Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1290/11.9T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
PARENTESCO
AGENTE
VÍTIMA
FURTO
ABUSO DE CONFIANÇA
INFIDELIDADE
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ÁGUEDA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 203º, 205º, 207º Nº 1 E 224º DO CP
Sumário: 1.- O artigo 207 nº 1 do CP apenas se reporta aos tipos aí referidos, 203 e 205 nº 1, ou seja, furto (não qualificado) e abuso de confiança (não agravado). Só nesses casos o procedimento criminal depende de acusação particular, nomeadamente, quando se verificar a relação de parentesco aí prevista;

2.- Apresentando a assistente queixa contra os arguidos imputando-lhes factos suscetíveis de integrar os crimes de furto qualificado e abuso de confiança face aos valores em causa que integrarão o conceito de valor consideravelmente elevado, quer o furto, quer o abuso de confiança não se reduzem ao tipo de crime particular, apesar da relação de parentesco entre os arguidos e a assistente.

3.- A lei ao tipificar o crime de infidelidade e ao exigir acusação particular quando houver a relação de parentesco, referida no nº 1 do art. 207 do CP, entre agentes e vítima, terá que ser esta a titular direta de interesses patrimoniais em relação aos quais houve violação dos deveres, no exercício de administração;

4.- Não estando em causa a administração de interesses patrimoniais diretos da assistente, embora de forma indireta possam estar em causa interesses patrimoniais seus, devido à sua qualidade de sócia, mas apenas a sociedade e administração do seu património, esta é que é a titular dos interesses patrimoniais cuja administração pelos agentes foi violadora dos deveres que lhes incumbiam.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.


No processo supra identificado foi proferido despacho no qual se declarou aberta a instrução requerida pela assistente A....
Inconformados apresentaram recurso, para esta Relação, os arguidos C... e D... (fls. 708 e seguintes) e B... (fls, 774 e seguintes).
No seu recurso os arguidos C... e D... formulam as seguintes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso:
…/…
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No seu recurso o arguido B... formula as seguintes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso:
…/…
Na resposta apresentada, a assistente conclui ~
…/…
Na resposta apresentada, o Magistrado do Mº Pº conclui:
…/…
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que os recursos devem ser julgados improcedentes.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:
***
É do seguinte teor o despacho recorrido:
Por ser a instrução legalmente admissível, estar em tempo, ter legitimidade, estando devidamente patrocinada tendo efetuado o pagamento da taxa de justiça, declaro aberta a instrução requerida pela assistente A... (fls.618 e seguintes) imputando aos denunciados a prática de um crime de furto, um crime de abuso de confiança e um crime de infidelidade - arts. 203, 224 e 205 do C Penal, respetivamente.
Autue como instrução sendo arguidos B..., C... e D... - art.57 nº 1 do CPP.
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Arguida a nulidade deste despacho, pelo arguido B..., veio a ser proferido despacho do seguinte teor:
Requerimento de nulidade de Fls. 704:
Veio o arguido B... arguir a nulidade do despacho que determinou a abertura da fase de Instrução alegando, em síntese, que a Instrução deveria ter sido rejeitada atenta a natureza particular dos crimes em causa nos autos sendo que, por outro lado, não contém o RAI a descrição dos factos imputados suscetíveis de integrar os crimes que são imputados aos arguidos.
Cumprido o contraditório veio o MP pronunciar-se a fls. 746 sustentando a improcedência do pedido.
Cumpre apreciar:
1 - Quanto à natureza particular dos crimes em causa no RAI:
Resulta do RAI agora em apreciação - constante de fls. 623 e seguintes, em especial de fls. 666 - que são imputados ao arguidos a prática de um crime de infidelidade p.p. artigo 224 do CP e de um crime de furto qualificado p.p. art. 204 nº 2 a) do C Penal.
Ao contrário do que, por mero lapso informático foi afirmado no despacho que admitiu a abertura da Instrução, não estão imputados os crimes de furto e de abuso de confiança, imputações que (isso sim) constavam do primeiro RAI apresentado nos autos (cfr. fls. 364).
Nenhum dos crimes afinal em causa tem natureza particular. Efetivamente:
- quanto ao furto qualificado não tem aplicação o invocado artigo 207 nº1 a) cujo âmbito é restrito ao furto simples;
- quanto ao crime de infidelidade está em causa crime supostamente praticado contra a ofendida (então) E... - SGPS entidade insuscetível de qualquer relação de parentesco com o arguido pelo que, não obstante o artigo 224 nº 4 do CP, não tem igualmente aplicação o mesmo artigo 207 nº 1 a).
