Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2002/14.0TBLRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
RECLAMAÇÃO
RECURSO
Data do Acordão: 11/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA- LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ª SEC. COMÉRDIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONHECIMENTO
Legislação Nacional: ARTºS 193º E 199º, Nº 3 DO NCPC.
Sumário: I - A nulidade de conhecimento oficioso, cometida na 1ª Instância, que não esteja já sanada e que, não tendo aí sido reclamada, venha, em recurso que tenha por objecto uma outra questão, a ser detectada na Relação, deve, “ex officio”, ser conhecida por este Tribunal, se o mesmo tiver disponíveis todos os elementos necessários a tal, acrescendo a este caso de apreciação pela Relação, em primeira via, de nulidade processual cometida na 1ª Instância, o previsto no art.º 199º, nº 3, do CPC e que pressupõe que haja recurso interposto com objecto diverso daquele que integra a arguição da nulidade processual que estiver em causa.

II - No entanto, se a parte interessada arguir uma tal nulidade processual - arguição essa que deixa destituído de sentido trazer à colação a oficiosidade do conhecimento da nulidade - deve fazê-lo mediante reclamação a apresentar e a decidir pela 1ª Instância, podendo, subsequentemente, interpor recurso daquilo que aí se decidir, se reunidos os pressupostos processuais de admissibilidade dos recursos.

III - O Tribunal da Relação, embora na situação que se apontou por último, não lhe caiba julgar uma tal nulidade processual (não sanada), deve, perante a arguição, clara e tempestiva, da mesma, em recurso cujo objecto se resuma à sua apreciação, entender que se verifica erro no meio processual utilizado (artº 193º, nº 3, do NCPC) e, convolando tal recurso em reclamação dessa nulidade, determinar ao tribunal “a quo”, que, nada havendo que a isso obste, a aprecie.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I - A) - Nos autos de processo de insolvência instaurados, em 16/05/2014, pela C..., CRL, e a correr termos na 1ª Secção de Comércio (J1), da Instância Central da Comarca de Leiria, tendo, em 05/03/2015, sido proferida sentença que declarou a insolvência de F... e mulher, M..., vieram estes interpor recurso dessa decisão, recurso esse que foi admitido como Apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

A Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, em 01/09/2016, depois de admitir o recurso, dirigindo-se aos “Venerandos Desembargadores” pronunciou-se quanto à nulidade processual cuja verificação constituía o “thema decidendum” do recurso, terminando assim: “…entende-se, salvo melhor, não se verificar a arguida nulidade por falta de citação (Cf. Ac. Relação de Coimbra, de 10/01/2006, www.dgsi.pt e Ac. Tribunal Constitucional, proferido em 1/07/2008,no Processo nº 69/08 in www.pgdlisboa.pt.

Assim, não se vislumbra a arguida nulidade por falta de citação dos insolventes, mas Vªs Exªs., como sempre, MELHOR DECIDIRÃO.”.

B) - Os Apelantes, a findar a sua alegação recursiva, ofereceram as seguintes conclusões:

                   ...

                   Terminam requerendo que, dando-se provimento ao recurso, se declarasse a nulidade de todo o processado posterior à p.i., nos termos do artigo 195.º do CPC, decretando-se, consequentemente, a nulidade da sentença que declarou a insolvência dos recorrentes, e se ordenasse a citação destes para a acção.

A Apelada, na resposta que apresentou à alegação de recurso, pugnou pela improcedência deste.

II - A citação, como é sabido, é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se o chama ao processo para se defender, utilizando-se, ainda, para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa (cfr. artº 219º, nº 1, do novo Código de Processo Civil,[2] doravante NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se passará a identificar como CPC).

A nulidade decorrente da falta de citação do Réu (não vem agora ao caso a do Ministério Público), designadamente por se ter omitido o acto por completo, ou por se demonstrar que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe é imputável (artºs. 188º, nº 1, a) e e), do NCPC), integra nulidade processual de 1º grau, que enquanto não estiver sanada pode ser arguida em qualquer estado do processo e pode ser conhecida oficiosamente [artºs. 187º, a), 196º (1ª Parte), 198º, nº 2 e 200º, nº 1 (1ª parte), todos do NCPC].

