Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7168/15.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE
Data do Acordão: 09/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 32.º DO RGCO; ARTS. 34.º E 35.º DO CP
Sumário: I - O RGCOC não contém, no respectivo articulado, normas que prevejam especificamente, quer o estado de necessidade desculpante, quer o direito de necessidade, havendo que, por força do disposto no seu art. 32.º, lançar mão da regulamentação contida sobre estas causas de exclusão, no C. Penal.

II - O estado de necessidade desculpante, manifestação do princípio da inexigibilidade, pressupõe uma colisão entre bens jurídicos, em que a integridade do bem em perigo só pode ser assegurada mediante o sacrifício de bem jurídico alheio, quer ao titular do bem em perigo quer ao próprio agente da acção que não é o titular daquele bem.

III - Atento tempo necessário para que a recorrente pudesse chegar à cabeceira da doente, mesmo que, por hipótese de raciocínio, se tratasse de uma emergência médica, a acção salvadora – condução de veículo em excesso de velocidade – não seria nem adequada, nem indispensável, desde logo porque, o que se impunha e era viável, no caso concreto, era que a recorrente tivesse promovido e imediata observação por outro médico ou a transferência da paciente para um serviço de urgência e, se não as duas, pelo menos a última destas opções era sempre possível.

IV - Não se verificando a actualidade do perigo e a adequação e indispensabilidade da acção salvadora, não estão verificados os requisitos da invocada causa de exclusão da culpa.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

            Por decisão delegada de 21 de Março de 2014 do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, a arguida A... , com os demais sinais nos autos, foi condenada, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts. 27º, nº 2, a), 2º, 28º, nº 5, 138º, 143º, 145º, nº 1, b) e 147º, nº2, todos do C. da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de setenta e cinco dias.

Inconformada com o decidido, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial o qual, por sentença de 15 de Março de 2015, foi julgado improcedente, com a consequente confirmação da decisão administrativa nos precisos termos em que foi proferida. 


*

            Novamente inconformada com a decisão, recorre a arguida, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1.) Nos presentes autos de recurso de impugnação judicial, vem a arguida acusada em súmula do seguinte: "(…) no dia 23.04.2013, na A25 (E/O), Km 95,3, nesta comarca de Viseu, a arguida circulava à velocidade de, pelo menos, 126 km/h, correspondente à velocidade registada de 133 km/h, deduzida a margem de erro legalmente prevista, sendo o limite máximo de velocidade permitido no local de 80 km/h".

2.) Tendo, por decisão administrativa datada de 21 (vinte e um) de Março de 2014 (dois mil e catorze), sido condenada pela prática da contra-ordenação acima mais bem identificada, prevista e punida pelos artigos nas 27.º n.º 2, alínea a) 2.º, 28.º n.º 1 alínea b e n.º 5, 136.º e 145.º todos do Código da Estrada, e não se conformando com a bondade de tal condenação, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial;

3.) Efectuado julgamento em 1.ª instância, a recorrente logrou provar à saciedade, que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, deslocava-se da Covilhã para o Hospital x... , em (...) , Matosinhos, na sequência de uma chamada telefónica daquele Hospital a solicitar a sua comparência com urgência para observar uma paciente que se mostrava indisposta e havia sido intervencionada cirurgicamente pela arguida no dia anterior, para despiste de possíveis anomalias relacionadas com o pós-operatório c avaliação e encaminhamento para os serviços competentes de urgência, se necessário;

4.) Não obstante o acima narrado facto ter sido julgado provado, entendeu o tribunal "a quo", que tal facto não permite a aplicação do instituto do estado de necessidade desculpante, concluindo pela total improcedência do recurso de impugnação judicial oportunamente movido pela aqui recorrente;

5.) A recorrente não se pode contentar com a bondade da decisão, porquanto a mesma é contrária ao direito entre nós vigente, e por isso ilegal, encontrando-se de resto em colisão com a boa jurisprudência já produzida no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente através do douto Aresto n.º 1549/14.3T8VCT.G1, do Tribunal da Relação de Guimarães;

6.) O supra citado Aresto, aplica-se "mutatis mutandis" aos presentes autos, porquanto se tratam de situações similares, acrescendo ainda no caso vertente, o facto da recorrente ser médica de profissão, e ter sido chamada de urgência por um hospital nessa mesma qualidade;

