Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/12.6TBVZL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: ACORDO DE PREENCHIMENTO
LIVRANÇA
NATUREZA JURÍDICA
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 32º DA LULL E ART. 5º DO DEC. LEI Nº446/85, DE 25/10
Sumário: I. O dever de comunicação – a que alude o art. 5º do Dec. Lei nº446/85, de 25/10 – das cláusulas contratuais gerais inseridas em determinado contrato apenas se dirige aos “aderentes”, ou seja, aos contraentes que subscrevem e aceitam as cláusulas que lhe foram submetidas, com vista à celebração do contrato onde elas estão inseridas.

II. Tal dever de comunicação não se estende – por inexistir qualquer disposição que assim o determine – a terceiros que, por qualquer razão ou em virtude de qualquer negócio que tenham celebrado ou venham a celebrar, assumam obrigações relacionadas com aquele contrato de adesão, como é o caso do avalista que, sem ter intervenção no negócio, dá o seu aval numa livrança que é entregue para garantia das obrigações que nele foram assumidas por outrem.

III. Um contrato/convenção de preenchimento de uma livrança, no qual um dos outorgantes, na qualidade de avalista dessa livrança, se limita a declarar que autoriza o seu preenchimento pelo valor correspondente às obrigações do subscritor da livrança emergentes de um outro contrato por ele celebrado e a declarar que tem perfeito conhecimento dessas obrigações e do contrato de onde elas emergem, não é um contrato de adesão e não contém cláusulas contratuais gerais que estejam submetidas ao regime instituído pelo Dec. Lei nº446/85, de 25/10 e que imponham qualquer dever específico de comunicação ou informação pelo outro contraente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A.. e B... , residentes no (...) , Vouzela, vieram deduzir oposição à execução que lhes foi movida pelo C..., S.A., com sede na (...) , Lisboa, invocando – e pedindo que se declare – a nulidade do contrato que celebraram com a Exequente e alegando, para o efeito, que o contrato de locação financeira – destinado à aquisição de bens móveis pelo filho dos Embargantes – bem como a livrança dos autos e a convenção de preenchimento já vinham preenchidos com cláusulas contratuais gerais que a Exequente neles incluiu de forma unilateral e que não comunicou nem explicou aos Embargantes. Com efeito, alegam, a Exequente não os informou da real extensão contratual a que se vinculavam pela assinatura do contrato, do aval e pacto de preenchimento, tal como não os informou da existência da cláusula penal, do respectivo teor e alcance.

A Exequente contestou, alegando, em suma, que: não celebrou qualquer contrato com os Embargantes, já que o contrato de locação financeira foi celebrado apenas entre a Exequente e o 1º Executado; os Embargantes limitaram-se a ser avalistas do 1º Executado, tendo subscrito a convenção de preenchimento da livrança sem colocarem quaisquer dúvidas e perfeitamente cientes das responsabilidades que daí advinham em caso de incumprimento do 1º Executado; os Embargantes estão vinculados, na qualidade de avalistas, a pagar o valor da dívida, sendo indiferente que tenham ou não dado o seu acordo ao preenchimento da livrança, porquanto esse acordo apenas respeita ao portador da livrança e ao seu subscritor; porque não celebraram com a Exequente qualquer contrato, não podem os Embargantes invocar a omissão de deveres de informação, invocação que, além do mais, constituiria abuso de direito, já que o contrato de locação financeira foi cumprido durante 32 meses e só após o seu incumprimento e resolução vêm invocar a sua nulidade.    

Foi proferido despacho saneador e, após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando os embargos parcialmente procedentes, determinou a exclusão dos valores peticionados pela Exequente a título de cláusula penal, despesas com recuperação, despesas de cobrança e provisão para despesas judiciais, descritas nas alíneas c), d) e g) do ponto 29º do requerimento executivo, bem como eventuais juros e outros valores incidentes sobre as referidas quantias.

Inconformada com essa decisão, a Exequente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

A. O Recorrente pretende com o presente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que a sentença proferida pela Secção de Execução – J1, do Tribunal da Comarca de Viseu – Instância Central – Viseu, seja revogada com justificação em incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos provados, devendo ser por isso ser modificada no sentido de englobar todas as quantias inscritas na Livrança que serve de título executivo à acção executiva intentada contra o executado D... e os ora Recorridos, a qual foi preenchida no estrito cumprimento da convenção de preenchimento de livrança em branco celebrada entre as partes.

B. No entendimento da Recorrente, o Tribunal a quo não poderia ter considerado que sobre esta recaía um dever de informação aos Recorridos - previsto no artigo 5º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (CCG) -, sobre o clausulado do contrato de locação financeira mobiliária, uma vez que o referido contrato de financiamento apenas foi celebrado entre a Recorrente e o Executado D... , não sendo os ora Recorridos parte do mesmo, mas sim da obrigação cartular e autónoma de aval prestado através da livrança que serve de título executivo à ação.

C. Entende o Tribunal a quo que o dever de informação previsto no artigo 5º das CCG aplica-se ipsis verbis aos Recorridos, independentemente de não terem sido partes no contrato de locação financeira mobiliária e de a sua responsabilidade resultar da mera qualidade de avalistas do Executado D... , este sim, o único aderente do aludido contrato de financiamento, para tanto, justifica o Tribunal a quo a sua posição afirmando que as relações entre a Recorrente e os Recorridos, independentemente de ser uma obrigação cartular de aval prestado sobre uma livrança em branco, está “(…) no campo das relações imediatas (…)”.

D. Primo conspecto deverá notar-se que numa ação executiva o exequente requer as providências adequadas à reparação efetiva do direito violado, tal como resulta do disposto no n.º 4 do artigo 10º do CPC. Por outro lado, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo 10º do CPC temos que “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.”

E. Por título executivo entende-se o documento onde consta a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coativa, através do Tribunal, pelo que deverá haver harmonia entre o pedido e o direito do credor plasmado nesse título. No artigo 703º do CPC elencam-se taxativamente os títulos executivos admitidos por lei e, entre eles, constam os títulos de crédito. In casu, o título executivo é uma livrança assinada pelo Executado D... e avalizada pelos Recorridos, no valor de € 8.247,44 (oito mil duzentos e quarenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos), tendo como data de emissão e data de vencimento o dia 13 de fevereiro de 2012, a qual constitui um título de crédito (vide o ponto 1 dos factos provados na sentença recorrida).

