2006 de um crime de Maus Tratos a Cônjuge, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. a) e nº2, do Cód. Penal, sentença proferida em 11-02-2008, e transitada em 12-03-2008, em que lhe foi aplicada a pena de 3 anos de prisão suspensa por 4 anos com a condição de, durante este período, não perturbar de qualquer  modo a denunciante e aceitar o acompanhamento do IRS e os tratamentos que este instituto entender convenientes, já declarada extinta em 14-05-2012.
13. O arguido encontra-se desempregado desde meados de 2012 em virtude de restruturação da empresa farmacêutica em que laborava, auferindo cerca de €800 de subsidio de desemprego.
14. O arguido, entretanto, fez as pazes com a companheira, aqui ofendida, residindo juntos, com o filho desta e a filha bebé comum.
15. O arguido tem ainda 3 filhos de uma anterior relação.
16. O arguido como habilitações literárias tem o 12º ano, e desempenhou as funções de delegado de informação médica até Julho de 2012.

Factos Não Provados
Não ficou provado que:
1. Em data não concretamente apurada, mas entre Março de 2012 e 17 de Maio do mesmo ano, quando o arguido chegou a casa muito tarde e notoriamente embriagado e a ofendida o confrontou com tal situação este colocou-se de pé em cima da cama, agarrou-a pelos cabelos e disse-lhe «não te parto toda agora porque tens um filho na barriga».
2. Também em data não apurada de 2012 mas já depois do nascimento da E... e antes de Setembro, o arguido, sem que nada o fizesse prever, desferiu um pontapé na perna esquerda da ofendida, causando-lhe dores e um hematoma, embora não exigindo tratamento médico.
3. Principalmente desde Julho de 2012, quando ficou desempregado, o arguido passou a frequentar cafés durante largas horas por dia, não prestando o necessário apoio à ofendida, designadamente nos cuidados exigidos com a filha de ambos, ao mesmo tempo que foi insinuando que a ofendida mantinha um outro relacionamento amoroso.
4. Devido às atitudes do arguido acima descritas, em Setembro de 2012 a ofendida decidiu sair de casa com os filhos, mas regressou quatro dias depois devido a muita insistência por parte do arguido e promessas de melhoria do seu comportamento.
5. Contudo, a situação não melhorou.
6. Durante a semana de 13 a 19 de Janeiro de 2013 o arguido, quando se cruzava com a ofendida dentro de casa, assobiava e fazia-lhe “piretes”, continuando sempre a insinuar que esta o traía. Numa dessas ocasiões dirigiu-se à menor E... e, em voz alta para a ofendida ouvir, disse: «ó filha estás doente, não faz mal, a mamã vai-te levar ao amigo enfermeiro», insinuando que este tinha um relacionamento amoroso.
7. No dia 24 de Janeiro de 2013 o arguido ao chegar a casa, cerca das 00 horas 30 minutos, estivesse a ofendida a navegar na internet e de imediato tivesse começado a dizer-lhe que estava a “falar com amigos”.
8. Que perante tal atitude a ofendida tivesse desligado o computador e se tivesse deslocado para a cozinha, momento em que o arguido a seguiu, dizendo-lhe que ela “lhe estava a pôr os cornos” e chamando-a de “palhaça”.
9. Que nas circunstâncias relatadas em 4), o arguido tivesse fechado a porta da cozinha para impedir que a ofendida dali saísse.
10. Embora apelando para que o arguido deixasse de prosseguir tal conversa, este disse-lhe que só tinha três hipóteses: ou admitia que o andava a trair, ou saía de casa e deixava a filha de ambos ou chamava a GNR. Acto seguido exigiu-lhe o telemóvel para verificar as mensagens, ao que a ofendida recusou.

Motivação da convicção do Tribunal
A convicção do tribunal relativa à culpabilidade do arguido assentou na conjugação de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento analisada de forma crítica à luz de regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, e tendo como pano de fundo os princípios da imediação e da oralidade. Desde logo, atendeu-se às declarações do arguido cruzadas com os depoimentos testemunhais produzidos mensurados à luz das suas razões de ciência, certezas, dúvidas, incoerências, contradições, tons de voz, pausas, gestos, (im)parcialidade e coincidências ou inverosimilhanças evidenciadas, e com os restantes dados objectivos fornecidos pelos documentos e prova pericial junta aos autos.
