Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1170/11.8TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
COMPENSAÇÃO
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA TRABALHO DE LEIRIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 640º, NºS 1 E 2, AL. A), DO NCPC; 349º, Nº 5 DO CÓDIGO DO TRABALHO.
Sumário: I – O actual CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, dispõe no artº 640º, nº 1 que ao recorrente da decisão proferida sobre a matéria de facto assiste o ónus de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos impugnados.

II – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, também incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso... – nº 2, al. a).

III – Essa indicação deve ser feita, como é possível fazer e há muito se vem fazendo, por referência aos momentos constantes da gravação.

IV – O nº 5 do artº 349º do CT refere-se a uma compensação global e fim de contrato de trabalho em termos tais que aquela configura uma espécie de “preço do despedimento negociado”.

V – Trata-se de uma presunção legal no sentido de que ao ser estipulada uma compensação pecuniária de natureza global para o trabalhador, em caso de cessação do contrato de trabalho por acordo, a lei retira a ilação de que no respectivo montante já vão incluídos e liquidados os restantes créditos do trabalhador.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O autor intentou contra a ré acção declarativa de condenação, na forma comum, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 19.260,00, acrescido de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, a título de subsídios de turno não pagos e devidos, desde Maio de 2004 até Dezembro de 2011.

A ré veio contestar invocando a excepção de remissão abdicativa, alegando que em acção especial de impugnação do despedimento intentado pelo autor contra ela foi celebrada transacção mediante a qual foi declarado que a ré pagaria ao autor uma “compensação pecuniária global” pela cessação do contrato de trabalho. Mais alegou que a partir de Junho de 2004 foi acordado com os trabalhadores que passariam a trabalhar segundo um regime de horário flexível e não por turnos pelo que foi por isso que deixou de pagar os subsídios de turno, aumentando no entanto o vencimento dos funcionários e pagando-lhes um prémio.

O autor respondeu à contestação alegando não ter ocorrido qualquer remissão abdicativa porque havia ficado esclarecido, à data da celebração da transacção, que esta, nos termos em que foi elaborada, não incluía o direito de peticionar os créditos por subsídios de turno não pagos e que o autor entendia serem-lhe devidos.


*

Efectuada a audiência de julgamento, veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformado, o autor interpôs a presente apelação e, nas correspondentes alegações, apresentou as seguintes conclusões:

[…]


Juntou dois documentos.

A ré contra-alegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso e, ainda, pela inadmissibilidade da junção dos documentos e da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Apresentou as seguintes conclusões:

[…]

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se a Exmª Procuradora-Geral Adjunta no sentido de que não assiste razão ao recorrente.


*

II- Factos considerados provados pela 1.ª instância:

[…]


*

III. Apreciação

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Temos, então, que as questões que importa dilucidar e resolver, no âmbito das conclusões, se podem equacionar basicamente da seguinte forma:

- a admissibilidade da junção dos documentos apresentados pelo apelante com o recurso;

- a impugnação da decisão sobre a matéria de facto; previamente, se a mesma é admissível;

- se o tribunal a quo podia – tal como foi decidido na sentença recorrida – considerar ter ocorrido a verificação de uma remissão abdicativa;

- na resposta negativa a tal questão, se se impõe a reformulação da sentença condenatória.

 

1. a admissibilidade da junção dos documentos apresentados pela apelante com o recurso:

O apelante juntou com as alegações de recurso dois documentos. Um deles é referente a pedido de dispensa de sigilo profissional endereçado ao Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados pelas advogadas Dr.ªas A... e B..., tendo em vista o seu depoimento como testemunhas no presente processo relativamente à interpretação de transacção judicial. O outro é referente a despacho daquele Conselho Distrital a indeferir tal pedido.

A ré, como se disse supra, sustenta a inadmissibilidade dessa junção.

Analisemos, então, esta questão prévia:

A apelante apenas justifica a junção dos documentos, afirmando (nas alegações) que a junção dos documentos se mostrou necessária em função do julgamento proferido na 1.ª instância, uma vez que tinha a expectativa que o tribunal “a quo” considerasse provada a versão que apresentou na resposta à contestação sobre a interpretação daquela transacção, o que não sucedeu.

A junção de documentos, na fase de recurso, só é admissível nos casos excepcionais previstos no artigo 651.º n.º 1 do C. P. Civil.

