Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/14.0GBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PERDA DE OBJECTOS
Data do Acordão: 11/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.109.º DO CP
Sumário: I - São requisitos legais da declaração de perda:
- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;

- A perigosidade dos objectos.

II - A perda de instrumentos e produtos não depende, como supra se referiu, da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

III - É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, na sequência do decurso do prazo fixado para a suspensão provisória do processo, possa dar lugar à declaração de perdimento de objectos apreendidos, como também pode o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e mesmo, de sentença absolutória.

IV - Os factos suficientemente indiciados nos autos não incluem a utilização, pelo arguido, de qualquer uma das armas de fogo apreendidas, na ameaça que fez à ofendida ou em qualquer outra circunstância, nem existe, por outro lado, o mínimo indício de que fosse propósito do arguido vir a usar qualquer uma das referidas armas para coagir ou ofender a integridade física da ofendida.

Não se verifica, pois, o primeiro requisito do perdimento.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No inquérito nº 10/14.0GBGVA, que corre termos nos Serviços do Ministério Público – Gouveia – Procuradoria da Instância Local – Secção de Inquéritos, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Gouveia – Instância Local – Secção de Competência genérica – J1, que tem como arguido, A... , com os demais sinais nos autos, depois de obtida a concordância da Mma. Juíza de instrução, a Digna Magistrada do Ministério Público, por despacho de 23 de Abril de 2014, determinou a suspensão provisória do processo pelo prazo de seis meses.

Por despacho de 26 de Novembro de 2014 a Digna Magistrada do Ministério Público determinou, nos termos do art. 282º, nº 3 do C. Processo Penal, o arquivamento do inquérito.

Em 29 de Janeiro de 2015 a Digna Magistrada do Ministério Público determinou a conclusão do inquérito ao Mmo. Juiz de instrução com a seguinte promoção:

Nestes autos foram apreendidos os objectos melhor id. a fls. 21 e 22 (Exame de fls. 31 e 32).

Uma vez que resultou a prática do crime, mesmo em relação à arma legalizada, como esteve em causa a prática do crime de violência doméstica e o justo receio que as armas viessem a ser utilizadas,

Promove-se desde já, a declaração de perdimento dos aludidos objectos a favor do Estado, mesmo relativamente à arma legalizada, pelos fundamentos expostos, nos termos do art. 109º, números 1 e 2 do Código Penal. 


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            Em 6 de Fevereiro de 2015 o Mmo. Juiz de instrução proferiu o seguinte despacho:

            Subscrevendo a promoção do Ministério Público, evidencia-se que os objectos a fls. 21, 22 31 a 32, embora legalizados, estão associados à prática do crime em investigação e cujo inquérito terminou com a suspensão provisória do processo.

                Dessa feita, e sendo esse o sentido da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público, declaro os objectos identificados a folhas 21, 22, 31 e 32 perdidos a favor do Estado (art. 109.º, n.º 1 do Código Penal).


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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1ª) Os presentes autos tiveram o seu início numa participação-crime por alegado cometimento de um crime de violência doméstica;

2ª) Crime esse que foi alegado pelo recorrente e dos autos não resulta a mínima prova indiciária de que tenha sido cometido;

3ª) O inquérito terminou com a Suspensão Provisória de Processo, por seis meses, mediante imposição de injunção ao recorrente;

4ª) Terminado aquele período foram os autos arquivados:

5ª) Não vem participado, nem indiciariamente provado que o alegado, mas inexiste crime, tivesse sido praticado com o uso ou apenas invocação de qualquer das armas apreendidas;

6ª) Com excepção daquela que foi considerada modificada e, portanto, ilegal, todas as demais quatro armas, eram legalmente detidas pelo recorrente, na sua residência, sendo que a participante disponha das chaves do cofre onde as mesmas se encontravam guardadas, conforme impõe a lei;

7ª) Tais armas legalizadas e licitamente detidas pelo recorrente (e também pela própria participante, que a elas tinha acesso) destinavam-se tão-somente ao exercício a caça;

8ª) O mesmo acontecendo com os aloquetes de segurança dos gatilhos e da munição com bala de chumbo;

9ª) O recorrente não foi julgado, nem condenado por qualquer crime de violência doméstica ou por qualquer facto ilícito típico para o qual se tenha servido das armas em causa;

10ª) Aliás, o recorrente não tem antecedentes criminais;

11ª) Não estão preenchidos os requisitos legais para que as armas legalizadas fossem declaradas perdida a favor do Estado;

12ª) O mesmo acontecendo com os aloquetes e munição referidos;

13ª) Devendo as armas legalizadas serem entregues ao recorrente, assim como, os objectos antes referidos.

