Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1816/17.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: AÇÕES AO PORTADOR
DOAÇÃO A FILHOS
RELACIONAMENTO EM PROCESSO DE INVENTÁRIO
LEGÍTIMA
COLAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
SONEGAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1097.º, N.º 3, AL.ª C), 1082.º, AL.ª A), 2157.º, 2162.º, N.º 1, 2108.º, N.º 1, 2104.º, N.º 1, 954.º, AL.ª A), E 2096.º, DO CÓDIGO CIVIL, 414.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, E 397.º, N.º 2, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I – Doadas por pai a filhos determinadas ações ao portador, devem estas ser relacionadas, como bens doados, no processo de inventário por morte do doador, para efeitos de colação, de molde a determinar se ocorre ofensa da legítima de herdeiros legitimários.

II – Formulado pedido de restituição de 40.000 ações, com fundamento em não ter existido nenhuma contratação a respeito – nenhum acordo que legitimasse a posse das ações pelos réus –, tal facto era constitutivo do direito alegado pelo autor, impendendo sobre este o ónus da prova.

III – Mesmo que também não se tenha provado o negócio que esteve na base da entrega das 40.000 ações, esta dúvida do tribunal sobre a existência/inexistência do negócio que precedeu ou acompanhou a entrega das ações resolve-se contra o autor, nos termos do art. 414.º do CPCiv..

IV – A sonegação de bens consiste na ocultação dolosa da existência de bens da herança, por parte do herdeiro, seja ou não cabeça-de-casal.

V – A ocultação de ações que não fazem parte dos bens da herança – por terem sido objeto de doação, seguida de entrega, com decorrente transmissão da propriedade – não constitui sonegação de bens, estando fora do alcance dessa figura (prevista no art. 2096.º do CCiv.) a ocultação de doações de bens feitas em vida pelo autor da herança.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias



Processo n.º 1816/17.4T8VIS.C1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Avenida ..., freguesia ..., ... ..., propôs acção declarativa com processo comum contra BB e sua mulher CC, residentes na Rua ..., ..., Quinta ..., ... ..., DD e sua mulher EE, residentes na Rua ..., ..., ... ..., FF, residente na Rua ..., ... ... e A... SA, com sede na Estrada Nacional nº ...29, nº 706-708, freguesia ..., ... ..., pedindo:
1. Se declarasse a nulidade do contrato de dação em pagamento celebrado entre o falecido GG e a sociedade aqui 4.ª ré e por via do qual aquele doou a esta, que aceitou receber, 40.000 acções representativas do seu capital social, e para extinção de divida daquele à 4ª Ré;
2.  Que, consequência, estas 40.000 acções retornassem à herança deixada por aquele;
3. Que os aqui réus na qualidade de herdeiros e, por isso, titulares, em conjunto com os autores, da herança aberta por óbito do GG, e suas mulheres, aqui rés e considerando os respectivos regimes de casamento, fossem condenados a reconhecerem que estas 40.000 acções fazem parte da herança ainda indivisa aberta por óbito daquele;
4. Se condenasse a 4.ª ré a reconhecer a nulidade do invocado contrato de dação em pagamento das 40.000 acções;
5. Se declarasse que, em vida, o falecido GG doou aos aqui primeiro a terceiros Réus os seguintes lotes de acções representativos do capital social da “A... SA”: Ao 1.º Réu: 44.420 acções; ao 2.º réu: 60.320 + 100 acções, à 3ª ré: 44.420 acções;
6. A condenação destes três réus, por si e na qualidade de herdeiros de GG, e as rés Mulheres, dados os respectivos regimes de casamento, a reconhecerem que aquelas doações ocorreram e que, por isso, aquelas acções deverão ser relacionadas como “bens doados” no processo de inventário nº ...55 que corre termos, por óbito daquele, no Cartório da Notária ... Dra. HH, sedeado nesta cidade ...;
7. Se o peticionado em 1) não for concedido, se declarasse que os 1º a 3ªºs réus estão a deter as seguintes acções que são pertença da 4ª ré e por serem “acções próprias”: o 1º réu: 13.333 acções, O 2º réu: 13.333 acções, a 3.ºa ré: 13.334 acções, sem que haja título que legitime a transmissão da propriedade das mesmas da 4ª Ré para os 1º a 3ª RR;
8. Se condenasse os 1º a 3ª RR. A restituir aquelas acções à 4ª Ré por ser esta a proprietária das mesmas e porque são “acções próprias”, e esta condenada a aceitar a restituição, sendo, também, as réus Mulheres condenadas a aceitarem a restituição;
9. Se o peticionado em 5) não fosse concedido quanto às 200 acções que foram propriedade de II e/ou quanto às últimas 100 acções detidas pelo falecido, se ajustasse o peticionado em 5. e 6. em conformidade com o que viesse a ser apurado;
10. Na medida do que, a final, venha a ser declarado que houve doação de acções, nessa medida será também declarado que os 1º a 3ª RR sonegaram esses bens como bens da herança e, por isso, deve ser declarado que perdem em benefício do A. o seu direito sobre esses bens, e as RR.-mulheres, considerando os respectivos regimes de casamento, serão condenadas a reconhecerem o que venha a ser declarado, tudo em conformidade com o já citado art.º 2096º-1 do Código Civil.

