Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/17.2T8CLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
INTERPRETAÇÃO
DESTINO DA FRACÇÃO
USO DIVERSO
ABUSO DE DIREITO
PRESTAÇÃO DE FACTO INFUNGIVEL
RECURSO
CONCLUSÕES
NULIDADE DA SENTENÇA
FACTOS COMPLEMENTARES
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 03/31/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - C.BEIRA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 236, 238, 334, 829-A, 1418, 1421, 1422 CC, 5, 615, 662 CPC
Sumário: 1.- Quando as conclusões contenham um fundamento ou razão que não tenha sido exposta/desenvolvida nas alegações/contra-alegações deve considerar-se não formulada tal questão, com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, da pretensão apresentada, designadamente uma litigância de má fé do apelante ao interpor o seu recurso.

2.- Uma coisa é uma nulidade da sentença, por eventual não especificação dos fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão (art. 615º, nº 1, b), do NCPC), outra é um eventual vício da decisão da matéria de facto, por indevida fundamentação de factos essenciais (art. 662º, nº 2, d), de tal código), realidades diferentes, contudo;

3.- Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório.

4. O julgador só se pode afastar e postergar os factos relatados pelos peritos e as suas conclusões, tecnicamente fundamentadas, oriundas da valoração dos mesmos, se outra prova, de carácter probatório elevado e fidedigno, inequivocamente apontar em sentido diverso.

5.- A modalidade do “tu quoque”, da figura do abuso de direito, nas três situações elencadas na decisão recorrida: o agente violador de uma norma jurídica não pode prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada; tem a ver com a primazia da materialidade subjacente, e, portanto, com a situação jurídica em concreto e específica que se quer fazer impor;

6.- Se a A. demanda os RR, por violação por parte destes do fim a que destinam a sua fracção, constituída em propriedade horizontal, restauração em vez de comércio, não é por ela ter usado a sua fracção de garagem a uso diferente, a actividade de vidente, e ter feito obras na mesma de ligação às partes comuns do prédio, que ao demandar judicialmente aqueles RR para pôr fim a tal uso está a actuar com abuso de direito na modalidade de “tu quoque” (nem os RR ao demandarem reconvencionalmente a A., por tal actuação ilícita da mesma).

7.- Inexistindo “factum proprium” da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verificando qualquer conduta contraditória por parte daquela, não se verifica qualquer abuso de direito da sua parte, na modalidade de “venire”.

8.- O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos arts. 236º a 238º do CC.

9.- O sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a comércio um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial, para mediação e troca de bens e serviços, e não um estabelecimento em que se exerça actividade industrial como é o caso da restauração.

10.- Não resultando do título quaisquer outras indicações quanto à finalidade a prosseguir nesse espaço, mas dele resultando que a maioria das fracções se destina a habitação, o declaratário normal, exigente e sagaz, sabe que o licenciamento administrativo do estabelecimento, e respectivos critérios e condicionante, não releva no sentido de permitir que, à luz das finalidades que constam do título constitutivo, seja admissível, no imóvel, um restaurante.

11. O declaratário normal e diligente sabe que as actividades industriais, incluindo a restauração, são susceptíveis de facilmente pôr em causa em causa a tranquilidade e o sossego dos moradores e a própria qualidade ambiental do imóvel; é, pois, levado a considerar que, quando se referencia no título constitutivo determinada fracção para comércio, a loja a instalar é para estabelecimento comercial cuja actividade, em regra, implica afluência limitada de pessoas, um horário de funcionamento diurno e a ausência de cheiros, odores e ruídos próprios do exercício de outras actividades, designadamente as de natureza industrial.

12. A obrigação a que os RR vão ser condenados, definida no ponto 6. que antecede, é uma prestação de facto e infungível, pois só eles a podem cumprir.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. A (…), residente em  (...), intentou contra A (…) e mulher M (…), residentes em  (...), acção declarativa pedindo que os réus sejam condenados a: a) afectar a fracção autónoma de que são proprietários ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer meio, a sua utilização por terceiros para a actividade de restauração e bebidas, abstendo-se e exigindo a abstenção de terceiros que a ocupem emitindo fumos, cheiros e ruídos perturbadores da saúde e descanso da autora; b) a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 200 € desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos; c) a proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot”, do respiradouro e dos aparelhos de ar condicionado instalados no edifício sob apreciação, repondo as partes comuns do edifício no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua instalação; d) e a pagar à autora o valor de 6000 €, a título indemnizatório, acrescidos de juros de mora vincendos, à taxa legal supletiva, actualmente de 4%, contabilizados desde a data da sua citação e até integral pagamento.

Para tanto, em síntese, alegou que é proprietária de uma fracção autónoma, localizada no 2º Esq., e que os réus são proprietários de outra fracção autónoma, localizada no R/c Dtº, de um edifício constituído em propriedade horizontal, sendo a fracção da autora destinada a habitação e a fracção dos réus destinada a comércio. Que os réus elaboraram extensas obras de adaptação na sua fracção no intuito de utilizá-la para a actividade de restauração e bebidas. Que nenhuma das obras foi autorizada por si ou demais condóminos ou pela administração do seu condomínio. Em consequência do alegado vê a sua fracção diariamente poluída com fumos e gases oriundos do sistema de extracção dos réus, causando-lhe inflamação do nariz e garganta, padecendo de rinite e faringite alérgicas em virtude da constante inalação dos ditos gases poluídos, vendo a sua fracção constantemente invadida de maus cheiros, vendo-se impossibilitada de utilizar as suas próprias instalações sanitárias e respectivas águas, sob pena de inflamações, sendo que o restaurante actualmente instalado na dita fracção mantém-se aberto até, pelo menos, às 00h30, vendo a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários, tendo os réus instalado uma esplanada diante do edifício em questão, sem qualquer autorização dos demais condóminos para o efeito. Que, desde que foi alterada a afectação da mesma fracção, as instalações de saneamento gerais do prédio em questão se entopem frequentemente, acabando por inundar a garagem da autora com águas pútridas, causando estragos que carecem, para a sua reparação, de 1000 €, vendo-se privada da plena utilização da fracção sua propriedade. Que tem dificuldade em dormir uma única noite de sono descansada, pedindo uma compensação nunca inferior a 5.000 € pelos danos não patrimoniais sofridos. 

Os réus contestação, invocando o abuso de direito da autora nas modalidades de “tu quoque” e de “venire contra factum proprium”, afirmando, em síntese, que o uso genérico de comércio permite a exploração como restaurante, tendo procedido à realização de todas as obras necessárias para o cumprimento das exigências legais para este tipo de estabelecimento, obras feitas à vista de todos os condóminos, sem qualquer oposição pessoal destes, nomeadamente, da autora, nem objecto de reclamação em reunião de Assembleias de Condóminos ao longo de 8 anos, tendo a Câmara Municipal a licenciar o mesmo. Que o estabelecimento de restauração e bebidas, funciona até às 22H00, não existindo cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar de quem ali reside, nomeadamente, da autora, pelo que se a autora tem problemas de alergias ou de saúde, estes não podem ser imputados à actividade do restaurante. Que, ao longo de 8 anos, nenhum outro condómino se queixou para além da autora. Que, em assembleia de condóminos a autora propôs à votação o encerramento da actividade de restaurante, não tendo sido a mesma aprovada a proposta de encerramento do restaurante. Que o estabelecimento de restauração cumpre as exigências de salubridade e saúde pública e que a esplanada aberta está instalada em espaço público, foi ali colocada no verão de 2014, sem oposição ou reclamação de qualquer condómino, nomeadamente da autora e que o seu licenciamento foi aprovado pela Câmara Municipal. Que a autora exerce actividade de vidente na sua garagem, na qual construiu clandestinamente uma divisória onde colocou, nomeadamente, uma instalação sanitária, o que, provavelmente, provoca o entupimento do saneamento e aparecimento de humidades na sua garagem, sendo que, assim, alterou a afectação da sua garagem para serviços, afectação que não foi dada a conhecer aos condóminos.

