Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
121/08.1TBANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: HERANÇA INDIVISA
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 2091º, Nº 1, C. CIV.; 28º CPC.
Sumário: I – A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.

II – A coincidência na mesma pessoa da posição de A. e R., na mesma acção, mesmo em situações de legitimidade plural, corresponde a uma impossibilidade lógica, ofendendo o princípio da dualidade das partes.

III – A verificação de tal situação impossibilita a acção logo à partida, nos casos de legitimidade singular, e gera, nos casos de legitimidade plural, a impossibilidade da configuração subjectiva que origina essa (inaceitável) coincidência da mesma pessoa nos dois lados da acção.

IV – No caso de uma acção de reivindicação de bens pertencentes a uma herança, diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, não tem aplicação o disposto no artigo 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do artigo 2091º, nº 1 do CC.

V – Nestes casos (acção de reivindicação), quando o acto ofensivo do direito de propriedade do património hereditário indiviso for subjectivamente atribuído a um co-herdeiro (por exemplo, por este ter registado em seu nome bens da herança), a posição deste último como R. (em confronto com os outros co-herdeiros reivindicantes) já preenche plenamente o fim que preside à imposição do litisconsórcio (artigo 28º, nºs 1 e 2 do CPC).

VI – Com efeito, neste caso, ocorrendo a intervenção do co-herdeiro como R., está assegurada, por um lado, a participação no processo desse co-interessado na relação material controvertida (na relação respeitante à dominialidade dos bens reivindicados), conforme exige o nº 1 do artigo 28º do CPC. Da mesma forma, por outro lado, a decisão a proferir produz, relativamente ao co-herdeiro destinatário da pretensão reivindicatória (na qualidade de R.), o seu efeito útil normal (nº 2 do artigo 28º do CPC).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em Março de 2008[1], no Tribunal Judicial da Comarca de Ansião foi intentada uma acção declarativa de condenação sob a forma sumária que, no seu elemento subjectivo referido aos Autores, foi apresentada com a seguinte configuração:


“[…]
1 – A.... […];
2 – Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de B.... […];
Património autónomo e universalidade esta representada em Juízo por:
2.1 – C... […];
2.2 –D.... e mulher E....[…];
2.3 – F....., casado no regime de comunhão de adquiridos com G.... […];
2.4 – H... e marido I.... […];
3 – J.... […];
4 – L.... […];
5 – Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de M..... […];
património autónomo e universalidade esta representada em Juízo por Autores e Réu; e
6 – Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de N.....[…];
património autónomo e universalidade esta representada em Juízo por Autores e Réu.
vêm propor e fazer seguir contra
[…]”
            [transcrição de fls. 2/4]

            Sendo estes os AA. (doravante serão referidos como tais, sublinhando-se que deles ocupam a posição de Apelantes – e seguimos aqui a indicação do requerimento de interposição do presente recurso a fls. 266 – A....., Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de B....., J...... e L......), sendo os acima indicados os AA., dizíamos, foi indicado como Réu na petição inicial (v. fls. 5) O..... (R. e Apelado no presente recurso). Ou seja, e constitui este um elemento fulcral na abordagem da presente apelação[2], foi indicado como A. da acção (como um dos herdeiros de duas das heranças indivisas) a mesma pessoa – O..... – que foi indicado como R. (como único R., aliás).

            1.1. Ora, assente a lide proposta nesta configuração subjectiva activa e passiva (ou seja, incluindo-se do lado dos AA. o próprio R.), concluiu-se o articulado inicial com a formulação dos seguintes cinco pedidos cumulativos:


“[…]
1 – Ser a 1ª A., A.... judicialmente declarada como única legítima proprietária e possuidora (por intermédio de terceiro em seu nome e mando), do imóvel rústico da freguesia de Ansião, matriciado sob 3493, descrito, entre outros, [nos] itens 1º e 2º supra[[3]];
2 – O R. condenado a reconhecer que o imóvel rústico da freguesia de Ansião matriciado sob 3493 é propriedade da A. e não dele[[4]], bem como a nunca nele entrar, ele próprio ou por interposta pessoa;
3 – Ser declarado judicialmente que os imóveis rústicos da freguesia de Ansião matriciados sob 3338 e 3494, descritos [nos] itens 1º e 2º supra, são em compropriedade, e na proporção de 1/7 para cada um(a) do(s) (as) AA. e do ora R., como ao supra explanado em 44 da p.i.[[5]] […];
4 – Ordenar-se os cancelamentos das inscrições (cotas G-UM de cada um dos prédios sub judice a favor do R. na Conservatória do Registo Predial de Ansião nas descrições 3194, 3195 e 3196 da freguesia de Ansião;
5 – Ordenar-se a exclusão dos prédios rústicos da freguesia de Ansião matriciados sob 3338, 3493 e 3494, do Processo de Declaração em Transmissões Gratuitas – Imposto de Selo – Nº 374145 por óbito de P...., primeira mulher do R., bem como o cancelamento da titularidade fiscal dos mesmos bens imóveis rústicos a favor do R., no Serviço Local de Finanças de Ansião, na respectiva matriz predial rústica;
[…]”
            [transcrição de fls. 24/25]

            1.1.1. O substrato fáctico destes pedidos – e ensaiamos resumir a individualização feita no articulado inicial da complexa situação jurídica aí alegada – corresponde basicamente à afirmação de que três prédios rústicos que o R. registou em seu nome em 2004 [os artigos matriciais 3493, 3494 e 3338 (assim os identificaremos doravante), correspondentes, respectivamente, às descrições prediais nºs 3195, 3196 e 3194/120804 da freguesia de Ansião[6]], pertencem na realidade à A. A..... (o 3493) e, numa proporção correspondente a diversas quotas hereditárias[7], a todos os AA., inclusive ao próprio R. (desta feita, os prédio 3494 e 3338)[8]. É a prova desta invocada pertença ou dominialidade, antagónica da registral, da qual beneficia o R., que os ora Apelantes pretendem fazer valer através da presente acção.

            1.2. O R. contestou a fls. 145/151 arguindo a ilegitimidade activa de todos os AA.[9], impugnando a factualidade descrita na p.i. e formulando um pedido reconvencional de declaração de propriedade sobre os três imóveis assente em usucapião.

