Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2265/10.0TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: BOA-FÉ
CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÕES
Data do Acordão: 06/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 406º E 762º DO C. CIV.
Sumário: I – O princípio da boa fé no cumprimento da obrigação, consagrado no nº 2 do artº 762º do Cód. Civil, impõe que tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade.

II – Não respeita esse princípio o mutuário que tenta aproveitar um erro do mutuante com influência no cálculo do valor das prestações mensais acordadas para, findo o prazo estipulado, se eximir ao pagamento do remanescente de capital e juros que, devido ao lapso, não entrou naquelas prestações.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. RELATÓRIO

            H…, divorciado, residente na Rua …, intentou acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra o Banco …, S.A., com sede na …, pedindo a condenação do R. a:

            a) Reconhecer que o A. cumpriu pontualmente o contrato de empréstimo titulado pela escritura outorgada em 30/09/1988 no Cartório Notarial de Alcobaça, exarada a fls. …, nada mais devendo à R.;

            b) Fornecer imediatamente ao A. a certidão para cancelamento do registo da hipoteca na Conservatória;

            c) Pagar ao A., a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

            Alegou para tanto o A., em síntese, que, como mutuário, celebrou com o R., como mutuante, em 30/09/1988, um contrato de empréstimo para aquisição de casa para habitação permanente, tendo sido acordado pelas partes que a quantia mutuada, de esc. 2.390.000$00, correspondente, em moeda actual, a € 11.950,00, seria paga no prazo de 20 (vinte) anos; que todas as prestações acordadas foram rigorosamente satisfeitas nas datas, montantes e pelo modo estipulados, encontrando-se integralmente paga a dívida, que fora garantida por hipoteca sobre o imóvel adquirido; e que o R., não obstante as insistências do A., não emitiu a pertinente certidão de distrate, necessária ao cancelamento da hipoteca, assim lhe causando dano não patrimonial relativamente ao qual pretende ser indemnizado.

            O R. contestou por impugnação e deduziu reconvenção.

Impugnando, alegou que, por lapso dos seus serviços, de que se penitencia, aquando do lançamento informático do empréstimo celebrado com o A., ao invés de ter sido feito o carregamento do prazo por 20 anos, ou seja, 240 meses, foi feito por 25 anos, isto é, por 300 meses. E que, assim, tendo os valores das prestações que o A. pagou ao longo dos 20 anos em que o crédito vigorou sido calculados como se o mesmo devesse durar 25 anos, não está, contrariamente ao que o A. sustenta, integralmente liquidada a dívida garantida pela hipoteca.

Reconvindo, o R. pediu a condenação do A. a pagar-lhe a quantia relativa ao valor remanescente ainda em dívida, após a recontagem do empréstimo pelo prazo de 20 anos, calculada em € 1.929,42.

O A. respondeu, mantendo tudo quanto alegara e pedira na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção.

Satisfeito pelo A. o convite que lhe foi feito para aperfeiçoar, relativamente ao alegado dano não patrimonial, a petição inicial e decidido o incidente do valor da causa que o R. oportunamente suscitara, foi a acção objecto dos pertinentes saneamento, condensação e instrução, após o que se realizou a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 109 e 110, respondendo aos quesitos da base instrutória e, assim, decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 113 a 119, julgando improcedente a acção e procedente a reconvenção e, consequentemente, absolvendo o R. do pedido formulado pelo A. na petição inicial e condenando este no pedido formulado por aquela na reconvenção.

Inconformado, o A. recorreu, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

A R. respondeu defendendo a manutenção do julgado.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

            Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se foi ou não correctamente aplicado à factualidade provada o pertinente direito.

            2. FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. De facto

            Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte:

...

            2.2. De direito

            Não vem posto em causa que, tal como se entendeu na sentença sob recurso, entre o A. e o R. foi celebrado um contrato de mútuo válido e eficaz.

            Tendo o R. disponibilizado ao A., que a utilizou, a quantia emprestada, incumbia a este, nos termos dos artºs 406º, nº 1, 1142º e 1145º, nº 1 do Cód. Civil[1], restituir aquela quantia e pagar os juros estipulados, no prazo e pela forma acordados.

            Como se tratava de mútuo oneroso, o prazo estabelecido presume-se, face ao disposto no artº 1147º, estipulado a favor de ambas as partes, podendo, contudo, o mutuário antecipar o pagamento, desde que satisfizesse os juros por inteiro.

            Por lapso reconhecido e confessado do R., embora o prazo acordado para a amortização tivesse sido de 20 anos (240 prestações), foi feito, aquando do lançamento informático do empréstimo, o carregamento do prazo por 25 anos (300 prestações).