F. Por título de crédito entende-se o documento necessário para exercitar o direito literal e autónomos nele mencionado. Por sua vez, deverá ter-se em consideração que a livrança prevista no artigo 75º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL) é “um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstrato, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita” (para o efeito veja-se FERRER CORREIA/A. CAEIRO, in RDE, 1978, p. 457). No artigo 78.º, da LULL estabelece-se ainda que “O subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra”.

G. Temos ainda que a livrança é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve, além do mais, a promessa pura e simples por uma pessoa de pagar a outra determinada quantia, tendo por princípios basilares o da incorporação e da abstração relativamente às relações subjacentes.

H. Os Recorridos invocaram apenas que a livrança foi entregue em branco e que não tiveram conhecimento do clausulado do contrato de locação financeira mobiliária que está na origem da relação cambiária de aval, nunca colocaram em causa o pacto de preenchimento de livrança em branco celebrado com a Recorrente; o Tribunal a quo, em conformidade com o sucedido, deu como provado “que os Recorridos sabiam que estavam a assumir a condição de “avalista” do executado D... , seu filho, e em caso de incumprimento de alguma das obrigações podiam ser demandado pela exequente para pagamento dos valores resultantes do referido contrato (vide o ponto 16 dos factos provados da sentença recorrida), nem colocaram em causa quaisquer questões ou dúvidas da convenção de preenchimento (vide o ponto 17 dos factos provados da sentença recorrida).

I. No artigo 5º, n.º 1 do regime das CCG dispõe que “As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las”. Pois bem, por referência ao contrato de locação financeira mobiliária em causa, temos que o aderente do mesmo foi tão só o executado D... e não os ora Recorridos. Só esse executado é que pode subsumir-se ao conceito de “aderente” do contrato de locação financeira mobiliária para efeitos do regime das CCG. Perante o acima exposto, independentemente das relações entre Recorrente e Recorridos poder ser configurável como “mediata” ou “imediata”, temos que os Recorridos, na qualidade de avalistas no contrato de locação financeira mobiliária, não assumiram mais do que uma mera função de terceiro garante do cumprimento da obrigação principal, a qual vinculava apenas o Recorrente e o contraente principal (i.e. o executado D... ); como tal, os Recorridos não possuíam a qualidade de aderente, logo a Recorrente não estava vinculada ao apontado ónus de comunicação do clausulado do contrato de financiamento àqueles.

J. Neste sentido, veja-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) de 10 de setembro de 2013, Processo n.º 3707/11.3TBVIS-B.C1, acessível em www.dgsi.pt e que num caso semelhante ao do presente recurso decidiu o seguinte: “Os oponentes/avalistas não são parte no contrato de crédito, mas antes avalistas da livrança entregue como garantia do bom cumprimento daquele contrato. Há aqui um negócio diferente e autónomo o contrato de crédito celebrado e não é este que constitui o título executivo, mas antes o título de crédito representado pela livrança. Os avalistas surgem como garantes do bom cumprimento do contrato de crédito, apenas através da assinatura da livrança apresentada como garantia, mas são terceiros e não parte relativamente ao contrato de crédito. Os mesmos não aderem a qualquer contrato, designadamente ao contrato de crédito que incorpora as cláusulas gerais, antes acordam em assinar uma livrança, 8como avalistas, acordando um pacto de preenchimento do título que se reporta ao eventual incumprimento do contrato de crédito. Não há uma imposição legal que onere a exequente financiadora no sentido de ter de dar integral conhecimento de cada uma das cláusulas do contrato de crédito aos mesmos e de lhes entregar uma cópia de tal contrato, no momento da assinatura. Não pode assim falar-se de violação dos artº 5º e 8º d) do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro, por parte da exequente relativamente aos avalistas/oponentes, na medida em que tal regime não se aplica ao negócio celebrado entre eles”.

K. Ainda no mesmo acórdão, com claro interesse para o presente recurso, deverá ter-se em consideração o seguinte: “(…) pacto de preenchimento do título celebrado entre o sacador e os avalistas não é nenhum contrato de adesão, e não está, por isso, sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais, designadamente ao cumprimento da comunicação integral das cláusulas do contrato. Chama-se a atenção para o facto de os oponentes nunca referirem que as cláusulas gerais não foram comunicadas à mutuária, antes invocando tal alegada omissão apenas relativamente a si. Conclui-se assim, no sentido do também já decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008, in. www.dgsi.pt que não sendo os oponentes/avalistas aderentes do contrato de financiamento, as cláusulas gerais deste contrato não tinham que lhes ser comunicadas pela exequente, obrigação que apenas se impõe relativamente a quem é parte em tal contrato”.

L. No mesmo sentido do acima referido veja-se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), respetivamente de 3 de maio de 2007 e de 17 de abril de 2008, Processos n.ºs 06B1650 e 08A727 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 3 de março de 2005, Processo n.º 858/2005-8, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

M. Nesta conformidade, face ao acima exposto, temos que no artigo 10º da Lei Uniforme Letras e Livranças (LULL) aplicável ex vi por remissão do artigo 77º - II, também da LULL “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”. Ora, “uma livrança em branco é um título que se destina a ser preenchido de harmonia com o facto ou contrato de preenchimento convencionado”.

N. A lei não fixa prazo no qual deve ser preenchida a letra ou a livranças, dependendo tal prazo do acordo de preenchimento. Assim sendo, “o contrato de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.” (vide ABEL DELGADO in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, Livraria Petrony, Lisboa, 6ª edição, 1990, página 73). O pacto de preenchimento pode ser expresso (i.e. nos termos convencionados pelas partes) ou tácito (i.e. de acordo com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão) e a exceção do preenchimento abusivo pode ser aposta pelo primeiro adquirente desde que seja ele que preencha a letra ou livranças e reclame o seu pagamento (vide novamente ABEL DELGADO in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, Livraria Petrony, Lisboa, 6ª edição, 1990, página.73.