Por fim, deduziram reconvenção, peticionando que a autora seja condenada: a) a afectar a fracção designada por CC-Um ao fim de garagem a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer outro meio, a sua utilização para a actividade de “serviços”; b) e a demolir a instalação sanitária, construída na sua garagem e remover as caixas de esgoto doméstico e todos os canos de ligação ao saneamento principal do prédio.

A autora replicou, dizendo inexistir abuso de direito. Que exerce a actividade de vidente na sua habitação, o que não extravasa o uso residencial da sua fracção. Que os RR é que estão a abusar de direito, com o pedido formulado, devendo a mesma ser absolvida do pedido reconvencional deduzido.

*

A final foi proferida sentença que:

A - Julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência:

a) absolveu os RR de todos os pedidos formulados na petição inicial;

B – Declarou a inutilidade superveniente da lide quanto ao primeiro pedido reconvencional formulado e, em consequência, declarou extinta a instância nessa parte.

C – Julgou totalmente improcedente o segundo pedido reconvencional formulado e, em consequência, absolveu a A. desse pedido.

*

2. A A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Os RR contra-alegaram, tendo concluído que:

(…)

 

II – Factos Provados

1. A Autora é proprietária e legítima possuidora do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CC”, do edifício sito na Avenida Dr.  (...), n.ºs (… e na Quinta do  (...), 6360  (...), localizada no 2.º Andar Esquerdo, com entrada pelo n.º 29 do mesmo.

2. Os Réus são proprietários e legítimos possuidores do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CD”, do edifício sito na Avenida Dr.  (...), n.ºs 29, 31 e 35 e na Quinta do  (...), 6360  (...), localizada no Rés-do-chão Direito, com entrada pelo n.º 31 do mesmo.

3. O edifício em causa encontra-se constituído em regime de propriedade horizontal, sendo a sobredita fracção propriedade da Autora destinada a habitação e a fracção supra identificada propriedade dos Réus destinada a comércio.

4. No ano de 2009, os Réus fizeram obras de adaptação com vista a utilizar a sua fracção para a actividade de restauração e bebidas.

5. Entre outras obras, os Réus procederam à colocação de condutas de extracção de fumos, cuja saída da fracção propriedade daqueles se encontra ligada à parede de separação da mesma à fracção contígua, porquanto ali inexistia qualquer sistema de extracção de fumo.

6. Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício em corete independente (cfr. doc. n.º 6 junto com a p.i.).

7. Procedeu-se à acoplação de uma “hot” à aludida chaminé.

8. Instalando-se ainda um respiradouro na fachada posterior do edifício em apreço e dois aparelhos de ar condicionado, após materialização da abertura necessária para o efeito.

9. Permitiram os Réus a instalação na fracção em apreço de, pelo menos, dois restaurantes, arrendando-a para tal efeito.

10. Nenhuma das obras acima elencadas foi autorizada pela Autora ou demais condóminos do edifício em questão ou, sequer, pela administração do seu condomínio.

11. Não se procedeu, até ao presente, à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de alterar a afectação da fracção autónoma propriedade dos Réus.

12. A Autora sofre de rinite e faringite alérgicas.

13. Os Réus instalaram uma esplanada diante do edifício em questão, sem qualquer autorização dos demais condóminos para o efeito.

14. Mais do que uma vez houve entupimentos da caixa de esgoto existente na garagem da Autora.

15. Esses entupimentos impedem a Autora de utilizar esse espaço, sempre receosa de ver os seus bens ali depositados danificados, nomeadamente, qualquer veículo automóvel.

16. A Autora vive com intranquilidade e angústia.

17. Por diversas vezes, directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras.

18. Os Réus adquiriram, no ano de 1996, a fracção autónoma identificada pelas letras “CD”.

19. No verão de 2009, os Réus decidiram afectar a sua fracção à actividade de restauração e bebidas.

20. Para tanto, os Réus dirigiram-se à Secção de Obras Particulares da Câmara Municipal para obterem informações sobre o procedimento necessário ao seu licenciamento.

21. Foram informados pela responsável da Secção de Obras Particulares, Engenheira G (…), que, por constar do Alvará de Licença de utilização da fração n.º 5/2006, o uso genérico de comércio, era necessário apresentar um projecto de alteração ao uso de comércio, para comércio de restauração e bebidas, por este tipo de estabelecimentos obedecer a requisitos próprios para o seu funcionamento.

22. Bem como para procederem à realização de todas as obras necessárias para o cumprimento das exigências legais para este tipo de estabelecimento.

23. Informou ainda a técnica, que, por haver divergência de entendimento sobre este tipo de licenciamento específico, com a Chefe de Divisão de Planeamento e Urbanismo, engenheira C (…), seria solicitado à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) a emissão de um parecer sobre esta questão.

24. Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederem à execução das obras necessárias para o efeito na sua fracção (cfr. fls. 97 e ss e, designadamente, fls. 105 e ss e, sobretudo, fls. 123 e ss e fl.153 do apenso junto pela CM e depoimento da testemunha F (…)).

25. Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma corete interna, que existe de raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da corete principal da chaminé do edifício (cfr. doc. de fl. 135 conjugado com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, os esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018, o depoimento da testemunha F (..) e o depoimento da testemunha M (…)).

26. Situa-se junto à parede de separação com o bloco habitacional designado por “lote D” e prossegue até ao telhado do edifício de cinco andares.

27. Sem qualquer tipo de contacto com a corete das instalações sanitárias da fracção da Autora.

28. As obras mencionadas foram à vista de todos os condóminos (regras de experiência comum, sendo um facto notório que obras como aquelas não podiam ser realizadas de forma encoberta).

29. As obras mencionadas não foram objecto de reclamações em reunião de Assembleias de Condóminos ao longo destes últimos 8 anos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224)

30. Em 4 de dezembro de 2009, foi emitido o parecer pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) com o n.º DSAJAL 194/09 que concluiu que “o uso pretendido para a fracção em causa - restauração e bebidas - enquadra-se no sector mais genérico do comércio, tendo apenas um regime de licenciamento próprio, que visa acautelar determinados interesses públicos nos domínios da funcionalidade, segurança e salubridade”.

31. Os Réus apresentaram na Câmara Municipal o projecto de alteração ao uso da fracção de comércio para comércio de restauração e bebidas, instruído com todos os pareceres obrigatórios (parecer sanitário, ficha de segurança contra incêndio e termo de responsabilidade).

32. Vindo este a ser aprovado, em 28 de dezembro de 2009, e efectuada a alteração à Licença de Utilização n.º 5/2006 de comércio para comércio de restauração e bebidas.

33. O local onde se situa o estabelecimento de restauração é pacato e sossegado.

34. Não existe no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar, de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, nem tão pouco fumos ou gases oriundos do sistema de extração de fumos da fracção dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018).

35. A fracção da Autora situa-se no segundo andar esquerdo do lado oposto ao restaurante.

36. A Autora apresentou queixa junto da Provedoria de Justiça.

37. A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade” (cfr. doc. n.º 7 junto com a contestação e fl. 182 do apenso junto pela CM).

38. Arquivamento comunicado à Autora que o aceitou.

39. Bem como à Câmara Municipal.

40. Dois anos após o início do funcionamento do restaurante, em reunião extraordinária da Assembleia de condóminos de 22 de Julho de 2011, foi deliberado consultar um advogado para questionar se o licenciamento da fracção CD- r/c direito permitia a abertura de um restaurante/café.

