Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
491/18.3PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RECOLHA DA AMOSTRA DE SANGUE
CONSENTIMENTO
PROVA ILEGAL
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 81.º, 152.º, N.º 1 E 3, 156.º E 157.º DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGOS 8.º, 10.º, 11.º, 12.º E 13.º DA LEI N.º 18/2007, DE 17 DE MAIO - REGULAMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS
PORTARIA N.º 902-B/2007, DE 13 DE ABRIL – EXAMES MÉDICOS A EFECTUAR P/ DETECÇÃO DOS ESTADOS DE INFLUÊNCIADO P/ ÁLCOOL OU P/SUBST. PSICOTRÓPICAS
Sumário: I – Quando, na sequência de acidente, não seja possível proceder a exame de rastreio/pesquisa de álcool no ar expirado por o interveniente ter ficado inconsciente, o procedimento a seguir é o que consta do artigo 157.º, n.º 1, 2, e 6, do Código da Estrada, realizando-se logo o exame de confirmação através da colheita da amostra de sangue.

II - O mesmo se aplica ao exame de diagnóstico do estado de influência por substâncias psicotrópicas.

III - A colheita da amostra de sangue ao condutor que ficou inconsciente em resultado de acidente de viação sem o seu consentimento, para a realização do exame/análise toxicológica para quantificação de teor de álcool no sangue cujo resultado foi negativo e para diagnóstico de confirmação do estado de influência por substâncias psicotrópicas, que foi positivo para substâncias canabinóides, não constitui a produção de qualquer prova ilegal ou nula.

Decisão Texto Integral:
Relator: Luis Teixeira
1.º Adjunto: Vasques Osório
2.º Adjunta: Maria José Guerra


Acordam em conferência, na 4ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos autos supra identificados, foi o arguido AA julgado e condenado:

- Pela prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291.º, n. º 1, als a) e b) do Código Penal na pena de 2 [ dois ] anos de prisão.

- Pela prática, como autor material, de um crime de ofensas à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art. 148.º, n.º 1 e 3 [ cfr. também art. 143.º, 144.º e 15.º ] do Código Penal na pena de 1 [ um ] ano e 6 [ seis ] meses de prisão.

- Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 3 [ três ] anos e 6 [ seis ] meses de prisão,  suspensa na execução por igual período (3 anos e 6 meses) com sujeição a regime de prova e com as seguintes obrigações: efectuar mensalmente visitas ao Hospital ..., bem como inscrever-se em acções de formação cívica no domínio da condução, bem como frequentar acções dissuasivas do consumo de produtos estupefacientes.


*

 2. Não se conformando com esta decisão, dela recorre o arguido que formula as seguintes conclusões:

4. Da prova documental nos autos demonstra efectivamente que o arguido sofreu um traumatismo craniano que até à presente data lhe deixou mazelas na sua memoria, impossibilitando-o de se recordar do dia.

6. Ora, não se recordando do que fez, o arguido veio abrir instrução, discordando da acusação que lhe foi imputada como autor de crime de condução de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º nº 1 als a) e b) do Código Penal, pois refere a acusação que “do embate que se ficou a dever ao facto de o arguido conduzir sob influencia de substâncias canabinóides, o que impedia de o fazer em segurança….“ Baseando-se no exame químico toxicológico junto a fls 4 e 5.

7. E, considerou o tribunal a quo como provado no PONTO 1. E PONTO 22. que o arguido “no dia 18 de Junho de 2018, pelas 18H46, (…) que consumira substâncias canabinóides, conduzia o motociclo de marca (…).”

8. Ora, o documento hospitalar revela que a recolha de sangre deveria ter por fins clínicos e terapêuticos e revela que o arguido não foi informado que o sangue recolhido seria utlizado para fins de determinação do uso de substâncias canabinóides.

9. Certo é que o arguido deu entrada no hospital inconsciente, sem reacção.

10. E assim permaneceu durante vários dias, pois sofreu de traumatismo craniano.

11. O arguido não deu consentimento para que se procedesse a qualquer recolha de sangue para análise de estupefacientes.

12. Pese embora, a decisão instrutória tenha sido proferida, o arguido continua a discordar da sentença proferida pois, o arguido nunca permitiu a recolha de sangue, nomeadamente para outros fins que não puramente médicos e nem para estes deu o seu consentimento pois estava inconsciente.

13. Ou seja, a recolha de sangue para a realização de apuramento de substâncias canabinóides ocorreu totalmente à margem do Arguido, não se sabendo ao  certo quem autorizou a mesma e mesmo quem a realizou.