O. No caso sub judice estamos perante um pacto de preenchimento expresso, pelo que a livrança em branco é válida, embora só produza efeitos cambiários depois da mesma se mostrar preenchida de acordo com o respetivo pacto de preenchimento, sendo certo que quem emite uma livrança em branco atribui a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com as cláusulas convencionadas entre ambos, designadamente no que concerne ao montante, conteúdo, tempo de vencimento, local de pagamento e à estipulação de juros; por outro lado, a entidade a quem é entregue o título de crédito a fim de o preencher deve fazê-lo de harmonia com o convencionado, sob pena de incumprimento do pacto, ocorrendo uma situação de preenchimento abusivo se o tomador do título cambiário desrespeitar a convenção (neste sentido, veja.se o Acórdão do STJ de 8 de julho de 2003, que tem como Relator SALVADOR DA COSTA, com texto integral disponível em www.dgsi.pt).

P. Apurou-se então que foi celebrado um pacto de preenchimento avalisado pelos Recorridos (cfr. ponto 5 dos factos provados) e que a livrança foi preenchida pela Recorrente no seu estrito cumprimento (cfr. ponto 6 dos factos provados) - preenchimento que nem sequer foi colocado em causa pelos Recorridos -, razão pela qual não se verifica qualquer preenchimento abusivo da livrança dos autos.

Q. Neste sentido, tendo os Recorridos, assinado e tomado conhecimento do acordo de preenchimento da livrança (veja-se os pontos 16 e 17 dos factos provados e os pontos 2 e 3 dos factos não provados), dúvidas não restam de que o pacto de preenchimento assinado pelos Recorridos autorizava a Recorrente a apor a data de vencimento que lhe conviesse, bem como a quantia da dívida, incluindo o capital, juros e despesas, com vista a que com essa livrança fosse intentada ação executiva no caso de incumprimento contratual, uma vez que, apesar de interpelados, os Recorridos nunca efetuaram o respetivo pagamento.

R. Citando novamente o Acórdão do TRC acima transcrito deverá ter-se em consideração o seguinte; “A Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças prevê, no seu artº 30 que o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval, sendo o dador do aval responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, de acordo com o estabelecido no artº 32. A responsabilidade do avalista pelo pagamento do título é assim solidária com a do aceitante do título e não meramente subsidiária, não obstante tratar-se de uma obrigação autónoma e independente. Este regime do aval das letras é igualmente aplicável às livranças, conforme dispõe o artº 77 III do diploma mencionado”, concluindo que “(…) os avalistas/oponentes encontram-se no âmbito das relações imediatas perante a entidade beneficiária do título exequendo, podendo por isso excepcionar o preenchimento abusivo do título, em caso de violação do pacto de preenchimento em que foram intervenientes- vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/02/2010 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/02/2011, ambos in. www.dgsi.pt”.. No mesmo sentido veja-se FERRER CORREIA in “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Coimbra 1956, pág. 197 e seguintes.

S. Nesta conformidade, não podendo os Recorridos serem considerados “aderentes” para efeito do regime jurídico da CCG, uma vez que não foram e não são partes do contrato de locação financeira mobiliária, nenhum dever de informação recaía sobre a Recorrente perante os Recorridos, pelo que a sentença deverá ser revogada nesta parte por errada interpretação e aplicação do direito.

T. Por outro lado, a Recorrente discorda da sentença recorrida quando afirma que o comportamento dos Recorridos não configura um claro abuso de direito. Ora, sucede que este entendimento, não obstante o acima referido quanto à inexistência de qualquer dever de informação da Recorrente para com os Recorridos, levou a que a Recorrente se veja privada de todo valor em dívida pelos executados, inexistindo assim qualquer sanção para o comportamento dos executados que não cumpriram com as obrigações a que resultavam da celebração do contrato de locação financeira mobiliária e do respetivo pacto de preenchimento de livrança em branco que lhe servia de garantia.

U. O comportamento cumpridor dos Recorridos que, enquanto pagaram as rendas acordadas e usufruíram dos bens locados nunca esgrimiram um único argumento de que iriam invocar a nulidade do contrato de financiamento ou as respetivas cláusulas, fez com que a Recorrente nunca tivesse tomado essa realidade como possível, pois o comportamento dos Recorridos não indiciava que tal situação pudesse alguma vez vir a ocorrer.

V. Por outro lado, o comportamento assumido pelos Recorridos perante a Recorrente nunca levou a que esta alguma vez suspeitasse que aqueles não consideravam as cláusulas do contrato de financiamento válidas, eficazes e vinculativas para o executado D... , bem como o respetivo pacto de preenchimento de livrança em branco que lhe serve de garantia. Como tal é razoável a Recorrente supor e pensar que o executado D... ou os Recorridos nunca iriam invocar tal nulidade do contrato, principalmente para se eximirem ao pagamento da totalidade das rendas em dívida, sendo certo que metade das rendas acordadas já tinham sido inclusivamente pagas.

W. O comportamento dos Recorridos configura um claro abuso de direito previsto no artigo 334º do CC, porquanto o exercício de qualquer direito está sujeito a limites e restrições, situação a que o Tribunal a quo não atendeu na sentença recorrida.

X. A Recorrente não pode discordar mais do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, pois do comportamento dos Recorridos, ao longo do tempo, não restam quaisquer dúvidas que aqueles criaram na Recorrente uma situação objetiva de confiança, ou seja, criaram na Recorrente a convicção de que no futuro iriam comportar-se de forma coerente, sem que tentassem encontrar motivos que pudessem levar à invocação de uma qualquer nulidade do contrato de financiamento ou do pacto de preenchimento de livrança em branco, para deste modo eximirem-se ao pagamento das obrigações a que livremente se vincularam quando prestaram o respetivo aval pessoal ao executado D... .