41. Em Assembleia de condóminos de 20 de Janeiro de 2012 foram prestados presencialmente os esclarecimentos solicitados e anexa a informação escrita à respectiva acta.

42. E informados os condóminos, nomeadamente, a Autora, que face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante.

43. Em Assembleia de condóminos de 25 de Janeiro de 2015 (mas que se reporta ao ano de 2016 por constar da respectiva Acta que a convocatória foi remetida em 6 de Janeiro de 2016 e atendendo ao teor do ponto 1 e 2 em discussão), a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção CD, correspondente ao r/c direito, com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, não tendo sido aprovada a proposta de encerramento do restaurante mas tendo a Autora votado a favor.

44. Da vistoria efectuada à fracção dos Réus em 20.06.2014 pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de  (...) foi verificado que o estabelecimento de restauração “O (..)” cumpria as exigências de salubridade e saúde pública.

45. A esplanada aberta com estrado está instalada em espaço público, em frente à fracção dos Réus.

46. Foi ali colocada em 2014, sendo que, à data, o seu licenciamento foi requerido pela então arrendatária da fracção “O (…)”.

47. Tais obras decorreram com total conhecimento da Autora e dos demais condóminos (regras de experiência comum, sendo um facto notório que obras como aquelas não podiam ser realizadas de forma encoberta).

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma corete independente da corete principal da chaminé do edifício que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, à semelhança do que sucedia com as restantes fracções afectas ao comércio para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar (cfr. doc. de fl. 135 conjugado com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, os esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018, o depoimento da testemunha (…) e o depoimento da testemunha (..)).

49. A Autora é conhecida no concelho como vidente, exercendo essa actividade ao longo dos anos, pelo menos, num dia indeterminado da semana e aos sábados, sendo que, até ao ano passado, exercia essa actividade na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para servir a “vasta” clientela que atende semanalmente (cfr. em parte, acordo das partes nos termos dos arts. 73.º e 74.º da contestação e 34.º, 35.º e 59.º da réplica e depoimentos das testemunhas (…) conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

50. A afectação que a Autora deu à sua garagem e, depois, habitação propriamente dita, foi levada a cabo sem autorização dos demais condóminos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

51. Essa afectação provoca um afluxo de pessoas e veículos, na parte posterior do edifício.

52. A totalidade das fracções existentes no prédio em apreço é de seis e a Autora representa uma delas.

53. A autora é proprietária da fracção correspondente ao segundo andar esquerdo destinado a habitação do tipo T- três, composta por um corredor, três quartos, duas instalações sanitárias, sala, cozinha, varanda, arrecadação no sótão, designada por CC-três e na cave garagem, designada por CC-Um e arrumos designado por CC-dois.

54. A Autora elaborou na garagem, obras de adaptação, com a intenção de utilizá-la para a sua actividade de vidente (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 74.º da contestação e 35.º da réplica e depoimentos das testemunhas (…), conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

55. A Autora ligou a instalação sanitária que construiu na sua garagem ao saneamento principal do prédio.

56. As obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

57. A Autora queixou-se da instalação de um restaurante na fracção propriedade dos Réus junto da Câmara Municipal, dos Serviços de Saúde e do Provedor de Justiça.

58. O condómino da fracção CE (1.º Direito) disse, na Assembleia de Condóminos de 22.07.2011: “em princípio, permite apenas para utilizar a loja para fins comerciais, ou seja, comércio e não para café ou restauração.” Disse também que quando chegou dos E.U.A., as janelas/persianas estavam “coladas, com gordura e os cheiros são intensos”.

59. Desde, pelo menos, há dez anos é do conhecimento dos Réus que a Autora é vidente e ajuda diversas pessoas enquanto tal na fracção que é sua habitação, nomeadamente, na zona da garagem.

60. Jamais os Réus se manifestaram contra tal comportamento da Autora ou instalação.

61. Os Réus procederam à instalação de duas casas-de-banho na garagem designada “CD 1”, respeitante à fracção autónoma identificada pelas letras “CD”, sua propriedade, utilizando, igualmente, aquele espaço como armazém comercial e arrecadação.

62. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como garrafões de azeite e batatas - e noutras vezes quantias monetárias que medeiam entre os 5,00€ (cinco euros) e os 30,00€ (trinta euros) (cfr. depoimentos das testemunhas (…)).

63. Hodiernamente, a Autora apenas recebe os seus clientes na sua habitação, localizada no segundo andar esquerdo do edifício em apreço.

*

Factos não Provados:

1. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

2. As condutas mencionadas no ponto 5 têm passagem pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais, como aquela propriedade da Autora.

3. A Autora vê a sua fracção diariamente poluída com fumos e gases oriundos do aludido sistema de extracção propriedade dos Réus.

4. O que lhe causa inflamação do nariz e garganta e faz com que a Autora padeça, hodiernamente e desde 2009, de rinite e faringite alérgicas em virtude da constante inalacção dos gases poluídos provenientes dos sucessivos restaurantes que ali vão sendo instalados desde aquela data.

5. De igual modo, a Autora vê hoje a sua fracção constantemente invadida de maus cheiros, o que não sucedia em momento anterior à materialização das obras acima mencionadas e à indevida afectação da fracção propriedade dos Réus à actividade de “restauração e bebidas” (estudo de avaliação da qualidade de ar interior junto aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

6. A passagem das condutas de extracção de fumos pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais cominou a contaminação das águas sanitárias utilizadas na fracção da Autora pelo que, por inúmeras vezes, a Autora e os seus familiares se viram e vêem impossibilitados de utilizar as suas próprias instalações sanitárias e respectivas águas, sob pena de inflamação cutânea e vaginal.

7. O restaurante actualmente instalado na fracção propriedade dos Réus mantém-se aberto em dias de festa, até, pelo menos, à 00h30 do dia subsequente, sendo que aumenta o afluxo de clientes nos fins-de-semanas, feriados, dias festivos e no período estival.

8. Em consequência, desde que a fracção propriedade dos Réus foi afecta à actividade de restauração, a Autora vê a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários dos sucessivos restaurantes ali instalados, no período diurno e nocturno, designadamente, aquando da limpeza e arrumação do estabelecimento no final da jornada de trabalho (verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

9. O afluxo de clientela, inerente à actividade de restauração, determinou uma maior utilização das instalações sanitárias da fracção propriedade dos Réus não previsível aquando da construção do edifício em causa, utilização para a qual as respectivas instalações não se encontram estruturalmente equipadas.

10. Consequentemente, desde que foi alterada a afectação da fracção propriedade dos Réus que as instalações de saneamento gerais do prédio em questão se entopem frequentemente - a última das quais em Agosto de 2016 - enchendo as respectivas caixas de saneamento e transbordando, acabando por inundar a garagem da Autora e de outros condóminos com águas pútridas.

11. Ocorrem frequentes infiltrações de água pelo tecto e paredes da garagem da Autora, a última das quais em Agosto de 2016 (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, em primeiro lugar, por serem concernentes ao chão, em segundo lugar, por serem contraditórios com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e, em terceiro lugar, porque tais docs. não se encontram datados).

12. Causando, inevitavelmente, o levantamento da tinta ali aplicada e do estuque e o enegrecimento de tais estruturas, carecendo, para a sua reparação de ser efectuada a sua pintura, com duas de mão, com tinta plástica de igual qualidade à ali existente, com custo nunca inferior a € 1000,00 (mil euros) (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, além de que contrariado pelos esclarecimentos juntos aos autos em 13.04.2018).