A situação acolhida nessa norma e que o autor invoca é a da junção dos documentos apenas se mostrar necessária em virtude do julgamento na 1ª instância.

A junção de documentos com esse fundamento deve fundar-se no imprevisto da decisão recorrida, quer por razões de direito, quer por razões de prova (v. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, pag. 209). Seria este segundo caso o identificado pela apelante.

A decisão recorrida seria imprevista ou surpreendente se ela assentasse numa eventual insuficiência de prova que tivesse de ser produzida por documentos e com a qual a parte justificadamente não contasse.

Nada disto se passou. A prova em causa não dependia exclusivamente de documentos, nomeadamente dos agora juntos com o recurso. Por outro lado, tratando-se de matéria controvertida sujeita, em matéria probatória, à livre apreciação do julgador, o autor poderia razoavelmente prever do eventual interesse dos documentos, não podendo ter-se por imprevista ou surpreendente a decisão da 1.ª instância ao não considerar como provados os factos que alegou na resposta à contestação. Finalmente, a junção dos documentos em causa configura afinal uma tentativa de revelação indirecta de  alegados factos cuja revelação foi proibida pelo Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, não sendo de admitir que o que não foi antes “revelado” pela proibição imposta (o despacho em causa é anterior ao início da audiência de discussão e julgamento) o possa agora ser, não pela imprevisão da decisão da 1.ª instância, mas por indevida ampliação da produção de prova.

Por isso, entendemos que a junção dos documentos é extemporânea, pelo que não pode ser atendida, devendo ser mandados desentranhar e restituir, nos termos previstos no artigo 443.º n.º 1 do CPC.

2. a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

 Interessa antes de mais analisar da admissibilidade da impugnação da decisão de facto, sendo certo que a apelada sustenta que ela deve ser rejeitada, por incumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação dos depoimentos prestados em que se funda a impugnação.

O actual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (já aplicável ao presente recurso, por força do disposto no art. 7.º dessa Lei), dispõe que ao recorrente assiste o ónus de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e que (n.º 2 al. a)) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (sublinhado nosso).

Nas alegações do recurso, percebe-se que o apelante pretende que deveria ter ficado provado o seguinte: “que, na “compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho”, que a Ré se comprometeu a pagar ao Autor através da “transacção judicial” celebrada no processo nº (...), se não incluía qualquer valor para pagamento de “subsídios de turno” a que o Autor se julgava (e julga) com direito”; e que “o conhecimento desta questão, não obstante a referida “transacção judicial”, tenha sido expressamente relegado, pelas partes e respectivos mandatários, para uma outra acção em que apenas se dirimiria esse eventual direito do Autor a “subsídios de turno”.

Ou, na formulação exposta nas conclusões do recurso, que “deverá considerar-se provado que, entre os mandatários das partes, ficou explícito, em nome das partes, que a referência a “compensação pecuniária global”, na “transacção” efectuada no processo nº (...), não incluía o pagamento de eventuais créditos por subsídios de turno e que, tal questão, seria dirimida noutra acção, mais se comprometendo, os mandatários da Ré, a não excepcionar, nessa outra acção, tal compensação e a sua natureza”.

Percorrendo as alegações e conclusões do recurso para verificar se o apelante deu efectivo cumprimento ao ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sendo certo que convoca depoimento prestado pelo próprio e ainda o da testemunha C..., devemos concluir que o mesmo se não mostra cumprido, tal como assinala a apelada.

O apelante defende que não sabe como dar essa indicação depois da eliminação do art. 522.º - C e a alteração do disposto no art. 685.º- B, ambos do anterior CPCivil e porque não resulta, em concreto, do actual art. 640.º, n.º 2, alínea a) (do CPC vigente) «a que é que o recorrente se há-de arrimar para, “com exactidão”, indicar as referidas passagens da gravação...». Adiantando que só se «for por referência ao “sistema de gravação digital da aplicação Habilus Média Studio”, tal como consta da “acta de 15.07.2013” e sendo certo que, aí, em tal acta, se não assinala o início e o termo das respectivas gravações, o que impossibilita o Autor de indicar, com exactidão, por referência a tais coordenadas (minutos e segundos da gravação), aonde se encontram aquelas passagens...».