            1.3. Surge então o Despacho Saneador-Sentença de fls. 261/265 (constitui este a decisão objecto do presente recurso), absolvendo o R. da instância, por considerar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade deste como R..

            Fundamentando esta asserção decisória, escreveu-se no despacho ora apelado:


“[…]
[D]uas hipóteses são configuráveis: ou o R. deixa de assumir essa qualidade e então a acção deixa de ter uma das partes, ou o R. deixa de assumir a qualidade de A. que lhe advém da representação das heranças indicadas.
Ora, apesar do processo civil ser um processo de partes, comportando apenas a existência de duas partes principais, ou melhor dizendo, de duas posições processuais principais, com base nas quais determinada ou determinadas pessoas podem intervir num litígio judicial, a saber: A. e R., o certo é que deixa de poder ser caracterizada enquanto acção judicial se ficar reduzida a apenas uma das partes, pois deixa de haver sujeito passivo do litígio.
A outra hipótese consiste em deixar o R. de assumir a qualidade de A. que lhe advém da representação das heranças […], sendo que neste caso teremos preterição de litisconsórcio necessário activo, excepção dilatória não suprível no caso concreto, já que o interessado assume a qualidade de R..
A falta de legitimidade processual configura uma excepção dilatória e tem como consequência a absolvição do R. da instância – cfr. artigos 228, nº 1, alínea d), 494º, alínea e) do Código de Processo Civil – e deve ser conhecida nesta fase processual, nos termos do disposto no artigo 787º, nº 1 do  Código de Processo Civil.
[…]”
            [transcrição de fls. 264]

            1.4. Inconformados, interpuseram os AA. – os AA. acima indicados como Apelantes – o presente recurso (fls. 266/286), sendo que remataram a motivação adrede apresentada com as conclusões que aqui se transcrevem:


“[…]

Recorre-se do despacho saneador/sentença que se absteve de conhecer do mérito da causa e, oficiosamente, levantou e julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual (passiva) do R. O....., absolvendo-o da instância, sob pretexto de que os patrimónios autónomos que constituem a herança ilíquida, indivisa e impartilhada deixada por óbito de M..... e a herança ilíquida, indivisa e impartilhada deixada por óbito de N...., não podem ser representadas por AA. e R..
Recortando esse pressuposto processual, a questão vem a ser a da representação daqueles patrimónios autónomos, intrincada com a defesa dos direitos e/ou bens integrantes dos mesmos;
contra actos atentatórios da integridade dos aludidos patrimónios autónomos ou acervos hereditários, actos esses perpetrados por um dos herdeiros concorrentes à partilha dos mesmos e que vem a ser o R. O......
Tal excepção dilatória, não arguida pelas partes, mas suscitada e levantada pelo Tribunal recorrido e por este julgada procedente, alastrou a todos os AA., causa de pedir e pedidos;
quando tal estava vedado fazer ao Juiz a quo.
a A. A..... pretendia ver-se, com a acção e contra o R., declarada judicialmente como única e legítima proprietária e possuidora (nem que por intermédio de terceiros) do imóvel rústico da freguesia de Ansião:
terra de cultura, videiras e carvalhos, sita nos Quintais, com a área matricial de 1000 m2 a confrontar, matricialmente, do norte com ..., sul ....., nascente ..... e poente com ....., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3493.
Ainda a mesma A. pretende com a acção, e igualmente contra o R. ser declarada comproprietária, na proporção de 1/7, dos prédios rústicos da freguesia de Ansião:
terra com oliveiras, sita nos Quintais, com a área matricial de 1000 m2 a confrontar, matricialmente, do norte com ....., sul ....., nascente O..... e poente com ..... inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3494; e
terra de cultura, videiras em cordão e latada, sita em Capitoas, com a área matricial de 518 m2 a confrontar, matricialmente, do norte com estrada nacional, sul e nascente ..... e poente Herdeiros de ....., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3338.
Tudo isto quando o R. registou a seu favor a totalidade dos três imóveis, mencionados [nas] conclusões que antecedem, por inteiro e como se lhe tivessem advindo por óbito de sua primeira mulher P..... em «sucessão testamentária».
E os AA., Recorrentes, Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de B....., J...... e L.... (sendo certo que o património autónomo/acervo hereditário deixado por óbito de B....., se encontra representado em Juízo por todos os herdeiros concorrentes à partilha do mesmo) pretendem também com a acção, ainda e igualmente contra o R., serem declarados comproprietários, na proporção de 1/7 para cada, dos prédios rústicos da freguesia de Ansião:
- Terra com oliveiras […], inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3493; e
- Terra de cultura […], inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3338;
Todos estes AA., Recorrentes, pretendem com a acção que intentaram, face aos direitos próprios, distintos dos do R., que:
sejam ordenados os cancelamentos das inscrições/cotas G-UM de cada um dos prédios sub judice a favor do R. na Conservatória do Registo Predial de Ansião nas descrições 3194, 3195 e 3196 da freguesia de Ansião; e
seja ainda ordenada a exclusão dos prédios rústicos da freguesia de Ansião matriciados sob 3338, 3493 e 3494, do Processo de Declaração em Transmissões Gratuitas – Imposto de Selo – nº 374145 por óbito de P....., primeira mulher do R., bem como o cancelamento da titularidade fiscal dos mesmos bens imóveis rústicos a favor do R., no Serviço Local de Finanças de Ansião, na respectiva matriz predial rústica.
Analisado o processo, até aqui e quanto a estes AA. e seus pedidos contra o R., não vislumbramos nenhum pressuposto processual de representação nem excepção dilatória de ilegitimidade passiva (ou activa), não estando legitimada a Mma. Juíza a quo a fazer a eles alastrar a procedência da excepção dilatória referida, assim impedindo, nesta parte, o prosseguimento dos autos atendendo, ainda, ao alegado em 40 da contestação.
[…]
10ª
Já era legítimo ao Tribunal recorrido suscitar a excepção inserida na decisão posta em crise, exactamente porque o raciocínio para a defesa das duas sétimas partes integrantes, uma para cada, das heranças abertas, ilíquidas, indivisas e impartilhadas deixadas por óbito de N.... e M....., à partilha das quais concorrem as AA. Ida, os representantes da herança de B..... (a viúva e meeira D........e os filhos E......, D........ e F....), J...... e L...... e o R. (como único herdeiro da 2ª mulher – Z....) nos imóveis rústicos da freguesia de Ansião, matriciados sob 3338 e 3494 (melhor descritos às conclusões 5ª e 7ª supra) não foi feliz, nem tecnicamente correcto.
11ª
E isto porque, se o R. concorre com os referidos AA. à partilha das duas mencionadas heranças deixadas por óbito de M..... e de N... – o que realmente assim é – o direito de cada um desses patrimónios autónomos (1/7 para cada em compropriedade) nos imóveis referidos na conclusão que antecede …
12ª
… não podem ser as heranças também representadas pelo R., a demandar este, mas é tarefa dos AA. Recorrentes, pessoas singulares, por si próprias e nas qualidades em que intervêm, demandar o R. O....., seu concorrente à partilha dos bens das mencionadas heranças, às quais aquele pretende retirar a totalidade dos referidos dos imóveis, assim se garantindo o pressuposto processual da legitimidade.
13ª
Só que […], a solução a eleger, apenas para esta segunda parte da acção e do processo, não seria a de suscitar, levantar e julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual passiva como foi feito na decisão de que se recorre…
14ª
… mas a de velar e cuidar pelo suprimento de excepções dilatórias e o convite ao aperfeiçoamento dos articulados como pontificam o artigo 508º, nºs 1, alíneas a) e b), 2 a 6 do Código de Processo Civil, comando ao arrepio do qual, entre outros, decidiu o Tribunal recorrido, quando o articulado é perfeita e facilmente corrigível.
15ª
E tal comportamento era ainda imposto nos poderes que são conferidos ao Juiz em termos de direcção do processo e no âmbito do princípio do inquisitório conforme pontifica o artigo 265º, nºs 1 a 3 também do Código de Processo Civil.
16ª
Efectivamente basta:
A) retirar do cabeçalho da petição:
«5 – Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de LM....., (…)» e
«6 – Herança Ilíquida, Indivisa e Impartilhada deixada por óbito de N.....(…)»;
B) alterar (ligeiramente) o pedido sob 3 para:
«ser judicialmente declarado que os imóveis rústicos da freguesia de Ansião matriciados sob 3338 e 3494, descritos aos itens 1º e 2º supra, são em compropriedade, e na proporção de 1/7 para cada um dos AA. sob 1 a 3, para os acervos hereditários deixados por óbito dos irmãos B..... (herança representada pelos AA. sob 2.1 e 2.4.), N... e M..... (estes dois últimas aos quais também concorre o R.) e um outro sétimo para o R., uma vez que o demandado se arroga à totalidade dos mesmos com registo a seu favor e (…)»; e
C) no mais se retirando todas as expressões que fazem menção à «representadas em Juízo por AA. e R.» relativamente às heranças deixadas por óbito de N... e M......
17ª
Numa palavra, a decisão recorrida não só não providenciou pelo suprimento da falta do referido pressuposto processual (legitimidade processual passiva) e que era (como continua a ser) susceptível de sanação, mas também, em vez de recusar o que é dilatório, impôs a excepção dilatória, sentenciando o não prosseguimento do processo.
18ª
O Tribunal recorrido, ao não velar pelo suprimento de excepções dilatórias e aperfeiçoamento dos articulados no exercício do poder de direcção do processo e ao abrigo do princípio do inquisitório, violou o disposto, entre outros, nos artigos 3º, 26º, 265º, 288º, nº 3, 508º e, a contrario, 288º, nº 1, alínea d), 494º, alínea e) e 787º do Código de Processo Civil.
São os termos em que,
[…] deve dar-se provimento ao presente recurso […], julgando-se o mesmo procedente […] e, ipso facto, revogar-se a decisão recorrida […] no sentido de serem os ora Recorrentes convidados a suprir a excepção dilatória  de ilegitimidade processual passiva do R. O....., com aperfeiçoamento da petição inicial, tudo nos termos expostos neste recurso […]”
[…]”
            [transcrição de fls. 277/286]


