Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1577/11.0TBTMR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: LIVRANÇA
RELAÇÃO SUBJACENTE
MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
AVALISTA
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.16, 17, 30, 31, 32, 47, 75, 77 LULL, 220, 1143 CC, 510 CPC
Sumário: 1. - O § 2.º do artigo 32.º da LULL, quando se refere à obrigação garantida, não se reporta à obrigação subjacente ao negócio cambiário mas sim à obrigação cartular.

2. - A nulidade do contrato de mútuo que constitui a relação jurídica subjacente, não determina a nulidade da obrigação cartular assumida pelo avalista que não foi parte naquele contrato.

3. - Não estando o avalista no âmbito das relações imediatas, não pode prevalecer-se dos vícios do negócio subjacente, atentas as características da literalidade e abstracção da livrança ajuizada que expressa um negócio cambiário formalmente válido.

4. - O despacho saneador-sentença que decidiu todos os fundamentos da oposição à execução, julgando-os improcedentes, não é o momento processual próprio para conhecer oficiosamente da nulidade do contrato de mútuo e julgar extinta a execução, porquanto tal decisão enquadra-se nos poderes que a lei comete ao juiz em sede de despacho liminar no âmbito do processo de execução.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I – Relatório

1. A (…), deduziu a presente oposição à execução contra si instaurada pelos exequentes MG (…) e mulher MH (…), pedindo que a mesma seja julgada procedente e consequentemente seja o Oponente absolvido do pedido.

Para o efeito alegou, em síntese, que:

«1. A execução intentada pelo senhor (…) e senhora (…), doravante designados por Exequentes, relativa à letra emitida em 2 de Outubro de 2007, subscrita pela G (…), S.A., ora designada por G (…) e avalizada pelos executados (…) ora designados por Avalistas e A (…), ora designado por Oponente, é claramente inadmissível e improcedente, conforme resulta do seguinte:

a. Os Exequentes não invocaram nem demonstraram os concretos factos constitutivos da pretensa obrigação de pagamento da quantia aposta na letra exequenda, pelo que o r.e. é inepto, por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido (v. arts. 193.º/1 e 2/a), 288.º/b), 494.º/b), 810.º/3 e 4, 812.º/2, 814.º e 816.º do CPC);

b. Os alegados direitos cambiários invocados pelos Exequentes sobre o ora Oponente encontram-se prescritos (v. arts. 70.º, 77.º e 78.º da LULL e arts. 814.º/a), 816.º, 466.º, 493.º e 496.º do CPC);

c. Os pretensos direitos dos Exequentes sempre se encontrariam extintos, pois a execução da letra promovida contra os subscritores dependia de acto formal de protesto (v. arts. 32.º, 44.º, 53.º e 77.º da LULL e arts. 816.º, 466.º, 493.º e 496.º do CPC);

d. A letra em causa foi preenchida abusivamente pelos Exequentes, pelo que os seus pretensos direitos fundamentam-se em título cambiário falso e são claramente inoponíveis ao ora Oponente (v. arts. 10.º e 77.º da LULL e art. 376.º do C. Civil);

e. O título executivo sub judice é assim manifestamente insuficiente, devendo ser liminarmente indeferido o requerimento apresentado (v. arts. 811.º/1/b), 812.º/2/a) e 820.º do CPC), tanto mais que não cabe ao julgador desenvolver qualquer actividade inquisitória e probatória para suprir o incumprimento de ónus das partes (v. arts. 264.º e 814.º/e) do CPC)».

2. Notificados os Exequentes, contestaram a deduzida oposição, pugnando pela condenação do Oponente como litigante de má fé, e pela improcedência da deduzida oposição.

3. Designada data para uma tentativa de conciliação que se revelou infrutífera, foi seguidamente proferido despacho saneador-sentença, onde se julgou parcialmente procedente a oposição à execução, declarando extinta a execução por inexistência do título que lhe serve de fundamento quanto ao Oponente A (…).

4. Inconformados com esta decisão, os exequentes interpuseram o presente recurso de apelação que terminaram com as seguintes conclusões:

«1. O título executivo consubstancia uma livrança a qual obedece a todos os requisitos constantes do artigo 75° da LULL;

2. Nomeadamente, no verso da mesma, depois dos dizeres "Por aval ao subscritor" consta a assinatura do oponente, ora recorrido: A (…)- artigo 30° da LULL;

3. Sendo que a livrança é um título à ordem, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância, em certa data. É uma promessa de pagamento que a emitente e os outros obrigados devem cumprir - cfr. art. 75° LULL.

4. A obrigação cambiária nada tem a ver com a validade ou regularidade da obrigação subjacente ou fundamental.

5. Concretamente o avalista do subscritor não poderá deixar de estar obrigado ao pagamento da livrança com o fundamento de que é nulo por vício de forma o contrato de mútuo que eventualmente tenha estado na base da emissão do título cambiário.

6. Não obstante a rigorosa formalidade a que as obrigações cartulares estão sujeitas (no sentido de que o título tem de apresentar uma determinada configuração externa para que lhe seja aplicável o muito particular regime jurídico correspondente), não se verifica qualquer exigência de forma específica baseada no seu valor.