14. A lei processual penal considera nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa.

15. O nosso ordenamento jurídico considera tão importante o respeito pela civilidade dos meios de obtenção de prova que consagrou, constitucionalmente, no artigo 32º, a nulidade das provas obtidas por meios que, de uma forma ou de outra, violam a dignidade da pessoa humana, os princípios de Direito Processual Penal, ou outros direitos constitucionalmente consagrados

16. A recolha de sangue para exame como procedimento de obtenção de prova implica, necessariamente, uma violação da integridade física da pessoa.

17. Retirar do direito de o arguido poder recusar a recolha de sangue, padece de inconstitucionalidade orgânica.

20. Para que se pudesse suprir o direito do arguido de livremente recusar a colheita de sangue para efeitos de análise de apuramento de uso de substâncias canabinóides, seria necessária uma autorização legislativa, pois que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.

21. Nos termos do disposto no artigo 126º do Código de Processo Penal a obtenção de provas “São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.”

22. O exame ao sangue junto a fls 4 e 5 como meio de prova foi obtido de foram ilícitas nos termos do disposto no artigo 122º do CPP.

23. Salvo melhor entendimento, Assim sendo a principal consequência da prova ilegítima é a anulação do acto no qual ela foi produzida, não podendo a mesmo ser usada para efeitos de prova nos presentes autos uma vez que constitui prova ilegal, inválida ou nula.

24. Nos termos do disposto no artigo 122ºdo Código de Processo Penal a nulidade torna inválido o acto em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, deveria assim o arguido ter sido absolvido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. 291º nº 1 als a) e b) do CP.

25. Não pretende pois o arguido não assumir de forma alguma ter cometido o crime de ofensas à integridade por negligência assumindo efectivamente os factos dados como provados nos pontos 2. a 21. E 23. a final.

26. Discorda sim do seu ponto 1. e 22.

27. Discorda ainda da aplicação da medida da pena aplicada pois considera excessiva as penas aplicadas.

28. Desde logo, importa referir que efectivamente o arguido, com a sua conduta, atingiu o bem jurídico tutelado pela aludida incriminação, a segurança da circulação rodoviária, e os valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade como são a segurança da vida ou da integridade física das pessoas.

29. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário por que o arguido é condenado, é abstractamente punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa nos termos do disposto no artigo 291º, nº 1, do C. Penal.

30. Salvo melhor entendimento, deveria o tribunal a quo ter optado pela pena de multa, por ter entendido que na concreta situação, as exigências de prevenção geral e especial encontravam resposta adequada na aplicação dessa pena, opção que não vem posta em causa no recurso.

31. Tal como refere F. Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 331.), resulta do aludido art. 40º nº 1 do mesmo diploma, que «são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa...».

33. Ora o arguido encontra-se inserido na sociedade. Tem família constituída e é pai de uma filha menor de 2 anos. Encontra-se a trabalhar numa empresa de moldes com contrato de trabalho sem termo.

34. Efectivamente o arguido tem plena consciência do dano irreversível que causou por ter conduzido o seu veículo motorizado.

37. Contudo, a aplicação da pena de prisão no  seu máximo, mesmo que suspensa, é excessiva face ao seu arrependimento.

39. O mesmo se aplica relativamente à pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 anos.

40. Tal como referido anteriormente o arguido encontra-se inserido familiar, social e economicamente na sociedade.

41. O simples facto de ficar sem possibilidade de conduzir durante tal período tal longo, impossibilitando-o de cumprir com os seus horários laborais, pois o mesmo esta a exercer as suas funções por turnos, tendo um horário de trabalho diferenciado, por vezes durante a noite. Não existindo qualquer meio de transporte público para que possa cumprir com as suas funções.

43. Salvo melhor entendimento poderia o tribunal ter aplicado outra medida acessória, nomeadamente o arguido impedido de conduzir veículos motorizados de duas rodas durante tais 3 anos.

3. Admitido que foi o recurso, respondeu o Ministério Público dizendo:

3º Não se exige que o arguido dê o seu consentimento para a realização de exame de sangue com vista a detectar a presença de álcool, estupefacientes e/ou substâncias psicotrópicas; bastando que o mesmo não se oponha a tal exame.

4º O exame toxicológico realizado não configura prova proibida.

5º Nenhum normativo legal (nomeadamente o art. 47º CP) prevê a possibilidade de acompanhar a pena de multa da imposição de obrigações.

6º O art. 69º, n.º 2 CP prevê que a pena acessória de proibição de conduzir abranja a condução de veículos de qualquer categoria.

7º Relativamente às penas, o peticionado pelo recorrente é legalmente inadmissível.

            4. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.

            5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.


II

1. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

Da culpabilidade:

1. No dia 18 de Junho de 2018, pelas 18H46, o arguido que consumira substâncias canabinóides, conduzia o motociclo de marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-XU, pela Avenida ..., no sentido ...-....