II – Fundamentação


            2. Apreciando a apelação, cujo âmbito objectivo foi delimitado pelos Apelantes através das conclusões acima transcritas [artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)][10], importa consignar que os elementos factuais relevantes para o recurso são os sequencialmente relatados ao longo do antecedente item 1, referindo-se eles, essencialmente, a actos processuais e ao conteúdo destes, estando todos eles devidamente documentados no processo. Optou-se por um relato sequencial e exaustivo da marcha do processo, para facilitar exactamente a compreensão e a caracterização do objecto do recurso no quadro do desenvolvimento da acção – com a configuração subjectiva activa e passiva que lhe foi dada no articulado inicial – que culminou com o Saneador-Sentença ora impugnado.

            Trata-se, pois, para esta Relação, de controlar a legitimidade processual do R. O....., no particular quadro argumentativo fornecido pelo Tribunal a quo: não se pode ser A. e R. ao mesmo tempo; se o R. (este R.) fosse excluído da qualidade de A., que lhe foi atribuída na petição inicial, haveria preterição de litisconsórcio necessário (já que todos os herdeiros têm que estar em juízo para fazer valer os direitos da respectiva herança indivisa); esta configuração conduz à ilegitimidade do R. e à sua absolvição da instância.

            2.1. Resumindo à partida o que de seguida será explicitado, diremos que o quadro argumentativo acabado de expor, o qual corresponde à ratio decidendi do pronunciamento da primeira instância, assentando em alguns pressupostos abstractamente correctos, erra, todavia, na sua aplicação e, consequentemente, no resultado que alcança, criando uma situação de aparente impossibilidade de adjectivação de um direito (o direito dos herdeiros à herança, materializado num determinado tipo de actuação sobre os bens que a integram), direito este não legalmente excluído da tutela judiciária[11].

