Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
101/17.6T8CDR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO;
DECISÃO ADMINISTRATIVA;
AUDIÇÃO PRÉVIA DO ARGUIDO;
NOTIFICAÇÃO INCOMPLETA;
NULIDADE
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J C GENÉRICA DE MM)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 50.º DO RGCO
Sumário:
I – Se a notificação para exercício do direito de defesa em sede administrativa não fornecer todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável, arguível pelo arguido/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação.
II – Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa.
III – Se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada.
IV – Uma vez que a impugnante se prevaleceu na impugnação judicial do direito preterido abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, a nulidade tem de considerar-se sanada por força do Assento n.º 1/2003.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I. Relatório.
1.1. Nos autos de contraordenação n.º 34/2015, o Município de MM proferiu decisão a fls. 52/56 condenando a arguida AA, com sede em …, no pagamento de uma coima cujo valor fixou em € 18.695,00, isto porquanto incursa na prática, a título doloso, de uma contraordenação prevista nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 53.º, n.º 1, al. b), e 60.º, n.º 1, al. a), do Regulamento n.º 104/2014, publicado no Diário da República n.º 52/2014, Série II de 2014-03-14, punida pelo artigo 104.º, n.º 1, al. a) e c), do mesmo diploma.
Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão e com ganho parcial de causa o fez, pois que por sentença adrede proferida no dia 25 de Agosto de 2017, decidiu-se manter a condenação decretada, mas o montante da coima devida passou a ser de € 7.500,00.
1.2. Persistindo irresignada, recorre agora a arguida para este Tribunal da Relação, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões e pedido (transcrição parcial):
A) A ora recorrente, não foi notificada antes de ser proferida a decisão administrativa, ao abrigo do direito de defesa/audição, previsto no artigo 50.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro - ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL, para se pronunciar, conforme aliás a Recorrente, alegou na conclusão 0.0. do seu recurso jurisdicional.
B) Assim, salvo melhor entendimento, esta omissão, não pode ser abrangida pelo facto de a arguida após a notificação da decisão, em sede de impugnação judicial, ter apresentado defesa e considerar-se que esta abrange os aspectos de facto e de direito, omissos na decisão administrativa, sanando a nulidade da falta de notificação obrigatória para o direito de audição.
C) A falta de notificação para a audição, ao abrigo do direito de defesa é uma nulidade distinta e autónoma.
D) Entendemos, como aliás há jurisprudência nesse sentido de que esta falta de notificação deve ser considerada uma nulidade insanável.
Esta nulidade foi considerada insanável, nos termos do artigo 119.º, al. c) do CPP, conjugado com o artigo 41.º, n.º 1 do RGCO (ver Acórdão do TRE, de 24.3.1992, in CJ, XVII, 2, 308, Acórdão do TRE, de 10.11.1998, in CJ, XXIII, 5, 277, Acórdão do TRL, de 27.1.2003, processo n.º 10583/2003-5, Acórdão do TRL, de 5.2.2004, in CJ, XXIX, 1, 129, e Acórdão do TRP, de 1.6.2005, in CJ, XXX, 3, 209, e, na doutrina, GOMES DIAS, 1984: 107, SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, 2011: 380, anotação 7.ª ao artigo 50.º, e SOARES RIBEIRO, 2003: 157).
E) A referida comunicação destina-se a garantir-lhe um direito de audição, por forma a que ele possa fornecer elementos úteis à definição da situação e à aplicação da sanção, mas não constitui uma acusação nem a lei lhe atribui tal significado, não sendo aqui aplicáveis, na fase administrativa, as normas que regem a acusação em processo penal.
F) A decisão de que agora se recorre, apoiou-se no Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência n.º 1/2003, publicado em Diário da República, com a designação de Assento n.º 1/2003;
G) A norma que existia no Código Civil referente aos Assentos foi revogada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, pelo que os Assentos até então proferidos foram considerados como tendo o valor dos Acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, do então Código de Processo Civil que entrou em vigência no dia 01 de Janeiro de 1997.
H) A decisão do referido Acórdão de fixação de jurisprudência, fixou-a conforme Decisão, nos seguintes termos:
“Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.”
I) Em termos práticos considerou que nos casos em que não houve notificação, a impugnação em recurso jurisdicional, ter-se-á que limitar a arguir a nulidade e fazendo apenas esta arguição, o Tribunal invalidará a instrução administrativa a partir da notificação incompleta e também por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa.