No que concerne, desde logo aos factos provados sob os itens 1) e 2), o tribunal considerou, para além das declarações do arguido e do depoimento da testemunha H..., as certidões de nascimento de fls. 96 a 98 e 100 a 102.
O arguido optou por prestar declarações, apresentando uma versão dos factos diferente, que embora não negando integralmente os factos, imputa uma leitura diferente à respectiva dinâmica e consequentemente à sua responsabilidade criminal. Contextualiza-os numa discussão conjugal em que teriam ocorrido “excessos” de ambas as partes (“ambas as partes teriam ultrapassado os limites”).
Todavia, a sua versão não logrou convencer o tribunal. Com efeito, a postura de negação da sua culpabilidade, por um lado, mas de admissão de discussões várias, na semana imediatamente anterior aos factos, bem como do motivo de tais discussões - desconfianças e suspeitas de infidelidade – encadeadas, aliás, por elementos instrumentais e indiciários (confirmados pelo arguido e pelos agentes policiais ouvidos) que se materializam nos “post-its” de fls. 47 e no “guardanapo” de fls. 78 (em que admite “erros” da sua parte), com o discurso artificialmente estruturado e construído, estanque, sem espontaneidade, sem grandes detalhes, é demonstrativo de reflexão prévia e portanto não se mostrou credível ao tribunal, não logrando permitir contrariar toda a demais prova produzida relativa à sua culpabilidade.
Aliás, mesmo o facto de se admitir como verdadeira a declaração do arguido de que também teria sofrido uma lesão na mão em virtude do envolvimento de ambos, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que constam na factualidade assente, não impede que o mesmo seja também agressor, ou que tenha sido o verdadeiro “agressor inicial e matricial”.
As declarações do arguido para além de serem vagas, portanto pouco dadas a pormenores como já referimos, típico de quem não fala verdade, foram pautadas, também, pelas discrepâncias. As primeiras ocorreram, quando o arguido começou por dizer que o filho mais novo da ofendida surgiu, espontaneamente, na cozinha onde ambos estariam, a conversar, em tom de voz normal, e que tal não é estranho ocorrer por, frequentemente, o menino acordar a meio da noite e proceder nesses termos, todavia, mais à frente no seu discurso, já admitiu que a conversa, afinal seria uma discussão, cujo tom era suficientemente forte e audível para acordar uma criança.
Primeiro ponto, não se tratava, pois, de uma banal e frequente conversa entre o casal, mas de uma discussão, e tempestuosa. Note-se que o ruído seria tão forte que foi ouvido pela vizinha do apartamento da frente, a testemunha C... que se encontrava aquela hora já a dormir.
Segundo ponto: o arguido, de facto, agrediu fisicamente a ofendida. Aliás, só assim se compreende, as declarações do arguido de que ambos se teriam envolvido fisicamente, de ter havido excessos de ambos e ultrapassagem dos limites, limites esses que, não soube ou não quis, concretizar mesmo depois de confrontado com as declarações que prestou perante a M.Mª Juiz de Instrução Criminal a fls. 136 (art. 356º, nº3, al. b) do CPP), dele próprio ter sofrido uma lesão na mão pela qual também apresentou inicialmente queixa nessa madrugada, quando a policia se deslocou ao apartamento, e cronologicamente depois da queixa apresentada pela ofendida (cerca de meia hora), e ainda as declarações da ofendida ao médico-legista corporizadas do relatório pericial de fls. 28 a 30: “no dia 24-01-2013, pela 1h, sofreu agressão com puxões de cabelo, esganadura e empurrão contra uma parede, que terá sido infligida pelo companheiro.” As lesões apresentadas ao nível do tórax e braço esquerdo são compatíveis com esta descrição, sendo até de salientar, que em face ao frio que se fazia sentir na data dos factos (Janeiro), admite-se que tais zonas estariam tapadas pela roupa, e portanto, não seriam visíveis pela vizinha/agentes policiais.