Ora, a gravação estava disponível, como podemos observar no respectivo CD que documenta a gravação, anexo ao processo, e dela constam as indicações dos momentos temporais das gravações produzidas.

A indicação deveria ser feita – como é possível fazer e há muito se vem fazendo desde que se procedeu a gravação em sistema digital – por referência aos momentos constantes da gravação. Não é difícil estabelecer essa indicação e, como dissemos, esse modo de indicação é há muito praticado.

Por isso, temos que concluir que o ónus de indicação em causa não foi cumprido, sem justificação atendível.

Deste modo, impondo a lei essa indicação e cominando a sua falta com a rejeição do recurso nessa parte, não pode este tribunal, ainda que ao abrigo dos seus podres oficiosos, acolher a impugnação, dando o que a lei expressamente manda rejeitar.

Por isso, importa reconhecer razão à apelada, importando rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto com base nos depoimentos assinalados.

Por outro lado, sustentando também o apelante a sua impugnação com base nos documentos que juntou com o recurso, não tendo estes sido aceites, como já dissemos, a impugnação daquela decisão tem de ser rejeitada na sua totalidade, improcedendo assim.

3. a questão da remissão abdicativa:

Na sentença recorrida, considerou-se o seguinte:

«Cabe-nos, em primeiro lugar, como questão prévia a todas as outras e que poderá prejudicar o conhecimento aferir da “compensação global pela cessação do contrato” – se determina a renúncia a créditos eventualmente vencidos na pendência da relação laboral ou não:

A este respeito escreve João Leal Amado in “Contrato de Trabalho”, 2ª edição, Coimbra Editora, com toda a sabedoria que lhe é reconhecida (págs 377 a 379), perdoando-se-nos a extensão da reprodução da sua verdadeira “lição de Mestre”, sobre o nº 5 do art 349º do CT:

“(…) Não sendo esta uma compensação devida ex vi legis, a grande frequência com que, na prática, é estipulada deve-se ao facto de ela surgir como uma espécie de “preço do despedimento negociado”. Com efeito, o acordo revogatório é (…) um autêntico despedimento negocial, então pode dizer-se que a compensação pecuniária será o preço a pagar pelo empregador ao trabalhador para que as negociações cheguem a bom porto.

Sucede que este nº 5 se refere à compensação e fim de contrato em termos cuja bondade é muito discutível. Na verdade, aí se pode ler que, sendo estabelecida uma compensação pecuniária global para o trabalhador, “presume-se que esta inclui os créditos vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude desta”. Trata-se, pois, inequivocamente, de uma presunção legal e de uma presunção legal que opera em benefício do empregador. Na ausência desta disposição legal, o estabelecimento de uma compensação pecuniária para o trabalhador em nada interferiria com o pagamento dos restantes créditos que lhe fossem devidos por força do contrato (salários em atraso, pagamento de horas suplementares ou nocturnas, etc) ou da sua cessação (retribuição e subsídio de férias, subsídio de Natal, etc.). A compensação pecuniária seria um plus, algo que acresceria àquilo que (…), o trabalhador sempre teria direito em função do contrato e/ou da respectiva cessação.

Ora, sucede que o estabelecimento desta presunção legal vem modificar os dados do problema, pois ao ser estipulada uma compensação pecuniária de natureza global para o trabalhador (facto conhecido) a lei retira a ilação de que no respectivo montante já vão incluídos e liquidados os restantes créditos do trabalhador (facto desconhecido). Ao imputar estes créditos na compensação a lei fragiliza-os e, diga-se, potencia surpresas sobremaneira desagradáveis para o trabalhador. Com efeito, enquanto declaratário normal e pouco versado em subtilezas jurídicas, o trabalhador a quem seja proposta uma compensação pecuniária de x em caso de revogação do contrato tenderá a pensar que, aceitando a proposta patronal, terá direito a receber x (valor da compensação) mais y (salários em atraso) e z (montante relativo a créditos de formação sucessiva, como férias ou subsídio de Natal). A lei, porém, presume que x já engloba y e z, o que, até tendo em atenção a função alimentar desempenhada pelo salário, parece dificilmente sustentável.

