Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/10.6GCPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREDERICO CEBOLA
Descritores: ALCOOLEMIA
ERRO
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: PORTARIA N.º 1556/2007, DE 10 DE DEZEMBRO
Sumário: Ao definir margens de erros máximos admissíveis para a validação/certificação de um instrumento de medição como um alcoolímetro, capaz de produzir medições susceptíveis de serem utilizadas num processo judicial, como prova efectiva da presença de uma determinada concentração de álcool etílico no sangue do indivíduo submetido a exame, o legislador, na Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro, não pretendeu, contudo, lançar sobre o resultado de tais medições qualquer anátema, susceptível de criar qualquer dúvida, mas antes visou garantir que, mantendo-se os eventuais erros de medição dentro das margens de erro máximo legalmente previstas, os resultados de quaisquer medições por eles realizadas devem ser vistos como credíveis.
As condições de funcionamento do aparelho utilizado para pesquisa e quantificação de álcool no sangue do arguido, nestas circunstâncias e sem que algum elemento de prova tivesse sido carreado para os autos, de molde a infirmá-las, têm de considerar-se como obedecendo aos requisitos legais definidos para a sua aprovação e verificações posteriores.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
Nos autos de processo sumário com o n.º 26/10.6GCPMS do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido CM..., melhor identificado a fls. 35, imputando-lhe um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
Realizado o julgamento e por sentença proferida em 24/02/2010, decidiu-se condená-lo pela prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 292.º, n.º1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à razão diária de 5,00 € (cinco euros), perfazendo a quantia de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:
«l- Na verificação da taxa de álcool no sangue através de analisador quantitativo devidamente aprovado não tem que entrar-se em linha de conta com qualquer margem de erro ou EMA, os quais são conceitos próprios da ciência metrológica.
2- Nem é de aplicar o princípio in dubio pro reo para se proceder a correcções da
taxa de álcool no sangue apurada pelo alcoolímetro.
3- Atenta ausência de exame de contra-prova, há que dar como provado o
valor constante do talão do alcoolímetro de 1,81 /l.
4- Nesta parte violou a douta Sentença o disposto no artigo 203°, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 1º, nº 2, 6º, nº 2 e 8º, nº 1, alíneas a) e b), todos do D.L. nº 291/190, de 20 de Setembro, o Preâmbulo e os artigos 4º e 6º, alíneas a), b) e c), todos da Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro e do Despacho no 8036/2003, publicado no Diário da República de 28 de Abril de 2003, pág. 6454, na IIa Série do Diário da República.
5- Apontados os critérios gerais de determinação da medida concreta da pena e,
sumariamente, as especificidades do caso concreto, consideramos que a pena de multa aplicada não adequa a pena à culpa, dentro da medida da necessidade de tutela do bem jurídico, comprometendo as expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada, devendo-se ter condenado o arguido na pena de 65 dias de multa
6- Ao aplicar-se pena de multa em 50 dias, foi violado o disposto nos art.ºs 40º e
47º, 70º e 71º, todos do Código Penal.
7- Na pena de inibição dever-se-á ter em conta a taxa de alcoolémia.
8- É entendimento do Ministério Público, estando o arguido em notório estado
de embriaguez e impedindo-o de efectuar uma condução em condições de
destreza e segurança, sem descurar as necessidades de prevenção geral, julga-se adequada a agravação desta pena que deve ser fixada em 5 meses.
9- Nesta parte, foram violados os arts.º 40º, 69º, 70º e 71º, todos do Código Penal.





Pelo exposto, julgando-se o presente recurso procedente, deve revogar-se a douta sentença por outra que proceda à modificação do facto indicado na decisão recorrida sob o nº 2, nos seguintes termos:


“O arguido, fiscalizado por elementos da G.N.R. e submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, revelou uma taxa de álcool no sangue de 1,81 g/1.”


e que condene o arguido na pena de 65 dias de multa e na sanção acessória de inibição de condução pelo período de 5 meses»

O arguido não apresentou resposta.