7. A LULL reconhece a validade da letra ou da livrança para obrigações de qualquer valor, afastando, assim, das excepções oponíveis ao portador imediato a nulidade por vício de forma do negócio em causa.

8. O vício de forma a que alude o artigo 32° II da LULL respeita à própria obrigação cambiária ou, pelo menos, por meio dela tem de se evidenciar.

9. A designação de "vício de forma", na LULL, não é uma noção técnica a ser definida fora da LULL, nomeadamente pelo direito civil de cada Estado subscritor da Convenção de Genebra. Abrange apenas, e todos os casos em que resulta do próprio título cambiário.

10. A autonomia do aval deve ser entendida no sentido de que a sua independência o torna imune às vicissitudes da operação que garante, inclusive quando a operação avalizada é nula.

11. O documento - livrança - dado à execução é título executivo enquadrável no disposto no artigo 46°, al. c) do CPC, o qual goza das características da incorporação, literalidade, autonomia e abstracção (artigos 1°, n° 2. 14°. 16°, 17°, 20°, 21°.38°. 39º. 40°. 50°.51° e 77° da LULL).

12. Entendeu o douto tribunal a quo que o contrato de mútuo, constante dos autos, estaria ferido de nulidade, concluindo que a nulidade da relação subjacente geraria a nulidade da relação cartular e, consequentemente a livrança dada à execução seria inexequível.

13. Não concordamos com tal decisão porquanto é nosso entendimento que a obrigação do avalista é materialmente autónoma (cfr. art. 32º, aI. 2, da LULL) e sempre se manterá a sua obrigação, não obstante a obrigação garantida ser, eventualmente, nula.

14. Ao decidir da forma descrita, a Meritíssima Juiz a quo olvidou em absoluto o especial regime das Letras e Livranças.

15. No âmbito do qual, no que ao caso sub judice concerne, o avalista, não obstante a eventual nulidade do contrato de mútuo, continua a ser responsável pelo pagamento da livrança, não podendo, com fundamento na nulidade do mútuo, ser "libertado" da obrigação cambiaria.

16. Realmente, com observância das normas constantes nos artigos 1.º n° 2. 14°, 16°, 17°, 20°, 21°. 32°, 38º. 39°. 40°, 50°. 51°, todos da LULL, aplicáveis por força do seu artigo 77°, a decisão deveria ser no sentido de julgar improcedente a oposição com as consequências legais».

5. Pelo Recorrido foram apresentadas contra-alegações que rematou nos seguintes termos:

«I. O Recurso foi interposto pelos Recorrentes, (…) da sentença proferida pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, que julgou parcialmente procedente a oposição à execução, declarando extinta a execução, por inexistência do título que lhe serve de fundamento quanto ao aqui Recorrido.

II. Dispõe a cláusula segunda do referido contrato de mútuo que “Este contrato de empréstimo é representado por uma Livrança no valor de trinta mil euros, aceite pela segunda outorgante e avalizada pelos seus sócios-gerentes.”.

III. Ora, foi entendimento vertido na douta sentença que considerou que estando o contrato de mútuo ferido de nulidade por vício de forma, se deveria considerar, consequentemente, a nulidade da relação jurídica subjacente gera a nulidade da obrigação cartular, o que leva à inexequibilidade da livrança avalizada pelo Recorrido, tendo presente que o aval é um negócio cambiário porque próprio dos títulos de crédito cambiários, que tem como características principais, a literalidade, a autonomia, a incorporação e a abstracção.

IV. Conforme é entendimento do Professor Doutor Pedro Pais de Vasconcelos o negócio cartular tem “subjacente um negócio que o explica, que o justifica, que lhe constitui a causa. Esse negócio designa-se subjacente.” in Direito Comercial – Títulos de Crédito, Reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1997, 33, sendo o aval como garantia que é, prestada pelo avalista, não deixa também de constituir uma atribuição patrimonial. E o avalista se avaliza, é porque se comprometeu isso com o avalizado, ou mesmo com o beneficiário do aval.

V. A função que, em concreto o negócio cambiário como atribuição patrimonial desempenha em relação ao negócio subjacente, está fixa na convenção executiva.

Esta é uma convenção entre os intervenientes do acto cambiário, paralela a este, e que se pode integrar no próprio negócio subjacente ou constituir um acordo posterior, no qual é acordada a função a desempenhar pelo negócio cartular em relação ao subjacente, sendo que a convenção executiva é vinculativa, quer formalmente integre uma cláusula do negócio subjacente, quer formalize como estipulação acessória posterior, e tem eficácia obrigacional e a sua violação faz incorrer aquele que a não cumprir em responsabilidade civil contratual.

VI. Ora, “Quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente diz-se que a relação é imediata; quando não estão ligadas por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas no título, designadamente a letra, são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que suscitem entre obrigados cambiários que se não encontrem ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva. Nas relações mediatas não existe, pois qualquer relação subjacente ou convenção executiva.” in Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, Reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1997, 55.