Para o efeito alegou em síntese:
· Que ele e os réus BB, DD e FF são filhos de GG, que faleceu em .../.../2013;
· Que ele, autor, requereu inventário por óbito de seu pai, o qual corre termos sob o n.º 4775/155 no Cartório Notarial ..., sedeado em ...;
· Que nele exerce as funções de cabeça-de-casal o réu BB;
· Que o réu não relacionou quaisquer acções da sociedade A... SA, seja como bens deixados pelo inventariado GG, seja como bens doados por este aos seus três filhos, os três primeiros réus;
· Que, em face disto, o aqui autor reclamou contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal e requereu a relacionação das acções que constituem o capital social da A... SA, mas o cabeça de casal recusou a relacionação, tendo a Exm.a notária remetido os interessados para os meios comuns;
· Que GG era accionista da sociedade A... SA, com 189 960 acções;
· Que os restantes accionistas eram os réus DD, JJ e FF, cada um com 3580 acções e II com 200 acções; 
· Que o falecido em data indeterminada, mas anterior a .../.../2005, fez doação aos aqui réus, pelo menos, dos seguintes lotes de acções: ao DD 60 320 acções, à ré FF 44 320 acções e ao réu BB 44 320 acções;
· Que II cedeu as suas acções, 100 à ré FF e 100 ao réu BB por instruções de GG, pois aquele II interveio no contrato de constituição da sociedade a pedido de DD e dos aqui réus apenas para preencher o mínimo número legal de accionistas fundadores, nunca se tendo considerado accionista, nunca tendo exercido qualquer direito social;
· Que, no ano de 2002, GG liquidou um débito à sociedade A... SA de 44 877 074$70, tendo-lhe dado em pagamento 40 000 acções no valor nominal de 5 euros cada, perfazendo 200 000,00 euros;
· Que a dação em pagamento das acções é nula;
· Que os réus tomaram posse das acções próprias da sociedade, valendo-se do facto de elas serem ao portador;
· Que, no ano de 2007, GG doou ao segundo réu as 100 acções que ainda detinha nessa altura;

Os réus contestaram conjuntamente. Na sua defesa, invocaram a ineptidão da petição inicial por contradição entre os pedidos formulados nos artigos 1.º a 4.º e os formulados nos pontos 7 e 8 da petição, a ilegitimidade do autor para os pedidos deduzidos sob os números 7 e 8 e impugnaram no essencial os factos alegados pelo autor relativos à doação das doações e à apropriação das 40 000 acções próprias da sociedade. Concluíram, pedindo se julgasse improcedente a acção, absolvendo-se os réus dos pedidos, se antes não tiverem sido absolvidos da instância por ineptidão da petição inicial e ilegitimidade.

Na resposta, o autor sustentou a improcedência das excepções.

A arguição e ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade do autor foi julgada improcedente no despacho saneador.

O processo prosseguiu os seus termos e após realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida que julgou improcedente a acção e absolveu os réus dos pedidos.

O recurso

O autor não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença na parte em que julgou totalmente improcedentes os pedidos deduzidos sob os números 5 e 6 (doação das acções), com eventual restrição, em relação ao pedido deduzido sob o n.º 5 , do constante do pedido deduzido sob 9; os deduzidos sob 7 e 8 (detenção de 40 000 acções e sua restituição); e o deduzido sob o 10 (sonegação de bens da herança) e se julgasse a acção procedente quanto a tais pedidos.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Os factos alegados sob os artigos 40.º, 41.º, 42.º, 45.º este na parte não provada, 46.º, 47.º, 68.º a 78.º e 98.º e 99º todos da petição inicial e referidos na sentença, in “7. Factos não Provados”, devem ser julgados provados nos precisos termos alegados na petição e também o facto provado sob 6.51 na parte “por forma que não foi possível apurar” que deve passar a constar “por doação”, tudo melhor especificado supra em III, V e VI, cujos teores aqui se dão por reproduzidos;
2. Da prova factual produzida só pode concluir-se que o KK fez doação em vida de todas as acções de que era titular e representativas do capital social da sociedade “A... SA” aos seus três filhos aqui réus, entregando-lhe essas acções que eles receberam e aceitaram, e para o mesmo fim deu instruções ao II quanto às 200 acções de que este era portador que as transferiu gratuitamente;
3. Os réus irmãos BB, DD e FF apoderaram-se de 40.000 acções que são da sociedade e estão na possuí-las e a exercer os direitos sociais correspondentes sem que que as tenham pago e sem título que legitime essa posse pelo que devem restituí-las á sociedade
4. Os mesmos réus têm bom conhecimento das doações das acções pelo que estão a sonegá-las à herança aberta por óbito de seu Pai KK, o que deve ser reconhecido com as legais consequências.
5. Na sentença, a Meritíssima avalia mal a prova produzida, nomeadamente não tira dos depoimentos de parte e testemunhal a ilação lógica e de experiência comum e que em face das suas contradições só pode ser uma e que é: a doação supra referida, que estes réus nesses depoimentos tentaram esconder e enganar o tribunal.
6. A Meritíssima faz uma aplicação errada do art.º 607.º-5 do CPC.

Os réus, ora recorridos, responderam ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida, tanto a relativa à matéria de facto como a decisão de direito.


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Questões suscitadas pelo recurso
1. Saber se o tribunal a quo errou na decisão de julgar não provados os factos alegados na petição sob os artigos 40.º, 41.º, 42.º, 45.º, na parte não provada, 46.º, 47.º, 68.º a 77.º (na parte não provada), 78.º e 98.º e 99.º e, em caso afirmativo, se é de alterar a decisão no sentido de julgar provados tais factos;
2. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, saber se a sentença que julgou improcedentes os pedidos deduzidos sob os números 5, 6, 7, 8 e 10 é de revogar e de substituir por decisão que julgue procedentes tais pedidos.