O recurso foi admitido por despacho de fls.122.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, com os fundamentos de fls. 128/132 e no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Efectuado o exame preliminar determinou-se que, ao abrigo do disposto no art.º 419.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Conforme pacificamente é entendido, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as de nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) e dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – v. art.º 412.º, n.º 1, do mesmo Código, e a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, acórdão do STJ de 13.05.1998, em BMJ n.º 477, pág. 263; acórdão do STJ de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242; acórdão do STJ de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; e Simas Santos/ Leal-Henriques, in “Recurso em Processo Penal”, a pág. 48.
Tendo presente as conclusões do recorrente, as questões a apreciar por este Tribunal são as seguintes:
- Saber se há que fazer descontos quanto a eventuais margens de erro do alcoolímetro.
- Questiona o recorrente a medida da pena de multa aplicada.
- Questiona ainda a medida da pena acessória.

A primeira instância deu como provados os seguintes factos:
«1. No dia 16 de Fevereiro de 2010, pelas 03h24m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, na Rua … K..., área desta comarca.
2. Tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução, apresentando
durante a mesma uma taxa de álcool no sangue não inferior a 1,67 g/l.
3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as bebidas álcoólicas que havia ingerido lhe determinavam uma taxa de álcool no sangue
superior à legalmente permitida.
4. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado.
9. O arguido foi já condenado pela prática no ano de 1996 de um crime de injúrias e pela prática no ano de 2006 de um crime de furto simples.
10. O arguido vive sozinho.
11. O arguido encontra-se desempregado e recebe o rendimento mínimo no valor de € 187,00.
12. A casa onde vive é da sua mãe
13. Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vem acusado.»

Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou expresso:
«A convicção do Tribunal formou-se com base nas declarações confessórias do arguido, quanto aos factos que lhe são imputados e nas suas declarações quanto à sua situação pessoal, profissional e familiar.
Ajudou ainda a formar a convicção do Tribunal o Certificado de Registo Criminal do arguido de fls. 20 a 27, bem assim o talão de alcoolímetro junto a fls. 4, resultante de teste de medição de álcool no sangue por via de ar expirado.
Foi no entanto deduzido o valor de erro máximo admissível de tal aparelho que constam da Portaria n.º 1557/2007, de 10/12. De facto, é do conhecimento geral que os alcoolímetros, como qualquer aparelho de medição, não têm uma fiabilidade absoluta, não só devido ao que conta da Portaria em referência mas também porque muitas vezes quando é feita contra-prova por teste de ar expirado no mesmo aparelho, as medições apresentam por vezes valores díspares, mesmo quando a contra-prova é realizada momentos após o teste inicial. Temos também como dado adquirido que o resultado do aparelho alcoolímetro não constitui prova pericial, nos termos em que a define o artigo 151º, do CPP, não estando portanto sujeito à regra contida no artigo 163º, n.º 1, do mesmo diploma, antes estando sujeito à livre apreciação do julgador.
Assim sendo, o princípio in dubio pro reo leva a que não se possa dar como provada a taxa de álcool acusada no aparelho de medição, mas apenas essa taxa de álcool reduzida da taxa de erro máximo admissível do alcoolímetro.»