J) Como no caso dos presentes autos o impugnante também se defendeu quanto ao conteúdo da decisão administrativa, a sentença considerou que a nulidade foi sanada.
K) O Recorrente não concorda com esta tese, por duas ordens de razões: por como atrás referiu considerar que se trata de uma nulidade insanável; e
L) Por considerar que o facto de simultaneamente se apresentar a defesa em relação à decisão, invocando outros vícios, não pode ser considerado como uma forma de sanar a omissão de um acto, o de notificação ao abrigo do direito de audição.
M) A sentença peca quanto a nós também por não terem sido apurados quaisquer danos decorrentes do comportamento da arguida, nem tão pouco se enuncia qualquer elemento que possa ser reconduzível a um dano económico.
N) Faltam elementos essenciais no processo para se apurar a medida da pena, como por exemplo a situação económica da arguida.
O) Não ficou provado que tenha havido – sido produzido, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do art.º 104.º do Regulamento, uso indevido ou dano a qualquer obra ou equipamento do sistema público.
P) Conforme consta na motivação da sentença a original ligação do esgoto do hotel não comportou a necessidade da utilização de uma segunda, numa cota mais baixa.
Q) Todavia, não ficou provado que a arguida antes de ter feito a descarga soubesse ou devesse ter a obrigação de saber de que a ligação à rede de esgotos existente não era suficiente.
R) A arguida quando se apercebeu que não era suficiente de imediato requereu mais uma ligação, conforme documento existente no processo.
S) A sentença recorrida deverá ser revogada e proferida outra decisão na qual a arguida seja absolvida.
Nestes termos e nos demais de Direito deve ser revogada a decisão ora em crise e não ser a Arguida condenada ao pagamento de nenhuma coima, (...).»
1.3. Por despacho de 10 de Outubro de 2017, entretanto alterado conforme fls. 183, foi o recurso admitido, fixado o respetivo regime de subida e efeito.
1.4. Remetidos os autos à Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, o qual se mostra junto a fls. 192/195, sufragando da inviabilidade da impugnação da recorrente.
1.5. Cumprido o art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi apresentada a tal parecer.
1.6. Realizado o exame preliminar, no entendimento de que nenhuma circunstância obstava ao conhecimento de meritis, foi determinado o prosseguimento do recurso, com a tomada de vistos, o que sucedeu, e sua submissão à conferência.
Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.
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II. Fundamentação.
2.1. Delimitação do objeto do recurso.
Constitui jurisprudência pacífica dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995, publicado no Diário da República, I.ª Série A, de 28 de Dezembro seguinte).
Em processo de contra-ordenação, o regime de recurso interposto para o Tribunal da Relação de decisões proferidas em primeira instância, deve observar as regras específicas referidas nos art.ºs 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro e através da Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro (Regime Geral das Contra-ordenações), seguindo, em tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art.º 74.º, n.º 4), em função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciado no art.º 41.º, n.º 1, do RGCO.
O Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, como estatui o n.º 1 do art.º 75.º do RGCO, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida” ou “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art.º 75.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO).
No caso vertente, porque não intercede qualquer questão de que caiba tomar oficioso conhecimento, atentas as conclusões da recorrente as questões decidendas reconduzem-se, então, em apurarmos:
- Se a decisão recorrida padece de nulidade, por não lhe ter sido facultado o exercício do direito de audição antecedentemente à prolação da decisão administrativa.
- Se não foram apurados os danos derivados do comportamento que era imputado à recorrente, faltando também outros elementos relevantes no processo para a determinação da coima, nomeadamente a situação económica da arguida, bem como aqueles de onde o tribunal recorrido deduziu que a recorrente tinha actuado dolosamente, nomeadamente que a mesma antes de ter feito a ligação em causa à rede de esgotos soube que a existente era insuficiente.