14ª) Aliás, o douto despacho recorrido carece de fundamentação factual e legal;

15ª) Foi mal interpretado e aplicado o disposto o artº 109º Código Penal;

Pelo exposto e com o douto suprimento de Vossas Excelências,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso revogando-se o douto despacho recorrido e ser substituído por outro que, declarando perdida a favor do Estado a arma modificada (fls.22), mande entregar ao recorrente as demais armas apreendidas e legalizadas, licitamente detidas pelo mesmo, bem como, os aloquetes e a munição.

Assim decidido; será feita JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

                1. Ascendendo ao plano legal, importa ter presente o estatuído no artigo 107º, n.º 1, al. b), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, que devem ser apreendidas armas de fogo, suas munições e respectivas licenças ou manifestos, quando houver indícios da prática de crime de maus tratos a cônjuges ou a quem com ele viva em condições análogas às dos cônjuges (actual crime de violência doméstica), e, perante a queixa, a denúncia ou a constatação de flagrante, se verifique uma probabilidade da sua utilização.

2. A perda de objectos opera nos casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de factos ilícitos através do instrumento.

3. Ainda que o arguido detenha licitamente alguns destes objectos, revelando-se a prática de um crime de violência doméstica, aliada como descrevemos ao consumo de bebidas alcoólicas e nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, ameaçou-a de morte, e na posse de armas em casa, existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos de idêntica natureza e, consequentemente, é adequada a declaração de perda desses objectos.

4. Nessa sequência, devem ser perdidas a favor do Estado as armas que lhe foram apreendidas por risco de as vir a utilizar para a prática de novos crimes de violência doméstica.

5. Apesar de não existir sentença condenatória pela prática do crime, pelos motivos supra expostos, e o de uso e porte de arma, nada impede que sejam declaradas perdidas a favor do Estado as armas apreendidas. por necessidades de prevenção relacionadas com o risco sério de uma nova utilização de certos bens na prática de novos crimes.

6. O douto despacho recorrido não carece de fundamentação factual e legal.

7. Não foi mal interpretado e aplicado o disposto no art. 109°, do Código Penal.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso em análise e mantida a douta decisão recorrida, assim se fazendo a acostumada Justiça!


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público, alegando não exigir o art. 109º, nº 1 do C. Penal a prática de crime, não ser a legalização das armas impedimento ao seu perdimento mas a sua perigosidade aferida pelas circunstâncias concretas do caso e aumentar a escalada de violência do recorrente a necessidade de protecção do bem jurídico, não sendo por tudo isto desproporcionado o declarado perdimento, e concluiu pelo não provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A falta de fundamentação do despacho recorrido;

- A verificação ou não dos pressupostos legais do perdimento das armas, acessórios e munições apreendidas nos autos.


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            Com relevo para a questão proposta, colhem-se ainda dos autos os seguintes elementos:

            i) No auto de notícia de 16 de Janeiro de 2014 [fls. 1 a 7] a ofendida situou o início dos desentendimentos com o cônjuge e ora arguido há já vinte anos, tendo inclusivamente feito uma denúncia em Setembro de 2006, afirmou que no dia 5 de Outubro de 2013, numa propriedade junto à residência do casal, o arguido chamou-a de «ordinária» e «calhamaço» e empunhando uma enxada ameaçou-a dizendo que «Era só cavar-te com esta enxada!», disse que sentia medo de o arguido concretizar a ameaça e matá-la, até porque vinha sendo repetida sempre que havia divergências, e que o pudesse fazer com as armas de fogo, legalizadas e ilegais, que guarda em casa, e disse ainda que a violência psicológica exercida pelo arguido, que lhe atribui amantes, a levou já a ingerir medicamentos em excesso.  