2 - Quanto à alegada falta de indicação de factos:
Quanto à também invocada falta de descrição concreta de factos resulta do teor do RAI nomeadamente dos artigos 41 e seguintes que consta do mesmo:
_ arts. 56 e 57: que o arguido B... terá transferido mais de um milhão de euros de contas bancárias comuns com a ofendida A... para uma conta de que é titular juntamente com o segundo arguido;
_ arts. 66 e seguintes (em especial 96): que os arguidos procederam, à venda de participações sociais da ofendida E... SGPS por valor substancialmente inferior ao seu valor real, assim como a alterações à sua firma e sede social, atos que se terão traduzido numa total e absoluta destruição da ofendida, causando-lhe avultados prejuízos;
_ arts. 125 e 126: que a conduta integra grave violação dos deveres dos denunciados enquanto administradores da ofendida E...;
_ que os arguidos agiram voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhes não era permitida por lei.
Assim sendo, ao contrário do alegado, estão descritos factos suscetíveis de preencher os elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais dos crimes em causa, pelo que não se verifica o invocado vício.
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Decisão:
Face ao exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade.
Custas pelo arguido requerente fixadas no mínimo legal atento o lapso constante do despacho impugnado quanto aos crimes imputados aos arguidos no RAI agora em consideração.
No mais, aguardem os autos pelo decurso do prazo para resposta da reclamação apresentada contra a rejeição do recurso e, após, conclua.
Notifique.
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Analisando:
Nos recursos suscita-se a:
- questão da falta de legitimidade da assistente para requerer a abertura da instrução, por o procedimento depender de acusação particular;
- questão da falta de narração dos factos e direito que justifiquem a aplicação aos arguidos de uma pena pelos crimes em causa;
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Legitimidade da assistente:
Nos termos do art. 287 nº 1 al. b) do CPP, a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Mº Pº não tiver deduzido acusação.
É necessário que o procedimento não dependa de acusação particular;
E que o Mº Pº se tenha abstido de acusar.
Porém, o assistente não tem de seguir o entendimento expresso no despacho do Mº Pº proferido ao abrigo do art. 285 do CPP.
Mesmo que o Mº Pº notifique nos termos do art. 285 nº 1 do CPP, o assistente pode requerer a abertura da instrução, se os factos integrarem crime cujo procedimento não dependa de acusação particular.
No caso concreto o Mº Pº, numa primeira fase, arquivou o inquérito por entender que os factos denunciados não integravam qualquer crime, antes sendo questão a dirimir no foro cível e, numa segunda fase entendeu não acusar por entender tratar-se de crimes particulares, dadas as relações de parentesco entre os arguidos e a assistente (posição dos recorrentes).
Como se refere no Ac. desta Relação, de 1-03-2006, no recurso nº 15/06 (relator Dr. Brizida Martins), “É vedado ao assistente requerer a abertura de instrução relativamente a crimes de natureza particular”. Em tal situação, compete ao assistente deduzir acusação.
Aí se refere, “Como anota Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III Volume, Verbo, 1994, pág. 133 «Contrariamente ao que sucede nos crimes públicos e semipúblicos em que o assistente se discordar da posição do MP e quiser formular acusação autónoma, substancialmente diversa da do MP, terá de a submeter a comprovação na fase de instrução, nos crimes particulares a acusação pública é condicionada nos seu exercício e no seu conteúdo pela acusação particular (arts. 50, 51 e 285, n.º 3) pelo que qualquer divergência entre o assistente e o MP é nesta fase do processo juridicamente irrelevante. Não cabe ao MP promover a fiscalização judicial da acusação particular; essa fiscalização é oficiosa [art. 311, n.ºs 1 e 2, alínea a)] ou requerida pelo arguido através da instrução [art. 287, n.º 1, alínea a)]»”.
No caso vertente questionam os arguidos a falta de legitimidade da assistente, por entenderem que, por razões de parentesco entre a assistente e os arguidos, o procedimento criminal depende de acusação particular. E a ser assim, a assistente apenas teria legitimidade para deduzir acusação particular e nunca para requerer a instrução.
Mas será essa a realidade?
O art. 207 do CP apenas se reporta aos tipos aí referidos, 203 e 205 nº 1, ou seja, furto (não qualificado) e abuso de confiança (não agravado). Só nesses casos o procedimento criminal depende de acusação particular, nomeadamente, quando o agente for cônjuge ou descendente da vítima.
E a assistente apresenta queixa contra os arguidos imputando-lhes factos suscetíveis de integrar os crimes de furto qualificado e abuso de confiança que não se circunscreve apenas ao seu nº 1, tendo em conta os valores em causa.