2.2. Antecedendo essa operação, vejamos, perfunctoriamente, da fundamentação de facto constante da decisão recorrida, cujo teor é como se transcreve:
«Factos provados:
1. No dia 15 de junho de 2015 estava realizada uma ligação de águas residuais do HH a duas caixas de visita da rede geral de saneamento público;
2. Através dessa ligação, eram descarregadas águas residuais do HH;
3. Através da mesma ligação, eram descarregados entulhos, areias, lamas e resíduos de cimento;
4. Tais descargas provocaram o entupimento das duas caixas de visita e da rede de drenagem de águas residuais;
5. Em consequência, as duas caixas transbordaram para a rua;
6. A arguida procedeu à ligação às caixas de visita sem ter previamente obtido qualquer licença camarária para tanto;
7. A arguida mantinha a ligação referida no ponto 1 de modo livre, voluntário e consciente, sem ter procedido à prévia obtenção da necessária licença camarária;
8. A arguida sabia que a licença camarária tinha obrigatoriamente que ser obtida antes da realização da ligação.
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Factos não provados:
Não se provou que:
1. Não há factos não provados com interesse para a decisão a proferir.
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Motivação:
Teve-se em consideração a totalidade dos elementos documentais juntos aos autos, com especial relevância dada ao auto de notícia a fls. 4 e 5, assim como a planta e fotogramas de fls. 6 a 9, e o pedido de ligação de saneamento a fls. 80 vso., em conjugação com os depoimentos das testemunhas ouvidas, a saber: T1 e T2, fiscais camarários que presenciaram os factos e elaboraram e assinaram o auto de notícia; T3, engenheiro civil que procedeu, por conta da arguida, à fiscalização da obra no HH; e T4, engenheiro civil ao serviço do empreiteiro que procedeu a realização da obra.
Todas as testemunhas depuseram de modo que se afigurou credível, resultando do conjunto dos depoimentos uma versão inequívoca dos factos, que é a de que a arguida, pese embora tivesse uma ligação mais antiga à rede de esgotos, teve necessidade de uma segunda, numa cota mais baixa, destinada ao escoamento dos pisos -2 e -3 que a original ligação de esgoto do hotel não comportava, e que a mandou realizar antes de ter pedido autorização para tanto.
Assim, dúvidas nenhumas restaram de que a arguida praticou a factualidade que lhe vem imputada, que assim se considerou provada.
O elemento subjetivo foi retirado, por ilação, dos factos objetivamente provados, atentas as concretas circunstâncias do caso e as regras da normalidade e da experiência comum.
A demais matéria alegada na decisão e no recurso não foi levada aos factos provados nem aos não provados por ser vaga ou irrelevante para a decisão a proferir.»
2.3. No que tange à primeira dimensão do dissídio, a recorrente alega, em súmula, que não foi notificada antes de ter sido proferida a decisão administrativa que constituía o objecto do recurso de impugnação judicial sobre o qual incidiu a sentença recorrida e que tal omissão integra a nulidade daquela decisão, nulidade esta autónoma da imputada à decisão administrativa inicialmente proferida no processo. Prossegue, pretextando que a decisão recorrida não deveria ter considerado sanada a nulidade que imputava à decisão da autoridade administrativa, com recurso à jurisprudência emergente do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2003, pelo facto de a recorrente ter tido intervenção no processo e ter exercido o seu direito de defesa.
Vejamos:
A decisão recorrida apreciou a questão suscitada, nos termos seguintes (sic):
«Da não audição da arguida:
Na sua conclusão O., a arguida invoca que não foi notificada para exercer o seu direito de audição em face desta nova decisão.
Dispõe o artigo 50.º do RGCO, que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Como se afirmou no Acórdão STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, de 28-11-2002 (D.R., I-A, de 25-01-2003), “a notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito”.
Ainda de acordo com a jurisprudência obrigatória fixada pelo citado aresto, “a omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação (…). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa (…). Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objeto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada.”
Ou seja, se a notificação para exercício do direito de defesa em sede administrativa não fornecer todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável, arguível pelo arguido/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação. Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa.
Porém, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada.
Ora, muito embora a arguida, no seu requerimento de recurso, tenha invocado tal nulidade, invoca também a nulidade de falta de fundamentação e nega a factualidade ínsita na decisão administrativa.
Assim sendo, considera-se a nulidade sanada, pelo que se indefere a respectiva arguição.»
De acordo com o regime estabelecido pelo art.º 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, para os recursos extraordinários de fixação de jurisprudência, como é o indicado Assento n.º 1/2003, “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.”
Não descortinamos divergência que possam opor-se ao mesmo Assento. A defesa no processo das contra-ordenações, tal como este a concebe, não está sujeita aos mesmos termos do processo penal, uma vez que a própria Constituição da República se limita a afirmar no art.º 32.º, n.º 10, que o processo assegurará os direitos de audição e defesa, querendo claramente afastar o regime do processo penal quanto a esses direitos no processo das contra-ordenações.