13. A Autora é uma pessoa pacata, simples e humilde, educada e estimada por quantos a conhecem e que com ela lidam, dotada de grande autoridade moral, excelente educação e fino trato.

14. Era ainda, anteriormente aos factos, uma pessoa feliz, sempre bem-disposta e cheia de alegria de viver.

15. A Autora tem dificuldade em dormir uma única noite de sono descansada, desde que os Réus concretizaram as obras acima referidas, ou seja, desde 2009.

16. Ficando a Autora deprimida e entristecida em consequência do comportamento dos Réus, deixando de apresentar a força de viver a que habituara os seus parentes e amigos, vendo prejudicados o seu bem-estar e conforto na sua própria habitação.

17. Desde 2006 que os Réus deram de arrendamento a sua fracção.

18. As obras executadas pelos Réus não tiveram qualquer oposição pessoal dos condóminos, nomeadamente, da Autora ou da administração do condomínio.

19. As obras foram aprovadas e licenciadas pela Câmara Municipal.

20. Desde então (28.12.2009) que, na fracção dos Réus, funciona continuamente um estabelecimento de restauração e bebidas do tipo familiar, o qual, na maior parte dos dias, à hora do almoço, funciona a menos de 50% da sua capacidade, sendo praticamente inexistente a clientela à noite, nos dias de semana.

21. Apesar de lhe ter sido atribuído um horário de funcionamento mais alargado, o estabelecimento funciona essencialmente das 9H30 às 15H00 e das 19H30 às 23H00.

22. Ao longo de 8 anos, nenhum outro condómino se queixou para além da Autora.

23. Informada pela Câmara Municipal que a actividade de restauração instalada na fracção dos Réus cumpria todas as exigências legais, a Autora aceitou o licenciamento e consequentemente a laboração do restaurante na fracção dos Réus.

24. Das vistorias efectuadas à fracção dos Réus pela Câmara Municipal e/ou pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de  (...), a pedido da Autora nada resultou no sentido de que a instalação do restaurante provoca com frequência entupimento das instalações de saneamento e inundação das garagens desta e dos outros condóminos.

25. O licenciamento da esplanada mencionado no ponto 44 dos factos provados foi aprovado pela Câmara Municipal.

26. A Autora construiu clandestinamente duas caixas de esgoto doméstico no pavimento na garagem afecta à sua habitação.

27. O afluxo de pessoas e a maior utilização da instalação sanitária sita na garagem da Autora, que não estava comtemplada no projecto aquando da construção do edifício, provavelmente, provoca o entupimento do saneamento e aparecimento de humidades na garagem da Autora.

28. A afectação que a Autora dava à garagem não foi dada a conhecer aos condóminos aquando da aquisição das respectivas fracções.

29. E perturba o descanso, tranquilidade e privacidade de quem ali reside.

30. Foi no ano de 2011 que a Autora concordou com o arquivamento da queixa apresentada no Provedor de Justiça.

31. Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento.

32. É a instalação sanitária que a Autora construiu na garagem que entope frequentemente as instalações do saneamento geral do prédio (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 que demonstra o seu contrário).

33. As obras efectuadas pela Autora foram sem autorização da administração do condomínio.

34. A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

35. A Ré recorreu, por diversas vezes, à ajuda da Autora, ao longo da última década, conforme é do pleno conhecimento do seu marido Réu, na qualidade de vidente, para o efeito se deslocando, inclusivamente, à garagem da segunda, local onde lhe foi prestado o auxílio solicitado, encontrando-se ao seu dispor o vaso sanitário ali colocado por ordem da Autora (uma vez que as únicas testemunhas que a isso se referiram – a testemunha (…) que apenas o diz incidentalmente e a testemunha (…), filha da Autora – se revelaram pouco credíveis por serem os seus depoimentos flagrantemente contrariados pelas perícias realizadas e não consentâneos, na sua maior parte, com as regras de experiência comum, mencionando-se, só a título de exemplo, a insistência peremptória dessa testemunha (…) no sentido de ver fumo a sair do “buraquinho da fechadura” da garagem dos Réus e que a Autora, devido ao restaurante, ficou com “língua com verdete” três dias após a abertura do mesmo).

36. Desde, pelo menos, 1996, é do conhecimento dos Réus e de todos os demais condóminos que se encontra instalado na garagem da Autora um vaso sanitário.

37. Nenhum prejuízo algum dia ocorreu para os Réus decorrente da actividade da Autora ou daquela instalação.

38. Os Réus chegaram a permitir que se proceda à confecção de carnes na garagem integrante da sua fracção, conforme é prática do seu arrendatário.

39. A Autora, desde, pelo menos, 1991, é vidente, sem remuneração certa, recebendo, apenas, o que as pessoas lhe queiram dar.

40. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como flores, bibelôs - e noutras raras vezes gratificações monetárias como €5,00 (cinco euros) ou €10,00 (dez euros).

*

 

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Má fé da A. com a apresentação do recurso.

- Nulidade da decisão.

- Alteração da matéria de facto.

- Saber se a A. actuou com abuso de direito ao interpor a presente acção e, em caso afirmativo, apurar as consequências dessa actuação.

- Saber se os RR afectaram a sua fracção autónoma a um uso diverso daquele a que a mesma se destina e apurar as respectivas consequências

- Saber se os RR devem ser condenados a pagar à A., a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 200 € desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos.

- Saber se a A. sofreu danos não patrimoniais mercê da actuação dos RR ao destinarem a sua fracção a um fim diverso daquele a que a mesma se destina e se sim as respectivas consequências.

2. Defendem os recorridos que a A. ao interpor o recurso litiga de má fé, devendo ser ela condenada em indemnização (cfr. conclusão das suas contra-alegações de recurso 28.).

Não passa de uma mera afirmação conclusiva, sem que os mesmos tivessem apresentado, no corpo das alegações, qualquer justificação mínima para tanto. Ou seja, a dita conclusão não encontra apoio algum na motivação de recurso. Não se trata, porém, de qualquer conclusão deficiente carecida de aperfeiçoamento, porquanto a lei só prevê o dito aperfeiçoamento para as conclusões, não para as alegações propriamente ditas (art. 639º, nº 3, do NCPC = ao art. 685º-A, nº 3, do CPC). E é assim no que se refere à matéria de direito, pois tratando-se de matéria de facto, diferentemente nem sequer há qualquer aperfeiçoamento (cfr. corpo do art. 640º, nº 1, in fine, do NCPC). Por isso, por mais obscuras, complexas e deficientes que as alegações sejam, a lei não admite que o recorrente seja convidado a corrigi-las ou ampliá-las.

É sabido que as conclusões consistem na enunciação de proposições que sintetizam os fundamentos do recurso. A exigência de que a alegação conclua pela indicação sintética dos fundamentos, pressupõe necessária e logicamente que se expuseram mais desenvolvidamente esses fundamentos: a lei exige não só que o recorrente conclua senão também que alegue. O recorrente deve expor ao tribunal ad quem as razões da sua impugnação, a fim de que este tribunal decida se tais razões procedem ou não. Quando isso não suceda, i.e., quando as conclusões contenham um fundamento ou razão que não tenha sido exposta nas alegações, em face da impossibilidade legal de convidar o recorrente a ampliá-las, deve considerar-se não impugnada, nessa parte, a decisão recorrida, com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, do objecto do recurso (cfr. neste sentido, por ex., os Acds. do STJ de 2.12.1988, BMJ 382, pág. 497, de 12.1.1995, C.J., T. 1, pág. 20, de 13.1.2005, Proc.04B4132, de 24.5.2005, Proc.05A1414 e Abrantes Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, nota 4. ao artigo 684º do anterior CPC, pág. 92).