Entende-se que o Réu que invoque a falta de citação deve fazê-lo reclamando essa nulidade processual perante o Tribunal em que a mesma foi cometida, não a podendo arguir, em primeira via, em recurso, quando o “thema decidendum” deste é, exclusivamente, constituído pela apreciação da existência dessa nulidade.

Efectivamente, a nulidade de conhecimento oficioso cometida na 1ª Instância, que não esteja já sanada e que, não tendo aí sido reclamada, venha, em recurso que tenha por objecto uma outra questão, a ser detectada na Relação, deve, “ex officio”, ser conhecida por este Tribunal, se o mesmo tiver disponíveis todos os elementos necessários a tal, acrescendo a este caso, de apreciação, pela Relação, em primeira via, de nulidade processual cometida na 1ª Instância, o previsto no art.º 199º, nº 3, do CPC e que pressupõe que haja recurso interposto com objecto diverso daquele que integra a arguição da nulidade processual que estiver em causa.[3]

No entanto, se a parte interessada arguir uma tal nulidade processual - arguição essa que deixa destituído de sentido trazer à colação a oficiosidade do conhecimento da nulidade - deve fazê-lo mediante reclamação a apresentar e a decidir pela 1ª Instância, podendo, subsequentemente, interpor recurso daquilo que aí se decidir, se reunidos os pressupostos processuais de admissibilidade dos recursos.

Efectivamente, a circunstância de a nulidade em causa ser de conhecimento oficioso não legitima a parte a, em vez de a arguir mediante reclamação a apreciar no Tribunal de 1ª Instância, onde alegadamente foi cometida, vir argui-la na Relação, em recurso cujo objecto se esgota na apreciação dessa nulidade.

Este entendimento - quando a questão da nulidade processual, v.g., a da falta de citação do Réu, esgota o objecto do recurso – afigura-se-nos, aliás, o único que compatibiliza a possibilidade de essa nulidade ser sempre apreciada - como o deve ser – sem sujeição aos pressupostos de admissibilidade dos recursos ordinários, v.g., ao pressuposto atinente ao valor da causa, do mesmo passo que é também a única que permite que a decisão que recaia sobre a arguição da falta de citação seja reapreciada em via de recurso.

Assim, ainda que integre matéria de conhecimento oficioso, não deve a Relação conhecer de uma nulidade processual alegadamente cometida na 1ª Instância e que, sendo expressamente suscitada pela parte interessada, em lugar de o ser mediante reclamação dirigida a esse Tribunal, é-o em recurso cujo respectivo objecto se esgota com a apreciação dessa nulidade.

Ora é este, precisamente, o caso em apreço, já que aquilo que a esta Relação é solicitado, exclusivamente, o julgamento da arguida falta de citação e não o desacerto de qualquer decisão judicial que haja apreciado essa nulidade processual, mais não sendo, a peticionada anulação da sentença, que mera consequência do pretendido deferimento dessa arguição, consequência essa que a 1ª Instância também tiraria no caso de julgar verificada a nulidade em questão.

Decidiu-se no Acórdão do STJ de 11/12/2005 (Revista nº 04S4452) - embora que versando as normas do pretérito CPC e sobre nulidade diversa daquela que resulta da falta de citação do Réu -, que a clara arguição de nulidade processual que haja sido impropriamente formalizada em alegação de recurso, «[…] deve ser aproveitada e entendida como requerimento dirigido ao juiz do processo onde foi cometida, de harmonia com o princípio da economia processual, de que se extrai uma regra de máximo aproveitamento dos actos processuais, que aflora, mormente, nos artigos 199.º, 201.º e 687.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil, e porque corresponde ao exercício de um direito da parte, artigos 203.º e 205.º do Código de Processo Civil e artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95.[…]».

Mais recentemente entendeu-se na Decisão Sumária da Relação de Évora de 12/09/2013 (2061/10.5TBEVR-D.E1)[4], à luz do artº 199º do pretérito CPC, em recurso que versava a falta de observância do princípio do contraditório (artº 3º, nº 3, do CPC): «[…] Deveria, por conseguinte, o ora recorrente, quando notificado do despacho em causa, porque se trata de uma nulidade processual, tê-la arguido perante o tribunal “a quo”, cabendo o recurso apenas do despacho que conhecesse dessa nulidade.