Analisando.
Embora restringindo-se o recurso a matéria de direito, sempre deverá oficiosamente conhecer-se dos vícios a que se alude no mencionado art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, por um lado, apenas em face dos elementos endógenos à própria decisão e, por outro lado, perante as máximas da experiência que todo o homem de formação média reconhece.
Neste âmbito, há que ter presente a problemática que a factualidade dada por provada coloca e que se prende com a virtualidade legal do tribunal ter procedido a uma dedução da taxa revelada no aparelho após a sujeição do arguido ao exame de pesquisa de álcool no sangue.
Na motivação fáctica operada, a sentença reportou-se ao talão de fls.4, proveniente do aparelho marca Drager, modelo 7110 MKIII P, nº série ARAA-0062 e à margem de erro máxima legalmente admitida a que se refere a Portaria nº 1557/2007, além de se estribar, em resumo no princípio “in dubio pro reo”.
Ora, sendo a condução de veículo em estado de embriaguez definida criminalmente no art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, por referência a determinada quantificação de taxa de álcool no sangue, exige-se, do ponto de vista objectivo, a comprovação dessa taxa de alcoolemia num sentido preciso, afastando-se de conceitos mais ou menos indeterminados de tipo valorativo.
Assim, nos autos, o arguido, sujeito a fiscalização e quando conduzia veículo automóvel na via pública, submetido a exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho indicado, acusou a taxa de 1,81 g/l, conforme era descrito no auto de notícia de fls. 3 e requerimento acusatório de fls. 14.
A questão que aqui se coloca é saber se há que fazer descontos quanto a eventuais margens de erro do alcoolímetro.
É nosso entendimento que qualquer correcção que incida no valor da taxa devidamente apurada não se configura como justificada, porque consubstanciando não mais do que solução apoiada em admissibilidade genérica de margens de erro e atinentes à aprovação e verificação dos aparelhos, cujo conhecimento técnico inerente se presume subtraído à livre apreciação do julgador.
Um breve percurso histórico sobre as regras de pesquisa de álcool no sangue apresenta-se útil à adequada interpretação da matéria sob censura.
Já antes da entrada em vigor do actual art.º 292.º do Código Penal, a condução sob influência do álcool era criminalmente punida por via do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14/04, nos termos do seu art.º 2.º e, por via do seu art.º 6.º, era prevista a fiscalização da condução sob a influência do álcool, aludindo-se ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, por material adequado, remetendo, o seu art.º 20.º, para a necessária regulamentação no que dizia respeito ao tipo de material e aos métodos a utilizar para efeitos da determinação do doseamento do álcool no sangue.
Dando expressão a essa necessidade de regulamentação, veio o Decreto Regulamentar n.º 12/90, de 14/05, prever como era feita a detecção da presença de álcool no sangue (por meio de analisadores qualitativos ou quantitativos de ar expirado) e devendo os aparelhos utilizados para tal fim ser aprovados pela Direcção-Geral de Viação, nos termos do art.º 64.º, n.º 5, do Código da Estrada então vigente.
Veio depois a Portaria n.º 748/94, de 13/08, aprovar o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, designadamente prevendo que estes obedeceriam às qualidades e características metrológicas e satisfazendo os ensaios estabelecidos na norma NF X 20-701 (v. n.º 4 do seu Anexo), decorrente da adesão de Portugal à Convenção que instituiu a Organização Internacional de Metrologia Legal, assinada em Paris em 12/10/1955, pelo Decreto do Governo n.º 34/84, de 11/07, publicado no D.R. n.º 159/84.
Entretanto, na sequência da alteração do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3/05, com entrada em vigor em 01/10/1994 (v. o seu art.º 8.º), no seu art.º 159.º, estipulou-se que O procedimento de fiscalização da condução sob a influência do álcool (…) é objecto de legislação especial, depois alterado por via do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, que, no essencial, previu a fiscalização por exame de álcool no ar expirado, admitindo contraprova por aparelho aprovado especificamente para o efeito, ou por análise de sangue.
Veio, finalmente, o Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30/10, que revogou expressamente o Decreto Regulamentar n.º 12/90, regulamentar os procedimentos para a fiscalização da condução sob a influência do álcool, dele resultando que a determinação quantitativa da taxa de álcool no sangue apenas pode fazer-se por um de dois métodos – método do ar expirado, mediante a utilização dos aparelhos aprovados pelo IPQ e que obedeçam às características que foram definidas pela Portaria n.º 1006/98, de 30/11, e método de análise toxicológica de sangue, efectuada com recurso a procedimentos analíticos que incluem a cromatografia em fase gasosa (v. designadamente os seus art.ºs 1.º, 10.º e 12.º).
As sucessivas alterações do Código da Estrada, por efeito do Decreto-Lei n.º 162/2001, de 22/05, do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28/09, e do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23/02, não contenderam com o regime que ficou definido, podendo, então, descrever-se o mesmo como o regulado pelo Decreto Regulamentar n.º 24/98 e pela Portaria n.º 1006/98, entretanto revogados, respectivamente, pelos actuais diplomas – Lei n.º 18/2007, de 17/05, e Portaria n.º 902-B/2007, de 13/08.
Por seu lado, a actual Portaria n.º 1556/2007 não veio alterar, em nada, os procedimentos de aprovação e verificações dos aparelhos, sendo que expressamente revogou aquela Portaria n.º 748/94 e previu, também, no seu art.º 8.º, os erros máximos admissíveis.
É indubitável que o único modo possível de recolha de prova passa pela existência de aparelhos capazes de detectar o álcool existente no sangue e que o legislador não pode ter esquecido que os alcoolímetros, como instrumentos, são efectivamente falíveis, admitindo, por isso, a existência de erros de leitura.
Daqui decorre, o cuidado posto nas exigências de que os mesmos sejam aferidos com regularidade, que reúnam determinadas características (previstas na Portaria nº.902-B/2007), que sejam oficialmente aprovados e que os testes sejam efectuados em locais com determinada temperatura e humidade, a tudo acrescendo a possibilidade do examinando requerer a contraprova.
A definição de erros máximos admissíveis visa designar, tão-só, barreiras limite dentro das quais as indicações dos instrumentos de medição, obtidas nas condições estipuladas de funcionamento, são correctas. Ou seja, um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais de funcionamento, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais.
