Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1034/11.5T2AVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 238º, Nº 1 DO CIRE
Sumário: I – Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (exoneração do passivo restante), nos termos das disposições do capítulo I do Título XII do CIRE – artº 235º.

II - A enumeração dos casos de indeferimento liminar previstos no nº 1 do artº 238º é taxativa.

III - Porque se trata de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do devedor à exoneração do passivo restante, o respectivo ónus de prova recai, como é jurisprudência cremos que unânime e decorre do artº 342º, nº 2 do Cód. Civil, sobre o administrador e/ou sobre os credores da insolvência.

IV - Ou seja, no caso das pessoas singulares não titulares de empresa, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 238º, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se, cumulativamente, o devedor: (1) não se tiver apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; (2) da não apresentação resultar prejuízo para os credores; e (3) souber, ou não puder ignorar sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

V - Não tendo o administrador e/ou os credores, designadamente os que se opuseram à exoneração do passivo, alegado e provado que do atraso na apresentação à insolvência resultou prejuízo para os credores, falta este requisito, não podendo o indeferimento liminar sustentar-se na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE.

Decisão Texto Integral: APELAÇÃO nº 1034/11.5T2AVR-C.C1
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. RELATÓRIO
D…, solteira, residente na Rua …, requereu, em 30/05/2011, no Juízo de Comércio de Aveiro, da comarca do Baixo-Vouga, a declaração da sua insolvência e, do mesmo passo, pediu a exoneração do passivo restante.
A insolvência foi declarada em 01/07/2011.
A Sr.ª Administradora da insolvência nomeada pronunciou-se favoravelmente à impetrada exoneração do passivo restante, no que não foi acompanhada pelos credores C…, S.A. e F…, S.A., que se pronunciaram desfavoravelmente, defendendo que aquele pedido deveria ser objecto de indeferimento liminar. Os indicados credores fundamentaram a sua posição em alegada inobservância do prazo de apresentação à insolvência, sustentando o C…, S.A. que “a situação da insolvente, manifestamente impedida de cumprir os seus compromissos, já se verificava pelo menos desde Abril de 2010, data do início do incumprimento de um dos empréstimos referidos na reclamação de créditos da credora” (cfr. acta da assembleia de credores e apreciação do relatório – fls. 126/127 dos autos) e informando a F…, S.A., que o incumprimento do contrato por si celebrado com a insolvente remonta a Outubro de 2010.
Após instrução do respectivo incidente, foi o pedido de exoneração do passivo restante indeferido por decisão datada de 31/10/2011.
Inconformada, a insolvente recorreu, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Não há notícia de que tenha sido apresentada qualquer resposta.
Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, consta-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:
a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) Nulidade da decisão recorrida;
c) (In)existência de fundamento para o indeferimento liminar.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Factualidade considerada provada pela 1ª instância
A 1ª instância assentou a sua decisão na seguinte factualidade:

2.1.2. Alteração da decisão sobre a matéria de facto
...
2.2. De direito
2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
A recorrente acusa a decisão recorrida de falta de fundamentação de direito e, consequentemente, invoca a nulidade da mesma.
Não há dúvida, face ao preceituado no artº 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e nos artºs 158º, nº 1, 659º, nº 2 e 666º, nº 3 do Cód. Proc. Civil, que as decisões dos tribunais, nomeadamente as sentenças, devem ser fundamentadas.
A inobservância desse dever de fundamentação importa a nulidade da respectiva decisão, como decorre do artº 668º, nº 1, al. b) – aplicável, até onde seja possível, aos despachos (artº 666º, nº 3) – segundo o qual é nula a sentença quando … não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O despacho de indeferimento liminar recorrido não padece, contudo, da enfermidade em causa.
Quanto aos fundamentos de facto, estão eles devidamente especificados, conforme decorre do item 2.1.1., supra, onde foram transcritos. E a recorrente não assenta a nulidade invocada na falta de tais fundamentos, antes a alicerçando na alegada omissão da especificação dos fundamentos de direito.
A esse propósito escreveu-se na decisão recorrida:
“A exoneração do passivo restante corresponde a concessão de benefício a insolventes pessoas singulares traduzido num perdão de dívidas, sendo irrelevante para o efeito tratar-se de reduzidas ou de elevadas quantias, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos.
Na medida em que tal benefício implica sacrifício dos interesses dos credores, o mesmo não é discricionariamente concedido; É necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta (Acórdãos da Relação do Porto de 05.11.2007 e de 09.01.2006 disponíveis no site da dgsi).
Nessa senda, e em obediência aos requisitos previstos pelo art. 238º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, importa considerar:
a) A tempestividade do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela insolvente (art. 236º, nº 1 do CIRE).
b) Não existem nos autos elementos que indiciem o fornecimento, pelos insolventes, de informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.
c) A insolvente não beneficiou da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início dos presentes autos de insolvência.
d) A ausência de condenação da insolvente por sentença transitada em julgado por algum dos crimes p. e p. nos arts. 227º a 229 do Código Penal nos 10 anos anteriores à instauração destes autos ou posteriormente (cfr. doc. de fls. 48).
e) A ausência de notícia de incumprimento pela insolvente do dever de informação e colaboração no decurso do processo,
f) A não aprovação de plano de insolvência ou de plano de pagamentos.
g) Existem porém elementos factuais nos autos que indiciam a existência de culpa da insolvente na criação e/ou agravamento da situação de insolvência, os mesmos que permitem concluir que a insolvente se absteve de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação, sem perspectiva séria de melhoria da respectiva situação económica, e com prejuízo para os seus credores.