VII. Aqui chegados cumpre saber se no aval prestado pelo Recorrido existe uma relação subjacente e imediata com os Recorrentes, sendo que a resposta a esta questão é decisiva para balizar o espaço de defesa dos avalistas, considerando o disposto no artigo 32.º da LULL, alegado pelos Recorridos como inaplicável.

VIII. Se não existir relação imediata entre o avalista e o beneficiário da obrigação cambiária garantida por aval, a obrigação de honrar o aval mantem-se mesmo que a obrigação garantida seja nula, por qualquer razão que não seja um vício de forma. Ao invés se estivermos no domínio das “relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (…) nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta.

Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem.”, tal qual se encontra vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Junho de 2002, tendo presente que esta posição doutrinária encontra eco na jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto. Veja-se a este propósito o Acórdão da Relação do Porto de 16 de Novembro de 2000, que considera que se encontram “no domínio das relações imediatas o tomador e o avalista de livrança que não chegou a entrar em circulação.”.

IX. Também, o Tribunal da Relação de Lisboa tem seguido a mesma orientação jurisprudencial, ao considerar que “no domínio das relações imediatas o avalista pode opôr ao sacador as excepções fundadas na relação subjacente e afastar, assim, a convenção cautelar, como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. (…) Sendo a relação subjacente inexistente e se tal inexistência tiver sido invocada pelo avalista, no domínio de relações imediatas, não se pode exigir que este garanta o que não existe”, in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Novembro de 1996, vide por exemplo Acórdão de 17 de Janeiro de 1991.

X. A corrente jurisprudencial maioritária do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de exigir não só que o título não esteja em circulação, como o avalista tenha ele mesmo, subscrito o pacto de preenchimento. Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2011 que fundado na autonomia do aval entende que “a violação do pacto de preenchimento é uma excepção de direito material que não pode ser invocada pelo avalista salvo se o mesmo nele teve intervenção, subscrevendo-o. (…) Daí que o acordo de preenchimento só concluído entre o subscritor e o portador da livrança se imponha, tal qual, ao avalista”, sublinhando que a “qualidade de mero avalista não legitima a oponibilidade da excepção de preenchimento abusivo, se não subscreveu o pacto de preenchimento. Isto porque a prestação do aval estará então condicionada ao conhecimento e aceitação pelo avalista do montante a avalizar e data de vencimento.”, e seguindo este entendimento podem ver-se ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 1976, Acórdão de 24 de Outubro de 2002, Acórdão de 27 de Maio de 2004, o Acórdão de 18 de Abril de 2006, de 14 de Dezembro de 2006, de 6 de Março de 2007.

XI. Devemos ainda referir que “Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador – 1.º endossante, etc.), nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem.” in Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, 1966, págs. 67 e seguintes.

XII. O Recorrido assinou o contrato de mútuo ferido de nulidade, celebrado entre a G (…) S.A., e os aqui Recorrentes, pelo que é forçoso concluir que estando a relação jurídica subjacente ferida de nulidade também assim estará a obrigação cartular, o que acarreta a nulidade do aval dado pelo Recorrido, pelo que a execução não pode prosseguir por falta de título executivo.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, como sempre com o suprimento de Vossas Excelências, deve ser totalmente confirmada a sentença recorrida, considerando totalmente improcedente o recurso apresentado pelos Recorrentes».

6. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso[2].

O presente recurso de apelação integra uma única questão essencial que consiste em saber se a nulidade do contrato de mútuo que constitui a relação jurídica subjacente, determina ou não a nulidade da obrigação cartular assumida pelo avalista.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto:

Na decisão recorrida, designadamente com base no requerimento e título executivo de fls. 2 a 9 da execução, foram considerados assentes os seguintes factos:

1.- Em 23/11/2011, os exequentes instauraram a execução para pagamento de quantia certa a que estes autos se encontram apensos, dando à execução, como título executivo, uma livrança.

2.- Nessa livrança, no local destinado ao sacador consta a identificação e morada do oposto e, no local destinado ao nome e morada do sacado consta “G (…), Lda. Rua ...– TOMAR.

3.- No lado esquerdo da livrança, transversalmente na mesma consta o carimbo da oponente, com a indicação de “ Gerencia” e assinaturas manuscritas e no verso da mesma depois dos dizeres “Por aval ao subscritor” consta a assinatura do oponente.

4.- Na livrança consta como local e data de emissão “Tomar 2007-10-02”, no valor de “30.000,00 €”, no campo de outras referencias consta “taxa de 6% ao ano” e vencimento em “2011/10/03”.

5.- No campo destinado aos factos no requerimento executivo consta o seguinte:

“Os exequentes são portadores da livrança nº 500792887074039636 no montante de €30.000,00 (trinta mil euros), datada de 02.10.2007.

A primeira executada aceitou a mesma, comprometendo-se a efetuar o seu pagamento na data do seu vencimento. Os restantes executados: (…) deram o seu aval à primeira executada pelo que são solidariamente responsáveis pelo seu pagamento.

A livrança venceu-se no dia 03.10.2011.

Interpelados para pagar os executados não o fizeram.