E a convicção do tribunal não poderia deixar de ser esta, mesmo recusando-se a ofendida a prestar declarações ao abrigo do direito processual que lhes assiste nos termos do art. 134º do CPPenal.
Na formação da convicção do tribunal foi também essencial o depoimento da testemunha C..., vizinha do apartamento da frente, que, em termos credíveis e convincentes, pela sua impressividade, imparcialidade, objectividade, certeza, e, espontaneidade, relatou factos instrumentais absolutamente coerentes e estruturantes da versão provada. Note-se que a forma como a ofendida decidiu, a meio da noite, tocar, por duas vezes, à campainha da porta do apartamento, desta testemunha, com a qual mantinha uma relação superficial de vizinhança, e que era pela mesma considerada pessoa reservada, permite perceber que a queixosa precisava de ajuda. Depois os sinais exteriores, bem captados por esta testemunha, que mostrou também ser pessoa conhecedora da ambiência de violência doméstica (evidenciada no seio da sua própria família): a ofendida vinha fria, não falava, comunicava com o olhar ou com sinais, estava amedrontada… Foi esta vizinha que acabou por chamar a policia que se deslocou aquela hora da manhã ao local, conforme confirmaram os agentes policiais ouvidos pelo tribunal.
Aliás, neste tipo de criminalidade, as reacções imediatas das vitimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicilio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal.
Dos depoimentos dos agentes, apenas poderá o tribunal valorar as suas percepções no local, a “ambiência vivida” na altura, os sinais exteriores de alerta sobre conflito conjugal, e já não, os relatos dos respectivos declarantes face ao estatuído no art. 356º, nº7 do CPP. Afigura-se-nos, no entanto, que o facto de terem confirmado a sua deslocação ao local, depois de contacto realizado pela vizinha, percepcionado a afixação dos “post-ist” na casa, a ambiência de tensão vivenciada, é suficiente para rematar a consolidação e coerência de toda a prova produzida.
Finalmente, o depoimento da testemunha H..., que se disse amiga da família, a qual actualmente já partilha a mesma casa, mostrou-se subjectivo, como que pretendendo preservar a intimidade actual da família, mas permitiu confirmar a separação do casal no dia dos factos, tendo a ofendida e o filho na manhã desse dia feito a mudança para sua residência onde permaneceu durante cerca de mais de dois meses, o que atesta, que não se tratou de uma mera e banal discussão entre o casal, mais de algo grave.
Relativamente à situação pessoal e aos antecedentes criminais do arguido o tribunal teve em consideração o Certificado de Registo Criminal de fls. 178-180 e as próprias declarações do arguido que nesta matéria se nos afiguraram credíveis.
***
            III. Apreciação do Recurso
A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).
Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes:
- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser alterada no sentido pugnado pelo recorrente;
- Se o arguido deve apenas ser condenado pela autoria de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal.

Apreciando:
O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, entendendo que os factos considerados provados nos pontos 3 a 7 da sentença recorrida não deviam ser considerados como provados (embora também resultem implicitamente impugnados os factos provados sob os números 8 a 10) com a sua consequente absolvição do crime de violência doméstica por que foi condenado.
Por facilidade de análise transcrevem-se novamente neste passo os impugnados factos:
3. No dia 24 de Janeiro de 2013 o arguido chegou a casa cerca das 00 horas 30 minutos e de imediato surgiu uma discussão entre o casal em virtude das insinuações do arguido em relação a uma alegada “traição” da vítima com um “amigo enfermeiro”.
4. Na sequência desta discussão o arguido agarrou-a de imediato pelos pulsos, agarrou-a pelos braços, puxou-lhe os cabelos e empurrou-a contra a parede.
5. Nesse momento, o menor F..., que estava a dormir, acordou e entrou na cozinha onde ainda viu o arguido a agarrar a mãe.
6. Aquando da entrada do menor na cozinha a ofendida conseguiu fugir de casa e pedir ajuda à vizinha C..., ao que o arguido fechou a porta do apartamento, deixando-a no exterior.
7. Escassos minutos depois o arguido abriu a porta, tendo a ofendida regressado ao interior do apartamento, momento em que o arguido voltou a agredi-la, apertando-lhe o pescoço com as mãos e dizendo-lhe que daquele dia não passava, pois tinha-o traído.
