Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
536/15.9T9FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º, 151.º, 154.º E 163, DO CPP
Sumário: I - A lei prevê a admissibilidade da prova pericial, pressuposta a relevância do seu objecto, quando a percepção ou apreciação de determinados factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, e não para, através dela e do seu valor probatório tarifado, afastar os outros meios de prova.

II - A perícia é a actividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos e tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Figueira da Foz – Instância Local – Secção Criminal – J1, foi o arguido A... , com os demais sinais nos autos, pronunciado para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos arts. 137º, nº 1 e 69º, nº 1, a), ambos do C. Penal, em concurso aparente com as contra-ordenações p. e p. pelos arts. 25º, nºs 1, a) e e e 103º, nº 2, ambos do C. da Estrada.

            Proferido o despacho saneou o processo e designou dia para julgamento, veio o arguido apresentar contestação, rol de testemunhas e requerer, além do mais, prova pericial, nos seguintes termos:

            “ (…).

            Nos termos do disposto nos artigos 151.º e seguintes do Cód. Processo Penal, requer que seja feita prova pericial e que o senhor perito, em função dos danos do carro e das lesões da vítima venha a determinar e responder às questões que de seguida se colocam:

1.º – Analisadas as lesões do peão, verifica-se que no momento do contacto entre o veículo e o peão, o peão encontrava-se com o seu lado esquerdo virado para o veículo?

2.º – Se isso indicia uma intenção de atravessamento da via da direita para a esquerda, segundo o sentido de circulação do veículo GM?

3.º – A velocidade determinada de pré-impacto do veículo GM situa-se entre os 35 e 50 km/h, sendo estes os limites mínimo e máximo de velocidades admissíveis para o acidente?

4.º – Qual o critério de cientificidade para determinar a velocidade?

5.º – Se seria possível o arguido com os danos na viatura e com os danos da pessoa circular a uma velocidade mínima 72 km/h? E porquê?

6.º – O relatório do Cabo da GNR obteve a velocidade que é indicada na acusação e na pronúncia provém de urna imagem esquemática genérica relacionada com estatística abstrata de atropelamentos?

7.º – E essa velocidade tem por base qualquer estudo, onde fossem considerados as características do veículo em causa (nomeadamente a massa, dimensões e geometria), os danos materiais existentes no veículo, as características do peão (massa, altura). e a tipologia de projeção?

8.º – As posições possíveis que o peão poderia assumir no momento do embate, variam entre as posições fora da passagem de peões e limite da passagem para peões?

9.º – Qual o local mais plausível do atropelamento do peão: dentro ou fora da passadeira;

10.º – A distância de projeção do peão determinada situou-se entre os 10,81 e os 15 metros;

11.º – Se realizado um estudo temporal o mesmo revela que, circulando o veículo com velocidades entre os 35 e 50km/h, e pelas distâncias de atravessamento do peão, o embate ter-se-á tomado inevitável devido ao tempo de exposição do peão ser muito reduzido para o condutor?

12.º – Não tendo este tempo de perceção suficiente para efetuar uma manobra de reação?

Dado o conhecimento técnico e científico que esta matéria implica requer-se esta perícia indicando-se corno perito o Senhor Engenheiro B... , com domicílio profissional na Rua da (...) Leiria, docente universitário de reconhecida competência na matéria, e pessoa de honorabilidade.

Requer-se que o senhor Engenheiro supra indicado seja ouvido na qualidade de perito em audiência de julgamento.

(…)”.


*

            Sobre este requerimento recaiu o despacho de 13 de Setembro de 2016, que tem o seguinte teor:

            Fls. 394 e segs. – Por legal e tempestiva admito a contestação apresentada pelo arguido, e bem assim, o requerimento probatório que a acompanha – cfr. art. 315º do CPPenal – com excepção da prova pericial requerida nos termos dos artigos 151º e segs. do CPP porquanto face aos elementos de prova já juntos, designadamente a apelidada “peritagem técnico-científica de acidente rodoviário junta pelo arguido” a mesma não se nos afigura essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

            Nesta conformidade, oficie-se às entidades melhor identificadas a fls. 407 para que identifiquem as pessoas em causa, sendo que após identificação devem concluir-se os autos (cfr. ainda último despacho proferido).


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            Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1.ª – Direito à prova significa a possibilidade real que os sujeitos processuais têm de participar ativamente na produção de prova, quer requerendo a sua admissão no processo quer participando na sua produção.

2.ª – O processo penal português, de estrutura acusatória integrado por um princípio de investigação, os sujeitos processuais têm o direito de apresentar e requerer as provas que contribuam ou possam contribuir para o direito a aplicar ao caso concreto, além do poder-dever do Tribunal recorrer a outros meios de prova dos apresentados pelos vários sujeitos processuais, desde que os considere necessários à descoberta da verdade.