Y. O comportamento dos Recorridos criou na Recorrente a confiança de que o contrato iria ser integralmente cumprido, tendo esta organizado e efetuado planos de que os Recorridos não iriam eximir-se ao pagamento do financiamento concedido ao executado D... , tanto mais que os Recorridos na qualidade de avalistas foram sempre pagando os incumprimentos que iam sucedendo (para o efeito veja-se a motivação da matéria de facto no que respeita ao depoimento da testemunha F... ), ou seja, a Recorrente confiou no executado D... e nos Recorridos, sendo certo que o comportamento por este assumido violou, em clara posição contrária vertida na decisão recorrida, os mais elementares princípios de boa-fé em que a Recorrente assentou a sua posição contratual, conforme é o entendimento da maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, tanto mais que a Recorrente não está legalmente obrigada a prestar aos Recorridos qualquer dever de informação do clausulado do contrato de locação financeira mobiliária de que aqueles não foram partes.

Z. Considerando o caso em análise e a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, dúvidas não restam que estamos perante situações semelhantes ao da presente sentença à qual deverá ser dada mesmo tratamento jurídico, porquanto em todas as situações transcritas estamos perante mutuários que invocaram a falta de comunicação das cláusulas contratuais gerais, depois de terem visto financiado na integra a aquisição de um bem móvel (automóvel ou trator), de o terem utilizado na sua vida corrente e profissional desde a data da celebração do contrato de financiamento até resolução do mesmo e depois quando se viram numa situação de impossibilidade de cumprimento no pagamento das prestações vieram alegar as nulidades acima referidas.

AA. Tendo em conta o acima referido, dúvidas não restam que face ao comportamento do Recorridos e a confiança que criou na Recorrente, a decisão ora proferida coloca claramente em causa os direitos económicos da Recorrente, bem como o equilíbrio da relação contratual existente entre a Recorrente e os Recorridos que se vê com a decisão em causa privada dos valores a que tem direito e que resultam do incumprimento do contrato de locação financeira mobiliária, incumprimento esse que nenhum dos executados colocou em causa em Tribunal.

BB. A manter-se válida a decisão recorrida, tal levará à quebra do princípio da confiança e da proporcionalidade que são desejáveis existir nas relações jurídicas como a dos presentes autos de recurso, pois não se pode olvidar que a Recorrente adquiriu os bens locados ao fornecedor que o executado D... escolheu, sendo certo que apenas parte das rendas acordadas foram pagas e agora a Recorrente vê reconhecido pelo Tribunal a quo o direito aos Recorridos a eximirem-se do pagamento da totalidade da quantia em dívida, cuja verificação resultou e teve origem no incumprido culposo do contrato a que livremente se vinculou o executado D... e o os Recorridos aos avalizaram sempre deram a aparência de que o iriam cumprir.

CC. Nesta conformidade, dúvidas não restam que o comportamento assumido pelo executado D... e pelos Recorridos, objetivamente considerado, apresenta-se contrário ao princípio da boa-fé, dos bons costumes e do fim social ou económico do direito da Recorrente, devendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada por errada interpretação das disposições legais aplicáveis, uma vez que, o comportamento tido pelos Recorridos claramente configura um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium previsto no artigo 334º do CC.

Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, a douta sentença  recorrida deverá ser corrigida no sentido de admitir os valores descritos pela Recorrente nas alíneas c), d) e g) do ponto 29º do requerimento executivo, acrescida dos respetivos juros de mora, dando-se assim provimento ao presente ao recurso, julgando-se o mesmo totalmente procedente.

Não foram apresentadas contra-alegações.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se as cláusulas do contrato de locação, celebrado entre a Exequente e D... , onde se apoiam os valores relativamente aos quais a sentença recorrida julgou procedente a oposição devem considerar-se excluídas do contrato (e da presente execução) por não terem sido comunicadas aos aqui Embargantes, na qualidade de avalistas de uma livrança em branco subscrita por D... em garantia das obrigações emergentes daquele contrato;

• Saber se a invocação da exclusão dessas cláusulas pelos Embargantes constitui abuso de direito.


/////

III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1) O exequente C... , SA deu à execução a livrança constante nos autos principais a fls. 12/13, no valor de 8.247,44€, com data de emissão em 13.02.2012, em Lisboa, com data de vencimento em 13.02.2012, onde figura como sacador o banco C... e subscritor o executado D... .

2) No verso da referida livrança e sob os dizeres: “bom por aval ao subscritor”, constam as rubricas/assinaturas dos aqui embargantes e do executado D... .

3) Mostra-se junto aos autos um documento intitulado de contrato de locação financeira mobiliária com o n.º10900089, onde figuram como contraentes o C... , SA e o executado D... - cfr. fls. 8-11 dos autos principais.

4) Decorre de tal documento, além do mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, o seguinte: “(…) Bem Objeto do Contrato (…) Tractor Agrícola (…) Carregador Frontal (…) Balde (…); Fornecedor: Tracto Litoral (…) Prazo do Contrato: 72 meses (…) com início em 07.03.2009 e termo em 07.03.2015. Tipo de Rendas: Antecipadas. Periodicidade: Mensal (…) A Primeira Renda tem o valor de 6.510,00€ e as 71 restantes rendas o valor de 456,55€, acrescido dos devidos impostos às taxas legais em vigor (…) Valor Residual (…) para adquirir o bem: 1.302,00€, acrescido dos impostos que incidam sobre a venda à data em que a mesma tiver lugar (…)”.

5) Mostra-se junto aos autos principais a fls. 14 fotocópia de documento intitulado de “convenção de preenchimento de livrança em branco”, além do mais que aqui se dá por reproduzido com o seguinte teor: “Pela presente convenção o aqui primeiro outorgante ( D... ), na qualidade de seu subscritor, autoriza de forma irrevogável, o terceiro outorgante ( C... , SA) a preencher a livrança em anexo, à sua melhor conveniência de lugar, tempo e forma de pagamento, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, nos termos que correspondam às suas responsabilidades não satisfeitas (…) os segundos outorgantes ( B... e A... ) declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo do referido contrato de locação financeira e das responsabilidades que dele emergem para o primeiro outorgante, assim como as consequências do seu incumprimento, temporário ou definitivo, da sua resolução, caducidade ou ineficácia, autorizando, em consequência, o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados”.