Como assim, não encontrando a dita conclusão, sobre este aspecto, apoio algum na motivação de recurso, é como se não houvesse formulação, pelo que necessariamente não é cognoscível esta parte da referida contra-alegação de recurso, referente à pretensa litigância de má fé, arguida pelos RR/apelados.

Indefere-se, por isso, o seu pedido indemnizatório.

3. A A. dá como violado os arts. 154º e 615º, nº 1, b), do NCPC, por a sentença recorrida não ter fundamentação condigna (cfr. conclusões de recurso II e III).

Mas sem razão. A sentença só é nula, nos termos da referida alínea, se não especificar os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão. E a sentença apelada contém ambos, pois a julgadora especificou os factos provados (63) e não provados (40), conforme consta do elenco da factualidade acima referida, assim como apresentou fundamentação de direito para explicar a decisão que tomou (pode-se vê-la parcialmente transcrita no ponto 5., infra).

Realidade diferente que atravessou porventura a ideia da A. seria a indevida fundamentação da decisão da matéria de facto, por desrespeito do estatuído no art. 607º, nº 4, 1ª parte, do mesmo código, que poderia determinar a consequência prevista no art. 662º, nº 2, d), de tal diploma, em relação aos factos essenciais para o julgamento da causa, mecanismo que, todavia, não vem requerido pela A./recorrente (e que este tribunal ad quem não vê necessidade de accionar oficiosamente).

Ou seja, uma coisa é um vício intrínseco à sentença, outra é um eventual vício da decisão da matéria de facto, realidades diferentes, contudo.

Do que se pode concluir que inexiste qualquer nulidade da sentença, como arguido pela recorrente.     

4. A A./apelante impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 6., 24., 25., 28., 29., 34., 37., 47. a 50., 54., 56. e 62., e factos não provados 1., 5., 7., 8., 11., 12., 15. e 34., indicando a decisão de facto que deve ser proferida (cfr. conclusões de recurso IV a VII).

Visto que a matéria impugnada é vasta, diferenciada, e a A. se baseia em diversos meios de prova, é útil a sua análise separada.

4.1. Relativamente aos factos provados 6. e 25., a A. pretende redacção diferente, com base no doc. 6, junto com a p.i., fotos 7 e 8, doc. 14, junto com a contestação (a fls.135), relatório pericial de 29.1.208, com as respostas aos arts. 5º a 7º da p.i. e 17º e 18º da réplica, e esclarecimentos do perito de 13.4.2018, ponto 3. Esta fundamentação não diverge da exposta pela julgadora de facto (como se pode ver da referência feita pela mesma entre parêntesis à frente dos factos ora impugnados).

Compulsados tais docs., relatório pericial e acompanhantes fotografias nºs 1 e 2 e esclarecimentos do perito, defere-se a impugnação da A., porque a redacção sugerida pela mesma mais é mais rigorosa tecnicamente, espelhando melhor o explicitado pelo sr. perito. Por consequência, tais factos passarão a ter a redacção proposta pela impugnante (a negrito, ficando os anteriores em letra minúscula).

6. Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício, passando pelo interior da corete do mesmo, por uma tubagem dedicada exclusivamente à fracção dos Réus, e pela fachada posterior do edifício.

25. Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma tubagem interna, que existe desde raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da tubagem principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125mm, inferior ao de 180mm verificado no interior da fracção.    

4.2. Relativamente ao facto provado 24., a A. pretende alteração da redacção, com o acrescento apontado, com base no projecto de extracção de fumos constante de fls. 10/13 do processo camarário apenso aos autos, doc. 6, junto com a p.i., relatório pericial de 29.1.208, com as respostas aos arts. 5º da p.i. e 17º e 18º da réplica, e depoimento da testemunha (…). Mais uma vez, esta fundamentação não diverge da exposta pela julgadora de facto (como se pode ver da referência feita pela mesma entre parêntesis à frente do facto ora impugnado).

Mais uma vez, compulsados tais docs., relatório pericial e acompanhantes fotografias nºs 1 e 2, e o que emerge de fls. 97 e segs., designadamente, fls. 105 e segs., fls. 123 e segs. e fl.153 do referido apenso camarário, referidos pela julgadora na sua motivação, e ainda fls.99 de tal apenso, defere-se a impugnação da A., mas apenas parcialmente, pois não detectamos nenhum documento ou certificação comprovativa da notificação dos confinantes referida pela A./impugnante. Por consequência, tal facto passará a ter a redacção parcialmente proposta pela impugnante, nos termos ora apontados (a negrito, ficando o anterior em letra minúscula).

24. Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos pelo Município para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederam à execução das obras tidas por necessárias para o efeito na sua fracção, objecto de projecto, e ainda à instalação de um sistema de extracção de fumos na garagem, com saída pela fachada posterior do edifício, mediante prévio recurso à alteração do projecto em sede de “loteamento”.

4.3. Relativamente aos factos provados 28 e 47., a A. pretende que eles passem a não provados, com base em não serem factos notórios.

Do relatório pericial, fotos 1 a 3, emerge que das obras realizadas pelos RR algumas tiveram expressão e visibilidade exterior. Assim sendo, decorre das regras da experiência comum, como assinalado pela julgadora, que estiveram à vista dos condóminos e não eram totalmente encobertas, conclusão que se impõe tirar, com base em presunção judicial ou de facto, nos termos do art. 351º do CC.

Afirmar que todos os condóminos viram é que se mostra algo arrojado, pois a julgadora de facto não o justificou e, como a recorrente argumentou, desconhece-se a identidade de todos os condóminos do prédio em causa àquela data, na medida em que tal não resulta da documentação junta aos autos e muito menos se pode conhecer quem esteve presente durante o decurso das mesmas, não se sabendo qual o efectivo período em que ocorreram e se todos os condóminos estariam ou não de férias ou a residir ocasionalmente noutro local durante o mesmo.

Assim, a pretensão da A. a que passem a não provados não pode ser concedida, embora se possa e deva introduzir a mencionada limitação (a negrito, ficando os anteriores em letra minúscula).

28. As obras mencionadas foram à vista de condóminos.

47. Tais obras decorreram com total conhecimento da Autora e outros condóminos.

4.4. Quanto ao facto provado 29. (facto alegado pelos RR na sua contestação, sob art. 29º), a A. pretende que ele passe a ter redacção contrária, com base no relatório pericial, respostas aos arts. 5º da p.i e 17º e 18º da réplica, facto provado 58., originado no doc. 8 junto com a contestação, correspondente à acta nº 14 (a fls. 105/108), e depoimento das testemunhas (…)

O que a A. pretende, é exactamente o contrário do assente ! O que não pode ser alcançado, agora, em fase de recurso, pois a mesma não alegou tal facto, nem em sede de p.i, nem de réplica, como era seu ónus, atento o princípio do dispositivo, consagrado no art. 5º, nº 1, do NCPC.

Ademais, mesmo que assim não fosse, também não poderia almejar a tanto, por 3 motivos. Porque o relatório pericial, por si, invocado, não é idóneo para o efeito. Porque o facto 58. e a respectiva acta a tanto não conduzem. Aliás, tal facto, não se confunde, no seu teor, com o facto provado sob 29. Finalmente, porque mesmo que tal factualidade pudesse ser vista como facto complementar ou concretizador doutro facto alegado pela A. e resultasse da instrução da causa, o certo é que as partes tinham de ter a possibilidade de sobre ele se pronunciar - mesmo artigo e número, b) –, para o juiz o poder considerar, o que não se revela ter acontecido. Na verdade, no caso concreto, o juiz não avisou as partes que estava disponível para o considerar factualmente nem as partes, designadamente a A., requereram que tal acontecesse (veja-se as actas de julgamento onde, sobre este aspecto, nada é dito pela sra. Juíza ou pelas partes). E só neste circunstancialismo se poderia equacionar a aplicação de tal preceito, como defendemos e se decidiu recentemente no Acórdão proferido em 9.1.2018, no Proc.825/15.2TBLRA (com o mesmo relator e 1º adjunto do presente), consultável em www.dgsi. pt.

