Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3309/16.8T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DA SENTENÇA
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 615º, Nº1, AL.B), E 662º, Nº2, AL.C) DO NCPC.
Sumário: Padecendo a sentença recorrida, proferida em despacho saneador, de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final, deve oficiosamente o tribunal ad quem, à luz das disposições conjugadas dos artigos 615º, nº1, al.b), e 662º, nº2, al.c), ambos do nCPC, anular tal sentença e determinar que, na 1ª. instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência.
Decisão Texto Integral:






Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. O exequente, Banco P..., S.A., instaurou (em junho de 2016) processo comum de execução de ordinária para pagamento de quantia certa contra os executados, P..., Lda, A... e sua mulher C...

Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte:

O “B..., S.A.”, celebrou com o "B..., S.A.", atualmente designado por "BANCO P..., S.A.", aqui exequente, em 04/10/2012, contrato de cessão de créditos mediante o qual cedeu a este, que aceitou, um conjunto de créditos que aquele Banco havia concedido a diversos mutuários e entre os quais incluiu aquele cujo pagamento reclama nesta execução.

Essa cessão de créditos encontra-se na disponibilidade das partes, tendo os devedores dela sido devidamente notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 583º do CC, pelo que deverá, assim, ser reconhecida a habilitação do ora exequente.

Assim, o exequente é dono e legítimo portador da livrança que dá e serve de base à execução, emitida em 27-07-2015 e vencida em 04-08-2015, com o valor de € 19.844,77, subscrita pela sociedade executada P..., Lda, e avalizada pelos demais executados.

Livrança essa que titula um financiamento concedido pelo Banco cedente à subscritora, ao abrigo da atividade bancária a que se dedica, por contrato de locação financeira celebrado a 08/06/2011, encontrando-se inscrito na mesma o valor de capital em divida, juros e despesas decorrentes do incumprimento do contrato celebrado.

Na data do respetivo vencimento, a mesma não foi paga, naquela data, nem posteriormente e até ao presente, apesar das diligências para o efeito levadas a cabo.

Pelo que os executados estão, pois, constituídos perante o exequente na correlativa responsabilidade solidária, deles tendo o direito de haver deles a quantia de capital de €19.844,77, acrescida dos respectivos juros de mora, desde a data de vencimento da livrança e até efetivo e integral pagamento, bem como do respetivo imposto de selo.

2. Os executados (avalistas) A... e sua mulher C... deduziram embargos/oposição a tal execução.

Para o efeito alegaram, em síntese, o seguinte:

A execução corre contra ambos por efeito de avale que prestarem no contrato de locação financeira mobiliária nº...

O aval foi prestado só porque o embargante era o gerente da sociedade executada e prestado por ambos pelo facto de serem casados.

Destinou-se o financiamento à aquisição, pela referida sociedade executada, de uma máquina de Impressão MIMKI UJF3041.

Entretanto o executado A... cedeu a sua quota na sociedade subscritora da livrança dada à execução, tendo-se o cessionário obrigado a substituir os avais, o que foi comunicado ao BP... e do que não houve oposição.

Por outro lado, a transmissão do crédito do B... para o exequente foi feita sem garantias e que não consta o nome dos embargantes no título de transmissão, mas apenas a firma da sociedade subscritora do título.

Pelo que com base em tais factos os embargantes/opoentes pediram, na procedência da oposição, a extinção da execução em relação a ambos.

Arrolaram no final prova testemunhal e juntaram documentos.

3. O exequente contestou - contraditando, em termos de facto e direito, a posição defendida pelos embargantes -, pugnando pela improcedência dos embargos.

Arrolou no final prova testemunhal e juntou documentos.

4. No despacho saneador, a sra. juíza a quo - considerando que o estado dos autos lhe permitia desde já fazê-lo, sem necessidade de mais prova – passou de imediato a conhecer do mérito da causa, entrando logo na fundamentação de direito, com total ausência de prévia especificação dos factos em que fundamentou a sua decisão, ou seja, começou a conhecer de direito, sem que antes tenha especificado os factos em que fez assentar essa sua decisão,

E ao fazê-lo, no final da sentença que proferiu decidiu julgar os embargos de executado improcedentes e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução.