2. A via no local é uma recta, em patamar, cuja faixa de rodagem é constituída por dois sentidos de trânsito, contendo uma via de trânsito em cada sentido, separadas por linha contínua, intercalada com linha descontínua.

3. Tem visibilidade regular em toda a sua largura e extensão. No local –onde veio a ocorrer o embate - em ambos os sentidos , existe um sinal vertical com o sinal gráfico de Informação ( H7 – Passagem para peões).

4. A velocidade máxima permitida no local é de 50Km, por ser no interior de localidade.

5. BB ofendida nestes autos, seguia a pé e dirigia-se do “ ... “, para o ginásio existente, no outro lado da referida Avenida.

6. Ao aproximar-se de uma passagem assinalada na faixa de rodagem para a travessia de peões, situada junto do nº186 daquela via, a ofendida parou e depois de se certificar que os veículos que seguiam por aquela via, no sentido ...-... paravam e que no sentido oposto não circulavam veículos, iniciou o atravessamento da passadeira para peões.

7. Ao mesmo tempo que a ofendida atravessava a faixa de rodagem, o arguido que circulava por aquela Avenida, no sentido CC, conduzindo sob o efeito das substâncias canabinóides que ingerira e que o impediam de o fazer em segurança, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, apesar de saber que ao fazê-lo punha em perigo os restantes utentes da via.

8. Passou para a frente dos veículos que se encontravam parados na via, para permitir a travessia da via, pela ofendida e foi embater frontalmente com o motociclo por si conduzido, na ofendida quando esta se encontrava já a meio da passadeira para peões. Ao ser embatida pelo motociclo conduzido pelo arguido, a ofendida foi projectada para cima e de seguida caiu na faixa de rodagem, ligeiramente à frente e do lado esquerdo do primeiro veículo que se encontrava parado para permitir a sua travessia da faixa de rodagem.

9. Do embate que se ficou a dever ao facto de, o arguido conduzir sob a influência de substâncias canabinóides, o que o impedia de o fazer em segurança e ter invadido a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, para passar para a frente dos veículos que se encontravam na sua frente e que tinham parado para permitir a travessia da faixa de rodagem pela ofendida, que seguia a pé pela passadeira para peões existente no local e embatido frontalmente com o seu motociclo nesta, resultaram para a ofendida BB – Beneficiário da Segurança Social com o nº ...77 – as seguintes lesões.

10. O estado da ofendida à data de 16.03.2021 era o seguinte:

Queixas: Postura, deslocamentos e transferências: no domicílio consegue deslocar-se a pé, com o apoio de terceira pessoa; no exterior desloca-se em cadeira de rodas, não conseguindo manobrar a mesma autonomamente; continua a necessitar de apoio de 3ª pessoa para as transferências; Manipulação e preensão: mantém uso praticamente exclusivo da mão esquerda nos actos de manipulação e preensão, não tendo coordenação motora útil na direita. Comunicação: ainda não consegue ouvir bem o suficiente para comunicar, dado ainda não ter o implante coclear há tempo suficiente; aprendeu a ler nos lábios dos interlocutores; articula mal as palavras; não consegue escrever; Cognição e afectividade: mantém alterações cognitivas, com dificuldade na memorização e concentração; mantém agressividade e irritabilidade em contexto terapêutico; Controlo de esfíncteres : terá controlo da emissão de urina e fezes após despertar, mantendo uso nocturno de fralda-cueca; Fenómenos dolorosos: sem queixas de dor significativa. Outras queixas a nível funcional: consegue deglutir líquidos, mas com dificuldade, mantendo o uso de água gelificada; perda de acuidade visual em contexto de fadiga: teve perda quase total de audição, ainda em estado de tratamento.

11. A nível situacional: Actos da vida diária: mantem dependência praticamente total de terceiros para todas as actividades da vida diária

12. Vida afectiva, social e familiar: mantém isolamento social de modo geral;

13.Vida profissional ou de formação: mantém-se inactiva profissionalmente.

14.Ao exame objectivo: Estado geral apresenta-se vigil, aparentemente orientada, colaborante dentro das suas limitações, com regular estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real.

15. É dextra e desloca-se em cadeira de rodas.

16. Exame físico sumário: Aparenta compreender (através de leitura dos lábios) as instruções do perito: mobiliza os quatros membros de forma mais ou menos espástica, conseguindo esboçar marcha espástica ( apenas com o apoio do pai); terá encurtamento dum membro ( inferior direito) com cicatrizes, a rever oportunamente se necessário; força muscular, amplitudes de movimento e audição não testadas nesta data.

17. O quadro lesional apresentado pela examinada, conforme descrito nos registos clínicos, é compatível com traumatismo contundente como o resultado de atropelamento e projecção.