8. A ofendida conseguiu libertar-se do arguido e chamar a GNR que compareceu no local, tendo-se ausentado da residência com os filhos por temer as atitudes agressivas do arguido.
9. Como consequência directa e necessária desta última conduta do arguido, sofreu a ofendida as dores e as lesões melhor descritas no relatório médico-legal de fls. 28 a 30, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente dores nos pulsos e nos braços e equimoses no tórax e no braço esquerdo, que determinaram um período de cinco dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral.
10. Em todas as ocasiões supra referidas actuou o arguido com o propósito concretizado de atingir a ofendida G... na sua honra, dignidade e consideração. Quis e conseguiu molestar o corpo e a saúde da mesma, provocando-lhe dores e causando-lhe as lesões acima assinaladas, assim como a fez temer pela sua vida e integridade física, já que actuou de forma séria e intimidatória. Não se eximiu ainda o arguido de assim actuar mesmo quando a ofendida se encontrava grávida e, portanto, em situação de maior fragilidade, assim como não se coibiu de o fazer perante a filha menor de ambos e o filho da ofendida.

Na defesa da sua tese argumenta o recorrente que os meios de prova que o tribunal indica como motivadores da sua convicção não permitem extrair a prova dos referidos factos.
Assim, das declarações do arguido apenas se pode extrair a existência de uma discussão na sequência da qual a ofendida empurrou o arguido ao qual este ripostou e mais se pode extrair de fls. 24 e 25 que apresentou queixa e da perícia médica realizada que apresentava lesões.
Os agentes da GNR que se deslocaram à residência na ocasião confirmaram a existência de lesões no corpo do arguido e não na ofendida e a versão do arguido ao contrário do que considerou o tribunal a quo foi sólida, segura precisa e consistente.
A ofendida não prestou declarações e a testemunha C... nada presenciou, não correspondendo ao declarado pela testemunha o que consta da motivação da convicção do tribunal a quo que a discussão tenha sido ouvida por esta testemunha, já que declarou que foi acordada com o toque da campainha, como também não corresponde à verdade o consignado no sentido de que foi esta testemunha a chamar a GNR.
Ao decidir como decidiu sem o necessário suporte probatório violou o tribunal recorrido os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
O pedido final do recorrente é no sentido de que deve ser absolvido do crime de violência doméstica, Não explicita devidamente se é por via da alteração proposta que entende dever ser condenado por crime de ofensa à integridade física ou se assim qualifica os factos tal como constantes da decisão recorrida. Implicitamente resulta que admite essa possibilidade decorrente da alteração factual que propõe, posto que admite na peça recursiva a existência de um empurrão.

Sendo certo que a ofendida não prestou declarações ao abrigo da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 134º, alínea a) do Código de Processo Penal e os acontecimentos não foram presenciados por terceiros, confrontando a fundamentação expressa pelo tribunal a quo começa por não se entender como terá conseguido chegar à concreta descrição que consta dos factos impugnados, senão por recurso ao que consta da queixa e da perícia médico legal.
Esclarece-se, pois em primeiro lugar, que a queixa constitui prova documental de que foi apresentada com o teor que dela consta, já não podendo comprovar que esse teor corresponda à verdade e quanto a perícia faz prova sobre as lesões verificadas, mas já não do que a ofendida haja declarado sobre a causa das lesões. Não podia, pois, o Tribunal a quo apoiar-se neste elementos para concretizar o tipo de evento agressivo ocorrido.
Mas vejamos então o teor da prova oral produzida e de que o tribunal se socorreu.
O arguido, prestando declarações, aludiu à existência de uma discussão motivada por ter questionado a ofendida sobre o teor de uma mensagem que havia recebido (admitindo ciúmes e desconfiança) mencionou que a determinada altura a ofendida o empurrou e que fez o mesmo à ofendida, resultando também do declarado que terão existido vários empurrões mútuos e, além disso, também acabou por admitir, entre negações, que se agarram mutuamente.