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Resolução das questões:

(…)

 


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Provados:
1. O autor é filho de GG, que faleceu em .../.../2013, encontrando-se habilitado como seu herdeiro.
2. O autor, nascido em .../.../1980, é o único filho do casamento de seu pai com LL, casamento esse celebrado no regime da comunhão de adquiridos.
3. Antes do casamento mencionado no artigo anterior, o pai do autor foi casado em primeiras núpcias com MM, de quem enviuvou.
4. Os aqui réus BB e DD, casados, respectivamente, com as rés CC e EE, no regime da comunhão de adquiridos, e a ré FF são os únicos filhos deste primeiro casamento de GG, e foram também habilitados, em conjunto com o autor, como únicos herdeiros do seu falecido pai.
5. O réu DD nasceu em .../.../1964, o réu BB em .../.../1962, e a ré FF em .../.../1968.
6. O pai do autor foi sócio, com a sua esposa LL, mãe do autor, da sociedade “A... SA”, com sede na Rua ..., no Lugar ..., concelho ..., NIPC: ..., sendo, cada um, titular duma quota com o valor nominal de cinco milhões de escudos, sendo o capital social daquela sociedade de dez milhões de escudos.
7. A referida sociedade tinha por objecto o comércio de materiais de construção civil, tubos e acessórios de PVC e galvanizados e electricidades.
8. No âmbito de partilha, outorgada em .../.../2001, subsequente ao divórcio dos pais do autor, ambas as quotas foram adjudicadas ao GG.
9. No dia 7 de Dezembro de 2001, o GG, na qualidade de “primeiro outorgante”, outorgou escritura denominada “Aumento de Capital e Transformação de Sociedade”, na qual também outorgaram DD, aqui segundo réu, como “segundo outorgante”, BB, aqui primeiro réu, como “terceiro outorgante”, FF, aqui terceira ré, como “quarta outorgante”, e II, como “quinto outorgante”.
10. Em tal escritura, o “primeiro outorgante” declarou ser “(…) o único sócio da sociedade comercial por quotas A... SA (…) Que, de conformidade com o deliberado em assembleia geral da sociedade (…) aumenta o capital social para (…) correspondente a um milhão de euros (…) realizado pela forma seguinte: a) por incorporação de reservas livres (…); b) pela admissão, como novos sócios, do segundo, terceiro, quarto e quinto outorgantes, subscrevendo, o segundo, terceira e quarta, cada um, uma quota (…) correspondente a dezassete mil e novecentos euros e subscrevendo o quinto uma (…) correspondente a mil euros”.
11. Em tal escritura, o segundo, terceiro, quarta e quinto outorgantes declararam “Que aceitam associar-se nas condições do contrato vigente e da deliberação do aumento de capital”.
12. Todos os outorgantes da referida escritura declararam, ainda: “Que deliberam proceder à transformação da sociedade em sociedade anónima (…) passando o respetivo contrato a ter a redação constante do documento complementar que arquivo e que fica a fazer parte integrante desta escritura)”.
13. Nos termos de tal “documento complementar”, a sociedade passou a girar sob a firma “A... SA”, mantendo a mesma sede, o mesmo objeto social e o mesmo NIPC: ....
14. Nos termos de tal “documento complementar”, o capital social de um milhão de euros encontrava-se representado por duzentas mil acções, nominativas ou ao portador, de cinco euros cada uma.
15. Considerando a participação social de cada sócio na sociedade por quotas transformada, a repartição accionista inicial foi a seguinte: - GG: 189.060 acções (945.300:5); - DD: 3.580 acções (17.900:5); - BB: 3.580 acções (17.900 : 5); - FF: 3.580 acções (17.900 : 5); - II: 200 acções (1000 : 5).
16. O Conselho de Administração eleito para o primeiro quadriénio de exercício social (2001 a 2004), teve como seu Presidente GG e como vogais DD e BB.
17. E como fiscal único e para o mesmo quadriénio o ROC NN.
18. Estes mandatos (Presidente do Conselho de Administração e demais membros do Conselho, e Fiscal Único/ROC) foram renovados para os quadriénios seguinte (2005/2008 e 2009/2012), mas GG renunciou em 22/11/2011, sendo substituído na presidência pelo aqui réu DD e tendo sido nomeado vogal OO, filho deste.
19. GG sempre foi considerado e reputado publicamente como o “dono” desta sociedade, tendo sido o seu fundador, e ali assumido uma posição de domínio accionista (189.060 acções num capital social representado em 200.000).
20. A sociedade sempre desenvolveu a sua actividade industrial e comercial com muito boa inserção no mercado, com “boa carteira” de clientes e de encomendas, bom nome na “praça”, e, por isso, geradora de lucros e duma situação económico-financeira sólida e estável.
21. GG faleceu em .../.../2013, e o autor, seu filho e herdeiro habilitado, quis saber quais os bens por ele deixados e que constituíam a sua herança, pelo que o seu advogado, na qualidade de seu procurador, escreveu ao cabeça-de casal, aqui primeiro réu, BB, por carta datada de 14 de Março de 2014, com o teor da cópia constante de fls. 36.
22. Em tal carta, o autor, por intermédio do seu procurador, invocou o direito de informação que lhe é conferido pelos artigos 573º e 575º do Código Civil e inquiriu o cabeça-de -casal sobre o seguinte: “Porquê não foi participado o falecimento e prestadas as declarações de cabeça- de-casal perante o Serviço de Finanças?”
23. O autor formulou a questão anterior porque em 3 de Janeiro de 2014, o Serviço de Finanças tinha certificado, a seu requerimento, que por óbito do GG não tinha sido instaurado qualquer processo de imposto de selo.
24. Em tal carta, o autor também perguntou ao cabeça-de-casal: “- Que bens, nomeadamente depósitos bancários, e participação social (ações) deixou o falecido e com respeito à Sociedade “A... SA” com sede em ...?”.