Com efeito, se existe, neste caso, litisconsórcio necessário activo entre todos os herdeiros, e se isso abrange o R., dada a sua qualidade de herdeiro, os restantes herdeiros nunca poderiam fazer valer contra este último (seu co-herdeiro) os direitos correspondentes ao património hereditário, quando tais direitos fossem violados por esse co-herdeiro, designadamente através da indevida apropriação por este de bens da herança[12]. É que, a triunfar o entendimento que se expressa no despacho apelado, a falta do R. (co-herdeiro) do lado dos AA. sempre geraria, no caso de uma acção de reivindicação, preterição de litisconsórcio necessário e, consequentemente, ilegitimidade (artigo 28º do CPC), e se o R. também estivesse do lado dos AA. (se alguém, como aqui sucedeu, aí o colocasse) isso geraria a impossibilidade lógica decorrente da coincidência da posição de A. com a de R. na mesma acção, sendo que a situação substantiva em causa seria – a triunfar tal ponto de vista – conduzida a uma espécie de “beco sem saída” correspondente a uma impossibilidade de concretização processual.

            Semelhante entendimento não pode, dadas as suas consequências, corresponder a algo passível de aceitação no plano da efectiva tutela judiciária.

            2.1.1. A apreciação do recurso – o percurso argumentativo tendente a afastar o resultado que reputamos de inaceitável – pressupõe o aprofundamento de diversas questões.

            2.1.1.1. Interessa-nos desde logo o caso particular da actuação em juízo de uma herança indivisa. Esta, contrariamente ao que sucede com a herança jacente – “[d]iz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”, artigo 2046º do Código Civil (CC) –, que dispõe de personalidade judiciária (artigo 6º, alínea a) do CPC), carece da intervenção de todos os herdeiros, activa ou passiva, para exercício dos direitos respectivos. Vale aqui o regime decorrente do artigo 2091º,nº 1 do CC: “[…] os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”[13], sendo neste sentido que se fala, relativamente à herança indivisa, de litisconsórcio necessário activo ou passivo[14].

            2.1.1.2. Uma outra dimensão do problema prende-se com a circunstância, aqui induzida pelos Apelantes através da petição inicial, de a mesma pessoa ( O.....) coincidir na posição de A. e R.: seria A. – e estamos a reconstruir o sentido possível da configuração subjectiva da lide constante do articulado inicial, aliás, nos termos em que esta foi entendida pelo Tribunal a quo na decisão recorrida –, seria A., dizíamos, por ser co-herdeiro de duas das heranças indivisas em causa; seria R. por se ter apropriado de bens integrantes dessas mesmas heranças. 

            Passando por cima da circunstância, essencialmente do domínio da actuação e representação em juízo, de o referido O..... não ter “legitimado” (mandatado) quem quer que fosse para propor em seu nome a presente acção[15], afigura-se-nos evidente que a coincidência na mesma pessoa (na mesma personalidade jurídica e judiciária) da figura de A. e R. corresponde, mesmo em situações de legitimidade plural, a uma impossibilidade lógica geradora de um contra-senso processual, equivalente à figura do “processo consigo próprio”, gerando uma situação inconciliável com o “princípio da dualidade das partes”[16]. Este exige, com efeito, no seio de um processo, uma completa diferenciação entre a posição de A. e a posição de R.. Daí que, mesmo sem uma previsão expressa como a constante do artigo 267º, X do Código de Processo Civil brasileiro (“[e]xtingue-se o processo sem resolução de mérito: […] quando ocorrer confusão entre autor e réu […]”[17]), essa suposta coincidência na mesma pessoa das duas qualidades antagónicas e incompatíveis impossibilita a acção logo à partida, nos casos de legitimidade singular, e, nos casos de legitimidade plural,  determina a impossibilidade da configuração subjectiva que origina a coincidência da mesma pessoa nos dois lados da acção[18].

A actuação do tribunal pressupõe um conflito de interesses e a resolução deste tem de ser pedida por quem ocupa (por todos e cada um dos que ocupam) a posição de A. (artigo 3º, nº 1 do CPC). Aliás, a legitimação como A. pressupõe um interesse directo em demandar (artigo 26º, nº 1 do CPC) face à construção de partida da lide, situação de todo ausente relativamente a quem é titular – isso sim, como de facto aqui sucede – do interesse (antagónico) em contradizer próprio da posição de R., face à relação jurídica configurada na petição inicial.

Como facilmente se intui, ponderando a presente situação, a hipotética procedência da acção configurada no articulado inicial pelos ora Apelantes, só gera, relativamente a O..... (indevidamente adicionado ao rol dos AA. pelos Apelantes), interesse em contradizer[19], como à partida (face à p.i.) já era lógico e como se tornou perfeitamente claro, aliás, com a contestação apresentada pelo mesmo na qualidade de R. (que é efectivamente a sua verdadeira qualidade face a esta lide). Existe, pois, na presente situação, uma evidente ilegitimidade activa do “A.” O..... (poderíamos chamar-lhe verdadeiramente uma impossibilidade de ser A.), sendo indiferente, como de seguida se demonstrará, que a posição dos co-herdeiros de uma herança indivisa se configure, adjectivamente, como antes se disse (v. item 2.1.1.1., supra), em termos de litisconsórcio necessário.

2.1.1.3. Importa, neste quadro argumentativo, aprofundar a caracterização da acção proposta pelos aqui Apelantes, conferindo um mínimo de clareza a uma situação que – há que reconhecê-lo – se apresenta como algo complexa, senão mesmo confusa.

Conforme já referimos na nota 13, supra, está aqui em causa uma acção de reivindicação (artigo 1311º do CC), referindo-se esta a três prédios rústicos, sendo que um deles (o artigo matricial 3493) é reivindicado pela A. A..... e os dois restantes (os artigos matriciais 3338 e 3494) pelos herdeiros de determinadas heranças indivisas, enquanto bens pertencentes ao acervo dessas heranças. Esta realidade resulta evidente da leitura dos pedidos (foram transcritos no item 1.1. deste Acórdão) e é evidenciada pela reconstrução do percurso argumentativo que leva os ora Apelantes a formular essas pretensões.

É essa reconstrução que aqui nos propomos realizar, propiciando a caracterização da presente acção e a compreensão do seu sentido.