Pelos valores em causa que integrarão o conceito de valor consideravelmente elevado, quer o furto, quer o abuso de confiança não se reduzem ao tipo de crime particular, apesar da relação de parentesco entre os arguidos e a assistente (agentes e vítima).
Assim que, relativamente a estes crimes não tem aplicação o estatuído no referido art. 207 nº 1 al. a) do CP, não dependia o procedimento criminal de acusação particular, pelo que a assistente tinha legitimidade para requerer a instrução.
Relativamente ao imputado crime de infidelidade (administrativa), p. e p. pelo art. 224 do CP:
Não está em causa a administração de interesses patrimoniais diretos da assistente, embora de forma indireta possam estar em causa interesses patrimoniais seus, devido à sua qualidade de sócia.
Mas, a lei ao tipificar este crime de infidelidade e ao exigir acusação particular quando houver a relação de parentesco, referida no nº 1 do art. 207 do CP, entre agentes e vítima, terá que ser esta a titular direta de interesses patrimoniais em relação aos quais houve violação dos deveres, no exercício de administração.
Estando em causa uma sociedade e administração do seu património, esta é que era a titular dos interesses patrimoniais cuja administração pelos agentes foi violadora dos deveres que lhes incumbiam.
Pelo que a assistente não se pode considerar “vítima”, nos termos estabelecidos no art. 207 nº 1 do CP.
Como diz o Mº Pº na resposta, a “vítima” era a sociedade e, dizemos nós que não há relação de parentesco entre pessoas singulares e coletivas.
Assim que e, relativamente a este crime não era necessário apresentar acusação particular.
E a assistente podia requerer a abertura da instrução.
E, factos e imputações havia na queixa, pois que esta é a segunda vez nos autos em que foi apresentado requerimento de abertura da instrução pela assistente, sendo que a primeira foi admitida, sem qualquer oposição, sendo a final decidido pela nulidade do inquérito e os autos remetidos aos serviços do Mª Pº.
Falta de narração de factos:
Há lugar a rejeição do requerimento de abertura da instrução, por extemporaneidade, incompetência do juiz ou, inadmissibilidade legal da instrução – art. 287 nº 3 do CPP.
Embora se tenda a alargar o âmbito da rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, conceito onde cabem realidades diversas – cfr. Maia Gonçalves em anotação ao art. 287 do seu Código de Processo Penal anotado e comentado - tem de ter-se em conta sempre o caso concreto.
A instrução tem como finalidade a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” –art. 286, nº 1 do CPP.
Quando a instrução é requerida pelo assistente, o seu requerimento “tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido” –Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal III, pág. 134 (sublinhado nosso).
Na instrução não se pode fazer uma verdadeira investigação e no final decidir pela pronúncia ou pela não pronúncia.
A instrução, não é um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação do tema factual que deve ser indicado quando requerida pelo assistente.
A finalidade da instrução em processo penal é, comprovar judicialmente a decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito com o fim último de submeter ou não o arguido a julgamento.
Por isso, ao ser requerida pelo assistente, tem de ter a estrutura de uma acusação para que, uma vez comprovada, se possa submeter o arguido a julgamento.
Como se refere no Acórdão nº 03P2299 do STJ, 24 de Setembro de 2003 (relator Cons. Henriques Gaspar), “1. A instrução, que é uma das fases preliminares do processo penal, visa, como dispõe o artigo 286, n° l, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
2. O requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
3. O requerimento de abertura da instrução, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287, n° 2, do Código de Processo Penal: a indicação «das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.
4. Na definição do objeto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.
5. O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório” (sublinhado nosso).
Este é, desde a vigência do atual CPP, o sentido da jurisprudência referindo já o Ac. da Rel. de Évora de 20-5-1997, in Col. Jurisp. tomo III, pág. 143, “o requerimento do assistente para a abertura da instrução, no caso de arquivamento pelo Mº Pº, é que define e limita o respetivo objeto do processo, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverão dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminatórias”.
Os recorrentes na motivação e conclusões dos recursos entendem que o requerimento de abertura da instrução não satisfaz estes requisitos, não contém uma “acusação alternativa”, não contém a indicação dos factos, necessários e suficientes.
Entendia-se que, “não podendo o requerimento deficiente ser indeferido, por não se verificar qualquer das causas de rejeição elencadas no nº 2 do art. 287 do CPP, deverá o mesmo ser objeto de um despacho de aperfeiçoamento – art. 123, nº 2 do CPP” – Ac. Rel. Évora de 14-04-1995, in Col. Jurisp. tomo II, pág. 280.