25. O cabeça-de-casal respondeu por carta datada de 21 de Março de 2014, cuja cópia consta de fls. 38, na qual refere: “Foi devidamente participado na Repartição de Finanças ..., o óbito de meu pai, GG, falecido em .../.../2013. Como não existiam bens a partilhar, o processo respetivo foi arquivado, ou pura e simplesmente não foi instaurado”.
26. No momento do seu óbito, GG já não era proprietário das 189.060 acções na sociedade.
27. Inconformado com esta informação, o autor promoveu uma notificação judicial avulsa do réu DD, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da sociedade, com o teor constante de fls. 39 e ss, requerendo-lhe: “(…) cópia integral do registo de emissão das ações e dos atos posteriores que tenham sido registados, tudo em conformidade com o disposto na portaria nº 290/2000, de 25/05”.
28. Tendo este respondido por carta sem data, mas registada nos CTT em 8 de Abril de 2014, com o teor constante de fls. 42, aí referindo: “1 - A totalidade do capital social de A... SA, é constituída por acções ao portador, conforme aliás consta dos respetivos Estatutos. 2 - Não existem quaisquer registos de transmissão de ações por na altura não estarem disponíveis os respetivos formulários oficiais 3 – O Sr. GG foi em tempos portador de ações desta Sociedade, tendo em várias ocasiões transacionado ações para terceiros, transações estas que a sociedade concretamente desconhece. 4- Através das respetivas atas verifica-se que a partir do ano de 2004, o Sr. GG apenas era portador de 100 ações, da Sociedade. 5 - Em 2007 porém, já não era portador de qualquer ação, sendo que, a última ata que assinou como acionista foi em 30/03/2007”.
29. Na sequência de tal resposta, o autor escreveu ao réu DD, nos termos que constam da sua carta datada de 15 de abril de 2014, conforme cópia de fls 42 v, na qual lhe requereu: Fotocópia do documento de emissão das ações; Fotocópias de todas as atas das assembleias gerais que tiveram lugar após 07/12/2001 com as respetivas listas de presenças; “- Fotocópias dos anexos de todos os relatórios de gestão desde 7 de dezembro de 2001, que tenham sido elaboradas em cumprimento do nº 5 do artigo 447º e do nº 4 do artigo 448º do Código das Sociedades comerciais (comunicação sobre o número de ações detidas pelos administradores/ relação dos acionistas com percentagem qualificada”.
30. O réu DD, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da sociedade, respondeu ao autor por carta datada de 22 de abril de 2014, cuja cópia consta de fls 43 dos autos, na qual reitera que o falecido GG não era, desde 2007, portador de qualquer ação da sociedade, e comunica: “(…) não vemos qual a sua legitimidade para solicitar informações e documentação sobre a empresa “A... SA” e “ As informações pretendidas apenas dizem respeito a esta sociedade” e “A não ser que V. Exª comprove ser portador de quaisquer ações desta empresa, não poderão, pois ser prestadas as informações pretendidas”).
31. Tentando obter uma informação inequívoca sobre o percurso destas acções, o autor instalou na (então) Instância Local Cível ... (Juiz ...) deste Tribunal Judicial da Comarca ... a ação com processo especial para apresentação de documentos que correu termos sob o nº 413/14...., e na qual, a final, peticionou o seguinte: o autor, sendo herdeiro habilitado, tem interesse em saber qual o percurso e destino daquelas acções, e também saber porquê, segundo o cabeça-de-casal e as informações prestadas pelo 1º réu, as mesmas não fazem parte do acervo hereditário de seu pai (artigo 33º da petição inicial, artigo 3º da contestação);
32. Neste processo foi proferida sentença em 16 de Abril de 2015, que transitou em julgado e que designou dia e hora para a apresentação de parte dos documentos requeridos, aí se referindo, designadamente: “(…) condena-se o réu (…) a apresentar no tribunal em dia e hora a agendar (…) os livros de atas de 2005 até 2007, inclusive, bem como as listas de presenças, sendo que, no tocante às atas, o acesso às mesmas deverá limitar-se ao cabeçalho (…)”.
33. E na sequência desta decisão, teve lugar no dia 29 de Junho de 2015 a diligência de apresentação de documentos que ficou documentada na respectiva acta, com o teor constante da cópia de fls. 43v e 44 dos presentes autos.
34. De tal diligência resultou apurado que em 31 de Março de 2005, a composição do capital accionista da sociedade “A... SA” era a seguinte: GG: 100 ações, BB: 48.000 ações, DD: 63.900 ações, FF: 48.000 ações, e ações próprias da sociedade: 40.000 ações.
35. O falecido, em data indeterminada, mas anterior a .../.../2005, fez doação aos aqui réus, seus filhos, dos seguintes lotes de acções: ao DD 60 320, a FF 44 220 acções e a BB 44 220 acções.
36. Fez-lhe a entrega dos respectivos títulos, que eles receberam, aceitando as doações.
37. GG quis beneficiar estes seus três filhos, entregando-lhes o domínio da sociedade.
38. II interveio no contrato de constituição da sociedade a pedido de GG e dos aqui réus BB, DD e FF apenas para preencher o número legal mínimo de accionistas fundadores, nunca se tendo considerado accionista, nem exercido qualquer direito social, nomeadamente no que se reporta ao recebimento de lucros.
39. Por instruções de GG e na execução do plano referido em 37), II doou e entregou as 200 acções de que era titular ao primeiro e à 3.ª ré (100 acções a cada um), que aceitaram tais doações.