18. À data da última avaliação presencial 16.03.2021) a examinada encontrava-se ainda em tratamento. Sendo certo que ainda poderá realizar tratamentos com vista a minorar o impacto das sequelas a nível funcional e situacional, não é previsível que venha a ter melhorias muito marcadas, considerando a evolução do quadro até à data.

19. Até à data da avaliação presencial, as lesões tinham, já condicionado 1002 dias de doença.

20. Nesse período a examinada teve afectação grave das suas capacidades de trabalho geral, das capacidades de usar o corpo, os sentidos e a linguagem, estando impedida de exercer a sua actividade profissional.

21. Essa afectação das capacidades tem repercussão grave na sua vida de relação, tornando-se dependente de terceiros e de ajudas técnicas.

22. Ao agir da forma descrita [nos pontos “1” a “9”], fê-lo o arguido de forma livre e consciente, bem sabendo que a ingestão de substâncias canabinóides, lhe diminuía os reflexos necessários ao exercício da condução em segurança e que ao passar para a frente dos veículos que se encontravam parados, sem cuidar saber se o fazia em segurança, punha em perigo os restantes utentes da via.

23. E também que poderia vir a causar lesões graves, nos restantes utentes da via, no entanto actuou, sem se conformar com essa realização.

24. Sabia, além do mais, que tais condutas são proibidas e punidas por lei. 25.O arguido não tem antecedentes criminais registados7.

26. O arguido é operário fabril auferindo a quantia 700,00.

27. Vive com a sua namorada.

28. Tem um irmão mais novo.

29. Estudou até ao 12.º ano.

2. Fundamenta o tribunal recorrido a matéria de facto provada nos seguintes termos:

Corroboram a factualidade assente por provada em termos documentais o auto de Notícia de fls.2

O exame químico toxicológico de fls. 4 e 5 permitiu atestar a presença no corpo do arguido da presença da canabinoides, por ele ingeridos sendo patente a presença no sangue deste de THC.


III

Questões suscitadas:

1. A valoração de prova ilegal pela decisão recorrida por invalidade da recolha da amostra de sangue ao arguido.

2. A espécie e medida das penas parcelares aplicadas bem como a pena única.

3. A medida e âmbito da pena acessória de inibição de conduzir.


IV

Cumpre decidir:

1ª Questão: a valoração de prova ilegal pela decisão recorrida por invalidade da recolha da amostra de sangue ao arguido.

1. Insurge-se o recorrente contra os factos provados nºs 1 e 22 - e, subentende-se, sem prejuízo do que foi dito pelo Ministério Público na sua conclusão nº 2, também do facto provado nº 9 quando aí se refere que o arguido conduzia sob a influência de substâncias canabinóides -, com o fundamento de que a deteção da substância psicotrópica no sangue resultou do exame toxicológico realizado em colheita de sangue para a qual o arguido não deu o seu consentimento, tratando-se esta recolha de sangue para estes efeitos e consequente resultado da análise, de prova ilegal ou proibida.

Vejamos:

Dispõe o artigo 81.º código da Estrada:

Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas

1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.

(…)

5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.


*

Dispõe o artigo 152º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada:

1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;

(…)

3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.


*

Por sua vez, o artigo 8º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio (REGULAMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS), define as substâncias psicotrópicas a avaliar:

Artigo 8.º

Substâncias psicotrópicas a avaliar

1 - Para efeitos do disposto no artigo 81.º do Código da Estrada, são especialmente avaliadas as seguintes substâncias psicotrópicas:

a) Canabinóides;

b) Cocaína e seus metabolitos;

c) Opiáceos;

d) Anfetaminas e derivados.

2 - Para os mesmos efeitos, pode ainda ser pesquisada a presença no sangue de qualquer outra substância psicotrópica que tenha influência negativa na capacidade para o exercício da condução.

E preceitua-se nos artigos 10º, 11º, 12º e 13º desta mesma Lei:

Artigo 10.º

Exame para detecção de substâncias psicotrópicas

A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

  Artigo 11.º

Exame de rastreio

1 - O exame de rastreio é efectuado através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas.

2 - Para a realização do exame referido no número anterior, são competentes as entidades fiscalizadoras, os estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respectivo Governo Regional e o Instituto Nacional de Medicina Legal.

(…)

Artigo 12.º

Exame de confirmação

1 - O exame de confirmação é realizado numa amostra de sangue, após exame de rastreio com resultado positivo.

2 - Quando o exame de rastreio apresente resultado positivo e seja realizado por entidade fiscalizadora, o examinado é conduzido a estabelecimento da rede pública de saúde, a fim de ser submetido à colheita de uma amostra de sangue a remeter para a delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal da área respectiva.