6) No requerimento executivo, alega a exequente, além do mais que se dá por reproduzido, o seguinte: “(…) o valor total dos bens locados incluindo IVA (…) perfez o montante de €36.456 (…) face às sucessivas situações de incumprimento do pagamento das rendas pelo 1.º executado, a exequente, através de diversas interpelações telefónicas solicitou o pagamento das rendas em atraso, porém sem qualquer sucesso (…). Após a receção da carta de resolução o 1.º executado procedeu à devolução dos bens locados (…). As responsabilidades não satisfeitas dos executados resultantes do incumprimento do contrato de locação financeira são as previstas nos artigos 17.º, 20.º e 21.º das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira, e correspondem, in casu, às seguintes: a) rendas vencidas até à resolução: €1.039,02; b) juros de mora vencidos à taxa contratual até preenchimento da livrança: €33,48; c) cláusula penal acordada: €5.488,94; d) Despesas suportadas com a recuperação dos bens locados: €307,50; e) despesas de cobrança: €123; f) despesas judiciais realizadas com a presente ação executiva: €25,50; provisão para despesas judiciais ainda a realizar (acrescidas de IVA): €1.230. Tudo perfazendo o montante de €8.247,44”.

7) O Banco Exequente, por cartas datadas de 6 de Janeiro de 2012, informou os executados que procedeu à rescisão definitiva do contrato de locação financeira, concedendo ainda aos aqui embargantes a possibilidade de, querendo, se substituírem até ao dia 10.01.2012 ao titular do contrato na regularização dos montantes em dívida – fls. 17 a 22 dos autos principais.

8) O contrato de locação financeira atrás referido teve como intermediário a sociedade E... , Lda, sociedade que se dedica, entre outras coisas, à comercialização de máquinas agrícolas.

9) No âmbito dessa sua actividade, a E... e a exequente estabeleceram uma parceria de negócio em que aquela submete a esta pedidos de financiamento para máquinas agrícolas por si comercializadas junto dos seus clientes.

10) Foi esta sociedade que propôs ao primeiro executado a aquisição dos bens móveis identificados naquele contrato, quem apresentou o preço de aquisição, os termos de pagamento, o contrato e entregou os bens.

11) A assinatura do contrato e demais documentos associados ocorreu em casa dos executados em Março de 2009.

12) O contrato, a convenção de preenchimento e o auto de recepção vinham já preenchidos e apenas estavam em branco os espaços destinados à assinatura dos executados.

13) Com excepção das assinaturas dos executados e da identificação do beneficiário, a livrança foi entregue à exequente em branco.

14) Com excepção das cláusulas referidas em 4), todas as restantes constantes do referido contrato de locação financeira foram prévia e unilateralmente fixadas pela exequente sem qualquer intervenção dos executados.

15) Os embargantes limitaram-se a assinar os documentos que lhes foram apresentados pela intermediária da exequente.

16) Os embargantes sabiam que estavam a assumir a condição de “avalista” do executado D... , seu filho, e em caso de incumprimento de alguma das obrigações podiam ser demandados pela exequente para pagamento dos valores resultantes do referido contrato.

17) Os executados (inclusive embargantes) nunca colocaram quaisquer questões ou dúvidas sobre o clausulado do contrato e ou dos restantes documentos.

18) O primeiro executado usufruiu dos bens locados durante o período de tempo em que procedeu ao pagamento das rendas acordadas.

19) O primeiro executado pagou 32 rendas, não pagando a 33.ª renda que se venceu em 07.11.2011 e a 34.ª renda que se venceu em 07.12.2011.

20) Não obstante as interpelações que efectuou, nenhum dos executados procedeu ao pagamento das rendas em atraso à exequente.

E foram declarados como não provados os seguintes factos:

1) O teor das cláusulas referidas em 12) e do contrato em causa tenha sido comunicado e explicado aos embargantes, designadamente as relacionadas com a existência da cláusula penal, do respectivo teor e alcance da mesma, das condições necessárias à sua verificação e accionamento, da responsabilidade pelo pagamento das despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários e solicitadores, necessários à cobrança dos valores que viessem a ser titulados na livrança.

2) Os embargantes não teriam assumido a condição de avalistas se conhecessem integralmente o teor do contrato e respectivas cláusulas.

3) Os embargantes ficaram convencidos que com a entrega dos bens locados o contrato ficava resolvido e as quantias em dívida saldadas.


/////

IV.

A sentença recorrida julgou os embargos parcialmente procedentes, excluindo da execução os valores peticionados no requerimento executivo sob as alíneas c), d) e g) do ponto 29º, referentes a cláusula penal, despesas com recuperação, despesas de cobrança e provisão para despesas judiciais, em virtude de as cláusulas do contrato de locação financeira onde se apoiavam aqueles valores se deverem considerar excluídas do contrato.

Considerou, para o efeito: que aquelas cláusulas correspondem a cláusulas contratuais gerais; que, nos termos da legislação aplicável, a Exequente estava obrigada a comunicar essas cláusulas aos Embargantes; que a Exequente não logrou provar – como lhe incumbia – o cumprimento desse dever de comunicação relativamente aos Embargantes e que a invocação da exclusão dessas cláusulas não corresponde a qualquer abuso de direito.

A Apelante insurge-se contra essa decisão, sustentando, em primeiro lugar, que não tinha o dever de comunicar as aludidas cláusulas aos Embargantes, na medida em que estes não foram outorgantes no contrato onde elas estavam inseridas e sustentando, em segundo lugar, que a invocação da nulidade ou exclusão dessas cláusulas pelos Embargante constitui abuso de direito.

Analisemos, então, cada uma das questões que são colocadas à nossa apreciação.

É isento de dúvida – e tal não é sequer questionado – que as aludidas cláusulas do contrato de locação financeira (onde se apoiam os valores peticionados relativamente aos quais a sentença recorrida julgou procedente a oposição) correspondem a cláusulas contratuais gerais – sendo que, como consta do ponto 14. da matéria de facto, foram prévia e unilateralmente fixadas pela Exequente sem qualquer intervenção dos Executados – que, como tal, estão sujeitas aos regime instituído pelo Dec. Lei nº446/85, de 25/10.