40. O valor real de cada acção unitária da sociedade correspondia a: € 4,73 no ano 200; € 6,52 no ano de 2001; € 7,03 no ano de 2002; € 7,75 no ano de 2003; € 8,51 no ano de 2004; € 8,94 no ano de 2005; € 9,55, no ano de 2006; e € 10,12 no ano de 2007.
41. A sociedade “A... SA” é proprietária dos imóveis afectos às suas instalações.
42. A sociedade “A... SA” era titular de 40.000 acções próprias.
43. Antes da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, já GG era devedor à sociedade da quantia de 44.877.074$00.
44. Após a transformação da sociedade, GG liquidou esse débito, atribuindo à sociedade 40.000 acções que possuía, assim ficando liquidada a dívida mencionada no artigo anterior.
45. O réu BB, na qualidade de cabeça de casal no inventário que corre termos sob o nº 4775/155 no Cartório Notarial ..., aberto por óbito de GG, que foi requerido pelo autor, informou-o que o inventariado “No ano de 2001, era devedor à sociedade de 44.877.074$70 (…) no ano de 2002 liquidou o seu débito à Sociedade tendo-lhe dado em pagamento 40.000 ações no valor nominal de € 5,00 cada, perfazendo € 200.000,00”.
46. O Conselho de Administração da “GG” não deliberou previamente a celebração do acordo mencionado no artigo anterior e o fiscal único daquela sociedade não emitiu parecer sobre tal acordo.
47. No dia 4 de Dezembro de 2007, reuniu a assembleia geral da “A... SA” constando, além do mais, da respetiva ordem de trabalhos: “Ponto 2 – Cedência de duzentos mil euros de acções próprias”.
48. No âmbito da já citada acção nº 413/14...., o réu DD, na qualidade de presidente do conselho de administração da sociedade informou o seguinte: “Em 2007 o Sr. DD comunicou ao ROC que havia adquirido à sociedade 13.333 ações” e que “A D. FF comunicou também ao ROC que havia adquirido no mesmo ano à sociedade 13.334 acções”, e que “O Sr. BB comunicou igualmente ao ROC que havia adquirido à Sociedade em 2007 13.333 acções”.
49. As acções mencionadas no artigo anterior, que foram adquiridas pelos réus, somam as 40.000 acções que foram próprias da sociedade.
50. O fiscal único da sociedade não emitiu parecer prévio quanto a esta contratação.
51. Não houve qualquer deliberação que autorizasse o acordo por via do qual os réus adquiriram as 40.000 acções que eram próprias da sociedade.
52. Durante o ano de 2007 inexistem quaisquer fluxos financeiros entrados na sociedade e que representem o pagamento a esta dum preço por aquelas acções.
53. Os réus não procederam ao pagamento de preço pela aquisição dessas 40.000 acções, sendo o valor desta aquisição anulado por contrapartida de resultados transitados (conta de capital próprio).
54. No âmbito da já referida acção 413/14...., o réu DD, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da sociedade informou o autor que : “No ano de 2007 o Sr. GG comunicou ao revisor oficial de contas que havia cedido as 100 acções que possuía, passando a não ter qualquer posição na empresa” e que: “Em 2007, o Sr. DD (…) adquiriu mais 100 acções”.
55. Em 2007, GG doou ao réu DD as 100 acções que ainda detinha na sociedade e o réu aceitou a doação.
56. As 189.060 acções que pertenciam ao falecido GG, bem como as 200 acções iniciais do II, pertencem actualmente aos réus BB, DD e FF, que as adquiriram por forma que não foi possível apurar, e de acordo com a seguinte repartição: réu BB 44.420 + 13.333 réu DD 60.320 + 13.333 +100; ré FF: 44.420 + 13.334.
57. Nos anos de 2005, 2006 e 2007, GG apenas era titular de 100 acções ao portador, e em 31 de Março de 2008 já não detinha qualquer acção da sociedade.
58. Não obstante o referido no artigo anterior, GG foi mantido como Presidente do Conselho de Administração, apenas por respeito e consideração, não exercendo desde há vários anos qualquer actividade efectiva como administrador.
59. O falecido GG e os seus três filhos BB, DD e FF, por um lado, e o autor e sua mãe, por outro, andavam, desde Setembro de 2001, e também agora, de relações cortadas e não se falavam, nem falam.
60. As tensões e divergências familiares que conduziram ao divórcio dos pais do autor e subsequente partilha dos bens do casal levou ao corte de relações entre o autor e sua mãe, por um lado, e o GG e os seus filhos, aqui réus.
61. No processo de inventário nº ...55, que corre termos no Cartório Notarial ..., o réu BB, que ali exerce as funções de cabeça de casal, não relacionou quaisquer acções da sociedade, seja como bens deixados pelo inventariado GG, seja como bens por ele doados aos seus três filhos aqui réus.
62. Reagindo a tal falta de relacionamento das acções, o autor reclamou contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal e requereu a relacionação das acções que constituem o capital social da “A... SA”.
63. O cabeça de casal recusou a relacionação das referidas acções.
64. No âmbito do inventário correu o respectivo incidente, e no termo do mesmo foi proferido despacho pela Senhora Dra. Notária e do seguinte teor: “Assim, pela natureza e complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, a definição desta questão demanda a necessidade de larga indagação, que não se compadece com uma instrução sumária como a do presente incidente, e sendo certo também que essa definição condicionará a forma da partilha a seguir nestes autos de inventário, pelo que, nos termos do art.º 36º do RJPI, me abstenho de decidir quanto a esta questão e decido remeter os interessados para os meios judiciais comuns, suspendendo a tramitação do presente processo de inventário até que ocorra decisão definitiva”.
65. O cabeça de casal e os irmãos DD e FF têm perfeito conhecimento de que as acções a que se referem as respostas aos artigos 38.º, 48, 77.º e 78.º da petição lhes foram doadas.