3 - Quando o exame de rastreio apresente resultado positivo e seja realizado em estabelecimento da rede pública de saúde, este providencia a colheita e remessa à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal competente, nos termos e para os efeitos previstos no número anterior.

4 - A delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal que proceder ao exame de confirmação deve enviar, no prazo máximo de 30 dias a contar da data da recepção da amostra, o seu resultado à entidade fiscalizadora que o requereu, em relatório de modelo aprovado em regulamentação.

5 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, só pode ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação.

6 - Quando o resultado do exame de confirmação for positivo, a entidade fiscalizadora procede ao levantamento de auto de notícia correspondente, a que junta o relatório daquele exame.

Artigo 13.º

Exame médico

1 - Quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste, deve este ser submetido a exame médico para avaliação do estado de influenciação por substâncias psicotrópicas.

(…)


*

Estes exames de rastreio, confirmação e exame médico estão regulados pela Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril (EXAMES MÉDICOS A EFECTUAR P/DETECÇÃO DOS ESTADOS DE INFLUENCIADO P/ÁLCOOL OU P/SUBST.PSICOTRÓPICAS) CAPÍTULO II, secções I, II e III, respetivamente em conjugação com os nºs 4 e seguintes do artigo 157º do Código da Estrada.

 

Mas no presente caso, o recorrente foi interveniente em acidente de viação na sequência do qual e segundo o afirmado pelo próprio, deu entrada no hospital inconsciente, sem reacção e assim permaneceu durante vários dias, pois sofreu de traumatismo craniano – v. conclusões nºs 9 e 10.

O que significa que o procedimento a seguir será o definido sobre esta matéria no artigo 157º, nºs 1, 2, e 6, do Código da Estrada, onde se preceitua:

“Fiscalização da condução sob influência de substâncias psicotrópicas

1 - Os condutores e as pessoas que se propuserem iniciar a condução devem ser submetidos aos exames legalmente estabelecidos para deteção de substâncias psicotrópicas, quando haja indícios de que se encontram sob influência destas substâncias.

2 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito de que resultem mortos ou feridos graves devem ser submetidos aos exames referidos no número anterior.

4 - Quando o exame de rastreio realizado aos condutores e peões nos termos dos nºs 1 e 2 apresentar resultado positivo, devem aqueles submeter-se aos exames complementares necessários, sob pena de crime de desobediência.

5 - Quando necessário, o agente de autoridade providencia o transporte dos examinandos a estabelecimento oficial de saúde.

6 - Para os efeitos previstos nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 155.º e nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 156º.

7 - Para efeitos do n.º 2 entende-se por ferido grave aquele que, em consequência de acidente de viação e após atendimento em serviço de urgência hospitalar por situação emergente, careça de cuidados clínicos que obriguem à permanência em observação no serviço de urgência ou em internamento hospitalar.

Ora, dispõe o artigo 156º do Código da Estrada:

Exames em caso de acidente

(…)

2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.

3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.

4 - Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.º 2.


*

Como resulta do auto de notícia, pelo agente autuante é afirmado que face ao estado de saúde do recorrente (então condutor), que encontrou inconsciente, não foi possível efectuar ao suspeito o teste de ar expirado e proceder a um exame prévio de rastreio para a deteção de substâncias psicotrópicas.

Perante isso solicitei ao piquete aos acidentes de Esquadra de Trânsito da PSP de ... para se deslocar ao Centro Hospitalar ... onde o suspeito tinha dado entrada, para que o mesmo fosse submetido a análise toxicológica para quantificação de teor de álcool no sangue e ao exame confirmação para a deteção de substâncias psicotrópicas”.

Ou seja, na concreta situação foi dado integral cumprimento ao legalmente estipulado.

Quanto à questão do não consentimento do recorrente para a colheita de sangue, este não foi efetivamente prestado. Na verdade, por um lado, não estava o recorrente em situação clínica sequer de o prestar ou se recusar à colheita da amostra de sangue. Por outro, a lei não faz depender a validade do exame do consentimento do arguido.

Como se afere do nº 2 do artigo 12º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, supra transcrito, “Quando o exame de rastreio apresente resultado positivo e seja realizado por entidade fiscalizadora, o examinado é conduzido a estabelecimento da rede pública de saúde, a fim de ser submetido à colheita de uma amostra de sangue a remeter para a delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal da área respectiva”.

Ou seja, a seguir ao exame de rastreio tem lugar o exame de confirmação e este é realizado à colheita de uma amostra de sangue. Como no presente caso não foi possível realizar o exame de rastreio, foi logo realizado o exame de confirmação através da colheita da amostra de sangue

E nos termos do artigo 13º da mesma lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, só é de realizar o exame médico, “Quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste”. Situação que não se verificou.