De maneira que tal matéria proposta pela recorrente não pode ser considerada, não procedendo a impugnação nesta parte.

4.5. Quanto ao facto provado 34. (alegado pelos RR na sua contestação, sob arts. 40º e 41º), a A. pretende, mais uma vez, que ele passe a ter redacção contrária, com base no depoimento das testemunhas (…)

Assinale-se que a A. alegou exactamente o inverso do dado por assente nos arts. 16º (fumos e gases), 19º (maus cheiros) e 23º (ruídos) da p.i. Essa matéria, alegada pela A., recebeu a resposta de não provado, conforme decorre dos respectivos factos 3. (fumos e gases), 5. (maus cheiros) e 8. (ruídos).

Por conseguinte, o que a A. rigorosamente devia ter impugnado era a resposta de não provado aos factos por si alegados. E efectivamente a A. impugnou as respostas aos aludidos factos não provados 5. e 8., pelo que a impugnação melhor será apreciada aquando da análise a tal acervo factual.

Acontece, porém, que a A. não impugnou o facto não provado 3., referente a fumos e gases, o que devia ter feito, repete-se. Pelo que queda não cognoscível a impugnação apresentada ao presente facto provado 34., no que respeita aos ditos fumos e gases, impugnação que, assim, neste restrito âmbito, vai indeferida.     

4.6. Quanto ao facto provado 37., a A. pretende que à redacção assente seja acrescentada a expressão “erroneamente”, à consideração da Provedoria, visto o ofício remetido pelo CM de  (...) à indicada Provedoria, constante de fls. 178 do processo administrativo, correspondente ao apenso camarário, e depoimento das testemunhas (…). Além da apontada expressão ser uma mera conclusão de facto, insusceptível, pois, de constar de elenco de factos apurados, pois só devem seleccionar-se para tal efeito, factos materiais, concretos, substantivos, tal ofício atesta que a A. queixosa se terá dado por satisfeita, nada mais. Não pode, pois, entender-se que a Provedoria estava em erro, apenas se podendo concluir que tal entidade arquivou a mencionada queixa no seguimento da comunicação da autarquia. Nada mais. Devendo, por isso, tal facto reflectir tal realidade.

Desta maneira, procede, parcialmente, a impugnação, ficando o indicado facto com a seguinte redacção (a negrito e o anterior em letra minúscula):

37. A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”, no seguimento de comunicação da autarquia nesse sentido.  

4.7. Respeitante aos factos provados 49., 54, e 62., a A. pugna para que deles sejam retiradas as expressões “actividade”, “vasta clientela” e “contrapartida”, pois não tem a profissão de vidente ou é comerciante com fim lucrativo, com fundamento no doc. 1, junto com a réplica, e depoimento das testemunhas (…).

Com o devido respeito, a A. parece dar mais importância à semântica do que à realidade dos factos.

Na verdade, se a A. tem a prática regular e continuada, ao longo dos anos, de exercer a função de vidente, tem essa actividade. É esse serviço que ela presta às pessoas que a procuram. Da sua parte, pode ser uma actividade exclusiva, principal, secundária ou até ocasional, mas não deixa, contudo, de ser uma sua actividade. Inclusive, essa prática regular dessa sua função até consta da Classificação Portuguesa de Actividades Económicas (DL 381/2007, de 14.11), na secção S – Outras Actividades e Serviços, Subclasse 96093, pelo que negar que exerce uma actividade é negar a evidência das coisas. E, obviamente, se há pessoas que a procuram é porque tem clientes. E se alguns lhe pagam dinheiro em troca dessa sua actividade de vidente, desse seu serviço, ou se a gratificam, um – pagamento – ou outro – gratificação – ambos não deixam de ser contrapartida do serviço/actividade por ela prestada.

O único ponto onde a A. tem razão é no uso da palavra “vasta”, pois é meramente conclusiva, já que a julgadora de facto não quantificou o número de pessoas que a A. atendia, pelo que há que expurgar a mesma do respectivo facto 49., o que se fará directamente no respectivo facto constante do elenco indicado na sentença recorrida, ficando tal palavra em letra minúscula e entre comas.   

4.8. Respeitante aos factos provados 50. e 56., a A. pugna para que a eles seja acrescentado que isso ocorreu com o conhecimento dos RR e sem manifestação em contrário destes, com fundamento no depoimento de parte da R. (…).

Ora, verifica-se que tais acrescentos já estão dados por provados nos factos provados 59. e 60., pelo que queda inútil tal impugnação e adicionamento pretendido.

4.9. Respeitante aos factos não provados 5., 7., 8. e 15., a A. defende que eles passem a provados, nos termos redactoriais que aponta, com fundamento nos depoimento das testemunhas (…)

A julgadora de facto para decidir sobre tal matéria teve em consideração apenas os estudos de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora, juntos aos autos em 29.10.2018 (a fls. 368 e segs.).

No atinente à prova pericial, art. 388º do CC, dita a lei que “A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.

Nesta conformidade, a prova pericial incide sobre factos e destina-se a elucidar o tribunal sobre o seu significado e alcance, no pressuposto que a sua natureza e complexidade técnica exijam conhecimentos especiais que escapam ao juiz.

Ou seja, tal prova é produzida por pessoas dotadas de especiais conhecimentos no domínio científico, técnico, artístico, experimental e profissional e tem por objecto, à luz desse tipo de conhecimento, a percepção, apreciação e valoração de factos determinados – vide Ac. do STJ de 26.9.1996, BMJ, 459, 513.

Certo que tal meio probatório não vincula o julgador quanto à existência dos factos podendo o juiz apreciá-lo e valorá-lo livremente – arts. 389º do CC e 489º do NCPC.

Não obstante, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, não pode nem deve o julgador afastar-se do parecer dos peritos, se cientificamente fundamentado, contrariando-o, sem que esta postura de oposição se fundamente cabalmente em outros elementos de prova que se revelem muito fortes, inequívocos e amplamente convincentes – vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, 1987, Vol. IV, págs.184 e segs.

Na verdade, dados os especiais conhecimentos que os técnicos periciais têm, o julgador só se pode afastar e postergar os factos relatados pelos peritos e as suas conclusões oriundas da valoração dos mesmos, se outra prova, de carácter probatório elevado e fidedigno, inequivocamente apontar em sentido diverso.

Como explica A. Reis, ob. cit., pág. 186, pode num ou noutro caso concreto o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo: isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante. É o que sucede no caso dos autos.

Não se vislumbra nos autos que exista prova infirmatória do relatório pericial, nem a recorrente invoca alguma outra, além da testemunhal, que por natureza, e em quase absoluta regra, não têm força e dignidade bastantes para contrariar as conclusões dos peritos.

No nosso caso, o relatório pericial elaborado pelos peritos, está tecnicamente detalhado e bem explicado. E conclui que os ruídos estão em conformidade com os valores regulamentares e que a qualidade do ar é normal. Repare-se, também, que ocorreram várias medições, em datas diferentes (Junho e Agosto de 2018), e a diversas horas da noite (por ex. 23.28 h), isto é, em período de Verão, onde com o calor os cheiros/odores podem ser mais intensos e sentidos, e em altura em que as pessoas, o público, é tendencialmente mais numeroso, ficando a pé até mais tarde, por isso, em períodos nocturnos e tardios onde o ruído pode ser mais audível.