Não provados:
a) Os alegados nos seguintes artigos da petição inicial: - 18º, no segmento não transposto para os factos provados, 32º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 61º, 68º, 69º, 71º (na parte não transposta para os factos provados), 73º, 74º, 84º, 85º, 86º, 87º, 88º, 92º e 100º;
b) Os alegados nos seguintes artigos da contestação: - 52º, parcialmente (já que se verificou que foi a partir de 31 de Março de 2008 que GG não tinha qualquer participação na sociedade), 57º, 58º, 76º parcialmente (que a dívida aí mencionada decorresse de levantamentos para acorrer a necessidades financeiras), 77º, parcialmente (que visasse evitar uma penalização), 90º, 96º, 99º, 100º, 105º, 108º, 109º, 114º da contestação.


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Resolução das questões

Alterada, em parte, a matéria de facto, a questão que importa solucionar é a de saber se, aplicando o direito aos factos julgados provados, é de revogar a sentença na parte em que julgou improcedentes os pedidos deduzidos sob os números 5, 6, 7, 8 e 10 e substitui-la por decisão que os julgue procedentes.

Comecemos pela decisão de julgar improcedentes os pedidos deduzidos sob os números 5 e 6.

Recorde-se que, sob estes números, o autor pediu:
· Se declarasse que, em vida, o falecido GG doou aos aqui primeiro a terceiros réus os seguintes lotes de acções representativos do capital social da “A... SA”: ao 1.º réu: 44.420 acções; ao 2.º réu: 60.320 + 100 acções; à 3ª ré: 44.420 acções;
· Se condenassem estes três réus, por si e na qualidade de herdeiros de GG, e as rés mulheres, dados os respectivos regimes de casamento, a reconhecerem que aquelas doações ocorreram e que, por isso, aquelas acções deverão ser relacionadas como “bens doados” no processo de inventário nº ...55 que corre termos, por óbito daquele, no Cartório da Notária ... Dra. HH, sedeado nesta cidade ....

A sentença sob recurso, que considerou o 1.º pedido como próprio de uma acção de petição de herança, justificou a improcedência com a seguinte fundamentação:
· Que o autor assentou a pretensão na existência de doação aos 3 primeiros réus das acções que o seu falecido pai era proprietário na sociedade “A... SA”;
· Que sendo tal facto (celebração de contrato de doação) constitutivo do direito (petição de herança) que o autor pretende fazer valer em Juízo, incumbia-lhe a sua prova, traduzida na demonstração dos seguintes elementos desse contrato de doação: ter sido celebrado um ou mais contratos entre o seu falecido pai e os seus irmãos, aqui réus; a transferência de bens do património do seu falecido pai para o património dos referidos réus; a aceitação dessa transferência pelos réus; o chamado animus donandi (elemento subjectivo), traduzido na intenção de praticar uma liberalidade (principal característica deste contrato);
· Que, embora se tenha apurado que as acções em questão passaram do património do falecido pai do autor para o património dos referidos réus, não logrou o autor demonstrar a existência de animus donandi, como lhe incumbia.

Com a modificação da decisão relativa à matéria de facto, nova conclusão se impõe quanto à questão da prova da doação das acções.

Antes, porém, de justificarmos esta afirmação importa dizer o seguinte sobre a transmissão de acções ao portador, pois é para esta questão que remete a apreciação da primeira pretensão do recorrente.

Nas sociedades anónimas, como era o caso da sociedade A... SA, o capital social é dividido em acções (artigo 271.º do Código das Sociedades Comerciais). Segundo o n.º 1 do artigo 299.º do mesmo diploma, em vigor ao tempo da constituição (7 de Dezembro de 2001), salvo disposição diferente da lei ou dos estatutos, as acções podiam ser nominativas ou ao portador. Diz-se em vigor ao tempo da constituição da sociedade, visto que a Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio, proibiu a emissão de valores mobiliários ao portador e alterou a redacção do artigo 299.º do Código das Sociedades Comerciais no seguinte sentido: “as acções são nominativas, não sendo permitidas acções ao portador”.

Apesar de, segundo os estatutos da sociedade, o capital social dela, de um milhão de euros, ser representado por duzentas mil acções, nominativas ou ao portador, a verdade é que foram emitidas apenas acções ao portador, ou seja, acções representadas por documentos em papel que não identificam o titular (citou-se M.J. Almeida Costa e Evaristo Mendes, Transmissão de acções tituladas nominativas, RLJ, Ano 139.º, Novembro-Dezembro 2009, página 71).

Sobre a transmissão entre vivos de acções ao portador – questão que está em causa no presente recurso -, o Código das Sociedades Comerciais dispunha no n.º 1 do artigo 327.º que “a transmissão entre vivos de acções ao portador efectua-se pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício de direitos de sócios.

Esta disposição foi revogada pelo artigo 15.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, que aprovou o Código dos Valores Mobiliários. Por efeito de tal revogação, a transmissão das acções ao portador, qualificadas como valores mobiliários, passou a estar regulada no Código dos Valores Mobiliários, mais concretamente no artigo 101.º, n.º 1, que dispunha: “os valores mobiliários titulados ao portador transmitem-se por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado”.

Esta é a regulação relevante para o caso, visto que as transmissões em causa nos autos situam-se em data não determinada, mas anterior a 31 de Março de 2005, e em 2007.

Esta regulação é de interpretar, no entanto, como observa Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, página 376, nota 366, no sentido de que “a entrega deve ser precedida (ou acompanhada) de título válido – por ex. acordo entre transmitente e adquirente, ou sucessão por morte”.

É precisamente o título que precedeu ou acompanhou a entrega das acções aos réus que está em questão no presente recurso. O autor alegou que as acções foram entregues por efeito ou em consequência de doação. A sentença sob recurso, como se escreveu acima, entendeu que não ficou demonstrada a doação por o autor não ter logrado demonstrar a existência de animus donandi, como lhe incumbia.

Com a alteração da decisão relativa à matéria de facto, não pode manter-se esta conclusão. Vejamos. Por efeito da alteração, passou a constituir matéria assente:
· Que o falecido, em data indeterminada, mas anterior a .../.../2005, fez doação aos aqui réus, seus filhos, dos seguintes lotes de acções: ao DD 60 320, a FF 44 220 acções e a BB 44 220 acções;
· Fez-lhe entrega dos respectivos títulos, que eles receberam aceitando as doações;
· GG quis beneficiar estes seus três filhos, entregando-lhes o domínio da sociedade;
· Por instruções de GG e na execução do plano referido na resposta ao ponto n.º 41, II doou e entregou as 200 acções de que era titular ao primeiro e à 3.ª ré (100 acções a cada um), que aceitaram tais doações;
· Em 2007, GG doou ao réu DD as acções que ainda detinha na sociedade e o réu aceitou a doação.