Tais limites, para mais e para menos, não representam valores reais de erro numa qualquer medição concreta, mas um intervalo dentro do qual, com toda a certeza, o valor da indicação se encontrará.
É reconhecido que constitui preocupação da metrologia legal certificar-se que os instrumentos de medição não ultrapassam o que tecnicamente se designa por erro máximo admissível: erro permitido por ser impossível a exactidão absoluta e se entender que essa margem de tolerância não prejudica o cidadão objecto do controlo métrico.
Ao definir margens de erro máximo admissíveis para a validação/certificação de um instrumento de medição como um alcoolímetro, capaz de produzir medições susceptíveis de serem utilizadas num processo judicial, como prova efectiva da presença de uma determinada concentração de álcool etílico no sangue do indivíduo submetido a exame, o legislador não pretendeu, contudo, lançar sobre o resultado de tais medições qualquer anátema, susceptível de criar qualquer dúvida, mas antes visou garantir que, mantendo-se os eventuais erros de medição dentro das margens de erro máximo legalmente previstas, os resultados de quaisquer medições por eles realizadas devem ser vistos como credíveis – a este propósito, v. Maria do Céu Ferreira/António Cruz, Controlo Metrológico de Alcoolímetros no IPQ, comunicação ao 2.º Encontro Nacional da Sociedade de Metrologia, disponível em http://www.spmet.pt/2encontro.
As condições de funcionamento do aparelho utilizado para pesquisa e quantificação de álcool no sangue do arguido, nestas circunstâncias e sem que algum elemento de prova tivesse sido carreado para os autos e de molde a infirmá-las, têm de considerar-se como obedecendo aos requisitos legais definidos para a sua aprovação e verificações posteriores.
Deste modo, contrariamente ao subjacente entendimento sufragado na decisão sob censura, à aplicação de margem de erro sempre seria assacado o subjectivismo e, até, a maior incerteza, que daí derivaria, ao remeter directamente para critério que não é aceitável e que cria insegurança na ordem jurídica.
Se é certo que os alcoolímetros não estão isentos de erros quanto às medições resultantes e assim se explicando a preocupação legislativa em os ter regulamentado, também não pode ser posto de parte que são objecto de aprovação e verificações, nas quais esses erros são atendíveis, de forma a que se possa concluir que sirvam ou continuem a servir para os legais efeitos, sob pena de o julgador se substituir, sem razão, à entidade credenciada para efectuar essas operações.
A Portaria n.º 1556/2007 tem o seu campo de aplicação restrito ao controlo metrológico dos alcoolímetros e, como tal, aos seus requisitos de aprovação e verificação periódicas, estes, sim, em sintonia com as recomendações da Organização Internacional de Metrologia Legal (como consta do seu preâmbulo), e não versando em qualquer outra matéria.
Não mais teve em vista do que regulamentar o controlo metrológico dos alcoolímetros, matéria eminentemente técnica e tão-só relevante para efeitos da aprovação e da verificação periódicas a que estão sujeitos esses aparelhos.
Não faz, pois, sentido a defesa do princípio “in dubio pro reo”, na medida em que não resulta da motivação da decisão de facto que alguma dúvida séria e relevante, quanto ao resultado fornecido pelo alcoolímetro e quanto à sua utilização de acordo com as legais exigências de aprovação e/ou verificação a que fora o mesmo submetido (art.ºs 153.º, n.º 1, do Código da Estrada e 10.º da Portaria n.º 1556/2007), tivesse sido aos autos trazida.
Inexiste, assim, fundamento para que o tribunal recorrido, mormente não tendo sido colocado em crise o funcionamento do alcoolímetro com que foi medida a taxa de alcoolemia no sangue do arguido, tivesse procedido a correcção na taxa apurada pelo mesmo.
Na verdade, se alguma dúvida se colocava ao Exmo. Juiz no tocante à taxa registada, então deveria ter cuidado de proceder, pelo menos, às diligências que entendesse convenientes para o apuramento da verdade e, não optar, como fez, por oficiosamente proceder a alteração daquela, sem suporte na lógica e nas regras da experiência a que estava vinculado por força do art.º 127.º do Código de Processo Penal.
Deste modo, não se encontra fundamento para que se tenha dado como provada, e da forma como nela consta, a factualidade indicada sob o número 2, tendo incorrido, nesta parte, a decisão recorrida em erro notório na apreciação da prova, ao ter desvalorizado a taxa de álcool no sangue efectivamente registada através do competente exame e por aparelho próprio para o efeito e ao ter interpretado a Portaria n.º 1556/2007 como aplicável a taxas registadas por alcoolímetros devidamente aprovados e em condições de serem utilizados.
Transportar essa realidade para uma diferenciação de valoração probatória, em violação do disposto naquele art.º 153.º do Código da Estrada e nos art.ºs 1.º e 2.º do Anexo à Lei n.º 18/2007, constitui, salvo o devido respeito, incorrecta apreciação do próprio âmbito de aplicação da referida Portaria n.º 1556/2007.
A decisão padece, pois, de vício de raciocínio na apreciação da prova, que resulta como evidente, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores, facilmente se dando conta de que o tribunal, nessa parte, atentou contra as regras da experiência e baseou-se em juízo ilógico.
Trata-se de erro ostensivo, endógeno à sentença, que não passa despercebido a um observador minimamente atento e decorrendo do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ao lograr conclusão contrária às mesmas – v. entre outros, acórdão do STJ de 15.04.1998, in BMJ n.º 476, a pág. 82 –, e por isso, um erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, concretizando-se como limitação ao princípio da livre apreciação da prova consagrado pelo referido art.º 127.º do Código de Processo Penal.
A sua constatação implicaria a anulação do julgamento, mormente em sede de matéria de facto e com eventual repercussão em matéria de direito, com o sentido de que haveria de ser reapreciada a factualidade indicada.
Tal implicaria o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.º 426.º do Código de Processo Penal, mas apenas se não fosse possível, na parte afectada, decidir da causa.
E contendo os autos a prova (documental) bastante para que a matéria de facto seja modificada, nada obsta à mesma por via do art.º 431.º, alínea a), do Código de Processo Penal, assim se evitando esse reenvio, no caso perfeitamente injustificado.
Em resumo e colmatando o vício aludido, o facto provado sob o número 2, passa a ter a seguinte redacção:
Tinha ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução, apresentando durante a mesma uma taxa de álcool no sangue não inferior a 1,81 g/l.