Ao capital em dívida acrescem juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 6% contados desde 2 de outubro de 2007 e até efetivo e integral pagamento (tendo a taxa de juro sido convencionada entre as partes)”.

6.- O oponente foi citado para a execução a que estes autos se encontram apensos em 29/11/2011.

Dos documentos juntos a esta oposição, resulta ainda que[3]:

7.- No dia 2 de Outubro de 2007, foi celebrado entre os ora Exequentes como primeiros outorgantes e a G (…) Ld.ª, representada por todos os seus sócios e gerentes (…) como segunda outorgante, um acordo denominado por contrato de empréstimo, com as seguintes cláusulas:


«Primeira

Os primeiros outorgantes emprestam à segunda outorgante a quantia de trinta mil euros, entregues pelos cheques da Caixa Geral de Depósitos, com os números: 1612284730 (um, seis, um, dois, dois, oito, quatro, sete, três, zero) datado a dois de Outubro de dois mil e sete, 9512284732 (nove, cinco, um, dois, dois, oito, quatro, sete, três, dois) datado a três de Outubro de dois mil e sete e 8612284733 (oito, seis, um, dois, dois, oito, quatro, sete, três, três) datado a três de Outubro de dois mil e sete, no valor unitário de dez mil euros, perfazendo o total de trinta mil euros e emitidos à ordem do Sócio-Gerente da segunda outorgante, o Senhor (…)

Segunda

Este Contrato de Empréstimo é representado por uma Livrança no valor de trinta mil euros, aceite pela segunda outorgante, e avalizada pelos seus sócios-gerentes.

Terceira

A durabilidade do Contrato de Empréstimo é pelo prazo de um ano, com a possibilidade de amortizações antecipadas, podendo ser prorrogado por mais um ano. Após a segunda prorrogação, a renovação do contrato terá o acordo dos primeiros outorgantes com as condições que se vier a acordar.

Quarta

            A remuneração do Contrato de Empréstimo vence-se a uma taxa de seis por cento ano, líquido e com liquidações semestrais.

Quinta

            Em caso de litígio, todas e quaisquer despesas forenses, advogado, tribunal e outras despesas dos primeiros outorgantes, serão de conta e responsabilidade da segunda outorgante, com o foro competente de Tomar e renúncia de qualquer outro».

*****

III.2. – O mérito do recurso

A presente oposição à execução teve como fundamentos, a ineptidão do requerimento executivo, por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido; a prescrição dos direitos cambiários por falta de apresentação a pagamento; a falta de acto formal de protesto; e, finalmente, a nulidade da livrança e dos avales por ter sido preenchida abusivamente pelos Exequentes, cuja verificação, no entender do Oponente, determinaria que devesse ser liminarmente indeferido o requerimento executivo apresentado.

Pelo despacho saneador-sentença proferido de fls. 58 a 65 dos autos, todos os fundamentos avançados pelo Oponente foram doutamente julgados improcedentes.

Assim, quanto a todas estas questões, não tendo sido interposto recurso pelo Oponente, nos termos do disposto nos artigos 671.º, 676.º, n.º 1, e 677.º a contrario, todos do Código de Processo Civil[4], tal despacho saneador que julgou globalmente improcedente a oposição deduzida, decidindo sobre o mérito da causa transitou em julgado, ficando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos definidos na lei.

            Acontece, porém, que a Mm.ª Juiz, considerando que tinha elementos nos autos para “o conhecimento imediato da oposição à execução”, invocando o disposto nos artigos 510.º, n.º 1, alínea b), do CPC, ex vi do artigo 463.º, n.º 1, e artigo 817.º, n.º 2, ambos do CPC, decidiu “julgar parcialmente procedente a oposição à execução, declarando extinta a execução, por inexistência do título que lhe serve de fundamento quanto ao executado A (…)”

Ora, como é bom de ver, no despacho que lavrou na oposição à execução, o que a Mm.ª Juiz fez foi, em bom rigor, uma intervenção no âmbito  do processo executivo, a qual tem agora carácter excepcional, só ocorrendo nas situações expressamente previstas na lei, sem prejuízo de um poder genérico de controlo do processo fundado no disposto no artigo 265.º, n.º 1, do CPC.

Efectivamente, com a alteração legislativa introduzida no âmbito do processo executivo o juiz de execução viu a sua actividade reservada à prática de actos estritamente jurisdicionais que lhe foram constitucionalmente reservados, entre os quais se encontra a prolação de despacho liminar na execução, quando tal despacho deva ter lugar (artigo 809.º, n.º 1, do CPC).

E diz-nos o artigo 812.º, n.º 2, alíneas a) e c), do CPC que o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando, seja manifesta a falta ou insuficiência do título; ou quando, fundando-se a execução em título negocial, seja manifesto, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda que ao juiz seja lícito conhecer.

Parece-nos que foi este último o caminho que a primeira instância quis seguir, ainda que efectuado com enquadramento jurídico diverso, em que manifestamente não tinha lugar, porquanto o artigo 817.º se refere aos termos da oposição à execução e essa, como vimos, foi julgada improcedente.