7.) Sobre a recorrente impendem questões profissionais e éticas que a obrigaram a incumprir os limites de velocidade fixados para o troço no qual foi apanhada a transgredir, mas sempre sem perder de vista que o bem último (saúde e vida de uma paciente) se sobrepõem às questões de limites de velocidade rodoviárias;

8.) Até porque, quer da acusação que lhe é formulada, quer da douta sentença, jamais ressalta que tal excesso de velocidade tenha causado constrangimentos de qualquer tipo aos demais automobilistas e/ou à própria recorrente;

9.) A recorrente só não procedeu à junção dos relatórios médicos da sua paciente, porque tal facto colidiria com o seu dever de sigilo médico, sendo certo que compareceu na audiência de julgamento – uma vez que foi convocada para esse efeito – e o tribunal "a quo" prescindiu de ouvir o seu depoimento – salvo melhor opinião, indevidamente, se o referido tribunal usou posteriormente tal facto para se manter na dúvida;

10.) Isto claro está, quando a recorrente – médica há largos anos, e pessoa idónea que ajuramentada – jamais iria mentir e/ou relatar factos falsos ou imprecisos aquando da sua inquirição;

            11.) Sendo ainda certo que num caso como este, e mais uma vez sempre salvo melhor opinião, e pelo respeito máximo pela descoberta da verdade material, poderia e deveria a recorrente ter sido ouvida para que o meritíssimo juiz "a quo" tivesse a sensibilidade que o caso em apreço merecia, não que se quedando pelas duas condenações anteriores da recorrente, por motivos bem diversos e nada conexos com o exercício da sua profissão;

12.) Resultou provado à saciedade, quer da audiência de julgamento, quer dos próprios documentos juntos pela recorrente, que a mesma actuou em estado de necessidade desculpante, o qual obviamente teria de ser actual, uma vez que foi chamada com urgência naquele preciso momento;

13.) De todo o processado até agora, resulta cristalino que "(…) o arguido não agiu em circunstâncias normais mas, antes, exposto a uma pressão motivadora extraordinária. Por isso, "o facto não expressa um sentimento hostil ao direito e censurável, como seria se não existisse a situação de conflito" (Wessel, ob. e loc. citados).";

14.) Segundo as circunstâncias do caso em concreto, não seria exigível à recorrente que optasse por outro comportamento diferente do adoptado;

15.) Daí, que o comportamento ilícito não mereça um juízo de censura pelo que, data vénia, se requer a absolvição da recorrente da contra-ordenação pela qual vem acusada;

16.) Se a recorrente não tivesse agido como agiu, provavelmente na actualidade poderíamos estar perante um crime de omissão de auxílio e/ou perante um processo disciplinar movido à mesma, por falta de cuidados para com uma sua paciente, por si cirurgicamente intervencionada;

            17.) Ainda para mais, quando a área da ginecologia-obstetrícia apresenta especificidades que não são domináveis quer pelos médicos de medicina interna, quer pelos médicos anestesistas, tais como hemorragias internas;

18.) No mais, e não menos importante, o tribunal "a quo" não deu como provado que o perigo que a paciente da recorrente atravessava poderia ser removível de outra forma, motivo pelo qual terá forçosamente de ser julgado procedente o presente recurso;

19.) Parafraseando novamente o sobredito Aresto n.º 1549/14.3T8VCTG1, do Tribunal da Relação de Guimarães, e atendendo sempre às devidas similitudes e diferenças: "O arguido pratica, assim, um facto contra-ordenacional como meio para alcançar um fim que consiste na salvaguarda da saúde da sua mãe. Esse fim é o motivo determinante da sua conduta. A importância e valor do motivo determinante, o facto de se tratar da sua mãe, o fim subjectivo do arguido em confronto com o desvalor objectivo da contra-ordenação praticada e as demais circunstâncias do caso são de molde a não exigir do arguido um comportamento ajustado à norma."

Pelas razões aqui desenvolvidas, deverá dar-se provimento ao presente recurso, substituindo-se a decisão proferida pelo Tribunal "a quo", por outra que absolva a recorrida da contra-ordenação pela qual vem acusada, revogando-se igualmente, e por via disso, a sanção acessória que lhe foi aplicada.