Com efeito, sem considerar os montantes devidos pela utilização de cartão de crédito, até ao final do ano de 2008 e por força dos financiamentos que em 2005, 2007 e 2008 celebrou com o B…, o C… e o F…, a insolvente estava obrigada a pagar prestações no montante total de, pelo menos, cerca de € 580,00. Se considerarmos os rendimentos que auferiu em 2008, durante esse ano a insolvente dispunha de uma média mensal de € 856,00 (considerando 14 meses), pelo que em cada mês restavam-lhe cerca de € 275,00 para providenciar pelo seu sustento (alimentação, água, luz, gás, medicamente, etc.).
Em Fevereiro de 2009 a insolvente agrava o seu passivo ao contrair novo financiamento no montante de € 10.000,00 a pagar em 60 meses, que a obrigou ao pagamento de mais uma prestação, agora no valor mensal de pelo menos € 170,00, agravando assim para cerca de € 750,00 o montante das prestações fixas que a insolvente se comprometeu a pagar perante diversas instituições financeiras para reembolsar e pagar os montantes que por elas lhe foram mutuados. Em 2009 a insolvente auferia rendimentos no montante médio mensal de € 634,00 (considerando 14 meses).
Se acrescentarmos os valores/percentagens mínimas devidos pela utilização de (3) cartões de crédito (cerca de € 192,00, considerando que, conforme valores em dívida, foram utilizados até aos limites máximos do crédito por eles concedido), os encargos mensais da insolvente com prestações devidas a entidades financeiras ascendiam ao montante de cerca de € 937,00, claramente superior aos rendimentos mensais de que dispunha em qualquer um dos anos supra considerados.
Do que resulta que a insolvente contraiu obrigações que superaram a capacidade financeira que dispunha para proceder ao reembolso dos mesmos, e de acordo com o plano prestacional para o efeito contratualizado, e o que ocorreu única e simplesmente em consequência dos sucessivos financiamentos que contraiu e que sucessivamente foram agravando a respectiva taxa de esforço associada a qualquer financiamento em contraposição com os rendimentos auferidos e encargos já assumidos e que, como era expectável e logo se concretizou, comprometeu o cumprimento de todas as obrigações que assumiu, agravando a posição de todos os seus credores.
Tal cenário resulta ainda mais agravado pelo financiamento contraído em 2009 junto do U… pois, considerando o montante das prestações que até aí já suportava, e não detendo perspectivas da melhoria da respectiva situação, não podia deixar de saber que não dispunha de meios para cumprir todas as obrigações que assumiu até ao termo dos planos prestacionais pelos mesmos acordados.
Neste contexto impõe-se inexoravelmente concluir que foi a insolvente quem, conscientemente (pois sabia em cada momento os rendimentos de que dispunha, as obrigações que sobre si impendiam e as que por força de cada novo contrato assumia), se colocou numa situação de insolvência, assumindo sucessivos compromissos financeiros com instituições bancárias sem que dispusesse então ou perspectivasse dispor no futuro de rendimentos suficientes que lhes permitisse honrá-los até ao termo do plano prestacional de pagamentos por cada um deles previsto/acordado, para além do rendimento mensal proveniente do seu trabalho.
Tanto basta para o indeferimento do pedido de exoneração formulado pela insolvente, à semelhança aliás do que foi já decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra (acórdão de 02.11.2010, disponível no site da dgsi), com o qual concordamos e que passa a citar-se: (…) não se pode permitir que todo e qualquer devedor que, ao endividar-se “não pensou duas vezes em o fazer”, designadamente se tinha meios de liquidar as dividas que contraiu, se não agiu com transparência e boa fé, como e para que fins se endividou, possa, agora, contraídas avultadas dívidas, pretender, sem mais, pagar apenas uma parte delas, ao abrigo do regime excepcional do pedido de exoneração do passivo restante. (…). Daqui tem, pois, de se concluir que os requerentes não chegaram à situação em que se encontram por circunstâncias anómalas ou imprevistas. Não. Tal aconteceu porque pura e simplesmente contraíram dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar, que sabiam estar acima das suas possibilidades económicas, com prejuízo para os seus credores e sem que o seu comportamento revista as características que acima se deixaram referidas, pelo que não podem beneficiar do regime de exoneração do passivo restante, o qual, na nossa óptica, reveste carácter excepcional.
Em conformidade com o exposto vai indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.”
Embora se não refira expressamente na decisão recorrida em qual das alíneas do nº 1 do artº 238º do CIRE Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03 e alterado pelos Decretos-Leis nºs 200/2004, de 18/08, 76-A/2006, de 29/03, 282/2007, de 07/08, 116/2008, de 04/07 e 185/2009, de 12/08. As alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012, de 20/04, não são aplicáveis ao caso dos autos.
São do mencionado diploma todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem. é enquadrável a actuação da recorrente, justificadora do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, certo é que, tendo em conta o respectivo teor e os motivos invocados pelos credores C…, S.A. e F…, S.A. para se oporem à exoneração, o dito indeferimento se baseia na al. d) daquela disposição legal.
Ora, como ensinava o Prof. Antunes Varela Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 687., “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Ou seja, o facto de a decisão recorrida não referir expressamente em qual das alíneas do nº 1 do artº 238º se baseou para indeferir o pedido de exoneração do passivo restante não importa falta de fundamentação de direito nem, consequentemente, nulidade da dita decisão. Com efeito, a fundamentação em causa existe inegavelmente, apenas se podendo dela dizer que não é tão completa, esclarecedora e convincente quanto poderia ser.
Nega-se, pois, razão à recorrente no que concerne a esta questão.

