Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1059/12.3TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
LOCAL DE TRABALHO
TRAJETO PARA E DE REGRESSO DO LOCAL DE TRABALHO
LOCAL DE REFEIÇÃO
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, 8º, NºS 1 E 2, E 9º DA LEI Nº 98/2009, DE 4/09 (NLAT).
Sumário: I – A previsão da al. e) do nº 2 do artº 9º da NLAT, na extensão do conceito de acidente de trabalho, engloba o acidente que ocorra no trajeto de ida ou de regresso para o local de trabalho, normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre o local de trabalho e o local de refeição.

II – Como a lei não tutela mais do que o acidente de trajeto entre o local de refeição e o local de trabalho, não se pode aceitar uma interpretação extensiva que inclua nessa tutela um trajeto ulterior à refeição, tomada no local de trabalho, para um acto de mera ocupação do tempo antes do regresso ao trabalho, como será ir tomar café a um estabelecimento deste tipo.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em processo emergente de acidente de trabalho, o autor intentou contra os réus acção pedindo que sejam condenados a pagar-lhe:

- a primeira ré, enquanto seguradora: a) € 30,00 a título de despesas de transporte; b) € 4.075,26 a título de indemnização por incapacidade temporária (de 24.05.2012 a 01.04.2013); c) capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de € 551,07 devida desde 02.04.2013; d) juros de mora legais;

- o segundo réu, enquanto empregador: a) € 666,69 a título de indemnização por incapacidade temporária (de 24.05.2012 a 01.04.2013); b) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de € 90,35, devida desde 02.04.2013; c) juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respectivo vencimento até integral pagamento.

Para tanto, alegou resumidamente: a existência de um acidente de trabalho; a não totalidade da transferência do salário auferido para a ré seguradora.

A ré seguradora contestou, defendendo-se, da seguinte forma: à data do acidente ocorrido a 23 de Maio de 2012, o autor beneficiava das garantias da apólice de seguro de acidentes de trabalho, com o salário transferido de 485,00 € x 14 meses; o autor aquando da ocorrência do acidente não percorria o trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência e o local de trabalho, pelo que, não preenche os requisitos do n.º 1 al. a) e n.º 2 al. b) do art. 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09.

Prosseguindo o processo os seus regulares termos foi, no final, proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos.

*

Inconformado, o autor interpôs a presente apelação e, nas correspondentes alegações, apresentou as seguintes conclusões:

[…]

Não foram apresentadas contra-alegações.

A Ex.ma PGA nesta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.


*

II- OS FACTOS:

Da decisão relativa à matéria de facto é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:

[…]


*

III. Apreciação

As conclusões do recorrente delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que a questão que importa resolver se pode equacionar da seguinte forma: se o evento ocorrido com o autor se pode qualificar como acidente de trabalho e se, nessa medida, é reparável quanto às suas consequências, nos limites da lei.

Importa assim avaliar se está correcto o juízo da 1ª instância no que toca à não consideração do evento como acidente de trabalho.

Na sentença escreveu-se, a propósito, o seguinte:

«Nos termos previstos pelo art. 2.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09 (NLAT - diploma a que se reportará as disposições legais a que iremos fazendo referência ao longo da sentença), os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho (...).

De acordo com o art. 8.º n.º 1 é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo diz-nos que, para efeitos de delimitação do acidente de trabalho, entende-se por «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e, em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador (alínea a)) e, «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho (alínea b)).

Este conceito de acidente de trabalho é, depois, ampliado ou estendido pelo art. 9.º (preceito este que tem a epígrafe “extensão do conceito”). Além destes, também se consideram como sendo característicos os ocorridos fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos: no trajeto de ida e para o local de trabalho nos termos definidos pelas alíneas a) a f) do n.º 2.º do citado art. 9.º.

Com efeito, face aos moldes em que o A. estriba a ação a existir um acidente de trabalho tratar-se-ia de um acidente “in itinere”.

A alínea a) do referido n.º 1 do art. 9.º, não nos fornece nenhum conceito de acidente de trabalho in itinere, remetendo para a normatividade constante no n.º 2 e, as suas diversas alíneas, do citado art. 9.º.

O acidente de trajeto assume, em princípio, todas as características de um acidente envolvendo qualquer meio de transporte (terrestre, aquático ou aéreo) ou, muito simplesmente, uma deslocação a pé.

O acidente de trajeto pode definir-se, em linhas gerais, como o que atinge o trabalhador no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho. O acidente de trajeto, pode ser ou não, simultaneamente, acidente rodoviário ou de viação.