Caso o recorrente estivesse consciente e recusasse a colheita de sangue para a realização do exame, sempre o mesmo cometeria um crime de desobediência - v. nº 4 do artigo 157º, do Código da Estrada.

Pelo que não se afigura necessária a autorização legislativa que o recorrente refere na conclusão nº 20, para efeitos de “suprir o direito do arguido de livremente recusar a colheita de sangue para efeitos de análise de apuramento de uso de substâncias canabinóides”.

No ac. do TRG de 05.06.2017 decide-se que I) O exame de sangue é a via excecional de recolha de prova admitida na lei para deteção de álcool, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. II) Em momento algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, pelo que, nesta matéria, se encontram apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em sujeitar-se ao exame.

Entende-se que esta jurisprudência, embora sobre a deteção de álcool no sangue tem inteira aplicação para o exame de diagnóstico do estado de influência por substâncias psicotrópicas.

Por sua vez, o Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 485/2010 e 487/2010 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, já se pronunciou sobre a não inconstitucionalidade orgânica do  artigo 156º, nº2, do Código da Estrada.

E o mesmo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 418/2013 in Diário da República n.º 201/2013, Série II de 2013-10-17, decidiu “não julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.os 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita”.

Nestes termos, entende-se que a colheita da amostra de sangue ao recorrente para a realização do exame/análise toxicológica para quantificação de teor de álcool no sangue cujo resultado foi negativo e para diagnóstico de confirmação do estado de influência por substâncias psicotrópicas, que foi positivo para substâncias canabinóides, não constitui a produção de qualquer prova ilegal ou nula. Pelo que deve improceder esta pretensão do recorrente.


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Questão: a espécie e medida das penas parcelares aplicadas bem como a pena única.

1. Diz o recorrente que deveria o tribunal a quo ter optado pela pena de multa, por ter entendido que na concreta situação as exigências de prevenção geral e especial encontravam resposta adequada na aplicação dessa pena.

Ambos os crimes são punidos com prisão ou multa:

Dispõe o artigo 70º do Código Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

É certo que o arguido, à prática dos factos tinha apenas 18 anos de idade, uma vez que nasceu a .../.../2000. Encontra-se social, laboral e familiarmente integrado, tendo já família constituída e não tem antecedentes criminais, embora esta circunstância não se mostre muito relevante dada ainda a sua juventude, ao abrigo da qual o tribunal recorrido decidiu aplicar-lhe o regime especial para jovens.

No entanto, não só o arguido conduzia sob a influência de substâncias canabinóides que previamente consumira, como violou grosseiramente elementares regras de condução rodoviária, tendo por base o factualismo provado nos itens 6 a 8 da sentença:

6. Ao aproximar-se de uma passagem assinalada na faixa de rodagem para a travessia de peões…a ofendida parou e depois de se certificar que os veículos que seguiam por aquela via, no sentido ...-... paravam e que no sentido oposto não circulavam veículos, iniciou o atravessamento da passadeira para peões.

7. Ao mesmo tempo que a ofendida atravessava a faixa de rodagem, o arguido que circulava por aquela Avenida, no sentido ...- ...,…invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem[1], atento o seu sentido de marcha, apesar de saber que ao fazê-lo punha em perigo os restantes utentes da via.

8. Passou para a frente dos veículos que se encontravam parados na via, para permitir a travessia da via, pela ofendida e foi embater frontalmente com o motociclo por si conduzido, na ofendida quando esta se encontrava já a meio da passadeira para peões.

Daqui emerge uma culpa elevada na produção do embate, bem como uma elevada ilicitude tendo em conta as sequelas que resultaram para a ofendida, como descritas nos autos – v. factos provados 10 a 21 -, tendo a mesma (ofendida), ficado praticamente num estado vegetativo no que respeita à sua qualidade de vida.

A tudo isto acresce que as necessidades de prevenção geral são muito elevadas neste tipo de criminalidade rodoviária, com fortes exigências da comunidade para combater a sua prática.

Pelo que se entende que, manifestamente, a aplicação de uma simples pena de multa não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


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Quanto à medida da pena, cumpre dizer o seguinte:

Decidindo-se na sentença pela aplicação do regime especial para jovens ao abrigo do DL n.º 401/82 de 23.09 e sendo o crime de condução perigosa de veículo rodoviário punido com prisão até três anos, por aplicação da atenuação especial segundo as regras do artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b) do Código Penal, ficamos com uma moldura penal de um mês (o mínimo legal, artigo 41º, nº 1, Código Penal) a dois anos de prisão (uma vez que o limite máximo é reduzido de um terço – alínea a), do nº 1, do artigo 73º).