É certo que: i) a presunção legal só opera caso as partes estabeleçam uma compensação pecuniária de natureza global, pelo que nada a impede de esclarecer que a compensação será de x, sem prejuízo dos créditos y e z; ii) a própria natureza global da compensação não se presume, pelo que se as partes especificarem o título ao abrigo do qual o montante acordado será pago (indicando, p. ex., que este será devido a título de “indemnização pela cessação do contrato”) já à referida compensação não poderá ser atribuída uma natureza global; iii) por outro lado, o trabalhador apanhado de surpresa pela presunção legal pode lançar mão do direito potestativo previsto no artigo 350º do CT (cessação do acordo de revogação), desfazendo o negócio extintivo do contrato de trabalho (…).

A referida presunção legal encontra-se, todavia, firmemente ancorada no nº 5 deste preceito (…) tratar-se-á de uma presunção relativa ou absoluta, iuris tantum ou iuris et de iure? A presunção legal inverte o ónus probandi, admitindo-se, contudo, que o trabalhador a venha ilidir mediante prova em contrário? Ou a presunção é irrefragável, nada podendo o trabalhador fazer contra ela? (…) neste caso é manifesto que a lei não proíbe tal ilisão, pelo que ao trabalhador deverá ser admitida a prova de que, apesar de ter sido estabelecida uma compensação pecuniária de natureza global, as partes não pretenderam incluir nesta os mais créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação.

Seja como for, o certo é que a presunção legal existe, beneficia o empregador-devedor e, mesmo quando seja considerada uma presunção relativa, as dificuldades probatórias experimentadas pelo trabalhador revelar-se-ão em boa parte dos casos, insuperáveis.”

E é o que acontece no caso em análise.

Com efeito:

- tendo em conta o teor literal da cláusula 2ª do acordo a que as partes chegaram “A Ré compromete-se a pagar ao Autor a quantia supra mencionada, a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho (…)”;

- o acordo foi redigido por ilustres advogadas que não poderiam desconhecer o valor probatório de tal expressão e não por um empregador que impõe a sua vontade a um trabalhador desprotegido e não conhecedor do disposto na respetiva disposição legal;

- não se provou que entre as mandatárias tenha ficado explícito, em nome das partes que o estabelecimento de ta cláusula, não incluíria o pagamento de eventuais créditos por subsídios de turno nem quaisquer outros deveres do empregador para com o trabalhador.

- a tal não obsta a prévia instauração de ação comum emergente de contrato de trabalho a peticionar créditos por subsídios de turno uma vez que ao celebrarem a transação já as partes tinham conhecimento da ação e, não obstante, mantiveram a expressão “compensação pecuniária global”, com todo o sentido jurídico que a mesma tem, pelo que o ónus de provar que não estariam aqui englobados créditos vencidos emergentes da relação contratual cabia ao trabalhador, o que não conseguiu fazer, conforme factos não provados.

Assim, operando a presunção legal, não ilidida, pelo trabalhador improcede também a ação, ficando prejudicadas todas as demais questões levantadas.»

Como se observa desta fundamentação, ela faz apelo à presunção a que alude o art. 349.º n.º 5 do Código do Trabalho, presunção relativa ao estabelecimento de uma compensação pecuniária global no caso de cessação do contrato de trabalho por acordo entre as duas partes, empregador e trabalhador.

A transacção judicial em causa foi feita na pendência de acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, na qual o autor impugnou despedimento declarado pela ré. A subsistência do contrato de trabalho estava assim latente.

Nessa transacção, pela qual as partes colocaram termo à causa, o autor reduziu o pedido reconvencional à quantia de € 5.600,00, comprometendo-se a ré a pagar a autor essa quantia, a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho.

Podemos deduzir daí que a transacção comporta de forma indirecta um acordo de revogação do contrato de trabalho, na medida em que as partes colocam termo à discussão sobre a validade do despedimento, acordando na cessação do contrato de trabalho.

Assim, a declaração à qual a sentença recorrida atribuiu os efeitos de declaração remissiva podia produzir efeitos na extinção dos créditos do autor por via da aplicação da aludida presunção estatuída naquele art. 349.º do Código do Trabalho, tal como se enunciou na sentença recorrida.

Poderia a mesma transacção ser interpretada como remissão abdicativa por parte do autor?