Decidindo assim farão V. Exas. tão-somente JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando não preencherem os factos provados os pressupostos quer do direito de necessidade quer do estado de necessidade desculpante, uma vez que não se mostra provada a verificação de um perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal de terceiro, acrescendo que, a ocorrer uma situação urgente e actual, dado o trajecto a percorrer pela recorrente – da Covilhã a Matosinhos – sempre a paciente teria que ser observada por outro médico, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando o acerto da decisão recorrida por não estarem verificados, face à matéria de4 facto provada, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Respondeu a arguida, alegando que a sentença recorrida não demonstra que o risco de pós-operatório corrido pela sua paciente podia ser removido de outra forma e que agiu de acordo com as boas práticas médicas a que se encontra adstrita, e concluiu como no recurso.

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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º, nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante, RGCOC], a questão a decidir, atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, é a de saber se actuou ou não em estado de necessidade desculpante.


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            Para a resolução desta questão importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. No dia 23.04.2013, na A25 (E/O), Km 95,3, nesta comarca de Viseu, a arguida circulava à velocidade de, pelo menos, 126 km/h, correspondente à velocidade registada de 133 km/h, deduzida a margem de erro legalmente prevista, sendo o limite máximo de velocidade permitido no local de 80 km/h.

2. Ao atuar da forma descrita, a arguida revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas de direito rodoviário, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita é proibida e sancionada por lei contraordenacional.

3. A arguida tem averbado no seu registo de condutor duas condenações, proferidas em 2009 e 2010, pela prática, em 14.09.2008 e em 29.04.2009, de duas contraordenações graves atinentes à condução a velocidade superior à legalmente permitida.

4. A arguida não tem antecedentes criminais.

[Da impugnação]

5. A arguida é médica de profissão, com a especialidade de ginecologia/obstetrícia.

6. A arguida é tida pelas pessoas do seu círculo de família e amizade como uma pessoa e condutora sensata, equilibrada, responsável, zelosa e cumpridora das suas obrigações.

7. Por altura dos factos em causa nestes autos, a arguida trabalhava em diversos hospitais, no âmbito da sua especialidade médica de ginecologia/obstetrícia em regime de não exclusividade, motivo pelo qual realiza frequentes deslocações para diversos centros hospitalares na região norte do nosso país.

8. Por força do exercício da sua atividade profissional, a arguida utiliza diariamente o veículo automóvel.

9. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1, a arguida deslocava-se da Covilhã para o Hospital x... , em (...) , Matosinhos, na sequência de uma chamada telefónica daquele Hospital a solicitar a sua comparência com urgência para observar uma paciente que se mostrava indisposta e havia sido intervencionada cirurgicamente pela arguida no dia anterior, para despiste de possíveis anomalias relacionadas com o pós-operatório e avaliação de encaminhamento e acompanhamento para os serviços competentes de urgência, se necessário.

(À demais matéria da impugnação não se responde por ser conclusiva, reconduzir-se a alegações de direito ou ser inócua face ao objeto do processo.)

            (…)”.

            B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos provados, a via na qual a arguida se deslocava encontrava-se desimpedida, o tempo estava de sol e seco, nunca a arguida colocou outro automobilista em perigo ou a sua marcha casou constrangimentos de qualquer ordem e a viatura na qual se deslocava era recente e encontrava-se em perfeitas condições de segurança.

(…)”.

            C) E dela consta a seguinte fundamentação de direito, quando subsunção dos factos:

            “ (…).

            A arguida foi acusada pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 27.º, n.º 2, alínea a) 2.º, 28.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5, 136.º e 145.º, todos do Código da Estrada.

Os factos provados preenchem os elementos objetivos e subjetivos da contraordenação em causa.

A questão suscitada pela arguida prende-se com uma causa de exclusão da ilicitude.