2.2.2. (In)existência de fundamento para o indeferimento liminar
Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (exoneração do passivo restante), nos termos das disposições do capítulo I do Título XII do CIRE – artº 235º.
O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, decidindo o juiz livremente sobre a admissão ou rejeição se o pedido for apresentado no período intermédio – artº 236º, nº 1.
O pedido de exoneração é, de acordo com o nº 1 do artº 238º, liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º:
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
A enumeração dos casos de indeferimento liminar previstos no transcrito nº 1 do artº 238º é taxativa Acórdãos da Rel. do Porto de 15/07/2009 (Proc. 6848/08.0TBMTS.P1) e de 31/05/2010 (Proc. 7491/09.2TBMTS-D.P1), relatados pelo Des. Sousa Lameira, ambos em www.dgsi.pt. .
E, porque se trata de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do devedor à exoneração do passivo restante, o respectivo ónus de prova recai, como é jurisprudência cremos que unânime e decorre do artº 342º, nº 2 do Cód. Civil, sobre o administrador e/ou sobre os credores da insolvência Além de inúmeros acórdãos das Relações que nos dispensamos de aqui indicar, vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 21/10/2010 (Proc. 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1, relatado pelo Cons. Oliveira Vasconcelos) e de 06/07/2011 (Proc. 7295/08.0TBBRG.G1.S1, relatado pelo Cons. Fernandes do Vale), ambos em www.dgsi.pt. .
Como já atrás tivemos oportunidade de adiantar, embora a decisão recorrida não refira expressamente em qual das alíneas do nº 1 do artº 238º considerou enquadrável a actuação da recorrente, decorre do seu teor e dos motivos invocados pelos credores C…, S.A. e F…, S.A. para se oporem à exoneração, que o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante se baseou na al. d) daquela disposição legal.
A recorrente, como pessoa singular não titular de empresa, não tinha prazo para se apresentar à insolvência (artº 18º) mas, pretendendo beneficiar da exoneração do passivo restante, tinha o ónus de fazer essa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência sob pena de, mostrando-se reunidos os demais requisitos da al. d) do nº 1 do artº 238º, o seu pedido nesse sentido ser liminarmente indeferido.
Ou seja, no caso das pessoas singulares não titulares de empresa, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 238º, o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se, cumulativamente, o devedor: (1) não se tiver apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; (2) da não apresentação resultar prejuízo para os credores; e (3) souber, ou não puder ignorar sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Tendo em atenção a factualidade provada, o primeiro requisito – não apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência – mostra-se verificado.
Com efeito, a recorrente deixou de pagar as prestações dos créditos do C…, S.A. em Junho de 2010 (nºs 3 e 4 do elenco dos factos provados) e os do B…, do C…, do F… e da U…, em Outubro de 2010 (nºs 1, 2, 6, 7 e 9 do elenco dos factos provados), pelo que, pelo menos nesta última data (Outubro de 2010), a recorrente encontrava-se na situação de insolvência.
Como a apresentação à insolvência ocorreu em 30/05/2010, foi ultrapassado o aludido prazo de seis meses.
Parece-nos também claro que, face aos montantes das prestações dos créditos contraídos, aos rendimentos auferidos e até às desanimadoras previsões da economia nacional e europeia para os próximos anos, a recorrente sabia, ou não podia, sem culpa grave, deixar de saber, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Está também presente, portanto, o terceiro requisito – conhecimento, ou ignorância com culpa grave, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica do devedor.
A dúvida surge, porém, quanto ao segundo dos enunciados requisitos: resultar da não atempada apresentação à insolvência prejuízo para os credores.
