Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARTUR DIAS | ||
Descritores: | BOA-FÉ CUMPRIMENTO OBRIGAÇÕES | ||
Data do Acordão: | 06/26/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 2º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 406º E 762º DO C. CIV. | ||
Sumário: | I – O princípio da boa fé no cumprimento da obrigação, consagrado no nº 2 do artº 762º do Cód. Civil, impõe que tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade. II – Não respeita esse princípio o mutuário que tenta aproveitar um erro do mutuante com influência no cálculo do valor das prestações mensais acordadas para, findo o prazo estipulado, se eximir ao pagamento do remanescente de capital e juros que, devido ao lapso, não entrou naquelas prestações. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. RELATÓRIO H…, divorciado, residente na Rua …, intentou acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra o Banco …, S.A., com sede na …, pedindo a condenação do R. a: a) Reconhecer que o A. cumpriu pontualmente o contrato de empréstimo titulado pela escritura outorgada em 30/09/1988 no Cartório Notarial de Alcobaça, exarada a fls. …, nada mais devendo à R.; b) Fornecer imediatamente ao A. a certidão para cancelamento do registo da hipoteca na Conservatória; c) Pagar ao A., a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros). Alegou para tanto o A., em síntese, que, como mutuário, celebrou com o R., como mutuante, em 30/09/1988, um contrato de empréstimo para aquisição de casa para habitação permanente, tendo sido acordado pelas partes que a quantia mutuada, de esc. 2.390.000$00, correspondente, em moeda actual, a € 11.950,00, seria paga no prazo de 20 (vinte) anos; que todas as prestações acordadas foram rigorosamente satisfeitas nas datas, montantes e pelo modo estipulados, encontrando-se integralmente paga a dívida, que fora garantida por hipoteca sobre o imóvel adquirido; e que o R., não obstante as insistências do A., não emitiu a pertinente certidão de distrate, necessária ao cancelamento da hipoteca, assim lhe causando dano não patrimonial relativamente ao qual pretende ser indemnizado. O R. contestou por impugnação e deduziu reconvenção. Impugnando, alegou que, por lapso dos seus serviços, de que se penitencia, aquando do lançamento informático do empréstimo celebrado com o A., ao invés de ter sido feito o carregamento do prazo por 20 anos, ou seja, 240 meses, foi feito por 25 anos, isto é, por 300 meses. E que, assim, tendo os valores das prestações que o A. pagou ao longo dos 20 anos em que o crédito vigorou sido calculados como se o mesmo devesse durar 25 anos, não está, contrariamente ao que o A. sustenta, integralmente liquidada a dívida garantida pela hipoteca. Reconvindo, o R. pediu a condenação do A. a pagar-lhe a quantia relativa ao valor remanescente ainda em dívida, após a recontagem do empréstimo pelo prazo de 20 anos, calculada em € 1.929,42. O A. respondeu, mantendo tudo quanto alegara e pedira na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção. Satisfeito pelo A. o convite que lhe foi feito para aperfeiçoar, relativamente ao alegado dano não patrimonial, a petição inicial e decidido o incidente do valor da causa que o R. oportunamente suscitara, foi a acção objecto dos pertinentes saneamento, condensação e instrução, após o que se realizou a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 109 e 110, respondendo aos quesitos da base instrutória e, assim, decidindo a matéria de facto controvertida. Foi depois emitida a sentença de fls. 113 a 119, julgando improcedente a acção e procedente a reconvenção e, consequentemente, absolvendo o R. do pedido formulado pelo A. na petição inicial e condenando este no pedido formulado por aquela na reconvenção. Inconformado, o A. recorreu, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões: … A R. respondeu defendendo a manutenção do julgado. O recurso foi admitido. Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.
Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se foi ou não correctamente aplicado à factualidade provada o pertinente direito. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. De facto Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte: ... 2.2. De direito Não vem posto em causa que, tal como se entendeu na sentença sob recurso, entre o A. e o R. foi celebrado um contrato de mútuo válido e eficaz. Tendo o R. disponibilizado ao A., que a utilizou, a quantia emprestada, incumbia a este, nos termos dos artºs 406º, nº 1, 1142º e 1145º, nº 1 do Cód. Civil[1], restituir aquela quantia e pagar os juros estipulados, no prazo e pela forma acordados. Como se tratava de mútuo oneroso, o prazo estabelecido presume-se, face ao disposto no artº 1147º, estipulado a favor de ambas as partes, podendo, contudo, o mutuário antecipar o pagamento, desde que satisfizesse os juros por inteiro. Por lapso reconhecido e confessado do R., embora o prazo acordado para a amortização tivesse sido de 20 anos (240 prestações), foi feito, aquando do lançamento informático do empréstimo, o carregamento do prazo por 25 anos (300 prestações). Esse erro fez com que, findo o prazo de 20 anos, o A. tivesse, feitas as contas ao capital e aos juros, pago menos € 1.929,42 do que teria pago se o lapso não tivesse ocorrido. O A. entende que não tem a obrigação de suportar essa diferença. O R., assumindo que o erro foi seu, defende contudo, no que lhe foi reconhecida razão pela 1ª instância, que se mantém a obrigação de o A. pagar a importância em falta. Quid juris? Nos termos do artº 406º, nº 1, o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. “Afirmando que o contrato deve ser pontualmente cumprido, a lei quer dizer que todas as cláusulas contratuais devem ser observadas, que o contrato deve ser cumprido ponto por ponto, e não apenas que ele deve executado no prazo fixado, como poderia depreender-se do sentido usual do vocábulo pontualmente”[2]. Tal significa que, no caso, sem prejuízo de o prazo dever ser observado, devem também ser respeitadas as demais cláusulas, nomeadamente as respeitantes à amortização do capital mutuado e ao pagamento dos juros convencionados. E se, findo o prazo estipulado, se conclui que, por lapso da R. que influiu no cálculo do valor das prestações, falta ainda ao A. pagar a quantia de € 1.929,42, tal não pode implicar a extinção da obrigação de pagamento desse montante. Ou seja, nada justifica que, devendo o contrato ser cumprido ponto por ponto, o ponto relativo ao prazo se sobreponha ao ponto relativo à restituição da quantia mutuada e pagamento dos juros convencionados. Até porque, presumindo-se, no caso, como foi já dito, o prazo estipulado a favor de ambas as partes, o pagamento por parte do A. da diferença em dívida após o termo do prazo não o prejudica. Isto é, se o lapso não tivesse ocorrido e o R. tivesse oportunamente carregado no sistema informático o prazo devido (20 anos – 240 meses), o A., ao liquidar a 240ª prestação, teria, na totalidade, pago a importância que efectivamente pagou, mais a quantia de € 1.929,42. A exigência de pagamento dessa quantia, cujo cálculo não vem questionado, não prejudica o A. que, bem vistas as coisas, mantendo-se a decisão recorrida, sempre acabará por pagá-la mais tarde do que o contratualmente devido. Esta solução impõe-se até por força do princípio da boa fé, que as partes devem observar não apenas nos preliminares e na formação do contrato (artº 227º, nº 1), mas também no cumprimento da obrigação (artº 762º, nº 2). “À ideia de boa fé estão ligados os deveres de fidelidade, lealdade e honestidade e o direito de confiança na realização e fiel cumprimento dos negócios jurídicos” [3]. Ou seja, a expressão boa fé é aqui usada com um sentido objectivo e ético. Como ensina o Prof. Almeida Costa[4], de acordo com a exigência legal de boa fé das partes, tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade. O dever de boa fé no cumprimento da obrigação impõe que “o devedor não pode cingir-se a uma observância puramente literal das cláusulas do contrato, se a obrigação tiver natureza contratual. Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou condensada, interessa a colaboração leal na satisfação da necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele se deve ater, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional”[5]. No caso dos autos impunha a boa fé ao A. que, constatado o lapso do R., se dispusesse, honesta e lealmente, findo o prazo contratado de 20 anos (240 meses), a suportar a diferença entre o que efectivamente pagou e o que, sem aquele lapso, deveria ter pago. Ou, dito de outro modo, o aproveitamento de um lapso da parte contrária para deixar de pagar uma quantia efectivamente devida não é compatível com o princípio da boa fé com que as partes devem agir no cumprimento da obrigação.
Soçobram, portanto, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que importa a improcedência da apelação e a manutenção da sentença recorrida.
Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC): I – O princípio da boa fé no cumprimento da obrigação, consagrado no nº 2 do artº 762º do Cód. Civil, impõe que tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade. II – Não respeita esse princípio o mutuário que tenta aproveitar um erro do mutuante com influência no cálculo do valor das prestações mensais acordadas para, findo o prazo estipulado, se eximir ao pagamento do remanescente de capital e juros que, devido ao lapso, não entrou naquelas prestações. 3. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida. As custas são a cargo do recorrente.
Artur Dias (Relator) Jaime Ferreira Jorge Arcanjo
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