3.ª – Na perspetiva do arguido o direito à prova é uma consequência do seu direito de defesa de defender-se provando; e na da acusação é também uma consequência do princípio da presunção de inocência, já que se não for afastada a presunção o arguido deverá ser absolvido, por falta de prova da acusação.

4.ª – A estrutura acusatória do processo penal português "significa, antes de mais, que cabe aos sujeitos processuais a definição das questões que devem ser submetidas a juízo, assim como fornecer os critérios de resolução dessas questões. É com o devido e estrito respeito ao comando constitucional, que "no processo acusatório, liga-se a "investigação da verdade material aos pressupostos do Estado-de-direito", limitando-a, assim, "pela observância escrupulosa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos" ANABELA MIRANDA RODRIGUES, ob. e loc. cits., podendo os sujeitos processuais, sem atropelos, sempre de acordo com a lei e a CRP intervir de acordo com as regras, para a definição do direito a aplicar ao seu caso.

5.ª – O modelo processual penal português sendo de estrutura essencialmente acusatória é, contudo, integrado por um princípio de investigação. Assim, o julgamento é realizado por um tribunal, tendo como limite o objeto do processo fixado pela acusação – na qual o tribunal não teve qualquer interferência, pois quem julga não é a entidade que acusa. O móbil do tribunal é a descoberta da verdade material. A verdade material não é a verdade absoluta ou ontológica, mas a obtida de forma intraprocessualmente válida. Assim, para além do poder da direção da audiência de julgamento, o tribunal não se queda às provas que lhe são apresentadas, podendo o juiz investigar por sua conta e sem impulso de qualquer sujeito os factos desde que tal se afigure necessário à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, conforme estatui o artigo 340.° n.º 1 do Código de Processo Penal.

6.ª – Na fase de julgamento, o poder do Tribunal recusar a admissão e produção de prova requerida, no que para o caso interessa, é nos termos do disposto no artigo 340.º n.º 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, artigo esse que foi violado no despacho em recurso, em obediência e como consequência do princípio da legalidade, quando os mesmos são legalmente inadmissíveis, ou quando são irrelevantes, quando são inadequados ou inobteníveis.

7.ª – O direito à prova de que é titular a defesa consta do artigo 6.° n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do artigo 14.° 3 do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, artigos esses que foram violados no despacho recorrido e bem assim foi violado o disposto no artigo 32.º n.º 5 da CRP.

8.ª – Sendo na fase de julgamento, como é o caso, que o direito à prova se afirma de forma plena, o arguido requereu a produção de prova pericial sendo certo que essa prova pericial requerida é uma prova de valor superior à outra prova produzida e que se venha a produzir no processo porquanto nos termos do disposto no artigo 163.º do Cód. Proc. Penal o juízo técnico, científico e artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, que quando tenha uma convicção diferente do juízo contido no parecer dos peritos deve para decidir de acordo com a sua convicção fundamentar tal divergência.

9.ª – O arguido requereu a realização de prova pericial nos autos, sendo que juntou um relatório que podendo contribuir para a descoberta da verdade nunca poderá ter o valor de prova pericial porque não ordenada e não realizada nos termos do disposto nos artigos 151.º e seguintes do Código de Processo Penal.

10.ª – Tendo o arguido requerido em tempo oportuno, na fase própria a realização da prova pericial, a mesma deve ser realizada até porque muito relevante para a descoberta da verdade e prova da versão do arguido que contraria a versão das testemunhas plasmadas nos autos em sede de inquérito.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, como é de inteira JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público alegando, em síntese, que, estando em causa um acidente de viação urbano que, aparentemente, não reveste grande complexidade, e não tendo ainda sido as eventuais versões do acidente, é pelo menos prematura a realização da pretendida perícia, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o conhecimento da requerida produção de prova pericial dever ser relegada para a fase do julgamento, já que só aí poderia aferir-se da sua necessidade ou não, e concluiu pelo parcial provimento do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Respondeu o arguido repetindo parte dos argumentos da motivação e concluiu pelo provimento do recurso.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se deve ou não ser deferida a requerida prova pericial.


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            Decidindo.

1. Constituem tema da prova, isto é, objecto da prova, todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (cfr. art. 124º, nº 1, do C. Processo Penal), aqui se incluindo, portanto, os factos relevantes alegados pela acusação e pela defesa bem como os resultantes da discussão da causa, e ainda, os factos dos quais podem ser inferidos aqueles outros.

A verdade processual – resultado da prova – é, como nota Figueiredo Dias, uma verdade subtraída à influência que sobre ela, através dos respectivos comportamentos processuais, acusação e defesa pretendam exercer, e também, uma verdade que, não sendo absoluta, há-de ser uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida (Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, pág. 193 e ss.).     