Esta matéria responde a todos os requisitos necessários para se afirmar que as acções foram doadas aos três primeiros réus por GG. A noção de doação, como bem se observou na sentença sob recurso, é dada pelo n.º 1 do artigo 940.º do Código Civil, nos seguintes termos: “doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.

Seguindo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Volume II, 4.º edição revista e actualizada, Coimbra Editora, página 237], decorre desta noção que o contrato de doação é caracterizado pelos seguintes elementos:
· Disposição gratuita de uma coisa ou de um direito ou assunção de uma obrigação;
· Diminuição do património do doador (à custa do património);
· Espírito de liberalidade;

A disposição patrimonial é gratuita quando não lhe corresponda um correspectivo de natureza patrimonial; o espírito de liberalidade significa, socorrendo-nos das palavras dos citados autores, uma ideia de generosidade ou espontaneidade.

A prova de que GG fez doação aos aqui réus, seus filhos, de acções de que era titular na sociedade A... SA e que, ao fazê-lo, quis beneficiá-los, é de interpretar no sentido de que dispôs gratuitamente de tais acções em benefício dos seus três filhos, por espírito de liberalidade e à custa do seu património.

Esta conclusão vale igualmente para as acções que formalmente foram doadas por II à ré FF e ao réu BB, visto que está provado que aquele interveio no contrato de constituição da sociedade a pedido de GG e dos réus apenas para preencher o número mínimo legal de accionistas fundadores, mas que nunca se considerou accionista.

Segue-se do exposto que é de julgar procedente o pedido deduzido sob o n.º 5.

O mesmo se diga do pedido no sentido de se reconhecer que as acções doadas deverão ser relacionadas no processo de inventário como bens doados. Vejamos.

Segundo a alínea c) do n.º 3 do artigo 1097.º do CPC, no inventário devem relacionar-se todos os bens sujeitos a inventário. Visto que um dos fins do processo de inventário é o de fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens (artigo 1082.º, alínea a) do CPC), pode dizer-se que devem relacionar-se todos os bens que, fazendo parte da herança, irão ser objecto de partilha.

Há, no entanto, bens que, não fazendo parte da herança também devem ser relacionados no processo. É o caso dos bens doados em vida pelo autor da sucessão quando se verificar alguma das seguintes circunstâncias:
· Quando concorrerem à herança herdeiros legitimários, ou seja, segundo o artigo 2157.º, cônjuge, descendentes e ascendentes;
· Quando os descendentes pretendam entrar na sucessão dos ascendentes.

No primeiro caso, o dever de relacionação justifica-se porque há uma porção de bens que o autor da sucessão não pode dispor por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, a chamada legítima (artigo 2156.º do Código Civil), e, segundo o n.º 1 do artigo 2162.º, para o cálculo da legítima deve atender-se não apenas ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, mas também ao valor dos bens doados.

No segundo caso, o dever de relacionação justifica-se porque, segundo o n.º 1 do artigo 2104.º do Código Civil, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa insolvente, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.

Observe-se que, salvo acordo de todos os interessados, a colação não implica a restituição dos próprios bens doados à herança. A colação faz-se, como afirma o n.º 1 do artigo 2108.º do Código Civil, pelo imputação do valor da doação na quota hereditária.

No caso, as doações estão sujeitas a colação. Vejamos.

Seguindo de perto a interpretação do n.º 1 do artigo 2104.º, do Código Civil, feita Rabindranath Capelo de Sousa, a colação pressupõe:
· Que haja doações feitas pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data das liberalidades fossem seus presuntivos herdeiros legitimários;
· Que tais liberalidades não estejam dispensadas da colação pelo autor da sucessão ou por força da lei;
· Que se tenha aberta uma sucessão hereditária em que concorram efectivamente diversos descendentes, nomeadamente, descendentes beneficiados com aquelas liberalidades [lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra Editora Limitada 1980/1982, página 263].

Observe-se que, ainda que se entendesse que as doações tinham sido dispensadas de colação pelo autor da sucessão, sempre havia de relacioná-las para determinar se elas haviam ofendido a legítima do autor.

Pelo exposto julgam-se procedentes os pedidos e, em consequência:
1. Declara-se que GG doou aos 3 primeiros réus os seguintes lotes de acções representativos do capital social de A... SA: ao 1.º réu 44 420 acções; ao 2.º réu 60420 acções; à 3.ª ré 44 420 acções;
2. Declara-se que tais acções devem ser relacionadas como bens doados no processo de inventário n.º ...55 que corre termos por óbito daquele, no Cartório da Notária .... HH.


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Apreciemos, agora, a pretensão do recorrente no sentido de se julgarem procedentes os pedidos deduzidos sob os números 7 e 8 (detenção sem título de 40 000 acções e restituição delas à sociedade GG).

A sentença sob recurso julgou improcedente estes pedidos dizendo, em síntese:
· Que as 40 000 acções, adquiridas pela sociedade mediante dação em pagamento, foram alienadas aos réus, FF, DD e BB;
· Que apesar de a alienação das acções aos réus DD e BB, administradores da sociedade, não ter sido precedida de deliberação do conselho de administração e de o n.º 2 do artigo 397.º do Código das Sociedades Comerciais cominar com a nulidade os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, tal não significava a nulidade da nulidade das alienações a tais réus;
· E não significava porque o n.º 2 do artigo 397.º abrangia apenas os negócios que, concedendo vantagens especiais ou não sendo compreendidos no próprio comércio da sociedade (directamente ou por interposta pessoa), fossem celebrados com accionistas que sejam simultaneamente administradores da sociedade e não resultava da factualidade provada que a sociedade tivesse sido minimamente prejudicada pela celebração dos contratos de alienação das acções que detinha (quer aos sócios administradores, quer à outra sócia), e que tinha a obrigação legal de transmitir/alienar, e também não decorria minimamente da factualidade provada (nem o autor o alegou) que tivesse existido qualquer tipo de privilégio ou vantagem especial aos administradores adquirentes das ações.