Trata-se de questão que tem vindo a dividir a jurisprudência, onde se desenham duas correntes antagónicas: uma defendendo que esse prejuízo se presume judicialmente já que o decurso do tempo resultante do incumprimento do dever ou da não desincumbência do ónus de apresentação atempada à insolvência importa sempre atraso na cobrança dos créditos e, face ao vencimento de juros, o avolumar dos mesmos créditos, com o consequente aumento do passivo dos devedores Cfr. Acórdãos da Rel. Porto de 15/07/2009 (Proc. 6848/08.0TBMTS.P1, relatado pelo Des. Sousa Lameira) e de 20/04/1010 (Proc. 1617/09.3TBPVZ-C.P1, relatado pelo Des. Pinto dos Santos); da Rel. Lisboa de 02/07/2009 (Proc. 4432/08.8TBFUN-E.L1-2, relatado pela Des. Maria José Mouro) e de 28/01/2010 (Proc. 1013/08.0TJLSB-D.L1-8, relatado pelo Des. António Valente); e da Rel. Guimarães de 03/12/2009 (Proc. 2199/08.TBGMR.G1, relatado pela Des. Conceição Saavedra e Proc. 4141/08.8TBGMR.G1, relatado pela Des. Conceição Bucho), todos em www.dgsi.pt.; outra sustentando posição contrária, com o argumento de que, a ser assim, a inclusão de tal requisito na previsão da al. d) do nº 1 do artº 238º se mostraria inútil Acórdãos da Rel. Porto de 11/01/2010 (Proc. 347/08.8TBVCD-D.P1, relatado pelo Des. Soares de Oliveira) e de 19/05/2010 (Proc. 1634/09.3TBGDM-B.P1, relatado pelo Des. Ramos Lopes); da Rel. Lisboa de 14/05/2009 (Proc. 2538/07.0TBBRR.L1-2, relatado pelo Des. Nelson Borges Carneiro); e da Rel. Coimbra de 23/02/2010 (Proc. 1793/09.5TBFIG-E.C1, relatado pelo Des. Alberto Ruço), todos em www.dgsi.pt..
Já anteriormente, no acórdão de 07/09/2010, proferido no processo nº 72/10.0TBSEI-D.C1 Consultável em www.dgsi.pt. , este colectivo manifestou, ainda que sem unanimidade, dado o entendimento diferente de um dos membros (2º Adjunto), adesão à primeira das correntes referidas. Aí se exprimiu o entendimento de que “no incidente de exoneração do passivo restante, apurado que o requerente incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, não tendo tal dever, não se apresentou no prazo de seis meses previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, é lícito presumir judicialmente o prejuízo para os credores.”
Considerou-se, nesse sentido, que “na generalidade dos casos, verificada a situação de insolvência, quanto maior for a demora do devedor a apresentar-se maior será o prejuízo dos credores, seja pelo atraso na cobrança, seja pelo aumento, nomeadamente com o acumular de juros, do passivo, seja ainda pela mais que provável diminuição do património do devedor, decorrente, entre outros factores possíveis, do previsível menor zelo posto na sua conservação ou valorização”.
E que “tal entendimento não torna inútil a inclusão do requisito em causa na previsão da al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, já que essa inclusão permite ao devedor, ciente da apresentação tardia, alegar e provar factos que impeçam a utilização da presunção judicial em questão, obstando a que o julgador extraia de tal comportamento a indicada conclusão”.
Entretanto, outro dos membros do colectivo (1º Adjunto), no acórdão desta Relação proferido em 23/11/2010, no processo nº 1293/09.3TBTMR-A.C1 Também consultável em www.dgsi.pt. , por si relatado, reviu a sua posição, adoptando o entendimento de que “não integra o conceito normativo de «prejuízo» pressuposto pela al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros”.
Impõe-se, portanto, ao membro do colectivo que resta (Relator) reponderar a sua posição.
E, feita essa reponderação, não se mantém o anterior entendimento.
Com efeito, sendo certo que os fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração previstos nas diversas alíneas do nº 1 do artº 238º, nomeadamente na al. d), integram factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do devedor à exoneração e que, por isso, nos termos do artº 342º, nº 2 do Cód. Civil, o respectivo ónus de prova recai sobre o administrador da insolvência e sobre os credores, o anterior entendimento acabava, na prática, por transferir injustificadamente aquele ónus para o devedor.
Assim, no caso que nos ocupa, não tendo a Sr.ª Administradora e/ou os credores, designadamente os que se opuseram à exoneração do passivo, alegado e provado que do atraso na apresentação à insolvência resultou prejuízo para os credores, falta este requisito, não podendo o indeferimento liminar sustentar-se na al. d) do nº 1 do artº 238º.