            Aplicando estas mesmas regras ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência, obtém-se uma moldura penal de um mês a dezasseis meses.

A medida da pena tem por referência o disposto nos artigos 40º e 71º, do Código Penal, devendo ser encontrada e fixada nos limites exigidos essencialmente pelo grau de culpa, da ilicitude e pela necessidade de prevenção geral e especial.

Segundo o disposto no artigo 40º, nº 1, do Código Penal “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

          E o disposto no nº 2 (art. 40º), lembra que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Por sua vez, o disposto no artigo 71º, refere que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Fixou o tribunal recorrido a pena de 2 anos de prisão quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, ou seja, no seu limite máximo (tendo em conta a redução do limite máximo de 3 anos em consequência da atenuação especial) e a pena de 1 ano e 6 meses quanto ao crime de ofensas à integridade física graves por negligência ou seja, ultrapassando mesmo o limite máximo de 16 meses!

O principal fundamento para esta opção da medida das penas é a gravidade objectiva dos factos.

Ora, as consequências da conduta do arguido são efetivamente notórias e visivelmente graves. E se é certo que estas não podem sobrepor-se à exata medida da culpa, a verdade é que também esta é muito elevada. Pelo que a questão se coloca em averiguar se a medida da culpa no concreto caso, comporta as penas fixadas. Tendo em conta que o máximo das molduras penais de 3 e 2 anos já foi reduzido para dois anos e 16 meses, respetivamente, por força da atenuação especial, entende-se que a conduta global do arguido conjugada com o resultado que adveio para a vítima, comporta, se não o exato limite máximo de cada umas das penas, pelo menos um limite muito próximo deste.

Entende-se que não deve fixar-se o máximo das penas previsto porque, sem prejuízo de ser verdade que é extremamente penoso e angustiante para a vítima BB, que à data dos factos tinha apenas 37 anos de idade, passar o resto da sua vida no estado em que ficou devido ao acidente, passando a ter uma vida não vivida como seria expetável, como as regras da experiência nos dizem, o resultado para a vítima poderia ser ainda mais gravoso, com a sua morte, sabendo-se que a vida é o bem jurídico supremo.

Pelo que se entende fixar a pena do crime de condução perigosa de veículo rodoviário em 22 meses e a pena do crime de ofensa à integridade física grave por negligência em 14 meses.

Quanto à pena única, cujo limite mínimo é um ano e dez meses e máximo três anos (36 meses), tendo em conta que, embora se trate de crimes com bens jurídicos diferentes, existe uma estreita conexão entre ambos, sendo as ofensas causadas à vítima uma consequência direta do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, entende-se fixar a respetiva pena em dois anos e oito meses (2 anos e 8 meses).


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Questão: a medida e âmbito da pena acessória de inibição de conduzir.

1.  Fixou o tribunal recorrido esta pena também no seu máximo legal, ou seja, 3 anos (36 meses), não tendo esta pena beneficiado da atenuação especial nos termos em que beneficiaram as penas principais.

A medida desta pena acessória tem por referência os mesmos critérios observados para a fixação da pena principal, no caso, do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Esta pena tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade visa prevenir a perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação – v. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 88 e 232).

Considerando-se todo o circunstancialismo provado de onde emerge uma culpa elevada na produção do embate, uma elevada ilicitude tendo em conta as sequelas que resultaram para a ofendida, as necessidades de prevenção geral muito elevadas neste tipo de criminalidade rodoviária, mas também a inserção social e familiar do arguido, tendo denotado arrependimento segundo a fundamentação do tribunal recorrido e não tendo ainda antecedentes criminais, devendo, por sua vez, ser observada uma proporção entre a pena principal e a pena acessória, entende-se fixar esta pelo período de dois anos (2 anos).


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2. Quanto à pretensão do recorrente de a pena acessória abranger apenas os veículos motorizados de duas rodas:

Esta questão não colhe, por enquanto, unanimidade na jurisprudência.

            Quanto à possibilidade legal de a pena acessória de inibição de conduzir aplicada ao abrigo do artigo 69º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal poder ser restrita a determinada categoria de veículos, ou seja, excluindo alguma categoria da inibição, tem alguma aceitação, dado o elemento literal da redação do citado nº 2 daquele preceito, ao dizer-se que “…a proibição pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”[2].

            Mas existem outras vozes claramente contra, interpretação que não se fica pelo mero elemento literal daquele preceito, indo antes à génese desta medida para concluírem que uma interpretação sistémica deste preceito aponta para a não exceção a qualquer categoria de veículos[3].

Com efeito, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, estabelecia o nº 2 do artigo 69º do Código Penal que «A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada».