Dispõe o art. 5º do citado diploma legal:

1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais”.

E, segundo dispõe o art. 8º a) do mesmo diploma, o incumprimento do dever de comunicação estabelecido no art. 5º determina a exclusão das cláusulas em questão.

Sendo certo que a Exequente não logrou fazer a prova de ter comunicado e explicado aos Embargantes as aludidas cláusulas, o que importa agora saber é se estava ou não obrigada a fazê-lo.

A Exequente entende que não e, na nossa perspectiva, tem razão.

De facto, como resulta da matéria de facto provada e dos documentos juntos aos autos, os Embargantes não tiveram qualquer intervenção no aludido contrato de locação financeira (onde foram inseridas as aludidas cláusulas); tal contrato foi celebrado (apenas) entre a Exequente e o Executado D... . Ainda que se afirme na sentença recorrida que “…resultou da prova produzida em audiência de julgamento que, em rigor, todos os executados eram parte no contrato, sendo que a posição formal assumida no contrato, um como locatário e os outros como avalistas ficou ao citério da exequente”, a verdade é que tal afirmação não tem qualquer expressão na matéria de facto que foi considerada provada – e só a esta poderemos atender – já que o que daí resulta é que o contrato de locação financeira foi celebrado entre a Exequente e D... .  

Ora, como decorre do disposto no citado art. 5º, o dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais inseridas em determinado contrato apenas se dirige aos “aderentes”, ou seja, aos contraentes que subscrevem e aceitam as cláusulas que lhe foram submetidas; tal dever não se estende – por inexistir qualquer disposição que assim o determine – a terceiros que, por qualquer razão ou em virtude de qualquer negócio que tenham celebrado ou venham a celebrar, assumam obrigações relacionadas com aquele contrato, como é o caso do avalista que, sem ter intervenção no negócio, dá o seu aval numa livrança que é entregue para garantia das obrigações que nele foram assumidas por outrem.

O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais – constante do Dec. Lei nº 446/85 – tem como objectivo introduzir alguns mecanismos que visam, por um lado, evitar os abusos decorrentes da imposição unilateral de determinadas cláusulas por parte de um dos outorgantes e, por outro lado, colmatar, de alguma forma, as restrições ao princípio da liberdade contratual que são inerentes aos contratos de adesão e onde um dos contraentes não tem qualquer possibilidade de negociar e influenciar os termos do contrato. De facto, porque a liberdade contratual continua a ser um dos princípios básicos do direito privado e porque, nos contratos de adesão, essa liberdade se limita à decisão de contratar ou não nos termos que lhe são impostos, é essencial que, pelo menos, o contratante conheça os termos e as cláusulas do contrato ao qual vai aderir, já que, se assim não for, falha o pressuposto básico que é inerente à formação de um contrato: um acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses[1]. Como refere António Menezes Cordeiro[2], “a presença, num contrato celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não tenham sido devidamente comunicados ou informados não corresponde ao consenso real das partes: ninguém pode dar o seu assentimento ao que, de facto, não conheça ou não entenda”.

Daí que o legislador, com vista a combater o risco de desconhecimento de aspectos significativos do contrato por parte do aderente[3], tenha feito recair sobre a parte que submete a outrem as cláusulas contratuais gerais o dever de as comunicar ao outro contratante e o dever de prestar as necessárias informações sobre o seu conteúdo (arts, 5º e 6º do citado Dec. Lei nº 446/85), mais determinando que o incumprimento desses deveres implica a exclusão dessas cláusulas do contrato (art. 8º do mesmo diploma). E, de facto, assim deverá ser, porquanto se as cláusulas não foram comunicadas ou esclarecidas, é evidente que as mesmas não foram consideradas pelo outro contratante e, portanto, não estão abrangidas na declaração de vontade que manifestou ao aderir ao contrato.

Concluímos, portanto, que a exclusão dessas cláusulas – por incumprimento do dever de comunicação e informação – radica na circunstância de o contrato não se dever ter por validamente formado ou concluído, no que respeita a essas cláusulas e, portanto, o contratante que aderiu ao contrato poderá opor esse facto ao contratante que lhe submeteu as respectivas cláusulas, sem lhe dar a conhecer o respectivo conteúdo.

Ora, no caso sub judice, o contrato de locação financeira nasceu e formou-se apenas entre a Exequente e o referido D... e com a sua adesão às cláusulas que lhe foram submetidas pela Exequente, o contrato ficou validamente concluído pelo encontro de vontades dos respectivos outorgantes, sendo totalmente irrelevante que os ora Embargantes desconhecessem essas cláusulas, porquanto a sua aceitação não era necessária à válida formação e conclusão de um contrato onde não haviam tido qualquer intervenção.

O contrato (acordo) no qual os Embargantes tiveram intervenção foi a convenção de preenchimento da livrança que foi entregue à Exequente (em branco) e com base na qual foi instaurada a presente execução.

Mas ainda que este acordo/contrato tenha como referência as obrigações assumidas por D... no contrato de locação financeira (por ser em função dessas obrigações que o aludido acordo delimita os termos do preenchimento da livrança), a verdade é que estamos perante contratos distintos e autónomos e, como tal, os Embargantes apenas poderiam invocar – com sucesso – a omissão do dever de comunicação (por parte da Exequente) de eventuais cláusulas contratuais gerais que estivessem inseridas no contrato que com ela celebraram (o acordo ou pacto de preenchimento da livrança) e às quais se tivessem limitado a aderir.

Mas a verdade é que esse acordo/contrato não se configura como um contrato de adesão e não contém quaisquer cláusulas que possam ser qualificadas como cláusulas contratuais gerais e relativamente à quais a Exequente estivesse obrigada ao cumprimento dos deveres de comunicação e informação, por força do regime instituído no diploma legal supra citado.

Nesse acordo, os Executados limitam-se a declarar que autorizam a Exequente a preencher a livrança em determinados moldes, ali declarando os ora Embargantes que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo do contrato de locação financeira e das responsabilidades que dele emergem para o Primeiro Outorgante, assim como das consequências do seu incumprimento, temporário ou definitivo, da sua resolução, caducidade ou ineficácia, autorizando, em consequência, o preenchimento da Livrança nos precisos termos exarados.