Nesta decorrência, afirmando o princípio da legalidade da prova, dispõe o art. 125º, do C. Processo Penal que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. Deste modo, são proibidas – nulas – as provas obtidas mediante métodos proibidos de prova (art. 126º, do mesmo código) e são, por outro lado, admissíveis todos os meios de prova que não sejam interditos por lei.

2. A prova pericial é um dos meios de prova previstos no C. Processo Penal, onde se encontra regulada, em termos gerais, nos arts. 151º a 163º.

A perícia é a actividade de avaliação dos factos relevantes realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, 2002, Verbo, pág. 197), dispondo o art. 151º do C. Processo Penal que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

A perícia é ordenada por despacho autoridade judiciária competente, oficiosamente ou a requerimento de qualquer sujeito processual (art. 154º, nº 1, do C. Processo Penal) o que significa que a sua determinação compete, na fase do inquérito, ao Ministério Público, com ressalva do caso previsto no nº 3 do art. 154º (cuja competência é deferida ao juiz de instrução), na fase de instrução, ao juiz de instrução e na fase de julgamento, ao juiz do julgamento.

Cremos não carecer de demonstração a afirmação de que o processo penal pátrio tem estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação (cfr. art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), princípio que, a nível infraconstitucional, tem sede no art. 340º do C. Processo Penal.

O arguido e ora recorrente requereu a prova pericial, formulando como questões a serem respondidas pelo perito, as que já havia formulado quando, na instrução, requereu também a realização de prova pericial, às quais acrescentou agora quatro novas questões [as formuladas sob os pontos 4º a 7º do requerimento de prova] que versam a razão de ciência da velocidade de 72 kms/h, atribuída ao veículo no momento do embate com o peão, no Relatório final do Núcleo de Investigação Criminal em Acidentes de Viação, da GNR, de fls. 161 a 168 [velocidade que foi transferida para a acusação pública e recebida no despacho de pronúncia].

Acontece que, quando na instrução requereu a perícia, juntou o documento de fls. 270 a 308, com o título «Relatório de Peritagem Técnico-Científica de Acidente Rodoviário», da autoria de CARE, Car Accident Reconstruction Experts, SERMOTIVE – Automotive Engineering Services, com residência na Rua da Carvalha, nº 570, 2400-441 Leiria, relatório este solicitado pelo arguido e referente ao acidente de viação mortal que integra o objecto dos autos.

As Conclusões deste relatório respondem às questões comuns à perícia requerida na instrução e aí indeferida, e à perícia de que agora cuidamos ou seja, aos pontos 1º a 3º e 8º a 12º do requerimento, supra transcrito, indeferido pelo despacho recorrido [sendo que os pontos 4º a 7º são, pelo seu próprio conteúdo, irrelevantes para o objecto da perícia].

Por outro lado, o cidadão indicado pelo recorrente para exercer as funções de perito tem como domicílio profissional, o domicilio da CARE, Car Accident Reconstruction Experts, SERMOTIVE – Automotive Engineering Services, o que só pode significar que não é alheio ao «Relatório de Peritagem Técnico-Científica de Acidente Rodoviário» já nos autos.

Assim, pretender a realização de uma perícia pelo sugerido perito, quando as questões relevantes que através dela se pretende responder, já se mostram respondidas por relatório técnico, aliás, de assinalável qualidade, da autoria de entidade onde exerce funções aquele perito, só pode redundar num novo relatório onde vão ser repetidas as conclusões daquele, o que significa uma supérflua, por inútil, produção de prova. E, cremos, é precisamente isto o que a Mma. Juíza a quo pretendeu significar quando, no excessivo laconismo do despacho recorrido, afirmou que, dada a existência nos autos do «Relatório de Peritagem Técnico-Científica de Acidente Rodoviário», junto pelo recorrente, a requerida prova pericial não é essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.  

Dir-se-á, em sentido contrário, que o novo relatório, porque integrado numa prova pericial, teria o seu valor probatório fixado na lei (cfr. art. 163º, nº 1 do C. Processo Penal), subtraído portanto, à livre apreciação do julgador, o que não acontece com o relatório de fls. 270 a 308, sujeito ao princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 127º do mesmo código), logo, susceptível de ser contraditado por prova testemunhal e documental, sendo, aliás, esta a aparente razão de ser do requerimento probatório do arguido relativamente à prova pericial (cfr. conclusões 8ª a 10ª).  

Porém, como supra se deixou dito, a lei prevê a admissibilidade da prova pericial, pressuposta a relevância do seu objecto, quando a percepção ou apreciação de determinados factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, e não para, através dela e do seu valor probatório tarifado, afastar os outros meios de prova.


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Em conclusão do que fica dito, não merece censura o despacho recorrido.

Fica, no entanto, ressalvada a faculdade de o tribunal decretar a produção de prova pericial, se no decurso do julgamento dúvidas vier a ter quanto à dinâmica do acidente, e as considerar removíveis por recurso a este meio de prova.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 24 de Maio de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)