O consignado pela decisão recorrida mais não foi do que o entendimento resultante da interpretação fixada pelo Assento em causa.
Com efeito, uma vez anulada pelo Tribunal da Comarca de Viseu – Instância Local - Secção Criminal – J2, no âmbito do processo n.º 2698/16.9T8VIS que aí correu anteriormente seus termos (cfr. fls. 101 e segs.) a decisão administrativa inicialmente proferida pelo Município de MM e remetido o processo ao mesmo para sanação do vício imputado àquela decisão, não se abriu de novo o processo ao contraditório, nos termos do invocado art.º 50.º do RGCO; antes, o que se impunha, e sucedeu, era que o Município suprisse o vício imputado à decisão anulada, proferindo nova decisão.
Por outro lado, como correctamente se ponderou na decisão recorrida, uma vez que a impugnante se prevaleceu na impugnação judicial do direito preterido abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, a nulidade tem de considerar-se sanada por força do aludido Assento n.º 1/2003.
Conforme resulta do processo, a autoridade administrativa deu à arguida a informação que nele constava e facultou-lhe a possibilidade de requerer as diligências que entendesse oportunas relativamente à sua defesa, faculdade que a arguida usou.
Não pode esta, depois, vir alegar que não lhe foram facultados os elementos necessários à organização da sua defesa, sem concretizar os elementos que foram omitidos ou o relevo dos mesmos, ou de quaisquer diligências que tenha requerido e não tenham sido realizadas.
Improcede, pois, o primeiro fundamento do recurso [conclusões A) L)].
2.4. Segundo segmento de discórdia da recorrente, o que contende, segundo alega, com a circunstância de não terem sido apurados os danos derivados do comportamento que lhe era imputado, acrescendo a falta de outros elementos relevantes no processo para a determinação da coima, nomeadamente a sua situação económica, bem como aqueles a partir dos quais se considerou que ela agiu dolosamente, nomeadamente que a mesma antes de ter feito a ligação em causa à rede de esgotos soube que a existente era insuficiente.
Como refere, e adequadamente, a decisão recorrida, constitui jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores que a nulidade das decisões decorrente da sua falta de fundamentação se verifica, em geral, somente, quando a decisão não contenha, de todo, fundamentação, não já, quando a fundamentação seja, de algum modo, deficiente.
Mais concretamente ainda, e no que ao processo contraordenacional diz respeito, acresce que «a lei não define qual o âmbito ou rigor de fundamentação que deve presidir à decisão administrativa de condenação (…) [e], face à especialidade processual da contraordenação, existe algum consenso Doutrinal e Jurisprudencial no sentido de que, não se impõe aqui uma fundamentação com o formalismo e rigor que se exige na elaboração de uma sentença judicial, (…) porque se trata de uma decisão administrativa, assente num ilícito contraordenacional e não em ilícito penal [e] tal decisão, quando impugnada judicialmente, converte-se, para todos os efeitos, numa verdadeira acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (cfr. art.º 62.º, n.º 1 do RGCO). Não faz sentido, pois, que uma decisão possa adquirir a função de acusação e, simultaneamente, deva obedecer aos requisitos da sentença penal» .
Nesta perspectiva das coisas, a decisão recorrida aquilatou devidamente da nulidade que assim a arguida assacava à decisão administrativa. A arguida transporta agora idêntico vício para a decisão recorrida. Sendo os dados integrantes de uma e outra similares, logo se alcança do entendimento deste Tribunal.
Em todo o caso, e sucede, vendo-se a decisão recorrida, intui-se do infundado desta imputação da recorrente. Na verdade, identifica-se claramente a factualidade cometida, isto de forma a permitir-lhe que exercesse cabalmente a sua defesa, como o fez, decorrendo, aliás claramente das suas conclusões de recurso que a compreendeu. Por outro lado, as normas em que se baseia a condenação estão claramente identificadas, também, sendo percetível o juízo de subsunção do direito aos factos que está subjacente à qualificação jurídica feita na decisão [exarou-se na decisão recorrida: «Dispõe o artigo 53.º, n.º 1, do Regulamento n.º 104/2014 [de ora em diante, “Regulamento”], que «dentro da área abrangida pelas redes de distribuição de saneamento, os proprietários dos prédios existentes ou a construir são obrigados a: a) Instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial; b) Solicitar a ligação à rede de geral de saneamento; c) Requerer a execução dos ramais de ligação».