Ainda que, por via desse acordo, tenham autorizado o preenchimento da livrança por referência às obrigações que decorriam para D... do contrato de locação financeira (obrigações que declararam conhecer), os Embargantes não aderiram e não subscreveram qualquer cláusula deste contrato; o contrato já estava concluído entre a Exequente e D... e dele não decorria, naturalmente, qualquer obrigação para os Embargantes e, não sendo aderentes ou outorgantes nesse contrato, não eram destinatários de qualquer dever de informação ou comunicação, por parte da Exequente, relativamente a cláusulas nele inseridas. Refira-se que a obrigação dos Embargantes – que está aqui a ser reclamada – não radica no contrato de locação (no qual não tiveram intervenção), mas sim no aval que prestaram na livrança que serve de base à presente execução.

Os Embargantes limitaram-se a dar o seu aval numa livrança que D... havia subscrito em garantia das obrigações assumidas no contrato de locação e a celebrar com a Exequente um contrato por via do qual definiam os termos em que a livrança poderia ser preenchida, o que fizeram tendo como referência as obrigações e responsabilidades que pudessem advir para D... do contrato de locação, obrigações e responsabilidades relativamente às quais declararam possuir um perfeito conhecimento.

Todavia, não obstante terem efectuado essa declaração, dizem agora os Embargantes que, ao contrário do que ali declararam, não tinham um perfeito conhecimento do contrato de locação financeira e das responsabilidades dele emergentes, pelo menos no que toca às concretas cláusulas que estão em causa nos presentes autos.

Ora, ainda que – como resulta da matéria de facto provada – esse acordo ou pacto de preenchimento da livrança já viesse redigido, sendo entregue aos Embargantes apenas para aposição da respectiva assinatura, a verdade é que ele não contém qualquer cláusula contratual geral relativamente à qual impendesse sobre a Exequente um específico dever de comunicação e informação.

Mas, ainda que assim não fosse, sempre se deveria considerar cumprido esse dever.

Com efeito, e como resulta do disposto no nº 2 do citado art. 5º, aquela comunicação “deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência”.

Ou seja, apesar de a lei impor ao contraente que impõe as cláusulas o ónus de as comunicar ao outro contraente, exige-se também que este adopte um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo dessas cláusulas.

De facto, não se justificaria que a protecção concedida à parte mais fraca fosse ao ponto de abarcar as situações em que a falta de conhecimento das cláusulas apenas decorreu de um comportamento negligente ou pouco diligente dessa parte que, apesar de ter sido colocado em posição de conhecer essas cláusulas, não teve qualquer preocupação em assegurar-se do seu teor.

Assim, e face ao disposto no citado art. 5º, nº 2, deveremos considerar que aquele dever de comunicação é cumprido quando se proporcione ao outro contraente a possibilidade de, usando de comum diligência, tomar real e efectivo conhecimento do teor das cláusulas.

Nada existindo na lei que aponte para o facto de essa comunicação ter que ser oral – sem prejuízo do dever de informação, consignado no art. 6º, relativamente a aspectos cuja aclaração se justificasse e relativamente a esclarecimentos solicitados – afigura-se-nos que, por regra e sem prejuízo de situações em que se justifique outro procedimento, o cumprimento do dever de comunicação, a que se reporta o citado art. 5º, se bastará com a entrega da minuta do contrato, contendo todas as cláusulas (incluindo as gerais), com a antecedência que seja necessária – em função da extensão e complexidade das cláusulas – na medida em que, com a entrega dessa minuta, uma pessoa normalmente diligente tem a efectiva e real possibilidade de ler e analisar todas as cláusulas e de pedir os esclarecimentos que entenda necessários para a sua exacta compreensão.

Ora, o contrato aqui em causa (o contrato de preenchimento da livrança) tinha apenas uma página e era relativamente simples e de fácil compreensão, já que, em resumo, e na parte que ora nos interessa, apenas continha a declaração dos Embargantes no sentido de que tinham um perfeito conhecimento do contrato de locação financeira e das obrigações e responsabilidades dele emergentes para D... e que, como tal, autorizavam o preenchimento da livrança nos termos aí mencionados e que correspondiam ao valor daquelas obrigações e responsabilidades.

Não havendo qualquer razão para supor que os Embargantes tenham sido pressionados ou coagidos a assinar de imediato, terão tido o tempo necessário para ler o que estavam a assinar e, portanto, não poderiam deixar de saber que, pela aposição da sua assinatura, estavam a declarar que tinham perfeito conhecimento do contrato de locação financeira e, portanto, se essa declaração não correspondia à verdade (como vêm agora sustentar), poderiam ter solicitado os esclarecimentos necessários e poderiam ter solicitado uma informação mais pormenorizada relativamente aos termos e cláusulas daquele contrato de locação.

Parece, portanto, impor-se a conclusão de que os Embargantes, caso tivessem usado de comum diligência (como impõe o citado art. 5º) – diligência que, no caso, se resumia a ler a única folha que lhe era apresentada – teriam tomado conhecimento efectivo da declaração que estavam a efectuar com a aposição da sua assinatura, não sendo, por isso, legítimo que venham agora sustentar que, afinal e ao contrário do que declararam, não tinham conhecimento das cláusulas daquele contrato.

Mas, ainda que se concluísse – como pretendiam os Embargantes – pela nulidade do contrato de preenchimento da livrança ou pela exclusão das cláusulas que lhes diziam respeito por omissão do dever de comunicação e informação (e – reafirma-se – o cumprimento desse dever relativamente aos Embargantes apenas se poderia justificar relativamente a este contrato e não ao contrato de locação, onde não haviam tido intervenção), tal apenas significaria que deixaria de existir um pacto de preenchimento e que, como tal, inexistia, entre a Exequente e os Embargantes uma qualquer relação subjacente com base na qual se pudesse afirmar que a livrança estava no âmbito das relações imediatas e que lhes permitisse a invocação de um preenchimento abusivo; subsistiria, portanto, a obrigação cambiária resultante da aposição do aval, obrigação essa que não seria afectada pela nulidade do contrato de preenchimento ou pela exclusão das cláusulas do negócio que se reportavam aos termos do preenchimento da livrança[4].