Atento, porém, o princípio da adequação formal, previsto no artigo 265.º-A do CPC, e considerando que o recurso de qualquer uma das decisões sempre seria de apelação e com o mesmo momento de subida, feita esta precisão formal conhecer-se-á nestes autos de oposição do recurso interposto, porquanto foi nestes que o despacho recorrido foi proferido.

E qual foi o despacho recorrido?

A Mm.ª Juiz conheceu oficiosamente da nulidade do contrato de mútuo, considerando que a mesma determinava a inexistência do título que serve de fundamento à execução, fazendo-o nos seguintes termos:

«Da análise do contrato a fls. 16 a 18, para o qual se remete e aqui se considera integralmente reproduzido, resulta que entre o exequente e a executada G (…) Lda. foi celebrado um contrato de mútuo, no valor de € 30.000,00, tendo os demais executados, nesse contrato, assumido a qualidade de avalistas de uma livrança subscrita com a outorga desse escrito.

Esse contrato data de 02/10/2007.

Face ao disposto no artigo 1143.º do CC, vigente à data, o mútuo de valor superior a € 20.000,00 tinha de ser celebrado por escritura pública.

O referido contrato, não observou essa forma legal, estando, por isso, e nos termos do citado preceito, ferido de nulidade, nos termos do artigo 220.º do CC, a qual é de conhecimento oficioso.

Estando esse contrato de mútuo ferido de nulidade, a nulidade da relação jurídica subjacente gera a nulidade da obrigação cartular, tornando, por isso, inexequível a livrança dada à execução, enquanto título executivo cambiário. Sendo nulo o contrato e afetando essa nulidade a livrança, são nulos os avais na mesma prestados pelos avalistas cambiários.

Assim, e quanto aos mesmos, face à nulidade do mútuo, que gera a nulidade da obrigação cartular, não pode prosseguir a presente execução, por falta de título.

Mais se aduz que, ainda que os exequentes tivessem explanado no requerimento executivo a relação jurídica subjacente igual solução se perfilharia, igualmente se entendendo que quanto a si inexiste título. Explicitando-se aduz-se que, não se olvida que sendo declarada a nulidade do mútuo há a obrigação de entrega do capital mutuado aos mutuantes por parte dos mutuários. Sucede que, o oponente não foi mutuário mas tão só avalista da livrança que não pode valer nos autos como título executivo face ao já exposto, nada tendo recebido.

Assim, julga-se procedente a oposição à execução, julgando-se extinta a execução contra si por falta de título executivo».

Foi contra este segmento da decisão que os Exequentes, ora Apelantes se insurgiram, defendendo que a obrigação do avalista é materialmente autónoma, e sempre se manterá a sua obrigação ainda que a obrigação garantida seja nula por vício de forma.

Dir-se-á, desde já, que lhes assiste total razão.

Efectivamente, a nulidade, por falta de forma legal, do contrato de mútuo que constitui a relação jurídica subjacente à livrança ajuizada, não determina a nulidade da obrigação cartular dos respectivos avalistas que não se encontrem nas relações imediatas.

Senão, vejamos.

O processo de execução de que estes autos constituem um apenso tem como título executivo uma Livrança (embora o Oponente se lhe refira, várias vezes, como “letra”), que cumpre os requisitos de conteúdo assinalados no artigo 75.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças[5].

A livrança integra-se na categoria dos títulos de crédito, sendo um documento com uma função constitutiva, necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado. Tem, portanto, uma posição característica e única em face do direito a que se refere: dir-se-á que é a titularidade do documento que decide da titularidade do direito nele mencionado; o documento é o principal, sendo o direito seu acessório. Por isso se fala da incorporação da obrigação no título e se designa o direito referido no título como “direito cartular”[6].

O direito cartular pressupõe uma relação jurídica prévia – a relação subjacente ou fundamental - e tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica.

Porém, “o título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes. A razão de ser desta feição unilateral alcança-se facilmente se tivermos presente que o título de crédito é um instrumento para a circulação de direitos; para a circulação do direito de uma das partes num contrato bilateral, é esse direito considerado isoladamente dos direitos da parte contrária”[7].

Por isso se afirma que, para além da referida característica da incorporação, os títulos de crédito se revestem das características da literalidade, autonomia e abstracção.

De facto, o direito incorporado no título é um direito literal, porquanto a letra do título traduz o direito que o mesmo incorpora, pela mesma se determinando o conteúdo e extensão do direito que contém. “Pelo conceito de literalidade põe-se em relevo que a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente defina e revele”[8].

É ainda um direito autónomo e abstracto, significando isso que o possuidor do título adquire o direito que este anuncia de um modo originário, não lhe sendo oponíveis os vícios que porventura existissem numa titularidade anterior; a relação subjacente, a causa ou relação fundamental que em regra é concomitante da convenção executiva, é separada do negócio cambiário porquanto decorre não dele próprio mas da convenção extra-cartular. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante para os obrigados cambiários independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornem inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais: falta, nulidade ou ilicitude da relação fundamental, exceptio inadimpleti contractus, etc., porque decorrem de uma convenção extra-cartular, exterior ao negócio cambiário[9].