Não o tendo feito, estamos perante erro na forma de processo […].

Não pode, por isso, este tribunal conhecer directamente e em primeira mão da arguida nulidade […].

Estabelece o art. 199º que “o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível da forma estabelecida pela lei”.

Consagra este preceito, a par nomeadamente do art. 201º, os princípios da economia processual e do aproveitamento dos actos processuais.

Daquela norma resulta que, tendo a nulidade processual sido arguida nas alegações de recurso e não em sede de reclamação perante o tribunal “a quo”que pretensamente a cometeu, o tribunal superior não conhecerá do seu objecto, devendo todavia “essa arguição… ser aproveitada e entendida como requerimento dirigido ao juiz do processo onde foi cometida”[…], determinando-se a consequente remessa à 1ª instância para, sendo caso disso […], aí se conhecer da nulidade, cabendo então e eventualmente o recurso apenas dessa decisão […]».[5]

O NCPC, inovatoriamente, consagra no nº 3 do seu artº 193º: «O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.».

Assim, o Tribunal da Relação, perante a arguição, clara e tempestiva, de uma nulidade processual (não sanada), em recurso cujo objecto se resuma à sua apreciação, deve entender que se verifica erro no meio processual utilizado (artº 193º, nº 3, do NCPC) e, convolando tal recurso em reclamação dessa nulidade, determinar ao tribunal “a quo”, que, nada havendo que a isso obste, a aprecie.[6]

A propósito do aludido artº 193º, nº 3 embora versando o caso de nulidade de citação, tratado no Acórdão da Relação de Évora de 29/1/2015 (1816/14.6TBPTM-A.E2), o Professor Miguel Teixeira de Sousa escreveu, entre o mais, o seguinte[7]: «[…] Perante este preceito, a RE (como, aliás, o tribunal a quo, no momento de se pronunciar sobre a admissibilidade da apelação) poderia vir a tomar uma das seguintes decisões:

-- Considerar que, como o recurso foi (muito provavelmente) interposto depois de passados os 10 dias para a arguição da nulidade da citação após a notificação da sentença final (cf. art. 149.º, n.º 1, CPC), a convolação permitida pelo art. 193.º, n.º 3, CPC não era admissível; a decisão não seria indiscutível, mas poderia colher algum apoio legal;

-- Admitir, ainda assim (isto é, mesmo que o prazo para a arguição da nulidade da citação já se encontrasse esgotado), a aplicação do art. 193.º, n.º 3, CPC e aceitar a convolação do recurso interposto numa reclamação da nulidade da citação; esta opção, de acordo com uma certa perspectiva de prevalência do fundo (a invocação da nulidade) sobre a forma (o erro no meio processual), também era defensável.

 4. O caso concreto demonstra que há que estar atento à aplicação pela jurisprudência do disposto no art. 193.º, n.º 3, CPC, nomeadamente no que se refere à admissibilidade da convolação quando, no momento da realização do acto convolado, já não seria possível a prática do acto adequado. No fundo, há que escolher entre a preclusão e a convolação. Seria desejável que a jurisprudência adoptasse uma orientação não formalista e se orientasse no sentido da prevalência da convolação sobre a preclusão.[…]».

Ora, no presente caso, não havendo o escolho da intempestividade, atento o regime legal da invocação dessa nulidade principal, a falta de citação dos RR foi claramente arguida por estes no tribunal “a quo”, embora que na alegação de recurso que se dirigiu a esta Relação, em lugar de, como competia, ser reclamada em requerimento dirigido àquele tribunal.

Porém, em resultado do que acima se expôs, deve esta Relação, perante a clara arguição, por parte dos RR, da falta de citação dos mesmos, em recurso cujo objecto se resume à respectiva apreciação, entender, à luz do artº 193º, nº 3, do NCPC, que se verifica erro no meio processual utilizado, e, convolando tal recurso em reclamação dessa nulidade processual, determinar ao tribunal “a quo”, que, nada havendo que a isso obste, a aprecie.