Embora não refira expressamente qual a causa que invoca, face à situação factual descrita, é de equacionar a eventual atuação em estado de necessidade. O estado de necessidade pode revestir a natureza de um direito de necessidade (artigo 34.º do Código Penal), sendo então uma causa de exclusão da ilicitude, ou de um estado de necessidade desculpante (artigo 35.º do Código Penal), caso em que constitui uma causa de exclusão ou de diminuição da culpa. Nos termos do disposto no referido artigo 34.º [n]ião é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

Conforme se disse no Acórdão do TRC de 10.07.2013 (processo n.º 254/12.0TTCTB.C1, disponível no sítio da internet da dgsi), está aqui enunciada uma causa de exclusão da ilicitude do facto punível cujo fundamento assenta numa ideia de ponderação de interesses entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo, sendo que, como resulta do próprio texto legal, o interesse ou bem jurídico cujo perigo se afasta tem de ser superior ao interesse sacrificado. O estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o ilícito ou deixar que, como consequência necessária de o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao do ilícito. Depende, também, da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e a probabilidade de eficácia do meio empregado. Atenta a factualidade provada, não podemos deixar de concluir, sem necessidade de acrescida fundamentação, que não se verifica qualquer um dos requisitos deste instituto, porquanto não se demonstrou que a arguida tenha praticado a infração em causa para evitar um qualquer perigo – porquanto não se apurou qual a alegada complicação médica da doente que a arguida foi observar –, e muito menos, porque nem sequer alegado, que esse perigo revestisse caráter atual ou eminente.

Deste modo, ter-se-á que manter a condenação da arguida pela contraordenação em causa.

(…)”.


*

*


Da verificação do estado de necessidade desculpante

1. Não vem questionado no recurso ter a recorrente praticado a contra-ordenação pela qual veio a ser sancionada com coima – já paga – e com a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de setenta e cinco dias mas antes que, não obstante ter praticado os factos descritos no auto de notícia, integradores da identificada infracção rodoviária, a sua conduta, como se alega na conclusão 12, foi executada ao abrigo de uma causa de justificação, in casu, do estado de necessidade desculpante. Todavia, no corpo da motivação, invocando a mesma causa de desculpação, a recorrente não deixa também de afirmar, de forma, no mínimo, equívoca, que, nos autos se discute ‘a existência ou não de uma fidedigna causa de exclusão da ilicitude’, e que actuou ‘no exercício de um verdadeiro direito de necessidade’ [sendo certo que a qualificação jurídica é matéria de conhecimento oficioso].

Oposta é a posição do Ministério Público para quem os factos provados não preenchem as exigências da invocada causa de exclusão da culpa.

Vejamos então a quem, em nosso entender, assiste razão.

O RGCOC não contém, no respectivo articulado, normas que prevejam especificamente, quer o estado de necessidade desculpante, quer o direito de necessidade, havendo que, por força do disposto no seu art. 32º, lançar mão da regulamentação contida sobre estas causas de exclusão, no C. Penal.  

2. O estado de necessidade desculpante encontra-se regulado no art. 35º do C. Penal nos seguintes termos:

1 – Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra e a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

2 – Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.

O estado de necessidade desculpante, manifestação do princípio da inexigibilidade, pressupõe uma colisão entre bens jurídicos, em que a integridade do bem em perigo só pode ser assegurada mediante o sacrifício de bem jurídico alheio, quer ao titular do bem em perigo quer ao próprio agente da acção que não é o titular daquele bem. São seus requisitos:

- A actualidade do perigo; o bem jurídico a salvaguardar tem que se encontrar objectivamente em perigo isto é, o risco já existe ou está iminente ou, não o estando ainda, quando o retardamento do facto salvador represente um seu aumento;

- A adequação e indispensabilidade da acção; o meio utilizado pelo agente deve ser objectivamente idóneo, num juízo ex ante, para assegurar a integridade do bem ameaçado; 

- A natureza do bem jurídico em perigo; os bens jurídicos a salvaguardar terão que ser, sempre, a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade, do agente ou de terceiro;

- O animus salvandi; a prática da acção com o objectivo, ainda que possa não ser exclusivo, de salvar o bem em perigo.  

Vem provado que a recorrente, médica ginecologista e obstetra, exercia a sua actividade em diversos hospitais, realizando frequentes deslocações para vários centros hospitalares do norte, utilizando diariamente, por força da mencionada actividade profissional, o seu veículo automóvel. Vem também provado que, nas circunstâncias de tempo e de lugar do cometimento da contra-ordenação que constitui o objecto dos autos, a recorrente se deslocava da Covilhã para o Hospital x... , em Matosinhos, no seguimento de chamada telefónica a solicitar a sua comparência com urgência para observar uma paciente que se mostrava indisposta e havia sido intervencionada cirurgicamente pela arguida no dia anterior, para despiste de possíveis anomalias relacionadas com o pós-operatório e avaliação do encaminhamento e acompanhamento para os serviços competentes de urgência, se necessário, sendo este aspecto de facto o fulcro da dissensão verificada.