            ii) Em 17 de Janeiro de 2014, com o consentimento da ofendida e do arguido, a GNR efectuou uma busca à residência do casal [auto de busca de fls. 21 a 22 e de exame directo de fls. 31 a 32], tendo aí sido apreendidos os seguintes objectos:

            - Uma espingarda calibre 12 mm, com o nº de série 436408, marca Breda, de um cano, semi-automática, com livrete e manifesto de registo nº 107035;

            - Uma espingarda calibre 16 mm, com o nº de série 810241, classe D, com dois canos, com livrete e manifesto de registo nº F88968-02;

            - Uma espingarda calibre 12 mm, com o nº de série 107162, classe D, com dois canos, com livrete e manifesto de registo nº 56897;

            - Uma espingarda calibre 16 mm, com o nº de série 57900, classe D, com dois canos, sem livrete e manifesto de registo no local;

            - Uma espingarda de um cano, calibre 12, sem marca, inscrição ou número visíveis, classe A, transformada ou modificada – cano serrado –, enquadrável no art. 3º, nº 2, l) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro e art. 86º, nº 1, c) da mesma lei;

            - Três aloquetes de segurança de gatilho;

            - Três cartuchos de zagalotes, calibre 12 mm e um cartucho de bala de chumbo, calibre 12 mm.

            iii) Em 17 de Janeiro de 2014 o arguido foi submetido a primeiro interrogatório não judicial e nas declarações que então prestou admitiu que, de vez em quando, se desentende verbalmente com a ofendida, negou que em 16 de Janeiro de 2014 a tenha ameaçado com a enxada e admitiu ter na sua posse uma arma de fogo modificada, tendo, por despacho então proferido pela Digna Magistrada do Ministério Público sido considerada adequada e suficiente para assegurar as exigências cautelares requeridas, a sujeição do arguido a termo de identidade e residência [mesmo em relação ao crime de violência doméstica, onde se escreveu, «(…) no que respeita ao crime de violência doméstica, os elementos constantes dos autos, são manifestamente insuficientes para se ponderar a aplicação de qualquer outra medida de coacção (…)»].

            iv) Em 30 de Janeiro de 2014 a ofendida prestou declarações, tendo afirmado confirmar os factos constantes dos autos e reafirmado o desejo de procedimento criminal.

            v) Em 5 de Fevereiro de 2014 foi inquirida a testemunha B... que declarou ter sido companheiro da filha do arguido e da ofendida, tendo vivido na residência do casal durante cerca de seis anos e até Março de 2013, que não presenciou os factos denunciados mas que um ou dois dias depois falou com a ofendida ao telefone e ela disse-lhe que o arguido a tinha injuriado e ameaçado com a enxada, que assistiu a algumas discussões entre arguido e ofendida em que em que esta era chamada de «doida», «reles», «vadia» e «ordinária» por aquele que também suspeitava da sua fidelidade, que sabia que o arguido tinha armas de fogo mas nunca o viu a ameaçar a ofendida com elas, embora este tivesse medo que o pudesse fazer, que em Abril de 2013, no seguimento de discussão, a ofendida ingeriu medicamentos em excesso, o que levou ao seu internamento, e que em 2006 a ofendida levou uma grande tareia do arguido, tendo que receber tratamento médico.

            vi) Em 10 de Março de 2014 foi inquirida a testemunha C... que declarou ter há alguns anos agricultado uns terrenos cedidos pelo arguido, que em data que não recorda de 2006, o arguido, em local isolado, insinuou que o depoente era amante da ofendida o que prontamente negou, que ainda assim, o arguido ameaçou dar-lhe um tiro se entrasse na sua casa ou nos seus terrenos, que deixou de falar ao arguido e de agricultar os terrenos cedidos, e que soube que a ofendida tinha sido agredida pelo arguido por ela lho ter dito e ter visto os hematomas, e que tinha feito queixa por tais factos.