Servem as precedentes considerações para definir o terreno em que nos movemos e afirmar que a extensão e a qualidade da especial tutela de que gozam os títulos de crédito no confronto com a função normal de outro documento, assenta no propósito legal de os tornar instrumentos adequados a facilitar e incentivar a circulação dos próprios créditos, tutelando desta forma os interesses de terceiros de boa fé que, por via da natural circulação dos mesmos, os venham a adquirir.

Sendo a livrança um título de crédito formal com as sobreditas características, ao contrário da letra, a mesma não contém uma ordem de pagamento, mas a promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada (artigo 75.º, n.º 2, da LULL). Trata-se de um título à ordem, sujeito às formalidades ínsitas no referido preceito legal, por via do qual uma pessoa se compromete para com outra a pagar-lhe determinada importância em certa data[10]. Por isso, as pessoas que inicialmente figuram na livrança não são três, como na letra, mas apenas duas: o subscritor e o tomador[11].

Volvendo ao caso dos autos, e conforme decorre da factualidade que vem assente da primeira instância, no local destinado ao sacador (na livrança, tomador) consta a identificação e morada do exequente e, no local destinado ao nome e morada do sacado (na livrança, subscritor – artigo 75.º, n.º 7, da LULL) consta “G (…), Lda. Rua ...– TOMAR, sendo que no lado esquerdo da livrança, transversalmente na mesma consta o carimbo da empresa, com a indicação de “Gerência” e assinaturas manuscritas.

Portanto, da livrança decorre que a sociedade comercial G (…) Ld.ª, sendo a emitente da livrança é o primeiro obrigado no cumprimento da promessa de pagamento da quantia aposta na mesma.

Porém, este pagamento pode ser no todo ou parte garantido por aval, conforme decorre do artigo 30.º § 1.º da LULL, aplicável ex vi do disposto no artigo 77.º. Trata-se de uma garantia das obrigações do devedor que não vem prevista no Código Civil e se mostra expressamente consagrada no regime especial decorrente da LULL.

Ora, conforme também se mostra assente, no verso da livrança em causa nos presentes autos, depois dos dizeres “Por aval ao subscritor” consta, para além de outras, a assinatura do oponente.

Significa esta menção que o oponente deu o seu aval, ao assiná-la como avalista da firma subscritora, porquanto o aval resulta da simples assinatura do dador (artigo 31.º, § 3.º), exprimindo-se pelas palavras “bom para aval” ou por qualquer fórmula equivalente escrita na própria livrança (artigo 31.º, § 1.º e 2.º), como é seguramente a expressão “por aval ao subscritor”.

Assim, nos termos do artigo 30.º § 2.º da LULL, o Oponente ao assinar a livrança depois dos dizeres por aval ao subscritor garante, no todo ou em parte, o respectivo pagamento por parte da sua subscritora e obrigada cambiária. 

O aval é, assim, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da livrança garante o pagamento dela por parte de um dos subscritores. Por isso, a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia da obrigação do avalizado, cuja função específica é garantir ou caucionar a obrigação do subscritor cambiário, inserindo-se ao lado da obrigação deste, cobrindo-a e caucionando-a[12].

Prestada esta garantia, e atenta a sua função específica de caucionar ou assegurar o prometido pagamento, o avalista, enquanto dador da garantia, não tem uma responsabilidade secundária relativamente ao obrigado principal. O avalista tem, perante o beneficiário do aval que é o portador da livrança, uma responsabilidade primária, não gozando de qualquer benefício de excussão prévia como o que se encontra previsto para a fiança no artigo 638.º do Código Civil[13].

O mesmo é dizer que o dador do aval responsabiliza-se directamente pelo pagamento da livrança, não estando o beneficiário do aval obrigado a exigir o pagamento, em primeiro lugar, ao subscritor. O avalista é solidariamente responsável com o subscritor e, como tal, pode ser accionado individual ou conjuntamente com os demais obrigados e sem necessidade de observância da ordem por que estes se obrigaram (artigo 47.º da LULL).

Na verdade, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa afiançada (artigo 32.º § 1.º da LULL), o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.

De facto, o aval, sendo uma garantia do pagamento da livrança, não tem carácter subsidiário em relação à obrigação de pagamento desta, mas antes cumulativo; ou seja, embora o aval seja acessório da obrigação principal do subscritor da livrança, a obrigação do avalista é originada por uma obrigação autónoma: a obrigação cambiária por si assumida ao subscrever a livrança nessa qualidade.

Por isso, o artigo 32.º da LULL constitui uma expressa afirmação legal da força que a livrança assume enquanto título de crédito. Efectivamente, o aval é um acto cambiário que origina também ele uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título[14].