5. Inconformados com tal sentença, os apelantes dela apelaram, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

« 1ª – A responsabilidade dos recorrentes no caso decorre de aval prestado em contrato de locação financeira. A livrança só titula garantia dessa obrigação é não é autónoma relativamente à obrigação.

2ª - É possível o avalista desobrigar-se do aval se forem cumpridos os formalismos e condições dos artigos 642º, 648º e 654º do Código Civil, o que os  recorrentes no caso fizeram.

3ª- No caso o credor não cumpriu as obrigações de zelo na cobrança da obrigação junto do devedor principal nem de salvaguarda do património que garantiu as obrigações assumidas.

4ª- Sendo a exequente a dona da máquina objeto de negócio e nada tendo feito para recuperar a sua posse, atua em prejuízo do avalista sujeitando-se à liberação da garantia requerida pelo avalista.

Por tudo se entendem violadas as normas previstas nos artigos 227, 642, 648, 654 do CC e artigos 607 nº 4, 608 nº 2, 615 nº 1 d) do CPC.

Pelos fundamentos invocados (…) se pugna pela procedência do recurso interposto, ordenando-se a remessa dos autos a Julgamento para que venham a considerar-se procedentes, por provados, os embargos deduzidos. »

6. Contra-alegou o exequente, pugnando pela improcedência dos embargos/oposição e pela manutenção do julgado.

7. No despacho de admissão do recurso a sra. juíza a quo pronunciou-se ainda sobre a nulidade da sentença invocada pelos recorrentes, defendo não padecer a mesma do vício que lhe é apontado.

8. Cumpre-nos, agora, apreciar.


II- Fundamentação

A) Do objeto do recurso

1. Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

1. Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso verifica-se que as questões nelas colocadas, e que cumpre aqui apreciar, são as seguintes:

a) Da nulidade da sentença.

b) Da responsabilidade dos embargantes (enquanto avalistas) no pagamento da quantia exequenda.

B) Antes de entrarmos na apreciação das questões objeto do recurso, importa, todavia, considerar o seguinte:

Como ressalta já do que atrás se deixou exarado (ponto 4 do Relatório – que serve de fundamentação de facto da decisão que se segue, e que resulta da leitura da repetiva peça processual inserta nos autos de embargos que nos foram remtetidos), a sra. juíza a quo – depois de considerar que o estado dos autos lhe permitia desde já fazê-lo, sem necessidade de mais prova – passou logo no despacho saneador a conhecer do mérito da causa.

E perscrutando a sentença (recorrida) que de imediato proferiu (sobre o mérito causa) verifica-se que entrou logo na fundamentação de direito, fazendo tábua rasa da fundamentação de facto, ou seja, fê-lo omitindo por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final. Enfim, verifica-se que a sentença padece de uma total ausência da fundamentação de facto.

Ora, preceitua-se na al. b) do nº1 do artº. 615º do CPC, que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.

Normativo esse que constitui o reflexo do dever de fundamentação das decisões imposto pelos artºs. 205º da CRPort. e 154º do CPC, e pelo próprio artigo 6º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem.

Vem sendo dominantemente entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores (quer à luz do revogado CPC61, quer do atual) que esse vício só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação (de facto ou de direito em que assenta a decisão), e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada. Essa fundamentação porventura deficiente, incompleta ou até errada poderá afetar o valor doutrinal da sentença/decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas nunca poderá, assim, determinar a sua nulidade. (Neste sentido, vide, entre outros, Ac. do STJ de 02/06/2016, proc. 781/11, acessível in www.dgsi.pt; Ac. do STJ de 07/04/2016, proc. 1129/09, in “Sumários, Abril/2016, pág. 17”; Ac. do STJ de 05/04/2016, proc. 128/134, in “Sumários, Abril/2016, pág. 8”; Ac. do STJ de 19/03/02, in “Rev. Nº 537/02-2ª sec., Sumários, 03/02” e Ac. da RC de 16/5/2000 in “www.dgsi.pt, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil, Vol. 2º, 3ª. Ed., Almedina, 2017, págs. 735/736”).