A pretensão do recorrente – revogação da decisão e substituição dela por decisão que julgasse procedentes os pedidos – laborou exclusivamente no pressuposto de, em consequência da impugnação da decisão de facto, este tribunal julgar provada a matéria alegada sob os artigos 68.º, 69.º, 70.º, 71.º, 72.º 73.º e 74.º da petição. Matéria que, segundo o recorrente, demonstrava que os réus BB, DD e FF apoderaram-se de 40 000 acções que eram da sociedade e estavam a possui-las e a exercer os direitos sociais correspondentes sem que as tenham pago e sem título que legitimasse essa posse.

A pretensão do recorrente é de julgar improcedente, não obstante o sucesso parcial da impugnação da decisão relativa à matéria dos artigos acima indicados. Com efeito, este tribunal, alterou a decisão proferida em 1.ª instância, julgando provado o que foi alegado sob o artigo 70.º ou seja, que durante o ano de 2007 não existem fluxos financeiros entrados na sociedade que representem o pagamento a estra do preço daquelas 40 000 acções. Este facto reforça o que já havia sido julgado provado pelo tribunal a quo, ou seja, que os réus não procederam ao pagamento do preço pela aquisição das 40 000 acções, sendo o valor da aquisição anulado por contrapartida de resultados transitados (conta de capital próprio).

Sucede que a prova de que os réus não procederam ao pagamento do preço devido pela aquisição das acções era insuficiente para julgar procedente o pedido ora em apreciação. Na verdade, uma vez que o pedido de restituição das 40 000 acções à sociedade baseava-se no facto de não existir nenhuma contratação, nenhum acordo, entre a sociedade e os réus que legitimasse a posse das acções por estes, tal facto era constitutivo do direito alegado pelo autor, ora recorrente, pelo que, à luz do n.º 1 do artigo 342.º do CPC, impendia sobre ele o ónus de provar, o que não conseguiu, como o atesta a decisão de julgar não provada a matéria alegada sob os artigos 68, 69 e 73. É certo que também não se provou o negócio que esteve na base da entrega das 40 000 acções da sociedade aos 3 primeiros réus. Porém, esta dúvida do tribunal sobre a existência/inexistência do negócio que precedeu ou acompanhou a entrega das acções aos três primeiros réus, resolve-se contra o autor visto que, segundo o artigo 411.º do Código Civil, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita e a inexistência de tal negócio aproveita ao autor, ora recorrente.

Pelo exposto, mantém-se a decisão de julgar improcedentes os pedidos deduzidos sob os números 7 e 8.


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Apreciemos por último a pretensão de alterar a decisão de julgar improcedente o pedido deduzido sob o n.º 10 (sonegação de bens).

A decisão sob recurso julgou improcedente este pedido, dizendo que não apurou que os réus tenham praticado quaisquer actos dolosos de ocultação de bens.

O recorrente, laborando mais uma vez no pressuposto da alteração da decisão relativa à matéria de facto, sustenta que os réus tinham bom conhecimento das doações das acções, pelo que estavam a sonegá-las por óbito de seu pai GG.

Os pressupostos em que o autor assentou o seu pedido demonstraram-se. Com efeito, provou-se que o pai dos três primeiros réus lhes doou as acções de que era titular na sociedade A... SA e que o cabeça-de casal, apesar de ter perfeito conhecimento de tais doações, não relacionou a doação delas no inventário e que os réus, apesarem de terem igual conhecimento, opuseram-se a tal relacionação.

Apesar de estarem demonstrados os factos em que o autor, ora recorrente, assentou a sua pretensão, os mesmos não configuram sonegação de bens para efeitos do artigo 2096.º do Código Civil. Vejamos.

Decorre do preceito acima indicado que a sonegação de bens consiste na ocultação dolosa da existência de bens da herança, por parte do herdeiro, seja ou não cabeça-de-casal. Sucede que os bens cuja existência foi ocultada – as acções - não fazem parte dos bens da herança. Na verdade, a doação das acções, seguida da entrega delas aos três primeiros réus, transmitiu para a esfera jurídica destes últimos a propriedade das acções. É o que resulta da combinação da alínea a) do artigo 954.º do Código Civil com o artigo 101.º, n.º 1 do CVM, em vigor à data das doações. Pode, assim, dizer-se que está fora do alcance da sonegação de bens prevista no artigo 2096.º do Código Civil, a ocultação de doações de bens feitas em vida pelo autor da herança. Citam-se em abono desta interpretação, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, página 158, e Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, página 85, nota 692, e, na jurisprudência, o Acórdão do STJ de 23-11-2011, proferido no processo n.º 92/06.9TBMLG, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIX, Tomo III/2011, páginas 137 a 139.  

Pelo exposto, mantém-se a decisão de julgar improcedente o pedido deduzido sob o n.º 10.


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Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a sentença na parte em que julgou improcedentes os pedidos deduzidos na petição sob os n.ºs 5 e 6 e substitui-se tal segmento da sentença por decisão a declarar que GG doou aos três primeiros réus os seguintes lotes de acções representativos do capital social de A... SA: ao 1.º réu 44 420 acções, ao 2.º réu 60420 acções e à 3.ª ré 44 420 acções, e que tais acções devem ser relacionadas como bens doados no processo de inventário n.º ...55 que corre termos, por óbito daquele, no Cartório da Notária .... HH;
2. Mantém-se a parte restante da decisão.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente e os recorridos terem ficado vencidos em parte no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas na proporção de, respectivamente, 3/5 e 2/5.

Coimbra, 28 de Março de 2023