E, sendo um título circulante, a lei assegura-se que o portador (que pode não ser o tomador inicial) possa saber com toda a segurança, por simples inspecção do título que se lhe apresenta e sem necessidade de ter em conta quaisquer outros elementos exteriores, quais os direitos que lhe assistem e contra quem os pode accionar, isto é, quem são os respectivos signatários e em que qualidade se constituíram em obrigados cambiários. Daí que, em decorrência da sobredita característica da abstracção do título, por força do disposto no artigo 32.º § 2.º da LULL, a obrigação do avalista se mantenha mesmo que a obrigação que ele garantiu seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

“Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente desta última quanto ao aspecto formal. De facto – e como já vimos – a lei estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação seja nula – e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de “um vício de forma”[15].

Quanto a este segmento do preceito, salvo o devido respeito, parece-nos que grassa alguma confusão a propósito da interpretação deste 2.º § na parte em que excepciona a nulidade proveniente de um vício de forma.

Efectivamente, apesar de não ter citado qualquer norma legal, a interpretação efectuada na decisão recorrida decorre de se ter considerado que, existindo uma nulidade por falta de forma legal da obrigação subjacente, então a obrigação do avalista não se mantém. Trata-se, porém, de uma leitura apressada deste segmento da norma que não tem em conta os cânones da interpretação a que o artigo 9.º do Código Civil manda atender.

 De facto, a obrigação assumida pelo avalista decorre cristalinamente do preceituado no artigo 30.º § 1.º da LULL: ao dar o seu aval, garante o pagamento da livrança; garante o pagamento da obrigação cambiária e não da obrigação subjacente.

Por isso, a obrigação a que alude o 2.º § do artigo 32.º não é a obrigação subjacente mas sim a obrigação cartular. O que aqui está em causa é a validade formal da obrigação cartular que não se confunde com a forma do negócio subjacente[16].

 “Esta fórmula é aqui manifestamente empregada no seu sentido jurídico comum, importando referência às condições de forma externa do acto de onde emerge a obrigação cambiária garantida, isto é, aos requisitos de validade extrínseca desta obrigação.

Como todas as menções essenciais da declaração da vontade da pessoa que cria ou emite a letra – o sacador – são requisitos desta, condições de que depende a existência da própria letra, não é possível conceber, quanto à obrigação do sacador, nulidade por vício de forma que não comprometa ao mesmo tempo a eficácia cambiária do título. Por isso, quanto ao aval dado ao sacador, não é possível figurar um caso de nulidade do mesmo aval em virtude de nulidade por vício de forma da obrigação garantida”[17].

Ou, dito de outra forma, “quando resulte que a obrigação do avalizado é nula por vício de forma, porque se comprova um impedimento objectivo e absoluto de a sua operação formar qualquer valor patrimonial para a letra, não são responsáveis em qualquer medida, quer o avalizado quer o avalista, não se podendo manter, portanto, as suas obrigações.

A não existência da obrigação do avalista na hipótese de aplicação ao artigo 32.º, II, 2.ª parte, não é uma consequência directa da nulidade ou inexistência da obrigação do avalizado, que se fundamentaria na acessoriedade concreta daquela obrigação em relação a esta. (…) A inexistência da obrigação do avalista e da do avalizado quando esta é nula por vício de forma, é o resultado, necessariamente cumulativo, da não verificação da acessoriedade típica do aval em relação à operação avalizada”[18].

Destes ensinamentos decorre cristalinamente que a única nulidade por vício de forma que se repercute na obrigação do avalista é a nulidade por tal vício do próprio título cambiário e não do negócio subjacente, a não ser que este tivesse tido intervenção no mesmo, ou seja, que se encontrasse no domínio das relações imediatas[19].

Ora, no caso dos autos, subjacente à livrança em causa, esteve um contrato de mútuo, firmado entre a firma subscritora e os ora exequentes.

Porém, ao contrário do que afirma, o ora executado não foi parte nesse contrato porquanto, conforme da respectiva redacção facilmente se alcança, subscreveu-o enquanto representante da sociedade comercial Gesticida, Ld.ª, a qual tem personalidade jurídica própria (artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais) e distinta das pessoas físicas que, em sua representação, assinaram o contrato mas que não são partes no mesmo.

Acontece que estas pessoas, seus sócios-gerentes, responsabilizaram-se pessoalmente, através do aval que prestaram ao negócio cartular, pelo pagamento das quantias que fossem devidas pela subscritora da livrança e mutuária no contrato de empréstimo celebrado entre a avalizada e os exequentes.

Do exposto resulta que a responsabilidade do ora Apelado deriva do aval que ele prestou à sociedade de que era sócio-gerente, enquanto garantia pessoal, estando este executado, ao contrário daquilo que sustenta, obrigado a garantir as dívidas da firma avalizada na medida em que se mostram caucionadas pela livrança.

Na verdade, o aval prestado pelo Executado e ora Oponente não é afectado pela nulidade formal do negócio subjacente porquanto o avalista não se encontra nas relações imediatas que apenas se estabelecem entre os sujeitos que são simultaneamente parte na relação cambiária e no negócio causal.

No caso em apreço, a relação imediata apenas existe e podia relevar entre o subscritor (a G (…), Ld.ª) e o tomador da livrança (exequente), âmbito em que é pacífico que a nulidade da obrigação causal podia ser discutida e determinar a nulidade da obrigação cartular.