Tratando-se de renúncia a reclamar direitos, situamo-nos no domínio do contrato de remissão (a renúncia, enquanto negócio jurídico unilateral, não é reconhecida em termos típico-legais no domínio das obrigações, como causa de extinção de créditos – v. Pires de Lima/Antunes Varela, in Cód. Civil Anotado, Vol. II, anotação ao artigo 863º). A remissão constitui uma causa de extinção das obrigações prevista no capítulo VIII do título I do livro II do Código Civil. O art. 863º do Código Civil caracteriza-a como a renúncia contratual do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aceitação do devedor, podendo revestir a natureza de remissão donativa e de remissão puramente abdicativa (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II volume, 7ª ed., pág. 247 e segs.).

O apelante defende que os termos da transacção firmada não permitem concluir pela remissão.

Por um lado sustenta que era intenção das partes subtraírem a questão dos subsídios de turno, objecto desta acção, do âmbito da transacção. Mantendo-se a matéria de facto provada tal como foi decidida na 1.ª instância, logo se nota que o autor não provou essa alegada intenção, pelo que por aí não procedem os seus argumentos.

Mas, por outro lado, alega que as declarações constantes da transacção não permitem concluir que o autor aceitou o pagamento da quantia acordada a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho, já que foi apenas a ré que declarou, unilateralmente, que o compromisso por si assumido o era a esse título, apenas ela se vinculando nessa parte.

Observando os termos da transacção, constante dos autos em questão, verificamos que as partes declaram «celebrar a presente transacção judicial, nos seguintes termos:

1.º O Autor reduz o pedido reconvencional à quantia de € 5.600,00 (cinco mil e seiscentos euros).

2.º A Ré compromete-se a pagar ao Autor a quantia supra mencionada, a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho, nos 8 dias subsequentes à celebração do referido acordo, através de cheque a enviar para o escritório da Ilustre Mandatária do Autor.

3.º As custas devidas a juízo, com renúncia a custas de parte e procuradoria na parte disponível, serão suportadas em partes iguais por Autor e Ré.»

É exacto que, nos termos literais da transacção, está escrito que é a ré quem assume o compromisso de pagar a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho.

Contudo, essa declaração não surge num contexto de simples proposta negocial unilateral. Ela surge inserida num contrato entre as partes, um contrato de transacção, figura contratual  tipificada nos arts. 1248.º a 1250.º do Código Civil.

Tratando-se de um contrato, cada uma das suas cláusulas pressupõe a aceitação de ambas as partes.

Na verdade, interpretando o sentido normal da declaração, como o impõe o artigo 236º do Código Civil, colocando-nos na posição de um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não nos parece possível considerar que o sentido da declaração que incorpora a menção “a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho” não recolhesse a aceitação do autor. Resulta do texto da transacção que as partes declararam «celebrar a presente transacção judicial, nos seguintes termos”, sendo estes os que foram constantes das três cláusulas estipuladas, incluindo a assinalada menção.

Por isso, temos de concluir que o autor aceitou a quantia fixada a título de compensação pecuniária global pela cessação do contrato de trabalho, tal como o entenderia um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário. Essa menção, na mesma abordagem, tem que ter o sentido útil de significar que o autor não pretendia discutir o direito a outros montantes. Os factos provados não permitem estabelecer que o autor não pudesse razoavelmente contar com esse alcance ou que a ré soubesse que era diferente a vontade real do autor.

Nesta medida, não podemos também concluir pela verificação de abuso do direito – como o autor defende (na modalidade de “venire contra factum proprium”) -, já que nenhum facto provado aponta para o conhecimento pela ré da vontade real do autor de não incluir na compensação a questão dos subsídios de turno ou para que as negociações que antecederam a transacção tivessem afastado essa mesma questão do seu âmbito.

Deste modo, o juízo expresso na sentença recorrida afigura-se-nos o adequado, pelo que fica prejudicada a apreciação da questão sobre a existência dos créditos peticionados na acção, a título de subsídio de turno.

E assim improcederá a apelação.


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IV- DECISÃO

Termos em que se delibera:

a) ordenar o desentranhamento dos documentos juntos pelo apelante com o recurso e a sua restituição ao mesmo;

b) julgar improcedente a apelação.

 Custas pelo autor apelante.


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(Luís Azevedo Mendes - Relator)

 (Felizardo Paiva)

 (Jorge Loureiro)