Mas a jurisprudência mais recente vai no sentido de que - “O requerimento de abertura de instrução não pode ser objeto de despacho de aperfeiçoamento” - Ac. da Rel. Lx., de 04-03-2004, in Col. Jurisp. Tomo II, pág. 124. Porque: A lei processual não prevê qualquer convite para o assistente aperfeiçoar tal requerimento; Os princípios de garantia de defesa do arguido, do acusatório e do contraditório, consagrados no art. 32 nº 1 e 5 da Constituição e enformadores do processo penal, não permitem a aplicação subsidiária do disposto no art. 508 nº 2 e 3 do CPC; Violaria o princípio da imparcialidade do juiz e poderia criar falsas convicções acerca dos caminhos a seguir para obter uma decisão favorável.
Acrescentaremos que, previamente, não deve o juiz manifestar qualquer opinião ou tecer quaisquer comentários donde possa inferir-se um juízo sobre a culpabilidade.
Jurisprudência mais recente que culminou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, de 12-05, in DR. 1ª S de 4-11-2005, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução apresentado nos termos do art. 287 nº 2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Porém, entendemos que não têm razão os recorrentes.
Relativamente à queixa, refere o Professor Figueiredo Dias in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 675: “No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. O que só é reforçado pelo disposto no art. 49º-3 do CPP, já acima referido. Não se torna necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor, v.g., como denúncia, acusação, etc. Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”
A queixa consiste numa manifestação de vontade inequívoca de responsabilização criminal do agente a quem se imputa um facto criminoso.
A questão da qualificação jurídica correta pode acontecer posteriormente à queixa.
Não é a qualificação jurídica exposta na queixa que vai vincular o Mº Pº, tanto mais que pode acontecer, como no caso dos autos, que os factos não são de fácil ou simples qualificação jurídica. Basta analisar o processo, recursos, respostas e vários despachos.
Face ao resultado do inquérito e do que se apurou, há de resultar a qualificação, levada ao processo no RAI, o qual, como se disse há de conter uma “acusação”.
No RAI não se pode esquecer a parte final do nº 2 do art. 287 do CPP, na parte em que refere que tal requerimento deve conter “a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283, nº 3 als. b) e c)”.
O requerimento de abertura da instrução deve incluir a tipicidade da conduta e se não a contiver, o JIC deve rejeitá-lo.
“Se o assistente requer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz, sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados”- Souto Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, 120-121.
A requerente da instrução deve dar cumprimento ao estatuído no art. 287 do CPP.
Mas os recorrentes dizendo que não deu, a assistente, cumprimento limitam-se a alegar que o RAI “não contem a narração das razões de facto e de direito”, sem consubstanciarem a alegada omissão.
Mas, e como se refere no despacho supra transcrito, que além de outros “_ arts. 56 e 57: que o arguido B... terá transferido mais de um milhão de euros de contas bancárias comuns com a ofendida A... para uma conta de que é titular juntamente com o segundo arguido;
_ arts. 66 e seguintes (em especial 96): que os arguidos procederam, à venda de participações sociais da ofendida E... SGPS por valor substancialmente inferior ao seu valor real, assim como a alterações à sua firma e sede social, atos que se terão traduzido numa total e absoluta destruição da ofendida, causando-lhe avultados prejuízos;
_ arts. 125 e 126: que a conduta integra grave violação dos deveres dos denunciados enquanto administradores da ofendida E...;
_ que os arguidos agiram voluntaria e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhes não era permitida por lei”.
Factos a ter em conta.
Sendo que se alega que os arguidos reunidos em assembleia geral deliberaram a venda das participações sociais que a E... detinha em todas as empresas do grupo que eles controlavam e a favor de uma empresa por eles constituída, além de mudarem a sede e alterarem o nome.
Assim, e entendendo que o RAI não consubstancia o que deve ser exemplo na elaboração de uma peça acusatória, também não há motivo para ser rejeitada.
Entendem-se os factos objetivos elencados no RAI e como foram praticados, quem os praticou e, quem foi vítima.
Questão diferente e que agora não cumpre analisar é se haverá pronúncia ou não.
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Face ao exposto entendemos pela improcedência das conclusões dos recursos, e o não provimento dos mesmos.
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Decisão:
Pelo que exposto ficou, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal em, com os fundamentos expostos, julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos B..., C... e D... e, em consequência, mantem-se o despacho recorrido de declaração de abertura da instrução.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça de 3 Ucs, para cada.


Jorge Dias (Relator)
Orlando Gonçalves