O n.º 2 do mesmo normativo estipula que a obrigatoriedade de ligação à rede geral de saneamento abrange todas as edificações, qualquer que seja a sua utilização.
Por sua vez, o artigo 60.º, n.º 1, do Regulamento estipula que «sem prejuízo do disposto em legislação especial, é interdito o lançamento nas redes de drenagem pública de águas residuais, qualquer que seja o seu tipo, directamente ou por intermédio de canalizações prediais, de: a) Matérias explosivas ou inflamáveis; b) Matérias radioactivas, em concentrações consideradas inaceitáveis pelas entidades competentes e efluentes que, pela sua natureza química ou microbiológica, constituam um elevado risco para a saúde pública ou para a conservação das redes; c) Entulhos, areias, lamas, cinzas, cimento, resíduos de cimento ou qualquer outro produto resultante da execução de obras; d) Lamas extraídas de fossas sépticas e gorduras ou óleos de câmaras retentoras ou dispositivos similares, que resultem de operações de manutenção; e) Quaisquer outras substâncias que, de uma maneira geral, possam obstruir e ou danificar as canalizações e seus acessórios ou causar danos nas instalações de tratamento e que prejudiquem ou destruam o processo de tratamento final.
Por fim, o artigo 104.º, n.º 1, do Regulamento, estatui que «constitui contraordenação, nos termos do artigo 72.º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, punível com coima de (euro) 1 500 a (euro) 3 740, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 7 500 a (euro) 44 890, no caso de pessoas colectivas, a prática dos seguintes atos ou omissões por parte dos proprietários de edifícios abrangidos por sistemas públicos ou dos utilizadores dos serviços: a) O incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, nos termos do disposto no artigo 16.º; b) Execução de ligações aos sistemas públicos ou alterações das existentes sem a prévia autorização da Entidade Gestora; c) O uso indevido ou dano a qualquer obra ou equipamento dos sistemas públicos.
Assim sendo, considerando as acima citadas normas e a matéria de facto que resultou provada, não merece qualquer reparo a decisão administrativa, na parte em que imputou a contraordenação prevista no artigo 104.º, n.º 1, als. a) e c), pelo que, nesta parte, é de a manter.»
A afirmação da recorrente segundo a qual se não provaram factos relevantes para a determinação da coima foi acolhida na decisão recorrida, mas, entretanto, «sanada» pois como se escreveu a propósito: «Já quanto à medida da coima aplicada, também posta em causa pela arguida em sede de conclusões de recurso, afigura-se-nos que lhe assistirá razão.
Com efeito, todas as considerações tecidas pela entidade administrativa em sede de determinação da medida da coima carecem de base factual, fundando-se em juízos de valor ou factualidade vaga, da qual os autos não contêm prova (maxime, a título de antecedentes contra-ordenacionais), que, por isso, acabaram por não ser levadas aos factos provados nem aos não provados.
Assim, considerando que o artigo 18.º, n.º 1, do RGCO, dispõe que determinação da medida da coima se faz em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação, na ausência de factualidade que acarrete o agravamento das necessidades de prevenção geral ou especial, afigura-se-nos que a coima a aplicar deve ser reduzida ao seu montante mínimo.»
Isto é, o Tribunal a quo acabou por fixar a coima no seu limite mínimo, o que, tal como do mencionado extracto da decisão recorrida, é consequência directa de se ter relevado o circunstancialismo que era invocado pela autoridade administrativa na fundamentação da decisão.
Por fim, diga-se carecerem de sentido as afirmações da recorrente de que não teria actuado dolosamente, tal como o tribunal deu como provado. A fundamentação da decisão de facto, constante da decisão recorrida, é esclarecedora sobre as razões pelas quais o tribunal chegou a essa conclusão [«O elemento subjetivo foi retirado, por ilação, dos factos objetivamente provados, atentas as concretas circunstâncias do caso e as regras da normalidade e da experiência comum.» escreveu-se na motivação probatória sucedendo, ademais, que tal matéria se tem por definitivamente assente dados os termos estritos em que é admissível a sua alteração neste Tribunal in casu, sendo certo que nenhuma razão existe para tanto].
Conclusão, então, a de que igualmente falecem as conclusões M) a R9 da recorrente.
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III. Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em quatro UC a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Coimbra, 16 de Maio de 2018

Brízida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)