As lesões verificadas quer no arguido quer na ofendida são compatíveis com esta versão (escoriação na mão versus equimoses na região supraclavicular esquerda e no membro superior esquerdo).
A testemunha C..., vizinha, declarou que foi acordada com o tocar da campainha da porta da sua casa e que, tendo vindo à porta, viu a ofendida. Que esta estava muito nervosa, tremia e nada disse, que perguntou se queria que chamasse a GNR e percebeu por aceno que ela não queria, que o arguido entretanto abriu a porta do apartamento onde vivia com a ofendida e que esta voltou a entrar em casa. Que apenas ouviu nessa noite o menino a gritar e que em outras ocasiões, que não nessa noite, ouviu por vezes discutimentos.
Deste depoimento nada se pode inferir sobre o tipo de evento que terá determinado a conduta da ofendida presenciada pela testemunha. Considerando a versão do arguido e o motivo da discussão que admitiu e o tipo de agressões que também admitiu esses eventos eram susceptíveis de causar o estado emocional observado pela testemunha, nada mais se podendo extrair. Aliás, a simples suspeita de uma infidelidade seria capaz de provocar em alguém mais sensível o estado de nervosismo observado, sendo certo que a ofendida acabou por não pretender o auxílio da vizinha que se propôs chamar a GNR.
Não foi a testemunha que chamou a GNR mas a própria ofendida, como foi confirmado pela testemunha B... guarda da GNR.
Os agentes da GNR que se deslocaram à residência da ofendida e do arguido nada presenciaram, tendo anotado queixas de ambos e verificado que o arguido tinha uma mão ferida, enquanto na ofendida não observaram qualquer lesão.
Também destes depoimentos nada se pode inferir sobre a natureza dos acontecimentos verificados.
Não obstante, o Tribunal a quo deu como provado que o arguido agarrou a ofendida pelos pulsos e pelos braços, puxou-lhe os cabelos e empurrou-a contra a parede. Que nesse momento o menor F..., que estava a dormir, acordou e entrou na cozinha onde ainda viu o arguido a agarrar a mãe Que aquando da entrada do menor na cozinha a ofendida conseguiu fugir de casa e pedir ajuda à vizinha C..., ao que o arguido fechou a porta do apartamento, deixando-a no exterior. Que escassos minutos depois o arguido abriu a porta, tendo a ofendida regressado ao interior do apartamento, momento em que o arguido voltou a agredi-la, apertando-lhe o pescoço com as mãos e dizendo-lhe que daquele dia não passava, pois tinha-o traído.
Como ainda deu como provado que em todas as ocasiões supra referidas actuou o arguido com o propósito concretizado de atingir a ofendida G... na sua honra, dignidade e consideração. Quis e conseguiu molestar o corpo e a saúde da mesma, provocando-lhe dores e causando-lhe as lesões acima assinaladas, assim como a fez temer pela sua vida e integridade física, já que actuou de forma séria e intimidatória. Não se eximiu ainda o arguido de assim actuar mesmo quando a ofendida se encontrava grávida e, portanto, em situação de maior fragilidade, assim como não se coibiu de o fazer perante a filha menor de ambos e o filho da ofendida.
Assinale-se que, para além do mais, não se vislumbra vestígio de alusão probatória ao facto de na altura a ofendida se encontrar grávida. Quanto ao eventual apertão de pescoço e à expressão que daquele dia não passava, nem se encontra mencionado na perícia que é o elemento probatório onde o tribunal a quo parece ter ido buscar alguma concretização do tipo de acontecimento ocorrido.
Em suma, parece-nos por demais manifesto que a convicção alcançada pelo tribunal a quo não tem suporte na prova produzida em audiência.
A única prova produzida sobre a ocorrência consiste nas próprias declarações do arguido e essas apenas permitem considerar provada a existência de empurrões e agarrões recíprocos, versão que não é desmentida pela prova pericial.
Ou seja, a prova produzida apenas consente que se considere provada a factualidade alegada constante da acusação na estrita medida em que foi confessada pelo arguido (embora impugnado, o ponto 3 dos factos provados foi admitido pelo arguido nas suas declarações) devendo a matéria de facto passar a ter a seguinte redacção (assinalando-se a negrito o que é objecto de alteração):
Factos Provados
1. O arguido e a ofendida G...viveram em comunhão de cama, mesa e habitação desde data não concretamente apurada do final de 2008 e até ao dia 25 de Janeiro de 2013, na (...), Lousã.