            vii) Notificada para o feito, em 26 de Março de 2014 veio a ofendida declarar nos autos que aceitava a eventual suspensão provisória do processo, propósito que renovou nas declarações prestadas perante a Digna Magistrada do Ministério Público em 8 de Abril de 2014.

            viii) Também o arguido, em interrogatório subsequente de 8 de Abril de 2014, declarou concordar com a suspensão provisória do processo por seis meses e com as injunções propostas.

            ix) Em 9 de Abril de 2014 a Digna Magistrada do Ministério Púbico considerando adequada a suspensão provisória do processo por seis meses, com as injunções de entrega pelo arguido, da quantia de € 150 ao Lar de Nabais, e da quantia de € 150 ao Lar de Folgosinho, determinou a conclusão dos autos à Mma. Juíza de instrução, para os efeitos do art. 281º, nº 1 do C. Processo Penal.  

            x) Em despacho de 10 de Abril de 2014 a Mma. Juíza de instrução concordou com a suspensão provisória do processo e injunções propostas.

            xi) Por despacho de 23 de Abril de 2014, a Digna Magistrada do Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo por seis meses.

            xii) Por despacho de 26 de Novembro de 2014, a Digna Magistrada do Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito.


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            Da falta de fundamentação do despacho recorrido

            1. Alega o recorrente – conclusão 14ª – que o despacho em crise carece de fundamentação factual e legal. No corpo da motivação concretiza-se que o despacho, ao aderir à promoção do Ministério Público, carece de fundamentação adequada e assenta em juízos que não resultam dos autos.

Vejamos.

Estabelece o art. 205º da Constituição da República Portuguesa, no seu nº 1, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

O dever jurídico-constitucional de fundamentação da decisão judicial visa assegurar a sua total transparência através da plena compreensão dos juízos de facto e de direito que contém, pelos seus destinatários directos e pela própria comunidade, permitindo, simultaneamente, o autocontrolo de quem a proferiu e a fiscalização da actividade decisória pelo tribunal de recurso.

A nível infraconstitucional e, especificamente, no âmbito processual penal, este dever mostra-se reflectido nos arts. 97º, nº 5 – princípio geral – 194º, nº 6 – privativo das medidas de coacção – e 374º, nº 2 – privativo da sentença – todos do C. Processo Penal. A decisão recorrida tem a natureza de despacho (cfr. art. 97º, nº 1, b) do C. Processo Penal) e não aplica qualquer medida de coacção, pelo que a questão proposta há-de obter solução à luz do referido princípio geral.

Dispõe o art. 97º, nº 5 do C. Processo Penal que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Especificar os motivos de facto mais não é do que enunciar, ainda que por remissão, os factos relevantes para a decisão a proferir e especificar os motivos de direito traduz-se na determinação da norma aplicável e na subsunção a esta dos factos relevantes, com a extracção da subsequente conclusão. 

O despacho recorrido começou por remeter para a promoção do Ministério Público, identificou, por remissão para autos existentes no processo, os factos relevantes isto é, objectos a, eventualmente, declarar perdidos a favor do Estado, afirmou a sua associação à prática do crime em investigação no inquérito, identificou como norma aplicável o art. 109º, nº 1 do C. Penal, e declarou o respectivo perdimento.

A decisão em crise peca por excessivo laconismo, o que determinou, desde logo, que não se tivesse feito nota de que no inquérito se indiciavam duas condutas típicas, correspondentes a dois distintos crimes, em relação a um dos quais – o de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro – a detenção voluntária e intencional de um dos objectos apreendidos – a espingarda de cano serrado – consubstanciava, não a sua ‘associação’ à prática do crime, mas a própria prática do mesmo [sendo certo que, como resulta da parte final das conclusões formuladas pelo recorrente, o perdimento da espingarda de cano serrado não é objecto do recurso].  

Ainda assim, o recorrente percebeu perfeitamente, de facto e de direito, os termos da decisão, como resulta do recurso interposto, onde defende que, contrariamente ao que, implicitamente, entendeu o Mmo. Juiz a quo, não se mostram verificados os pressupostos do perdimento decretado.