Assim sendo, estamos perante relatórios periciais absorventes e com influência dominante na avaliação dos factos, que meros depoimentos testemunhais não podem desqualificar ou infirmar, dada a sua natureza subjectiva, ou parcial/interessada, ou de falta de credibilidade científica.

O que nos leva a considerar que os relatórios periciais devem prevalecer, por se afigurarem decisivos, pelo que improcede a impugnação da A. nesta parte.     

4.10. Relativamente aos factos não provados 11. e 12., a A. pugna para que ambos passem a provados, nos termos que sugeriu, com base no relatório pericial de 29.1.2018, resposta ao art. 9º da p.i. e esclarecimentos do perito de 13.4.2018, seu ponto 8.

Na p.i., a A., tinha alegado tal matéria, pedindo que tal dano patrimonial lhe fosse indemnizado no valor de 1.000 €, tendo peticionado, ainda, 5.000 € pelos danos não patrimoniais sofridos. Agora em recurso aspira apenas a ver-se indemnizada pelos aludidos danos não patrimoniais no montante de 5.000 € (cfr. conclusão de recurso XIX e parte final das ditas conclusões). Quer isto dizer que a A. abdicou do mencionado dano patrimonial, pois não o reclama na apelação.

Desta feita, é absolutamente improfícuo conhecer a impugnação da matéria de facto reportada a tal dano patrimonial que a A. pôs de parte no recurso que interpôs. Pelo que vai tal impugnação, nesta parte, rejeitada.

4.11. Quanto ao facto não provado 34., a A. defende que seja considerado provado, fundando-se no relatório pericial de 29.1.2018, resposta ao art. 27º da réplica e esclarecimentos do perito de 13.4.2018, seu ponto 8.

Vista a peritagem de 29.1.2018, resposta ao artigo indicado pela recorrente, esta tem inteira razão, pois é isso que decorre da dita peritagem.

Julga-se, por isso, a impugnação procedente, passando o facto não provado 34. para provado, agora sob 64 (a negrito, ficando o anterior facto não provado em minúscula):

64. A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

4.12. Resta apreciar a impugnação ao facto provado 48. e não provado 1., aspirando a A. que aquele tenha a resposta explicativa e restritiva que propugna e este que passe a provado, com fundamento nos esclarecimentos do perito de 13.4.2018, ponto 3, depoimentos das testemunhas (…) e docs. 6, 12, 13 e 14, juntos com a p.i.

A julgadora de facto exarou na sua motivação que:

“Na impossibilidade de o Tribunal conhecer a verdade absoluta, isto é, a verdade material qua tale, o mesmo deve proceder a uma “reconstrução cognitiva” da realidade empírica, ou seja, como afirma MANUEL TOMÉ SOARES GOMES, Da Sentença Cível, 2014, p. 26: “a verdade judicial constrói-se a partir da narrativa dos factos alegados pelas partes no sentido de apurar o grau de correspondência entre essa narrativa e a realidade empírica extraprocessual, versada por aquela e revelada através dos meios de prova produzidos.” Meios de prova esses que são apreciados pelo juiz, segundo a sua prudente convicção.

Com efeito, no sistema processual civil português, tendo por base critérios de racionalidade e de lógica 1Note-se que a livre apreciação da prova não se confunde, de modo algum, com apreciação arbitrária da prova. Como afirma MAIA GONÇALVES, “a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.”, vigora o princípio da livre apreciação da prova mitigado, pois, nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 5, 2.ª parte do CPC, a livre convicção do julgador está limitada pelos factos para cuja prova a lei exige formalidades especiais, pelos factos que só podem ser provados por documentos e ainda pelos factos que estejam plenamente provados.

Como a fundamentação é um elemento imprescindível à transparência da justiça, de acordo com o art. 607.º, n.º 4 do CPC, na decisão sobre a matéria de facto, ao declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, o juiz deve proceder a uma análise crítica das provas, especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, indicar as ilacções inferidas dos factos instrumentais e tomar em consideração os factos que estão provados por documentos e por acordo das partes, compatibilizando, deste modo, toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

Partindo de tais premissas, saliente-se que no caso sub judice, a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada baseou-se, tendo por fundo as regras de experiência comum e da normalidade do acontecer, na ponderação crítica e conjugada do acordo das partes, do teor da prova documental junta aos autos e das provas periciais juntas aos mesmos com os depoimentos de parte prestados pelos Réus e com os depoimentos prestados pelas testemunhas, em sede de audiência de julgamento, mais concretamente, (…), depoimentos esses valorados pelo princípio da livre apreciação da prova, nos termos das disposições conjugadas do art. 396.º do Código Civil (doravante designado CC) e do art. 607.º, n.º 5, 1.ª parte do Código de Processo Civil (doravante designado CPC).

Refira-se que a credibilidade que este Tribunal atribuiu ao depoimento das testemunhas dependeu, essencialmente, da imediação, assente no contacto directo que estabeleceu dialecticamente com as mesmas, em que, além das relações familiares existentes entre elas e as partes, da razão de ciência de cada uma e do mero significado das palavras das mesmas, foi particularmente relevante, para a análise crítica do Tribunal, o modo como as testemunhas depuseram, as suas reacções, as suas espontaneidades, as suas hesitações, a postura e nervosismo manifestados em audiência, ou seja, todo o comportamento mantido ao longo dos respectivos depoimentos.

Explanando-se agora a motivação do Tribunal, dir-se-á que relevaram especialmente para a formação da convicção do mesmo acerca de cada um dos factos provados os elementos que, à frente de cada um deles, para uma cabal compreensão e atendendo à extensão do processado, especificadamente se deixaram expressamente indicados.

Já quanto à factualidade consignada por não provada, o mesmo aconteceu quando havia elementos que justificavam que assim se fizesse, designadamente, por esses factos que se deram por não provados contrariarem factos que já tinham sido dados por provados ou, então, as provas periciais juntas aos autos, sendo que, quanto aos outros factos não provados, nada se indicou especificadamente por o Tribunal ter entendido que não foi carreada, para os autos, prova bastante para sustentar a sua convicção, em relação à respectiva verificação.

Saliente-se que, no caso sub judice, como se constata da motivação que já especificadamente se deixou consignada à frente de cada facto dado como provado, relevaram especialmente os documentos juntos pelas partes e pela Câmara Municipal de  (...) e as várias, diversas, objectivas e aprofundadas provas periciais realizadas.

Não pode deixar-se de se chamar a atenção para o facto da generalidade das testemunhas arroladas pela Autora (com excepção da testemunha (…), comum aos Réus), mormente, a sua filha, a testemunha (…), terem prestado depoimentos marcadamente parciais, singularmente coincidentes em pormenores em que isso seria pouco natural (como por exemplo, afirmarem – de modo totalmente inverosímil – ouvir-se o crepitar de carnes a grelhar e o barulho de talheres na garagem dos Réus, ter-se assistido a urina a “pingar” do tecto e continuarem a frequentar a garagem da Autora), francamente exagerados face às regras de experiência comum (asseverando, por exemplo, que, devido ao restaurante “dos Réus” a Autora ter “doenças de cheiros” e que, quando se encontram na habitação desta, também ficam com os mesmos sintomas, como dor de garganta e vermelhidão na face, quando o restaurante se encontra em andar diverso, lado oposto à fracção da Autora e bloco diverso do mesmo) e, na sua maior parte, frontalmente contraditórios com perícias objectivas e realizadas a diversos níveis (como estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios, medição dos níveis de pressão sonora e, até, ao estado de saúde da Autora).