2. Do agregado familiar fazia ainda parte F..., nascido a 12 de Junho de 2005, filho da ofendida, e E..., filha do arguido e da ofendida, nascida a 17 de Maio de 2012.
3. No dia 24 de Janeiro de 2013 o arguido chegou a casa cerca das 00 horas 30 minutos tendo surgido uma discussão entre o casal em virtude das insinuações do arguido em relação a uma alegada “traição” da vítima com um “amigo enfermeiro”.
4. O menor F..., que estava a dormir, acordou e entrou na cozinha.
5. Nessa altura G... empurrou o arguido, tendo este empurrado igualmente G..., tendo continuado a empurrar-se e a agarrar-se mutuamente.
6. Após G... saiu de casa e tocou à campainha da porta da vizinha C... com o sentido de lhe pedir ajuda.
7. Algum tempo depois o arguido abriu a porta, tendo G...regressado ao interior do apartamento e chamado a GNR que compareceu no local.
8. Nessa noite G...ausentou-se da residência com os filhos.
9. Como consequência directa e necessária da descrita conduta do arguido, sofreu a ofendida dores e e equimoses no tórax e no braço esquerdo, que determinaram um período de cinco dias de doença sem afectação da capacidade de trabalho geral enquanto o arguido sofreu escoriações numa mão.
10. O arguido actuou como descrito de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como ilícito criminal.

Mais se provou que:
11. Consta averbada no Certificado de Registo Criminal do arguido uma condenação no âmbito do processo nº441/06.0PBCBR, do 4º Juízo Criminal de Coimbra, pela prática em 2006 de um crime de Maus Tratos a Cônjuge, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. a) e nº2, do Cód. Penal, sentença proferida em 11-02-2008, e transitada em 12-03-2008, em que lhe foi aplicada a pena de 3 anos de prisão suspensa por 4 anos com a condição de, durante este período, não perturbar de qualquer modo a denunciante e aceitar o acompanhamento do IRS e os tratamentos que este instituto entender convenientes, já declarada extinta em 14-05-2012.
12. O arguido encontra-se desempregado desde meados de 2012 em virtude de reestruturação da empresa farmacêutica em que laborava, auferindo cerca de €800 de subsídio de desemprego.
13. O arguido, entretanto, fez as pazes com a companheira, aqui ofendida, residindo juntos, com o filho desta e a filha bebé comum.
14. O arguido tem ainda 3 filhos de uma anterior relação.
15. O arguido como habilitações literárias tem o 12º ano, e desempenhou as funções de delegado de informação médica até Julho de 2012.

Factos Não Provados
Não ficou provado que:
1. Em data não concretamente apurada, mas entre Março de 2012 e 17 de Maio do mesmo ano, quando o arguido chegou a casa muito tarde e notoriamente embriagado e a ofendida o confrontou com tal situação este colocou-se de pé em cima da cama, agarrou-a pelos cabelos e disse-lhe «não te parto toda agora porque tens um filho na barriga».
2. Também em data não apurada de 2012 mas já depois do nascimento da E... e antes de Setembro, o arguido, sem que nada o fizesse prever, desferiu um pontapé na perna esquerda da ofendida, causando-lhe dores e um hematoma, embora não exigindo tratamento médico.
3. Principalmente desde Julho de 2012, quando ficou desempregado, o arguido passou a frequentar cafés durante largas horas por dia, não prestando o necessário apoio à ofendida, designadamente nos cuidados exigidos com a filha de ambos, ao mesmo tempo que foi insinuando que a ofendida mantinha um outro relacionamento amoroso.
4. Devido às atitudes do arguido acima descritas, em Setembro de 2012 a ofendida decidiu sair de casa com os filhos, mas regressou quatro dias depois devido a muita insistência por parte do arguido e promessas de melhoria do seu comportamento.