Quanto basta para concluir pela suficiência da fundamentação do despacho recorrido e, portanto, pela inexistência de nulidade.


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Da verificação ou não dos pressupostos legais do perdimento das armas, acessórios e munições apreendidas nos autos

2. Alega o recorrente – conclusões 5ª a 13ª – que não estando indiciada a prática de crime de violência doméstica e menos ainda, com as armas apreendidas ou ameaça da sua utilização, estando, com excepção de uma, legalizadas, guardadas em cofre e destinadas à caça, não estão preenchidos os requisitos legais para a declaração do seu perdimento e demais objectos.

Vejamos.

2.1. Como já tivemos oportunidade de dizer no acórdão desta Relação de 22-05-2013, proferido no recurso nº 2032/10.1PBAVR.C1 (in, www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto, o perdimento dos instrumentos e produtos do crime encontra-se previsto no art. 109º, nº 1, do C. Penal nos termos do qual, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Como se vê, o instituto da perda dos instrumenta sceleris e dos producta sceleris funda-se em razões de prevenção de futuros crimes, face à sua perigosidade.

São requisitos legais da declaração de perda:

- Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto isto é, o efeito do facto ilícito típico;

- A perigosidade dos objectos.

No que respeita ao primeiro requisito, duas notas se impõem.

A primeira, para dizer que a referência a «estivessem destinados a servir» tem o sentido de que o perdimento não depende da consumação do facto. A segunda, para dizer que a referência a «facto ilícito típico» em vez de «crime» tornou claro que a aplicação do instituto não depende da existência de culpa (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 619 e Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 8ª Ed., Almedina, pág. 474).

No que concerne ao segundo requisito, já sabemos que são razões de ordem preventiva que estão na base da declaração de perda. Por isso que, nos termos da lei, nem todos os instrumenta sceleris e producta sceleris devam ser declarados perdidos, mas apenas aqueles que, atenta a sua natureza intrínseca ou seja, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 621).

A perigosidade deve ser considerada de um ponto de vista objectivo. Há que atender à perigosidade do objecto em si mesmo, face às suas próprias características, e desligado da pessoa que o detém.

Mas também deve ser avaliada em função das concretas condições em que o objecto pode vir a ser utilizado. E esta relação entre a perigosidade objectiva do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode, como alerta Figueiredo Dias, determinar uma referência ao próprio agente implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também um ponto de vista subjectivo (ob. cit., pág. 623). O ponto de partida é sempre a perigosidade objectiva do instrumento, à qual se devem juntar as concretas circunstâncias do caso e a personalidade do agente que através da prática do facto se revela, para, numa análise global, se concluir a final, pela perigosidade ou não e consequente perda ou não, do objecto.

2.2. Revertendo para questão a decidir, é verdade que o arguido, como o próprio afirma – conclusão 9ª – não foi julgado nem condenado por crime de violência doméstica ou por qualquer outro crime para os quais se tenha servido das armas apreendidas.

Porém, cumpre notar que a perda de instrumentos e produtos não depende, como supra se referiu, da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (nº 2 do art. 109º do C. Penal). É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, na sequência do decurso do prazo fixado para a suspensão provisória do processo, possa dar lugar à declaração de perdimento de objectos apreendidos, como também pode o mesmo suceder em caso de despacho de não pronúncia e mesmo, de sentença absolutória.

Mas o que a lei não dispensa é a verificação, em cada caso, dos requisitos que fixa para o perdimento.

2.2.1. Desde logo, o art. 109º, nº 1 do C. Penal exige que o agente tenha praticado o facto típico e ilícito com o instrumento [pressuposta a relação de causalidade adequada] ou, pelo menos, que a tanto se dispusesse fazer, o que nos remete para o campo da tentativa. Sucede que os factos suficientemente indiciados nos autos não incluem a utilização, pelo arguido, de qualquer uma das armas de fogo apreendidas, na ameaça que fez à ofendida ou em qualquer outra circunstância, nem existe, por outro lado, o mínimo indício de que fosse propósito do arguido vir a usar qualquer uma das referidas armas para coagir ou ofender a integridade física da ofendida. Em boa verdade, apenas existe o declarado receio desta em que tal aconteça.