2.1.1.3.1. Note-se – e este constitui o ponto de partida e o pressuposto básico da acção nos termos em que a mesma foi proposta contra o R. – que desses três prédios (3338, 3493 e 3494) figura presentemente como proprietário único, como tal inscrito no registo predial, o R., pretendendo os Apelantes afirmar, ilidindo a correspondente presunção registal, uma distinta realidade dominial. Esta realidade – afirmam-no os Apelantes enquanto AA. – alcança-se, nas suas duas vertentes (a propriedade da A. A..... de um dos prédios; a propriedade dos herdeiros dos outros dois prédios), percorrendo, desde o longínquo ano de 1917, o seguinte “trato sucessivo” que nos é proposto pelos Apelantes como constituindo o seu título:


· Os três prédios aqui em causa (artigos matriciais nºs 3338, 3493 e 3494) corresponderam na “origem” (na origem do trecho temporal a considerar aqui, seguindo, através da petição inicial, o argumentário dos Apelantes) às verbas nºs 17 (os prédios 3493 e 3494, então como um prédio único) e 18 (o prédio 3338) do “Inventário Orfanológico Obrigatório nº 27/1917 do Tribunal Judicial de Ansião” (certidão de fls. 56/93, cfr. fls. 69/70), no qual desempenhou as funções de cabeça-de-casal R.....;
· Esses prédios eram, à data da morte de Q.... (04/08/1917), propriedade do casal formado por esta e por R..... .
· A essa Q.....sucederam quatro filhos: S..... , T....., L.... e U..... (pré-falecida, representada pela filha menor L......[20]).
· Os três imóveis (que então eram dois) foram adjudicados nesse Inventário (as respectivas verbas 17 e 18) ao cônjuge e cabeça-de-casal R......
· Este (R....) doou a verba nº 18 (actual prédio 3338), em 01/11/1921, através da escritura de doação de fls. 95/97 (doc. nº 5 junto com a p.i.) às filhas T..... e L.....
· A primeira destas (T....) casou com V...., que viria a falecer em 24/08/1935, deixando, além da viúva, sete filhos: N..., X.... , M....., B....., Z.... , W.... e L.......
· R..... faleceu em 12/10/1932 (doc. nº 6, fls. 99).
· Como os sete filhos de T..... eram menores, foi instaurado (por óbito de V.....) processo de inventário (proc. nº 33/1935 do Tribunal Judicial de Ansião, doc. nº 7 de fls. 100/116).
· Neste Inventário foi relacionado (como verba nº 2, cfr. fls. 106/107) 1/2 do prédio denominado “Vigaria” (prédio 3338), correspondendo esta fracção à metade que havia sido doada a T..... pelo pai R......
· Esse prédio (“Vigaria”) corresponde ao (actual) artigo 3338 criado em 1970.
· Nesse mesmo Inventário (nº 33/1935) foi igualmente relacionado, aí constituindo a verba nº 6 (cfr. fls. 108), 1/2 do prédio denominado “Chouso de Pedro”, actualmente denominado “Quintais” (actual artigo 3494), já que a outra metade do “Chouso de Pedro” hoje “Quintais”, foi “adjudicada” ao irmão de T..... e L......, S...., por partilhas verbais por morte de seu pai R..... (este faleceu, como se disse, em 12/10/1932).
· Corresponde esta última metade, actualmente, ao artigo 3493. Ou seja, por via do Inventário Orfanológico nº 33/1935, instaurado por óbito de V....., marido de T....., as respectivas verbas nºs 2 e 6 (hoje artigos matriciais nºs 3493 e 3494 – “Chouso de Pedro” ou “Quintais”) ficaram adjudicadas, em compropriedade, (1/7) a cada um dos sete filhos menores.
· Em 14/02/1955, S.... (irmão de T.....), estando emigrado no Brasil, aí outorgou, em conjunto com a sua mulher (Y.....), o instrumento de procuração que se encontra junto a fls. 117 (doc. nº 8 da p.i.), no qual conferiu ao seu sobrinho B..... (um dos sete filhos da irmã T.....), poderes para que vendesse ao seu irmão (dele B.....) X..... (falecido marido da A. A.....) todos os bens que possuíssem em Portugal, ou seja, o artigo 3493.
· Afirmam os Apelantes que o B..... assim procedeu[21], o que aferem pela circunstância do prédio se encontrar na titularidade fiscal de X..... (doc. nº 1 a fls. 44).
· X..... faleceu no Brasil no dia 23/12/1976 (doc. nº 11, fls. 128), deixando como única e universal herdeira a sua mulher, a A. A...... O prédio 3493 pertencerá, assim, à A. A......
· Quanto aos prédios 3338 e 3494, encontram-se eles, hoje ainda, em regime de compropriedade em quotas de 1/7 (referidas aos sete filhos de T..... e V.....): 1/7 para a herança aberta por óbito de N...., “representada por AA. e R.” (utilizamos aqui, não obstante inadequada, a exacta expressão feita constar da p.i.), sendo que este último (o R.) aparece como único e universal herdeiro da sua 2ª mulher, Z....., falecida em 18/09/2006; 1/7 para a A. A....., como herdeira de X.....; 1/7 para a herança aberta por óbito de M....., “representada por AA. e R.”, este como herdeiro de Z.....; 1/7 para a herança aberta por óbito de B....., da qual é herdeira (e meeira) a sua viúva C..... e os seus filhos, D........, F.... e E......; 1/7 (que corresponde ao R. seu viúvo) para a própria herança de Z.....; 1/7 para J......, como herdeira de W.....; 1/7 para L.......      

Os pedidos acima transcritos no item 1.1., formulados a concluir a p.i., constituem o culminar deste complexo “trato sucessivo”, em associação à circunstância – na qual reside a justificação da presente acção – de o R. haver registado em seu nome, contra o que resulta de tal “trato” – isto dizem-no os Apelantes –, os três prédios em causa, aqui reivindicados.