No entanto, este preceito foi alterado pela Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, que substituiu a expressão veículos motorizados por veículos com motor e, essencialmente para o que no caso interessa, suprimiu a última parte onde se que previa que a proibição pudesse abranger apenas uma determinada categoria de veículos, pelo que o nº 2 do art.º 69º do Código Penal passou a ter a seguinte redação: «A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria».

A eliminação daquela referência expressa “ou de uma categoria determinada”  só pode ter a leitura de um claro sinal do legislador de que não pretendeu manter a permissão da proibição a apenas algumas categorias de veículos.

Esta era, aliás, a solução já propugnada pelo Código da Estrada quanto à inibição de conduzir para as contraordenações, graves ou muito graves que, no dizer da parte  final do n.º 2 do artigo 147º, se refere a «todos os veículos a motor».

Sem prejuízo de existirem diferenças de regime entre o disposto no Código da Estrada quanto à inibição de conduzir e a pena acessória do artigo 69º do Código Penal, nomeadamente a possibilidade desta inibição ser dispensada, atenuada ou suspensa, segundo o regime do Código da Estrada, não se afiguraria muito congruente que para uma situação com menor gravidade a inibição tivesse forçosamente que respeitar a todos os veículos a motor quando na presente situação onde as exigências de prevenção e defesa da comunidade são seguramente maiores, tal exigência não seria de observar. Pelo que a alteração ao art.º 69º, nº 2 do Código Penal deve ser entendida no sentido de uma harmonização do sistema, acabando-se com a referida incongruência – neste sentido v. ac. da RC de 22-01-2020, processo nº 46/19.5GAOHP.C1, e ac. TRP de 14-12-2022, proc. nº 209/22.6GEVNG.P1, ambos consultáveis  em in www.dgsi.pt .

            Termos em que se entende que deve improceder esta pretensão do recorrente em ver limitada a inibição da pena acessória apenas aos veículos motorizados de duas rodas.


V

Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso do recorrente AA e, consequentemente:

- Altera-se a pena do crime de condução perigosa de veículo rodoviário fixando-se a mesma em 22 meses de prisão (vinte e dois meses); e altera-se a pena do crime de ofensa à integridade física grave por negligência fixando-se esta em 14 meses de prisão (catorze meses).

Por sua vez, fixa-se agora a pena única 2 anos e 8 meses de prisão (dois anos e oito meses), suspensa pelo mesmo período (dois anos e oito meses) e com as condições fixadas na decisão recorrida.

- Altera-se a medida da pena acessória de inibição de conduzir, fixando-se esta em 2 anos (dois anos).

- Mantém-se tudo o demais decidido e fixado na sentença.


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Baixados os autos à primeira instância e uma vez que se mantém a pena acessória de proibição de conduzir, notifique-se o arguido para que proceda à entrega no prazo de 10 dias da carta de condução de que é titular na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial sob pena de ser determinada a sua apreensão (art.º 500º nº3 do CPP) com a advertência de que não o fazendo poderá incorrer no crime de desobediência (art.º 348º nº1 alínea b) do C. Penal - cfr. AUJ do STJ n.º 2/2013, DR n.º 5, I-S, de 08.01.2013); e poderá incorrer no crime de violação de proibições ou interdições caso infrinja a ordem de proibição de conduzir durante o período determinado (art.º 353º C. Penal).

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Sem custas.

Coimbra, 12.4.2023.


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Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.

              





[1] Sublinhados nossos.
[2] Entre outros, v. acs. da Relação do Porto de 16.2.2005, proferido no processo nº 0445028, e de 19.7.2006, proferido no processo nº 0613241, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.jtrp.
E ainda o ac. da mesma Relação, de 12.5.2004, proferido no processo nº 0345778, consultável no mesmo sítio, onde se afirma:
“ Acresce que, se é certo que o art.º 69º, n.º 2, do Código Penal, permite que a pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis possa ser limitada a uma determinada categoria de veículos automóveis e não tenha que abranger todas as categorias de veículos com motor [Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA in “Crimes Rodoviários, cit., pág. 29]”.
[3] Com uma apreciação evolutiva e esclarecedora da aplicação e interpretação do artigo 69º, do Código Penal, no sentido apontado, v. ac. da Relação do Porto de 17.12.2008, proferido no processo nº 0846482, consultável em www.dgsi.pt.jtrp.
Igualmente no mesmo sentido v. ac. da Relação do Porto de 25.3.2009, proferido no processo nº 0814506, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp, no qual é referida outra jurisprudência quer num quer noutro sentido.
Aos quais se deverão aditar ainda:
Ac. TRL de 31.1.2006; ac. TRE de 12.9.2006; Ac. TRC de 29.11.2000 e ac. TRC de 14.7.2004, todos consultáveis na CJ.