Atento o teor da decisão recorrida, poderia colocar-se a hipótese de ter também tido em vista, ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a previsão da al. e) do artº 238.
De acordo com aquela alínea, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se … constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.
Prevê-se na alínea referida, de acordo com o Ac. da Relação do Porto de 17/10/2011 Proc. 23/11.4TBESP-C.P1, relatado pela Des. Anabela Luna de Carvalho, consultável em www.dgsi.pt. , como comportamento excluidor da concessão da exoneração, todo aquele que tenha contribuído ou tenha agravado a insolvência. Na análise de tal fundamento basta-se a lei com o fornecimento ao processo, pelos credores ou pelo administrador, de elementos indiciadores da probabilidade da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da insolvência. A culpa do devedor afere-se, assim, a partir de indícios e por um padrão de homem médio em respeito pelos seus credores.
Decorre dos factos provados que a recorrente foi, sobretudo a partir de 2005, contraindo sucessivos empréstimos junto de instituições bancárias ou equiparadas, provavelmente na tentativa de com uns ir pagando as prestações de outros e adiando a definitiva ruptura nos pagamentos.
No entanto, o último empréstimo contraído reporta-se a Fevereiro de 2009 (cfr. nº 9 do elenco dos factos provados) e a recorrente só em Junho de 2010 deixou de pagar as primeiras prestações, dos empréstimos do C…, S.A., e só em Outubro de 2010 deixou de cumprir as obrigações decorrentes dos demais empréstimos.
Ou seja, apesar da sua manifesta má situação económica, nada indicia que a recorrente tenha contraído novos empréstimos quando já tinha consciência plena de que estava impossibilitada de satisfazer as prestações a que com os mesmos se obrigava, o que afasta o dolo ou culpa grave da sua parte e, portanto, o preenchimento da previsão da al. e) do nº 1 do artº 238º.

Logram êxito, pois, na indicada medida, as conclusões da alegação da recorrente, o que importa a procedência da apelação, a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, com a prolação do despacho inicial a que aludem os artºs 237º, al. b) e 239º.

3. Decisão
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, nomeadamente com a prolação do despacho inicial a que aludem os artºs 237º, al. b) e 239º.
As custas são a cargo da massa insolvente.


Artur Dias (Relator)
Jaime Carlos Ferreira
Jorge Arcanjo