Não se divisando fundamento para outras alterações, a matéria de facto dá-se como assente e com essa modificação.

Passando às medidas das penas.
Questiona o recorrente as medidas das penas aplicadas, pugnando pela sua agravação.
Ora, é sabido que segundo o actual regime penal e tendo o tribunal recorrido optado, e bem, pela aplicação de pena não privativa da liberdade (art.º 70.º do Código Penal), a pena de multa tem o carácter de verdadeira e autónoma pena, adoptando-se o denominado modelo ou sistema de dias de multa, em que a sua determinação concreta se faz, no essencial, em dois momentos distintos, obedecendo as respectivas operações a diferentes critérios e teleologia, sem que, contudo, se perca de vista a globalidade resultante da sua conjugação, atenta a natureza eminentemente económica que lhe é característica.
Assim, nos termos do art.º 47.º, n.º 1, do Código Penal, a fixação do número de dias de multa é feita em função dos critérios estabelecidos no art.º 71.º, n.º 1, do mesmo Código, que dispõe que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
E face ao art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal e em qualquer circunstância, as finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A medida da pena há-de, assim e primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, isto é, que fornece um “quantum” de pena que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.
Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, a pág.214, culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena).
A culpa – juízo de apreciação e de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito, conforme se expendeu no acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ, ano IV, tomo II, pág.168 – constitui o limite inultrapassável da medida da pena (art.º 40.º, n.º 2, do Código Penal), funcionando como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.
Na sua ponderação global, a culpa revelada pelo arguido é algo elevada.
Com efeito, se bem que não tenham resultado consequências danosas da sua conduta, o ilícito cometido tem como fundamento da sua incriminação a protecção do perigo de circulação rodoviária sob o efeito do álcool, sendo reconhecidas as elevadas exigências de prevenção geral do mesmo, atenta a sua crescente frequência na sociedade actual, associada a importantes índices de sinistralidade e potenciando a lesão de uma multiplicidade de interesses e bens jurídicos, denotando a inevitável insensibilidade dos condutores que nele incorrem, alheando-se dos riscos inerentes e tornando mais premente a censura comunitária.
E a ilicitude em concreto reporta-se a conduta reveladora de grau de alcoolemia no sangue que é elevado – 1,81 g/l –, muito superior ao mínimo de 1,2 g/l para que constitua ilícito criminal e, mais ainda, do limite legal acima do qual incorreria tão-só em contra-ordenação (0,5 g/l – art.º 145.º, n.º 1, alínea l) do Código da Estrada), havendo que concluir por ilicitude elevada.
Também, as consequências na condução que decorrem da ingestão de bebidas alcoólicas são variadas e de relevo não reduzido – a audácia incontrolada, a perda de vigilância em relação ao meio envolvente, a perturbação das capacidades sensoriais e perceptivas, o aumento do tempo de reacção, a lentidão da resposta reflexa, a diminuição da resistência à fadiga –, bem como os perigos associados, para o próprio e para terceiros, motivados pelas mesmas.
Funcionando, pois, a medida da culpa como pressuposto axiológico-normativo da pena, afigura-se adequado aplicar ao arguido número de dias de multa um pouco superior à média dos limites legais em presença (esta situa-se em 65 dias).
Assim, entende-se adequado aplicar ao arguido a pena 75 dias de multa à taxa diária de 5,00 € (não se vendo razão para alterar este montante fixado já na 1ª instância).