Tal como sucedia no âmbito da anterior lei (Lei n.º 100/97, de 13/09), já não se exige que o acidente seja consequência de particular perigo do percurso, não fazendo sentido também discorrer sobre a propriedade do meio de transporte utilizado.

Conforme salienta, Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e doenças profissionais, 2.ª edi., pág. 55.º, a tendência das teorias mais modernas é a de considerar que o risco é inerente ao cumprimento do dever de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a sua prestação, resultante do contrato de trabalho (ou equiparado) como uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, eventualmente, a primeira delas, quotidianamente. Nesta ordem de ideias, o trabalhador é obrigado a fazer o percurso necessário para poder comparecer no lugar pré-determinado, usando as vias de acesso e os meios de transportes disponíveis, a fim de que possam contar com a sua prestação.

Por seu turno, Júlio Gomes, in O acidente de trabalho (o acidente in itinere e a sua descaracterização), pág. 162.º e 163.º refere que, na génese do acidente de trajeto estava, ou a noção de que durante o trajeto se mantinha o risco de autoridade por subsistir mesmo que atenuada, a subordinação ou dependência do trabalhador, ou a ideia de que o acidente de trajeto era, ainda, o resultado de um risco a que o trabalhador se expunha por força do trabalho e se expunha, pelo menos, em maior medida do que a generalidade das pessoas que também participam na circulação rodoviária.

O art. 9.º, n.º 2.º nas suas diversas alíneas, descrimina pormenorizadamente qual o percurso protegido nas duas extremidades (ida e regresso para e do local de trabalho), compreendendo-se os acidentes que se verifiquem nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (dois requisitos gerais):

a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;

b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;

c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;

d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde o trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;

e) Entre o local de trabalho e o local de refeição;

f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.

O requisito de habitualidade do trajeto deve contudo ser interpretado de acordo com o n.º 3.º do mesmo art. 9.º, no qual se menciona: “Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.

Reconduzindo-nos ao caso em apreço, do cotejo dos factos acima dados por provados, temos que acidente ocorreu quando o A. usufruindo de uma pausa/intervalo na sua jornada de trabalho, foi tomar café na companhia de amigos seus.

Com efeito, provou-se que no dia 23 de maio de 2012, após almoçar no restaurante onde trabalha foi, seguidamente, tomar café ao estabelecimento com a designação comercial “X….”, sito (…)

Mais se provou que, aquando da ocorrência do acidente, o Autor residia na Rua (…) que, o local de trabalho, restaurante “O Tirol” situa-se na Rua (…). Acontece que o acidente ocorreu na Estrada Municipal 531, Casal Velho, circulando o Autor no sentido Roussa-Pombal. Que, o A. à data do acidente dos autos tinha o horário de trabalho das 11H30 às 16H00 e das 19H00 às 23H00. E, nesse dia após almoçar, por volta das 16H30, o A. foi ao encontro de amigos num café perto de Casal Velho, para aí tomar café com os mesmos e, quando se aproximava a hora de iniciar o segundo período do seu horário de trabalho, encetou a deslocação de regresso ao restaurante “Y…” – vide, os factos provados de 30) a 35).

Trata-se assim de um acidente não cabível no conceito de acidente de trabalho in itinere. Com efeito, o A. não foi vítima de um acidente de trabalho não só porque o acidente não ocorreu no tempo e no local de trabalho, como também nos trajetos legalmente previstos.

Na verdade, in casu o acidente ocorreu fora do local de trabalho, por o trabalhador dele se ter ausentado numa interrupção da sua jornada de trabalho, para tratar de assuntos particulares seus (v.g. convívio com amigos num café). Destarte, o trajeto de regresso do local de convívio ao local de trabalho não se encontra contemplado.

Neste conspecto, tal acidente não é tutelado, por se situar numa esfera de risco do próprio trabalhador, para a satisfação de necessidades privadas (atos da vida corrente do sinistrado e que, por isso, é alheia a qualquer missão ou função de caráter profissional) e, a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem o trabalho. Acresce que tal café nem se situava no trajeto normalmente utilizado da sua residência ao seu local de trabalho (situando-se em sentido oposto ao daquele), não sendo assim defensável, tratar-se de um desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis do A.

Deflui de todo o acima exposto, mostrar-se afastada a tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido.»