2.1.1.4. Antes aludimos, e constitui um dado significativo, à circunstância de se estar perante uma acção de reivindicação e não de petição de herança. Tal asserção, que se suporta através do “trato sucessivo” que percorremos no item anterior, decorre de o pedido, sempre partindo do quadro traçado no articulado inicial, não se referir, estruturalmente, ao reconhecimento da qualidade sucessória dos Apelantes (qualidade que é pressuposta) mas antes ao reconhecimento de determinados direitos de propriedade que se obtêm (poderíamos dizer, demonstram, empregando um conceito significativo para a reivindicação[22]) pressupondo, em diversos momentos desse percurso demonstrativo, distintas qualidades de herdeiros referidas aos diversos Apelantes[23].

É esta, expressa nos pedidos formulados, a essência da presente acção, sendo através desta essência que a questão de quem pode (deve) ser A. deve ser equacionada.

Aludimos antes neste Acórdão (final do item 2.1.1.3.) à circunstância de existir, na presente situação, uma evidente ilegitimidade activa do “A.” O....., caracterizando-a mesmo como uma impossibilidade de o mesmo ocupar a posição de A.. Acrescentámos aí, e é altura de o reafirmar, ser indiferente, na caracterização dessa impossibilidade, que a posição dos co-herdeiros de uma herança indivisa seja adjectivamente configurável, em termos de litisconsórcio necessário.

Importa justificar devidamente esta última afirmação.

Com efeito, a essência do carácter necessário (a imposição legal) do litisconsórcio refere-se, enquanto desvalor processual, à “falta” no processo – rectius, à ausência do processo como parte – de alguém cuja intervenção na relação controvertida é exigida pela lei ou pelo negócio (artigo 28º, nº 1 do CPC), como sucede com os co-herdeiros na herança indivisa (artigo 2091º, nº 1 do CC). Ora, a presença no processo, embora como R., de alguém que, face ao conteúdo da relação controvertida enunciado na petição inicial, ocuparia a posição de A.[24], já cumpre a teleologia do referido artigo 28º, nº 1: essa pessoa já está efectivamente presente e actuante no processo. Tal como cumpre – essa mesma situação (ou seja, a presença como R. do co-herdeiro) – a teleologia presente no nº 2 do mesmo artigo 28º, na medida em que propícia que esteja em juízo nesse mesmo processo (na posição de R. e, logo, vinculado pela decisão a proferir) um interessado necessário à obtenção de uma decisão apta a produzir, sobre a relação material controvertida, o que a lei refere como efeito útil normal. Este consiste aqui no reconhecimento de um determinado direito de propriedade, de certos sujeitos, sobre três prédios[25].

2.1.2. É com base nestas considerações que a questão da legitimidade do R. na presente acção deve ser equacionada e resolvida. Significa isto dispor o R. – assim o entende esta Relação, contrariamente à primeira instância – de legitimidade passiva (legitimidade para assumir a posição de R.), embora não possa ocupar, concomitantemente, como se disse ao longo deste Acórdão, uma posição assimilável à de A. (uma posição como a induzida pelos Apelantes através dos termos empregues no proémio da petição inicial). É, pois, desta posição de A. que importa exclui-lo, e não da posição de único R., sendo que isto sempre implicará a afirmação da sua legitimidade como R. na presente acção.

Vale isto por dizer – e nisto consistirá o pronunciamento decisório a emitir no presente recurso – que a decisão ora apelada deve ser substituída por outra que afirme a legitimidade do R., determinando, todavia, a sua exclusão da posição de A., clarificando que na presente acção são AA., tão-só, os aqui Apelantes. Sublinha-se, enfim, a benefício do esclarecimento da posição do Tribunal a quo após o cumprimento deste Acórdão, que o processo se encontrará, então, com a questão da legitimidade resolvida (com a determinação de quem é parte e que parte é) e na fase de saneamento e condensação prevista nos artigos 510º e 511º do CPC.

2.2. Importa, assim, conceder provimento ao recurso (há que revogar a decisão recorrida), deixando antes nota, em sumário imposto pelo artigo 713º, nº 7 do CPC, dos elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo:


I – A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
II – A coincidência na mesma pessoa da posição de A. e R., na mesma acção, mesmo em situações de legitimidade plural, corresponde a uma impossibilidade lógica, ofendendo o princípio da dualidade das partes.
III – A verificação de tal situação impossibilita a acção logo à partida, nos casos de legitimidade singular, e gera, nos casos de legitimidade plural, a impossibilidade da configuração subjectiva que origina essa (inaceitável) coincidência da mesma pessoa nos dois lados da acção.
IV – No caso de uma acção de reivindicação de bens pertencentes a uma herança, diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, não tem aplicação o disposto no artigo 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do artigo 2091º, nº 1 do CC.
V – Nestes casos (acção de reivindicação), quando o acto ofensivo do direito de propriedade do património hereditário indiviso for subjectivamente atribuído a um co-herdeiro (por exemplo, por este ter registado em seu nome bens da herança), a posição deste último como R. (em confronto com os outros co-herdeiros reivindicantes) já preenche plenamente o fim que preside à imposição do litisconsórcio (artigo 28º, nºs 1 e 2 do CPC).
VI – Com efeito, neste caso, ocorrendo a intervenção do co-herdeiro como R., está assegurada, por um lado, a participação no processo desse (co-)interessado na relação material controvertida (na relação respeitante à dominialidade dos bens reivindicados), conforme exige o nº 1 do artigo 28º do CPC. Da mesma forma, por outro lado, a decisão a proferir produz, relativamente ao co-herdeiro destinatário da pretensão reivindicatória (na qualidade de R.), o seu efeito útil normal (nº 2 do artigo 28º do CPC).


III – Decisão


            3. Pelo exposto, revogando-se a decisão recorrida no trecho pertinente, determina-se ao Tribunal de primeira instância que profira decisão considerando o R. O..... parte legítima (como R.), determinando a exclusão deste da posição de A..

            Os Apelantes suportam 50% das custas apuradas do presente recurso (fica sem efeito a condenação em custas proferida a fls. 265). De facto, independentemente do sentido da decisão do presente recurso, foram os AA., ao adicionarem o R. ao rol dos AA., que deram causa à tramitação que originou este recurso e determinou, parcialmente, o sentido da decisão do mesmo, valendo aqui (parcialmente), por isso, o critério do nº 1 do artigo 446º do CPC[26]. Pagaria o R. os restantes 50% – desta feita com base no critério do nº 2 do mesmo artigo 446º (parte parcialmente vencida) –, o que só não sucederá, dado dispor de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (v. fls. 184/185), tendo em vista o regime emergente do artigo 13º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho[27].