Ora, estando-se perante uma ausência de total da fundamentação de facto, ou seja, não tendo sido descriminados os factos dados como assentes, a fundamentação de direito feita ao longo da sentença assenta numa realidade factual virtual, em total desrespeito do comando estatuído no artº. 607º, nºs. 3 e 4, do CPC, impedindo (de todo) este tribunal superior de exercer, no âmbito das competências legais que lhe estão atribuídas, de exercer qualquer controle (vg. em termos de poder censório) sobre a bondade da decisão, o mesmo sucedendo, aliás, em relação às próprias partes.

O que fulmina a sentença com o vício de nulidade previsto no artº. 615º, nº1. al. b), do CPC.

Por outro lado, e noutra perspetiva, e conforme tem vindo a ser entendido por jurisprudência autorizada, se o Tribunal da Relação pode lançar mão, oficiosamente, do disposto no artº. 662º, nº 2, al. c), do CPC, quando, designadamente, repute de deficiente a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, por maioria de razão, se deve fazê-lo quando a indicação da matéria de facto é totalmente omissa. Estar-se-á, assim, perante uma situação limite de decisão deficiente a que se alude nesse normativo.

Se já é processualmente grave é omissão de indicação das razões que levaram a considerar os factos como provados (e não provados) então essa gravidade sobe ao índice máximo quando se está na presença de uma total ausência de indicação dos factos (dados como provados) em que assente a decisão de direito.

É manifesto que em tais situações (e não foi claramente para elas que foi pensado o atual artº. 665º, nº 1, do CPC), não foi intuito do legislador de colocar o Tribunal Superior da Relação a reapreciar oficiosamente toda a prova produzida na 1ª. instância, e nomeadamente quando tal resulte de casos em que, na 1ª. instância, se omitiu por completo a decisão da matéria de facto (vg. com a indicação dos factos provados), até porque uma intervenção a esse nível privaria as partes da garantia de um grau de jurisdição na apreciação e julgamento da matéria de facto. (Neste sentido vide, entre outros, Ac. da RC de 23/02/2016, proc nº.512/09. OTBLMG-D.C1 desta mesma 3ª. Secção Cível e relatado pelo ora 2º. adjunto, juiz desembargador Falcão de Magalhães – e Acs. da RL de 21/03/2012, proc. nº. 1359/2011.0TVLSB.L1-8, e de 27/10/2009, proc. 3084/08.0YXLSB-A.L1.1 – proferidos à luz do CPC61, mas com plena aplicação ao caso, devidamente adaptados -, estes últimos acessíveis em www.dgsi.pt).

Perante aquilo que se deixou exposto, e à luz das disposições conjugadas dos artigos artºs. 615º, nº1, al. b), e 662º, nº2, al c), ambos do CPC, decide-se anular o despacho saneador/sentença, determinando-se que - no caso de se continuar a entender que o estado dos autos permite já nesta fase conhecer do mérito da causa - seja proferida nova sentença da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados, desde já, como assentes/provados que justificam a decisão, ficando, assim, prejudicado conhecimento das questões objeto do presento recurso acima elencadas.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em decidir anular o despacho saneador/sentença, determinando-se que - no caso de se continuar a entender que o estado dos autos permite já nesta fase conhecer do mérito da causa - seja proferida nova sentença da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados, desde já, como assentes/provados que justificam/suportam a decisão.

Sem custas.

Sumário:

I- Padecendo a sentença recorrida, proferida em despacho saneador, de total ausência de fundamentação de facto, ou seja, omitindo-se nessa sentença por completo a especificação/descriminação dos factos em serviram de suporte ao julgamento de direito que conduziu à decisão final, deve oficiosamente o tribunal ad quem, à luz das disposições conjugadas dos artigos 615º, nº1, al. b), e 662º, nº2, al. c), do CPC, anular tal sentença e determinar que, na 1ª. instância, seja proferida nova sentença com a colmatação tal vício/deficiência.

Coimbra, 2017/11/14


Isaías Pádua

Manuel Capelo

Falcão de Magalhães