Devemos desde já dizer que concordamos com o teor do juízo expresso na bem elaborada sentença.
O apelante diverge deste juízo e fundamentação sustentando dever ser feita uma interpretação extensiva do n.º 2 do art. 9º da LAT, invocando as palavras de Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 5.ª edição, pag. 916, quando refere que “numa interpretação extensiva do art. 9.º, n.º 2 da LAT incluir-se-iam nos acidentes in itinere outros percursos, designadamente o realizado pelo trabalhador para tomar café em qualquer pausa que lhe seja concedida (…)”.
Todavia, importa referir que o indicado autor coloca apenas como hipótese a possibilidade de tal se considerar, no caso de se admitir – o que questiona – que os trajectos tutelados pelo n.º 2 do art. 9.º não sejam de indicação taxativa, mas apenas indicativa. Alertando que a possibilidade de interpretação extensiva deve ser apreciada com prudência, pois se está perante uma excepção introduzida a um regime já, em si, excepcional: o da responsabilidade pelo risco.

Ora, a previsão do n.º 2 daquele art. 9.º mais próxima da situação da que se evidencia nos autos é a contemplada na al. e) daquele n.º 2, quando tutela, na extensão do conceito de acidente de trabalho, o acidente que ocorra no trajecto de ida ou de regresso - para e do local do trabalho - normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre o local de trabalho e o local de refeição.

Só que, claramente, no caso não estamos perante uma situação de trajecto entre o local de trabalho e o local de refeição, ou melhor entre o local de refeição e o local de trabalho.

Como se referiu na sentença, o acidente ocorreu quando o autor usufruindo de uma pausa/intervalo na sua jornada de trabalho, foi tomar café na companhia de amigos seus, após almoçar no restaurante onde trabalha, num estabelecimento com a designação comercial “X….”, sito no lugar (…) , freguesia e concelho de Pombal, e depois disso se deslocou de regresso ao mesmo restaurante onde trabalhava.

Ou seja, os factos provados dizem-nos que o autor tomou a sua refeição de almoço no restaurante onde trabalhava. Por “local de refeição” deve ser entendido como o local onde se ingerem alimentos e bebidas integrados num acto pessoal e social, ininterrupto (demore mais ou menos tempo), que se designa comummente como “almoço”, “jantar”, “pequeno almoço”, “lanche”. Socialmente, quando se vai tomar café a outro local, designadamente um estabelecimento de cafetaria, diz-se que tal é feito “depois do almoço” ou “depois do jantar”, por exemplo. Já se está, portanto, em acto exterior à refeição e não na própria refeição. O “tomar de um café” de forma habitual depois da refeição – e num estabelecimento próprio - é um hábito fortemente enraizado na população portuguesa. Mas será um complemento da refeição, mas não “refeição”.

Como a lei não tutela mais do que o acidente de trajecto entre o local de refeição e o local de trabalho, não podemos aceitar uma interpretação extensiva que inclua nessa tutela um trajecto ulterior à refeição, tomada no local de trabalho – repete-se –, para um acto de mera ocupação do tempo antes do regresso ao trabalho, ainda que enraizado num hábito social ou de convívio social. Tal traduzir-se-ia numa abertura a múltiplas outras situações de extensão do conceito de acidente de acidente de trabalho, a coberto do acidente de trajecto, que, em nosso entender, a lei não consente, tanto mais que a listagem de hipóteses incluída no n.º 2 do art. 9.º não pode deixar de ser considerada taxativa, dada a sua descrição cuidada, sem nenhuma referência, na letra da norma, a um seu carácter exemplificativo.

Ou seja, em nosso entender, a lei não consente a interpretação extensiva defendida pelo autor.
Mas o apelante defende que, nesse caso, deve considerar-se a previsão do n.º 3 do artigo 9.º quando dispõe que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
Estamos de acordo, pelo que já dissemos, que o hábito de tomar café após a refeição se pode considerar como um acto para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
No entanto, para que tal releve para a qualificação de acidente de trabalho, seria necessário que o acto praticado – “tomar café” – estivesse encadeado com um desvio ou interrupção de um trajecto utilizado numa das situações previstas no n.º 2 do art. 9.º.
Ora, tal encadeamento não ocorre na situação dos autos.
O acto para ir tomar café praticado pelo autor implicou o assumir de um trajecto autónomo de ida e de regresso e não uma interrupção ou desvio de outro trajecto, nomeadamente, repete-se, de um qualquer trajecto dos contemplados no n.º 2 do art. 9.º.

Por conseguinte, a fundamentação e o juízo expressos na sentença recorrida não nos merecem qualquer censura.

Ou seja, em nosso entendimento o acidente objecto dos autos não deve ser considerado acidente de trabalho, tal como decidiu o tribunal recorrido.

Deverá, pois, improceder a apelação.


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IV- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, delibera-se julgar improcedente a apelação
Custas no recurso pelo autor apelante.


 (Luís Azevedo Mendes)

 (Felizardo Paiva)

 (Paula do Paço)