[1] O que vale por dizer que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (em 01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Que nele será apreciado detalhadamente, na parte respeitante à fundamentação decisória.
[3] Dizem estes:
“[…]

Actualmente existem três imóveis rústicos situados na freguesia e concelho de Ansião:
- terra de cultura, videiras e carvalhos, sita nos Quintais, com a área matricial de 1000 m2 […], inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3493 (doc. nº 1);
- terra com oliveiras, sita nos Quintais, com a área matricial de 1000 m2 […], inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3494 (cfr. doc. nº 2); e
- terra de cultura, videiras em cordão e latada, sita em Capitoas, com a área matricial de 518 m2 […], inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ansião sob o artigo 3338 (cfr. doc. 2).
Esses imóveis rústicos encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob os nºs 3195, 3193 e 3194/120804-Ansião e aí inscritos a favor do R. pela inscrição G-UM (doc. nº 3).
[…]”
                [transcrição de fls. 5/6]
[4] Diz-se, em síntese conclusiva, a respeito deste imóvel na petição inicial:
“[…]
43º
O imóvel rústico da freguesia de Ansião matriciado sob 3493 – Chouso Pedro ou Quintais – é hoje pertença da 1ª A. A...., viúva de X..... e sua única e universal herdeira.
[…]”
                [transcrição de fls. 14]