5. Contudo, a situação não melhorou.
6. Durante a semana de 13 a 19 de Janeiro de 2013 o arguido, quando se cruzava com a ofendida dentro de casa, assobiava e fazia-lhe “piretes”, continuando sempre a insinuar que esta o traía. Numa dessas ocasiões dirigiu-se à menor E... e, em voz alta para a ofendida ouvir, disse: «ó filha estás doente, não faz mal, a mamã vai-te levar ao amigo enfermeiro», insinuando que este tinha um relacionamento amoroso.
7. No dia 24 de Janeiro de 2013 o arguido ao chegar a casa, cerca das 00 horas 30 minutos, estivesse a ofendida a navegar na internet e de imediato tivesse começado a dizer-lhe que estava a “falar com amigos”.
8. Que perante tal atitude a ofendida tivesse desligado o computador e se tivesse deslocado para a cozinha, momento em que o arguido a seguiu, dizendo-lhe que ela “lhe estava a pôr os cornos” e chamando-a de “palhaça”.
9. Que nas circunstâncias relatadas em 4), o arguido tivesse fechado a porta da cozinha para impedir que a ofendida dali saísse.
10. Embora apelando para que o arguido deixasse de prosseguir tal conversa, este disse-lhe que só tinha três hipóteses: ou admitia que o andava a trair, ou saía de casa e deixava a filha de ambos ou chamava a GNR. Acto seguido exigiu-lhe o telemóvel para verificar as mensagens, ao que a ofendida recusou.
11. Que nessa sequência a tenha agarrado pelos pulsos, pelos braços, lhe tenha puxado os cabelos e a tenha empurrado contra a parede.
12. Que quando G... regressou a casa como descrito em 6. dos factos provados o arguido tenha voltado a agredi-la, apertando-lhe o pescoço com as mãos e dizendo-lhe que daquele dia não passava, pois tinha-o traído.
13. Que a ofendida se tenha então conseguido libertar e tenha sido nessa altura que chamou a GNR.
14. Que em todas as ocasiões supra referidas o arguido tenha actuado com o propósito concretizado de atingir a ofendida G... na sua honra, dignidade e consideração, que tenha conseguido fê-la temer pela sua vida e integridade física.
15. Que a ofendida se encontrasse grávida na data referida em 3. dos factos provados.
16. Que na data referida em 3. dos factos provados a ofendida se tenha ausentado da residência por temer atitudes agressivas do arguido.

Vejamos se esta factualidade consente a manutenção da condenação do arguido por crime de violência doméstica ou se apenas é susceptível de integrar a prática de crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º do Código Penal (ofensa do corpo ou saúde de outra pessoa) ou ainda (hipótese não contemplada pelo recorrente) o crime de ofensa à integridade qualificada p. e p. pelo artigo 145º do Código Penal por verificação da circunstância prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal (ofensa praticada contra pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges).
O bem jurídico protegido nos tipos legais de crime de violência doméstica e de maus-tratos (artigos 152º e 152º-A do Código Penal) reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesam essa dignidade. Poderá afirmar-se, na esteira da posição defendida por Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p. 332, que esta norma visa a protecção da saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental. Que qualquer comportamento de ofensa à integridade física não consentido é lesivo da dignidade da pessoa humana parece não oferecer dúvida.
Trata-se de crimes específicos, na medida em que exigem que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo dos comportamentos.
As condutas previstas abrangem os maus-tratos físicos, identificados com as ofensas à integridade física, os maus-tratos psíquicos, como humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configurem em si o tipo de crime de ameaças, o tratamento cruel ou desumano, a utilização do subordinado em actividades perigosas, desumanas ou proibidas, a sobrecarga de trabalhos ou o não cumprimento de regras de segurança no trabalho.
Previamente à alteração empreendida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, além da específica relação que intercedesse entre o agente e o sujeito passivo, nos casos em que as condutas daquele configurassem a prática de ilícitos como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, o que determinaria a verificação do tipo legal de crime de maus tratos seria a reiteração de tais condutas, sendo que, em tais circunstâncias, entre aqueles ilícitos e o tipo legal de crime de maus-tratos (inexistia então previsão legal de crime de violência doméstica) intercedia uma relação de especialidade, aplicando-se apenas a punição própria deste último.