Contrariamente ao que alega a recorrente, o tribunal a quo não reconheceu e deu como provado que a arguida foi chamada com urgência pelo Hospital x... para se apresentar, uma vez que uma paciente carecia de observação pós-operatória inadiável, mas apenas que solicitou a sua comparência com urgência para observar uma paciente que havia operado no dia anterior e se mostrava indisposta, para despiste de possíveis anomalias do pós-operatório e avaliação do procedimento a seguir.

Apesar de, como resulta da matéria de facto provada, a palavra urgência qualificar o pedido de comparência feito à recorrente, o perigo para a vida ou para a integridade física da paciente não era, face ao apurado circunstancialismo, actual.

Com efeito, não estando em causa o risco causado pela própria intervenção cirúrgica, já pretérito, mas o risco proveniente de qualquer complicação pós-operatória, certamente que a recorrente, ao ser contactada pela unidade hospitalar, não deixou de solicitar informações ao seu interlocutor sobre a concreta evolução, nas últimas horas, do estado da paciente. E se tal estado configurasse, à luz das leges artis e, em todo o caso, à luz das normas gerais de prudência, uma emergência médica, a recorrente, como médica especialista, cuja competência profissional está acima de qualquer reserva, ciente de que, então, se encontrava a mais de centena e meia de quilómetros do Hospital x... , percurso que, mesmo não existindo qualquer impedimento de tráfego, demoraria a completar mais de uma hora, não deixaria de solicitar a imediata observação da paciente por um colega da especialidade ou, na hipótese de não existir ou estar indisponível, não deixaria de determinar a transferência da paciente para o serviço de urgência da unidade em referência ou, não possuindo esta tal valência, para um outro serviço de urgência hospitalar.

A indisposição que afectava a paciente – e é sabido que, não raras vezes, uma intervenção cirúrgica causa indisposição ou mal estar ao paciente, independentemente do grau de gravidade do seu estado –, desacompanhada de qualquer outro dado clínico objectivo [dores  intensas, febre alta, hemorragias, etc…] – e não atendível a invocação do segredo profissional, quer porque aqueles elementos não violariam a privacidade da paciente, quer porque a identidade desta foi até revelada nos autos – não permite concluir pela existência de um perigo, um risco iminente e portanto, actual conclusão que, como resulta do supra, exposto, é objectivamente corroborado pela própria conduta da recorrente.  

Por outro lado, atento tempo necessário para que a recorrente pudesse chegar à cabeceira da doente, mesmo que, por hipótese de raciocínio, se tratasse de uma emergência médica, a acção salvadora – condução de veículo em excesso de velocidade – não seria nem adequada, nem indispensável, desde logo porque, o que se impunha e era viável, no caso concreto, era que a recorrente, como dissemos, tivesse promovido e imediata observação por outro médico ou a transferência da paciente para um serviço de urgência e, se não as duas, pelo menos a última destas opções era sempre possível.

Em suma, não se verificando a actualidade do perigo e a adequação e indispensabilidade da acção salvadora, não estão verificados os requisitos da invocada causa de exclusão da culpa.

3. O direito de necessidade encontra-se regulado no art. 34º do C. Penal nos seguintes termos:

Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.

Brevitatis causa, diremos que são comuns ao direito de necessidade alguns dos requisitos supra enunciados para o estado de necessidade desculpante, como a actualidade do perigo e a adequação e indispensabilidade da acção salvadora.

Deste modo, sendo-lhe integralmente aplicáveis as considerações atrás feitas relativas à matéria de facto provada, resta apenas concluir que também se não verificam os requisitos desta causa de exclusão da ilicitude.

4. Uma palavra apenas sobre o Acórdão de 22 de Junho de 2015 da R. de Guimarães, processo nº 1549/14.3T8VCT.G, in www.dgsi.pt, repetidamente invocado pela recorrente, apenas para dizer que a situação de facto nele relatada é, em nosso entender, claramente distinta da que constitui o objecto dos presentes autos.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

            Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 93º, nº 3, do RGCOC, art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Coimbra, 28 de Setembro de 2016



(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)