Com respeito à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, o recorrente alega que deveria ter sido fixado o período de 5 meses (art.º 69.º, n.º 1, do Código Penal).
Esta constitui uma verdadeira pena, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente que, como a generalidade das penas acessórias no nosso ordenamento jurídico-penal, constitui uma sanção adjuvante ou acessória da função da pena principal, que permite o reforço e diversificação do conteúdo penal da condenação, de modo a que a finalidade de prevenção da perigosidade não fique arredada.
Com a previsão dessa pena pretendeu-se dotar o sistema sancionatório português de uma verdadeira pena acessória capaz de dar satisfação a razões político-criminais, por demais óbvias entre nós, assinalando-se-lhe e pedindo-se-lhe, para além do mais, um efeito de prevenção geral negativa, de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa e deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente e leviano» -v. Figueiredo Dias, ob. cit., a pág.165.
No que concerne à sua medida, esta obedece aos critérios de determinação concreta da pena principal, nos termos do art.º 71.º do Código Penal.
Também, culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena e a culpa é o seu limite inultrapassável.
Em geral, a resposta punitiva tem de promover a eficaz recuperação do agente e tem de merecer a aceitação da comunidade, pelas exigências irrenunciáveis de prevenção que lhe são inerentes.
Para que a pena acessória cumpra a sua finalidade preventiva tem de importar um qualquer sacrifício para o condenado e uma censura suficiente dos factos.
Neste âmbito e com maior relevo, consideram-se a taxa de alcoolemia que apresentava e a circulação durante a noite.
A censurabilidade é relativamente elevada, ponderado todo o restante circunstancialismo, pelo que se entende adequado fixar em 5 meses a proibição de conduzir veículos com motor.


III – Decisão
Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, alterando-se a sentença recorrida, e condena-se o arguido CM..., pela prática de um crime p. e p. pelos art.ºs 292.º, n.º1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à razão diária de 5,00 € (cinco euros), perfazendo a quantia de 375,00 € (trezentos e setenta e cinco euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.
No mais mantém-se a decisão recorrida.
Não são devidas custas referentes ao recurso.


Frederico Cebola (Relator)
Jorge Jacob