Se assim não fosse e, portanto, se existissem suficientes indícios de ter o arguido praticado ou propor-se praticar, factos preenchedores do tipo objectivo e subjectivo do crime de violência doméstica, usando para o efeito, uma ou mais do que uma das armas de fogo apreendidas, mal se perceberia que, atentos os pressupostos previstos no art. 281º, nº 1, e) e f) do C. Processo Penal, tivesse sido decretada a suspensão provisória. 

Não se verifica, pois, o primeiro requisito do perdimento.

2.2.2. Acresce que, com excepção da espingarda de cano serrado, cujo perdimento, como já se referiu, não integra o objecto do recurso, todas as restantes armas apreendidas, estão legalizadas. Com efeito, a espingarda classe D, com o nº 436408, examinada a fls. 69, está registada, com o livrete de manifesto 107035, em nome do arguido, a espingarda classe D, com o nº 810241, examinada a fls. 70, está registada, com o livrete de manifesto F88968, em nome do arguido, a espingarda classe D, com o nº 107162, examinada a fls. 71, está registada, com o livrete de manifesto F56897, em nome do arguido, e a espingarda classe D, com o nº 57900, examinada a fls. 72, está registada, com o livrete de manifesto B03747, em nome do arguido.

Com a ressalva feita, porque se trata de armas de caça, não são, bem como as munições e restantes acessórios, objectos proibidos, e se a sua utilização, enquanto armas de fogo, pode implicar alguns perigos – daí os condicionamentos legais à sua detenção e uso – decerto não estamos instrumentos excepcionalmente perigosos.

Por outro lado, o arguido não tem antecedentes criminais e, aparentemente, está licenciado pela PSP para o uso e porte de arma [a reserva resulta de não encontramos nos autos referência à exibição pelo arguido de licença de uso e porte de arma ou para detenção de arma no domicílio, e de este ter junto apenas com a motivação e, portanto, após a prolação do despacho recorrido, mera cópia da licença de uso e porte de arma nº 38224/2013-01, de 5 de Agosto de 2013]. 

Deste modo, não vemos que a natureza das armas, não obstante o seu intrínseco grau de perigosidade, conjugada com indiciadas circunstâncias do caso e a personalidade do arguido e sua projecção nelas, permita concluir que as armas colocam em perigo a segurança das pessoas, oferecendo riscos sérios de serem utilizadas para a prática de novos factos ilícitos típicos.

2.2.3. Em suma, não estando verificados os requisitos do perdimento, previstos no art. 109º, nº 1 do C. Processo Penal, deve, nesta parte, proceder a pretensão do recorrente.


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            III. DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso. Em consequência decidem:

A) Revogar o despacho recorrido na parte em que decretou o perdimento:

- Da espingarda classe D, com o nº 436408, apreendida a fls. 22 e examinada a fls. 69, registada, com o livrete de manifesto 107035, em nome do arguido;

- Da espingarda classe D, com o nº 810241, apreendida a fls. 22 e examinada a fls. 70, registada, com o livrete de manifesto F88968, em nome do arguido;

- Da espingarda classe D, com o nº 107162, apreendida a fls. 22 e examinada a fls. 71, registada, com o livrete de manifesto F56897, em nome do arguido;

- Da espingarda classe D, com o nº 57900, apreendida a fls. 22 e examinada a fls. 72, registada, com o livrete de manifesto B03747, em nome do arguido;

- Dos aloquetes de segurança de gatilho, apreendidos a fls. 22; e,

- Dos cartuchos apreendidos a fls. 22 e examinados a fls. 32.

            B) Confirmar, quanto ao mais – perdimento da espingarda transformada, apreendida a fls. 22 e examinada a fls. 31 – o despacho recorrido.

C) Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).

Coimbra, 4 de Novembro de 2015

(Heitor Vasques Osório – relator)

(Fernando Chaves – adjunto)