            Esse erro fez com que, findo o prazo de 20 anos, o A. tivesse, feitas as contas ao capital e aos juros, pago menos € 1.929,42 do que teria pago se o lapso não tivesse ocorrido.

            O A. entende que não tem a obrigação de suportar essa diferença.

            O R., assumindo que o erro foi seu, defende contudo, no que lhe foi reconhecida razão pela 1ª instância, que se mantém a obrigação de o A. pagar a importância em falta.

            Quid juris?

            Nos termos do artº 406º, nº 1, o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.

            “Afirmando que o contrato deve ser pontualmente cumprido, a lei quer dizer que todas as cláusulas contratuais devem ser observadas, que o contrato deve ser cumprido ponto por ponto, e não apenas que ele deve executado no prazo fixado, como poderia depreender-se do sentido usual do vocábulo pontualmente”[2].

            Tal significa que, no caso, sem prejuízo de o prazo dever ser observado, devem também ser respeitadas as demais cláusulas, nomeadamente as respeitantes à amortização do capital mutuado e ao pagamento dos juros convencionados.

            E se, findo o prazo estipulado, se conclui que, por lapso da R. que influiu no cálculo do valor das prestações, falta ainda ao A. pagar a quantia de € 1.929,42, tal não pode implicar a extinção da obrigação de pagamento desse montante.

            Ou seja, nada justifica que, devendo o contrato ser cumprido ponto por ponto, o ponto relativo ao prazo se sobreponha ao ponto relativo à restituição da quantia mutuada e pagamento dos juros convencionados.

            Até porque, presumindo-se, no caso, como foi já dito, o prazo estipulado a favor de ambas as partes, o pagamento por parte do A. da diferença em dívida após o termo do prazo não o prejudica. Isto é, se o lapso não tivesse ocorrido e o R. tivesse oportunamente carregado no sistema informático o prazo devido (20 anos – 240 meses), o A., ao liquidar a 240ª prestação, teria, na totalidade, pago a importância que efectivamente pagou, mais a quantia de € 1.929,42. A exigência de pagamento dessa quantia, cujo cálculo não vem questionado, não prejudica o A. que, bem vistas as coisas, mantendo-se a decisão recorrida, sempre acabará por pagá-la mais tarde do que o contratualmente devido.

            Esta solução impõe-se até por força do princípio da boa fé, que as partes devem observar não apenas nos preliminares e na formação do contrato (artº 227º, nº 1), mas também no cumprimento da obrigação (artº 762º, nº 2).

            “À ideia de boa fé estão ligados os deveres de fidelidade, lealdade e honestidade e o direito de confiança na realização e fiel cumprimento dos negócios jurídicos” [3]. Ou seja, a expressão boa fé é aqui usada com um sentido objectivo e ético.

            Como ensina o Prof. Almeida Costa[4], de acordo com a exigência legal de boa fé das partes, tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade.

            O dever de boa fé no cumprimento da obrigação impõe que “o devedor não pode cingir-se a uma observância puramente literal das cláusulas do contrato, se a obrigação tiver natureza contratual. Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou condensada, interessa a colaboração leal na satisfação da necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele se deve ater, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional”[5].

            No caso dos autos impunha a boa fé ao A. que, constatado o lapso do R., se dispusesse, honesta e lealmente, findo o prazo contratado de 20 anos (240 meses), a suportar a diferença entre o que efectivamente pagou e o que, sem aquele lapso, deveria ter pago. Ou, dito de outro modo, o aproveitamento de um lapso da parte contrária para deixar de pagar uma quantia efectivamente devida não é compatível com o princípio da boa fé com que as partes devem agir no cumprimento da obrigação.

            Soçobram, portanto, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que importa a improcedência da apelação e a manutenção da sentença recorrida.

            Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC):

            I – O princípio da boa fé no cumprimento da obrigação, consagrado no nº 2 do artº 762º do Cód. Civil, impõe que tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade.

            II – Não respeita esse princípio o mutuário que tenta aproveitar um erro do mutuante com influência no cálculo do valor das prestações mensais acordadas para, findo o prazo estipulado, se eximir ao pagamento do remanescente de capital e juros que, devido ao lapso, não entrou naquelas prestações.

            3. DECISÃO

            Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

            As custas são a cargo do recorrente.

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, págs. 354/355.
[3] P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, pág. 2.
[4] Direito das Obrigações, 3ª edição, pág. 715.
[5] Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª edição, pág. 11.