Diga-se, por último, que a pronúncia do Tribunal “a quo”, posterior à admissão do presente recurso, relativamente à nulidade processual em causa, não constitui, como se afere pelos respectivos termos, uma decisão sobre a matéria, dirigida às partes, mas tão só o entendimento que sobre isso a Mma. Juiz quis revelar a este Tribunal de recurso, apreciação essa - que, obviamente, não constitui caso julgado sobre a invocada nulidade, nem preclude a apreciação desta,[8]feita à semelhança - dizemos nós -, do procedimento que se teria se estivesse em causa uma nulidade de sentença (artº 617º, nº 1, do NCPC), embora que este, aqui, em âmbito estranho às nulidades de que trata essa norma, não seja aplicável.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em não tomar conhecimento do objecto do presente recurso interposto por F... e mulher, M..., determinando, no entanto, por convolação do requerimento de interposição de recurso em reclamação para a 1ª Instância, da nulidade processual em causa, que nessa Instância, nada a isso obstando, se aprecie essa nulidade.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra,15/11/2016                              


(Luiz José Falcão de Magalhães)

                (António Domingos Pires Robalo)

            (Sílvia Maria Pereira Pires)


Segue sumário (da responsabilidade do relator):

I - A nulidade de conhecimento oficioso, cometida na 1ª Instância, que não esteja já sanada e que, não tendo aí sido reclamada, venha, em recurso que tenha por objecto uma outra questão, a ser detectada na Relação, deve, “ex officio”, ser conhecida por este Tribunal, se o mesmo tiver disponíveis todos os elementos necessários a tal, acrescendo a este caso, de apreciação, pela Relação, em primeira via, de nulidade processual cometida na 1ª Instância, o previsto no art.º 199º, nº 3, do CPC e que pressupõe que haja recurso interposto com objecto diverso daquele que integra a arguição da nulidade processual que estiver em causa.

II - No entanto, se a parte interessada arguir uma tal nulidade processual - arguição essa que deixa destituído de sentido trazer à colação a oficiosidade do conhecimento da nulidade - deve fazê-lo mediante reclamação a apresentar e a decidir pela 1ª Instância, podendo, subsequentemente, interpor recurso daquilo que aí se decidir, se reunidos os pressupostos processuais de admissibilidade dos recursos.

III - O Tribunal da Relação, embora na situação que se apontou por último, não lhe caiba julgar uma tal nulidade processual (não sanada), deve, perante a arguição, clara e tempestiva, da mesma, em recurso cujo objecto se resuma à sua apreciação, entender que se verifica erro no meio processual utilizado (artº 193º, nº 3, do NCPC) e, convolando tal recurso em reclamação dessa nulidade, determinar ao tribunal “a quo”, que, nada havendo que a isso obste, a aprecie.


***

[1] Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, evidentemente, em caso de transcrição, a grafia do texto original.

[2] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e que entrou em vigor em 01/09/2013.

[3] Referiu-se no Acórdão do STJ de 6/7/2005 (Revista nº 04B1171) embora à luz da norma do pretérito CPC, correspondente ao actual nº 3 do artº 199º do NCPC, que “…o n.º 3 do artigo 205 não faculta propriamente à parte tornar a nulidade objecto de recurso, mas tão-só, excepcionalmente, argui-la perante o tribunal ad quem no caso de o processo, antes de findar o prazo de arguição, ter sido expedido em recurso, ou seja, quando já não é possível assegurar o seu conhecimento pelo tribunal mais vocacionado.

[4] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase”.

[5] Cfr. tb. Acórdão da Relação do Porto, de 01/03/2010, consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.

[6] Cfr. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume 1, Coimbra, Almedina, 2014, 2ª edição, em anotação ao artº 193 (págs 204 e 205).

[7] Blog do IPPC - Instituto Português de Processo Civil – em 08/02/2015, consultável em “https://blogippc.blogspot.pt/2015/02/nulidade-da-citacao-convolacao-de-meio.html”.

[8] Preclusão esta que também não ocorre em virtude da prolação da sentença, pois que nela não existe pronúncia quanto a essa nulidade (cfr. artº 613º, nºs 1 e 2, do NCPC).