Ao invés, sendo o aval uma garantia autónoma, embora formalmente dependente da do avalizado, este subsiste mesmo que nula a obrigação garantida, porquanto o avalista não pode defender-se com as excepções pessoais do avalizado, a menos que tenha tomado parte no negócio causal e o título não tenha saído do domínio das relações imediatas[20].

Não estando o avalista e ora recorrido no âmbito das relações imediatas por não ter subscrito pessoalmente o contrato de mútuo, não pode invocar em seu favor a sua nulidade por falta de forma legal[21], integrando-se o caso em apreço, de pleno, no artigo 32.º, § 2.º, primeira parte, da LULL.

Como assim, a obrigação de pagamento assumida pelo dador do aval mantém-se plenamente válida porquanto nenhuma formalidade foi preterida no preenchimento da livrança ajuizada, sendo consequentemente válida a obrigação cartular, independentemente da verificação da invocada nulidade do negócio causal.

Esta é a consequência dos princípios da literalidade e da abstracção: o negócio cartular vale como está no título, sendo inoponíveis as excepções fundadas em convenções extra-cartulares, a não ser quando se verifique alguma das situações previstas nos artigos 16.º e 17.º da LULL, e tal não é manifestamente o caso dos autos.

Em conformidade, deve o despacho recorrido ser revogado, considerando-se transitada a decisão proferida quanto à improcedência da oposição deduzida e, consequentemente, determinando-se o prosseguimento da execução contra o avalista A (…).


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III.3. Síntese conclusiva:

I - O despacho saneador-sentença que decidiu todos os fundamentos da oposição à execução, julgando-os improcedentes, não é o momento processual próprio para conhecer oficiosamente da nulidade do contrato de mútuo e julgar extinta a execução, porquanto tal decisão enquadra-se nos poderes que a lei comete ao juiz em sede de despacho liminar no âmbito do processo de execução.

II - O § 2.º do artigo 32.º da LULL, quando se refere à obrigação garantida, não se reporta à obrigação subjacente ao negócio cambiário mas sim à obrigação cartular.

III - A nulidade do contrato de mútuo que constitui a relação jurídica subjacente, não determina a nulidade da obrigação cartular assumida pelo avalista que não foi parte naquele contrato.

IV - Não estando o avalista no âmbito das relações imediatas, não pode prevalecer-se dos vícios do negócio subjacente, atentas as características da literalidade e abstracção da livrança ajuizada que expressa um negócio cambiário formalmente válido.


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IV - Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação, revogando-se o despacho recorrido, e consequentemente, determinando-se o prosseguimento da execução contra o avalista A (…).

Custas na primeira instância e nesta Relação, pelo Executado/Oponente.


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Albertina Pedroso ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins

[1] Relatora: Albertina Pedroso;

1.º Adjunto: Virgílio Mateus;

 2.º Adjunto: Carvalho Martins.

[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[3] Facto assente por virtude de acordo das partes quanto ao respectivo conteúdo porquanto cada uma delas juntou documento com processamento informático diverso que é irrelevante porquanto o conteúdo de ambos os documentos é igual e todos estão de acordo em que o contrato que intitularam de “contrato de empréstimo” foi celebrado, devendo consequentemente ser aditado nos termos do disposto no artigo 659.º, n .º 3, do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 713.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Doravante abreviadamente designada LULL, resultante das Convenções de Genebra de 7 de Junho de 1930, aprovadas pelo Decreto n.º 23721, de 29 de Março de 1934 e publicadas em 21 de Junho, as quais estão em vigor como direito interno português desde 8 de Setembro do mesmo ano, conforme declarado no Decreto 26556, de 30 de Abril de 1936, publicado na sequência de dúvidas que então se suscitaram sobre a respectiva vigência.
[6] Cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 3 a 5, 38 e 39.
[7] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 8.
[8] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 40.
[9] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 47, 48 e 65.
[10] Cfr. Abel Delgado, in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 6.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa 1990, pág. 362; e Ferrer Correia, obra citada, pág. 22.
[11] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 23.
[12] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 21 e 196, e Acórdão STJ de 16-03-2011, Revista n.º 4918/03.0TVLSB-A.L1.S1 - 7.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[13] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 12-01-2012, Revista n.º 5629/07.3TBCSC-A.L1.S1 - 2.ª Secção,  com sumário disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[14] Cfr. Ac. STJ de 22-02-2011, processo n.º 31/05.4TBVVD-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, págs. 204 e 205.
[16] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 19-06-2007, processo n.º 1811/07, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Ferrer Correia, obra citada, pág. 205, seguindo de perto a exposição de Pinto Coelho.
[18] Cfr. Paulo Melero Sendin, in Letra de Câmbio, L.U. de Genebra, vol. II, Obrigações Cambiárias, págs. 783 e 784.
[19] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 24-01-2012, proferido no processo n.º 1379/09.4TBGRD-A.C1.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[20] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 15-04-2010, Revista n.º 2603/06.0TBMTJ-B.L1.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[21] Cfr. neste sentido, a propósito do pacto de preenchimento, Ac. STJ de 22-02-2011,  Processo n.º  31/05.4TBVVD-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.