Refira-se a este propósito, o que se escreve no sumário do Acórdão do STJ de 22/10/2013[5]:

Se o avalista opta por lançar mão da invalidade da cláusula que integra pacto de preenchimento em que interveio, com a respectiva exclusão do contrato, auto-exclui-se da intervenção no acordo de preenchimento e, consequentemente, do posicionamento que detinha no campo das relações imediatas com a beneficiária da livrança, a coberto das quais poderia invocar e fazer valer a excepção do preenchimento abusivo.

Para que se coloque uma questão de preenchimento abusivo, enquanto excepção pessoal do obrigado cambiário, é necessário que se demonstre a existência de um acordo, em cuja formação tenham intervindo o avalista e o tomador-portador do título, acordo que este último, ao completar o respectivo preenchimento tenha efectivamente desrespeitado.

Se, em substituição do pacto inválido e excluído nenhum outro se invoca, como obrigação desrespeitada no acto de preenchimento da livrança, então não há objecto sobre o qual possa ser alegado e discutido preenchimento abusivo, carecendo o avalista de fundamento para discutir uma eventual excepção, por isso que nenhuma violação de convenção consigo celebrada imputa aos demais signatários do título cambiário, por via da qual se mantivesse nas relações imediatas.

Assim sendo, sobra a posição jurídica de avalista, assumindo o aval a sua plena autonomia, mantendo-se aquele obrigado nos precisos termos resultantes da obrigação cambiária inerente ao aval dado”.

De todo o modo – reafirma-se – o único contrato no qual os Embargantes tiveram intervenção (o acordo de preenchimento da livrança) não corresponde a um contrato de adesão e não contém cláusulas contratuais gerais que a Exequente tivesse o dever de informar ou comunicar, sendo que o dever de comunicação e informação que sobre esta impendia no que toca às cláusulas contratuais gerais inseridas no contrato de locação financeira apenas tinha como destinatário o aderente/outorgante nesse contrato, inexistindo qualquer dever específico de comunicação e informação dessas cláusulas relativamente a quem – como era o caso dos Embargantes – não foi interveniente nesse contrato[6].

Assim, em face do exposto, não poderá subsistir a decisão recorrida.

Com efeito, pela aposição do aval na livrança que fundamenta a presente execução, os Embargantes assumiram a obrigação de pagar aquantia nela titulada, sendo responsáveis por tal pagamento nos mesmos termos que a pessoa por eles afiançada (o subscritor da livrança) – cfr. art. 32º da LULL. Porque a livrança ainda se encontra no âmbito das relações imediatas, poderiam os Exequentes, para se livrar da sua responsabilidade (ainda que em parte), alegar e provar que a livrança havia sido preenchida pela Exequente em desconformidade com o acordo/convenção de preenchimento que com ela haviam celebrado. Todavia, os Embargantes não invocaram – e não provaram – qualquer preenchimento abusivo, porquanto não alegaram e não provaram que a quantia aposta na livrança era superior ao valor das responsabilidades não satisfeitas do Executado, D... , no contrato de locação financeira (já que era esse, em termos gerais, o valor pelo qual autorizavam a Exequente a preencher a livrança), sendo certo que as cláusulas do contrato de locação financeira que estão aqui em causa não podem ter-se por excluídas do contrato por não terem sido objecto de comunicação/informação aos Embargantes, na medida em que estes não são outorgantes/aderentes nesse contrato.

E, face à procedência desta questão, é inútil a apreciação da segunda questão que havia sido suscitada pela Apelante, referente ao abuso de direito.


*****

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I. O dever de comunicação – a que alude o art. 5º do Dec. Lei nº446/85, de 25/10 – das cláusulas contratuais gerais inseridas em determinado contrato apenas se dirige aos “aderentes”, ou seja, aos contraentes que subscrevem e aceitam as cláusulas que lhe foram submetidas, com vista à celebração do contrato onde elas estão inseridas.

II. Tal dever de comunicação não se estende – por inexistir qualquer disposição que assim o determine – a terceiros que, por qualquer razão ou em virtude de qualquer negócio que tenham celebrado ou venham a celebrar, assumam obrigações relacionadas com aquele contrato de adesão, como é o caso do avalista que, sem ter intervenção no negócio, dá o seu aval numa livrança que é entregue para garantia das obrigações que nele foram assumidas por outrem.

III. Um contrato/convenção de preenchimento de uma livrança, no qual um dos outorgantes, na qualidade de avalista dessa livrança, se limita a declarar que autoriza o seu preenchimento pelo valor correspondente às obrigações do subscritor da livrança emergentes de um outro contrato por ele celebrado e a declarar que tem perfeito conhecimento dessas obrigações e do contrato de onde elas emergem, não é um contrato de adesão e não contém cláusulas contratuais gerais que estejam submetidas ao regime instituído pelo Dec. Lei nº446/85, de 25/10 e que imponham qualquer dever específico de comunicação ou informação pelo outro contraente.


/////

V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se, parcialmente, a sentença recorrida, determinando-se a total improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução relativamente a todos os valores peticionados.
Custas a cargo dos Apelados.
Notifique.

 

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria Domingas Simões

                        Nunes Ribeiro


[1] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª ed., pag. 201.
[2] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed., 2009, pág. 622.
[3] Cfr. António Pinto Monteiro, “Contratos de Adesão: o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais Instituído pelo Decreto-Lei Nº 446/85 de 25 de Outubro”, ROA, Ano 46, Vol. III, pág. 749.
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 15/05/2014, proc. nº  1419/11.7TBCBR-A.C1.S1, disponível em http://www.dgis.pt.
[5] Proc. nº 4720/10.3T2AGD-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, o Acórdão do STJ de 17/04/2008, proc. nº 08A727 e o Acórdão da Relação de Coimbra de 10/09/2013, proc. nº  3707/11.3TBVIS-B.C1, disponíveis em http://www.dgsi.pt.