Se, por um lado, na actualidade se mantém essa relação de especialidade entre os crimes de violência doméstica e de maus tratos, de um lado, e crimes como os de ofensa à integridade física, ameaças e injúrias, de outro, certo é que a reforma penal veio consagrar a orientação segundo a qual a verificação dos crimes de violência doméstica e de maus tratos não exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de “um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/04/2010 em www.dgsi.pt).
A degradação de relações desta natureza que, do ponto de vista dos valores que o direito penal também prossegue, impõe a exigência de um maior grau de consideração/respeito pelo outro, ainda que em situações de litígio e os excessos que essa degradação potencia, por força da maior proximidade e muitas vezes da impossibilidade de um afastamento total e efectivo, é um dos factores que justifica a criação de um tipo específico de crime que se distingue dos tipos comuns preenchidos quando não se verifica o especial relacionamento entre agente do crime e vítima e que abarca situações típicas que vão para além desses tipos de crime comuns. O que significa que eventuais injúrias, ofensas à integridade física, ameaças, coacções são já consideradas pela lei como mais graves se ocorridas dentro desse tipo de relacionamentos, mais lesivas da condição humana que se quer revestida de dignidade.
Esta consideração que patentemente emana da lei apenas excepcionalmente permite que assim se não conclua, quando tal ocorra em situações muito incidentais e que manifestamente demonstrem que a dignidade da vítima foi afectada em grau que não justifica a penalização em causa.
No caso estamos remetidos a uma única agressão consistente em o arguido ter empurrado e agarrado a ofendida na sequência de discussão por si iniciada e em que a ofendida teve o primeiro comportamento agressivo da integridade física, tendo havido reciprocidade de agressões.
Embora se trate de uma ofensa à integridade física ocorrida no âmbito de um relacionamento análogo ao dos cônjuges e determinada por força desse relacionamento que propiciou a discussão prévia, não resulta, até por força das lesões verificadas, que se tratou de uma agressão física intensa que tenha ofendido significativamente a dignidade da vítima.
Pelas mesmas razões se entende que as circunstâncias da agressão não revelam a especial censurabilidade ou perversidade que determinariam a qualificação da ofensa à integridade física.
Assim se conclui que a descrita conduta do arguido apenas é susceptível de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal com pena de prisão até três anos ou de multa até 360 dias.
 Em primeiro lugar determina o artigo 70º do Código Penal que se opte pela pena não privativa da liberdade sempre que realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Não obstante o arguido já registar uma condenação por crime de violência doméstica, as circunstâncias de menor gravidade dos factos em apreço justificam que se conclua sem reservas pela adequação e suficiência da pena de multa.
Importa, por consequência, proceder ao doseamento da pena a aplicar dentro da enunciada moldura.
Relativamente às finalidades da punição consignadas no artigo 40º do Código Penal que são a trave mestra que determina o doseamento da pena apenas se dirá de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pag. 84, que «a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1 do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.
Perante os pressupostos legais acima enunciados, ao nível da ilicitude deparamo-nos com um desvalor da acção não acentuado posto que, pese embora a qualidade da vítima, ocorreu provocação, o desvalor do resultado igualmente não acentuado atentas as lesões produzidas. O dolo que vem provado na modalidade de directo não se afigura particularmente intenso também por força da provocação.
Acresce ponderar a relevante contribuição do arguido para a descoberta da verdade, a sua situação pessoal que revela integração, tendo reatado com a vítima o descrito relacionamento e com acento agravante o antecedente registado que obsta à ponderação de eventual dispensa de pena nos termos do artigo 143º, nº 3, alínea b) do Código Penal.
Sopesado o exposto entende-se como ajustada e proporcional a pena de 80 dias de multa que, considerada a situação económica do arguido, deve ser taxada a 5 euros diários.
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IV. Decisão
Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., e em consequência, alterar a matéria de facto da decisão recorrida nos termos acima consignados e revogá-la na parte em que condenou o arguido pela autoria de um crime de violência doméstica, condenando-o pela autoria de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5 euros, no montante de 400 euros.
Não há lugar a tributação em razão do recurso.
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 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

(José Eduardo Fernandes Martins)