[5] Transcreve-se aqui o teor de tal item do articulado inicial:
“[…]
44º
Os imóveis rústicos da freguesia de Ansião matriciados sob 3338 (Vigaria, limite da Sarzedela ou Capitoas) e 3494 (Chouso Pedro ou Quintais), são hoje, e ainda, compropriedade e na proporção de 1/7, conforme as adjudicações de 1935 das verbas 2 e 6 do Inventário orfanológico por óbito de V....., ou seja:
- 1/7 para a Herança deixada por óbito de N...., em Juízo representada por AA. e R. (como único e universal herdeiro de sua 2ª mulher Z..... – falecida a 18/09/2006 – doc nº 12);
- 1/7 para A.... (1ª A.), como única e universal herdeira de seu falecido marido X.....;
- 1/7 para a Herança deixada por óbito de M....., em Juízo representados por AA. e o R. (como único e universal herdeiro de sua 2ª mulher Z..... – falecida a 18/09/2006 – doc. nº 12);
- 1/7 para a herança por óbito de B....., em Juízo representada por sua viúva C....., também na qualidade de meeira e seus filhos D........, F... e E...... (AA. supra sob 2);
- 1/7 para a herança deixada por óbito de Z....., falecida apenas em 18/09/2006 (doc. nº 12 em Juízo representada por seu único e universal herdeiro, o seu viúvo O..... – o ora R.;
- 1/7 para a J.... (3ª A.), como única e universal herdeira de W.....; e
- 1/7 para a L......, única sobrevivente e última dos 7 menores de 1935 (cfr. por todos o doc. nº 7).
[…]”
                [transcrição de fls. 14/15]
[6] V. o Doc. nº 3 junto com a petição inicial (fls. 50/55).
[7] Emergentes de um complexo processo hereditário, cujo trato sucessivo é indicado na petição inicial. Adiante neste Acórdão explicitaremos o referido trato sucessivo.
[8] Embora na identificação dos AA. no articulado inicial se aluda a “representação” das heranças pelas pessoas aí indicadas, o que se pretende afirmar é – parece-nos claro – a pertença de determinados prédios às heranças das quais são herdeiros determinadas pessoas.
[9] Lendo o argumentário do R. aduzido em abono dessa afirmada ilegitimidade activa (itens 1º a 7º da contestação a fls. 145 e vº), percebe-se estar em causa não uma questão de legitimidade, mas de representação, sendo que esta foi subsequentemente regularizada (v. fls. 193/197, 204 e 206/207).
[10] Claro que, para além das questões focadas nas conclusões, sempre constituem um legítimo objecto de pronunciamento da instância de recurso questões configuráveis como de conhecimento oficioso (v. artigo 660º, nº 2 in fine).
[11] Vale aqui o disposto no artigo 2º, nº 2 do CPC: “[a] todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente […]”. Note-se que a excepção da lei determinar o contrário se refere às “[…] obrigações naturais não espontaneamente cumpridas (artigos 402º e 403º do Código Civil), que, porém, não constituem verdadeiras obrigações jurídicas para quem entenda que a jurisdicidade implica necessariamente coactividade” (José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 5).  
[12] O emprego da expressão “apropriação” no presente contexto assume um sentido jurídico-processual específico, correspondente aliás à sua raiz etimológica. Refere-se apenas à dimensão adjectiva (adequação de determinados meios processuais e inadequação de outros) relacionada com a circunstância de alguém se tornar proprietário, distinguindo-se, nessa dimensão, de “apossamento”, enquanto acto ou efeito de tomar a posse de algo. Propriedade e posse valem aqui, por isso, em sentido jurídico preciso (propriedade = direito de propriedade), interessando este significado na presente situação em vista da legitimação referida à tutela possessória relativamente aos bens da herança, prevista no artigo 2088º do Código Civil, por contraste com o exercício da reivindicação, enquanto acção real prototípica assente nas “razões absolutas” ligadas à específica natureza do direito de propriedade como direito absoluto [v. “Acção de Reivindicação”, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, s. d. (o Estudo está datado de Julho de 1994), pp. 16/42].  
[13] Tendo em vista o trecho inicial da mesma norma – “[f]ora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º […]” –, tenha-se presente que se não configura aqui nenhuma dessas excepções de legitimação específica (as contidas nos artigos 2088º, 2089º e 2090º do CC) e que não estamos, como adiante se explicitará, no domínio da petição da herança (estamos no domínio da reivindicação de bens específicos integrantes da herança) que nos reconduziria à facti species do artigo 2078º do CC. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, anotando este mesmo artigo 2078º: “[u]ma coisa – um lado da situação – é a relação de contitularidade entre os diferentes co-herdeiros; e outra coisa é a relação singular de cada co-herdeiro com os terceiros possuidores ou meros detentores dos bens hereditários, em que a lei confere legitimidade, através da petição de herança, para cada um deles agir em nome ou no interesse de todos os demais” (Código Civil anotado, Vol. VI, Coimbra, 1998, p. 134).
[14] V. José Martins da Fonseca, “Herança Indivisa – Sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros pelas Dívidas da Herança”, in Revista da Ordem dos Advogados, 1986/II, pp. 580/584; João António Lopes Cardoso, Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 5ª ed. revista, adaptada e actualizada, Coimbra, 2006, pp. 15/16.
[15] O que, por si só, sempre excluiria que os aqui Apelantes pudessem propor a acção também em nome de O..... (admitindo que, quando o indicam como “representante” de algo e o posicionam nessa qualidade do lado activo, estão a adicioná-lo aos AA., como o entendeu o Tribunal a quo).
[16] O princípio da dualidade das partes é caracterizado por Miguel Teixeira de Sousa nos seguintes termos:
“[…]
1. Noção.
Todo o processo exige duas partes: uma parte activa (o autor ou exequente) e uma parte passiva (o réu ou executado). Ambas as partes podem ser constituídas por um único sujeito ou por uma pluralidade de sujeitos.
2. Corolários.
Deste princípio da dualidade das partes decorrem, nomeadamente, os seguintes corolários: o processo termina se se verificar a confusão, quanto ao direito em litígio, entre as partes da causa; uma parte não pode ser representante da outra; ambas as partes não podem ser representadas pelo mesmo representante; duas filiais de uma mesma sociedade não podem ser partes contrárias num mesmo processo.” (Introdução ao Processo Civil, Lisboa, 1993, pp. 39/40).
[17] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L5869.htm.
[18] Esta consideração respeitante à legitimidade plural fornece-nos, como se tornará claro na subsequente exposição, a chave do problema que se coloca no presente recurso.
[19] Como decorre da chamada “tese Barbosa de Magalhães”, hoje em dia consagrada no nº 3 do artigo 26º do CPC: “[…] a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor” (Acórdão da Relação de Coimbra, de 25/01/1978, in BMJ, 275, 284).
Como observa Miguel Teixeira de Sousa, “[s]ó a solução  de Barbosa de Magalhães equaciona correctamente a qualidade de parte processual, porque só ela dispensa uma conexão desta com a legitimidade substantiva. Com o objecto do processo só realidades processuais se podem relacionar, já que ele próprio está aquém da fundamentação da demanda e, por isso, toda a posição que ultrapasse este limite amplia a qualidade de parte processual para uma situação substantiva” (“A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”, separata do BMJ, Lisboa, 1979, pp. 57/58).
[20]  Esta circunstância determinou, então, o carácter obrigatório do Inventário.
[21] Afirmam-no na petição inicial nos seguintes termos:
“[…]
36º
O B..... procurador, já faleceu e é sabido que vendeu, ainda na década 50 da transacta centúria, este (entre outros) imóvel [3493] […] ao irmão X....., na qualidade de procurador do casal do tio S..... 37º
E fê-lo, pelo menos, verbalmente o que alega à míngua de qualquer escritura que, após aturadas buscas não foi possível encontrar […].
[…]”
                [transcrição de fls. 13]
[22] A questão do quantum de demonstração do direito de propriedade invocado pelo A. na reivindicação é variável. A questão da propriedade constitui pressuposto da reivindicação, mas o nível de prova desse direito é moldado, variavelmente, em função do interesse do R.. Como refere José de Oliveira Ascenção, caracterizando a acção de reivindicação, “[s]e o réu contesta a propriedade e o pode fazer, há que proceder à prova cabal desta” (“Acção de Reivindicação”, cit. p. 34). E acrescenta, impressivamente, o mesmo Autor:
“[…]
Há […] que determinar com mais precisão os casos em que haverá que proceder a uma demonstração mais avançada da propriedade, não bastando uma demonstração prima facie desta.
Os casos-padrão são aqueles em que ambos os titulares se pretendem proprietários da coisa. […].
[…]
Consequentemente, a medida da demonstração necessária da propriedade deve ser fixada em concreto, de harmonia com o interesse do R. nessa demonstração. Não seria correcto colocar tudo em termos de sim ou não, numa alternativa radical entre a prova cabal ou a remissão para o «melhor título». Na realidade, há uma gradação contínua, e a prova exigida é maior ou menor consoante a configuração concreta do litígio. Portanto, consoante a intensidade do interesse do réu nessa prova.
[…]” (ibidem, pp. 40/41).
[23] V., apontando claramente neste sentido, na distinção entre a acção de petição de herança e acção de reivindicação, os Acórdãos do STJ de 11/04/1994 (Torres Paulo) e de 02/03/2004 (Azevedo Ramos), proferidos, respectivamente, nos processos nºs 086270 e 04A126, disponíveis, na pesquisa pelos campos aqui indicados, no sítio do ITIJ, nos dois endereços seguintes: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/33c1af093291d7c78 e http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b14fdec9a56c98d88. Cfr., na jurisprudência desta Relação, o Acórdão de 28/06/2005 (Monteiro Casimiro), proferido no processo nº 1122/05, disponível no sítio do ITIJ (pesquisa por campos), no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/dbc601d1c6aed91a.
[24] E sublinha-se que só ocuparia tal posição pressupondo a existência dessa mesma relação.
[25] Como referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, anotando o nº 2 do artigo 28º do CPC:
“[…]
Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças […] inúteis por, por um lado, não vincularem terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.
A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas acções de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar.” (Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, cit., p. 58).
[26] Já na redacção – tratando-se de recurso posterior a 20/04/2009 – introduzida pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro (v. artigo 27º, nº 2 deste Diploma).
[27] A condenação do R. em tal pagamento sempre dependeria do preenchimento da facti species do nº 1 do artigo 13º da Lei nº 34/2004 e da instauração pelo Ministério Público da acção referida no mesmo preceito.