Pelo que, com as excepções que levaram a provar este ou aquele facto mais consentâneo com as regras de experiência comum e por outras testemunhas corroborado (o que tudo se encontra indicado à frente de cada facto que nesses termos se provou), se revelaram pouco credíveis.

Por fim, diga-se que as testemunhas arroladas pelos Réus (e aquela já mencionada comum a ambas as partes) revelaram uma grande isenção e objectividade, depondo apenas sobre os factos que efectivamente conheciam, admitindo o seu desconhecimento quanto aos outros, pelo que essas se revelaram credíveis e foram tidas em consideração nos poucos aspectos que confirmaram ao Tribunal nos termos que já se deixaram supra expostos.”.

Ouvimos o depoimento de tais testemunhas, gravados em CD, sobre tal matéria.

A testemunha A (…), filha da A., disse que a mãe comprou a sua fracção em 1997. Na altura, o vendedor da empresa, a testemunha M (…), disse que as lojas eram só para comércio. 

A testemunha M (…) conhecido de ambas as partes, declarou que era dono de metade da empresa que construiu o edifício. Tem dificuldades de memória, por problemas de saúde. O edifício era para habitação e lojas (4). Já não se recorda de pormenores, mas sabe que uma das duas fracções compradas pelos RR era para restaurante. A fracção vendida aos RR ficou preparada para tal fim, a nível de condutas, e os RR compraram tal fracção para esse efeito de restaurante. Conversas com a A. na altura da aquisição da fracção da mesma já não se recorda.

O que a testemunha A (…) transmitiu, sobre o que o vendedor referiu na altura da venda da fracção à A. não é desmentido pelo mesmo, o M (…), que refere não se lembrar das conversas com a A. Por outro lado, os docs. 6, 12, 13 e 14, juntos com a p.i., atestam que a A. participou à CM  (...), ASAE e ao M. da Saúde, a sua insatisfação e desacordo com a abertura e existência no seu prédio do restaurante dos RR. Assim, devidamente conjugados tais meios de prova, ficamos convencidos e temos por assente o que consta actualmente do facto não provado 1., que deve passar a provado.

De outro lado, há que conjugar o que deriva da procedência da impugnação aos factos provados 6. e 25. com o estabelecido no actual facto 48., compatibilizando as redações do teor de tais factos, o que se fará em seguida. Por fim, não é de aceitar a supressão do fim da fracção dos RR a restauração, pois a testemunha declarou exactamente isso.

Consequentemente, a impugnação da A. procede, parcialmente, ficando o 48. com a redacção que segue e o não provado passa a provado, sob 65. (a negrito e os anteriores em minúsculo):

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar.

65. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

5. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Antes de mais, diga-se que, tendo sido invocado pelos Réus a excepção peremptória de abuso de direito por parte da Autora nas modalidades de “tu quoque” e de “venire contra factum proprium”, sabendo-se que a consequência da procedência das excepções permeptórias é, nos termos do art. 576.º, n.º 3 do CPC, a absolvição do pedido, importa, assim, em primeiro lugar, aferir se a Autora actuou, ou não, abusivamente ao interpor a presente acção.

Simplesmente, para tanto, como se deixou escrito na enunciação das questões a decidir no relatório desta sentença, impreterível se torna saber se a Autora actuou ilicitamente ao afectar a fracção autónoma identificada em 1.º da petição inicial – ou seja, a sua habitação - a um uso diverso daquele a que a mesma se destina.

A este respeito, como vimos, cumpre, desde já, salientar que resultou provado que a Autora é proprietária do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CC”, do edifício sito na Avenida Dr.  (...),  (...), fracção essa correspondente ao segundo andar esquerdo do tipo T-três, composta por um corredor, três quartos, duas instalações sanitárias, sala, cozinha, varanda, arrecadação no sótão, designada por CC-três e na cave garagem, designada por CC-Um e arrumos designado por CC-dois e que o edifício em causa encontra-se constituído em regime de propriedade horizontal, sendo a sobredita fracção propriedade da Autora destinada a habitação (cfr. factos provados 1, 3 e 53).

Mais se diga que a descrição da fracção da Autora acima mencionada e que se deu por provada no facto 53 é precisamente aquela que consta do título constitutivo de propriedade horizontal cuja cópia constitui o doc. n.º 5 junto com a p.i.

Resultou ainda provado, como vimos, que a Autora é vidente, exercendo essa actividade já há longos anos e que, pelo menos, até ao ano passado, exercia essa actividade na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para servir a vasta clientela que atende semanalmente (cfr. facto provado 49), que, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como garrafões de azeite e batatas – e, noutras vezes, quantias monetárias que medeiam entre os 5,00€ (cinco euros) e os 30,00€ (trinta euros) (cfr. facto provado 61), bem como que, hodiernamente, a Autora apenas recebe os seus clientes na sua habitação propriamente dita, localizada no segundo andar esquerdo do edifício em apreço (cfr. facto provado 62).

Por outro lado, resultou também provado que a Autora elaborou na garagem, obras de adaptação (a tal divisória e a tal instalação sanitária), com a intenção de utilizá-la para a sua actividade de vidente, ligando a instalação sanitária que construiu na sua garagem ao saneamento principal do prédio (cfr. factos provados 54 e 55) e que as obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício (cfr. facto provado 56).

Ora, nos termos do art. 1418.º, n.º 2, al. a) do CC, “(…) o título constitutivo pode ainda conter, designadamente: a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum (…)”, como, no caso, se viu, contém.

Já de acordo com o art. 1422.º, n.º 2, al. c) do CC: “É especialmente vedado aos condóminos: (…) c) Dar-lhe [à fracção] uso diverso do fim a que é destinada (…).”

Por outro lado, dispõe o art. 1421.º, n.º 1, al. d) do CC: “1. São comuns as seguintes partes do edifício: (…) d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.”

Importa também chamar à colação art. 1430.º, n.º 1 do CC, segundo o qual: “A administração das partes comuns do edifício compete à assembleia dos condóminos e a um administrador.”

Como tal, uma vez que uma garagem se destina a guardar veículos automóveis e a fracção de que a garagem é parte integrante se destina a habitação, manifesto se torna concluir que a Autora – aí mantendo uma actividade económica, ainda que de pequena dimensão – afectou essa fracção a fim diverso daquele a que é destinada.

Sabendo-se que actividade económica é qualquer prestação de serviços mediante uma qualquer contrapartida.

E nem se diga, como o fez a Autora, que é para aqui transponível a norma especial do direito de arrendamento consagrada no art. 1092.º do CC.

Como acima se disse aqui a norma aplicável é a do art. 1422.º, n.º 2, al. c) do CC que é também ela uma norma especial, mas da propriedade horizontal que é o instituto que aqui está em causa.

Bem se compreendendo que aqui as restrições e limitações ao direito de propriedade sejam ditadas antes de mais pela ligação de proximidade ou comunhão em que vivem os condóminos e, em segundo lugar, por razões de ordem pública, como interesses públicos e colectivos relacionados com condições de salubridade, estética e segurança dos edifícios, assim como das condições estéticas, urbanísticas e ambientais.

E, por isso, se decidiu não ser a norma a que nos reportamos inconstitucional – cfr. Ac. do TC n.º 44/99, de 14.01.1999, in Acórdãos do TC, 42.º 181.

Por outro lado, a ligação da instalação sanitária colocada pela Autora na garagem integrante da sua fracção ao saneamento geral do pédio é, manifestamente, ainda que a caixa desse saneamento geral se encontre nessa sua garagem, uma intervenção numa parte comum do prédio, que fez por sua livre iniciativa e sem a competente autorização para o efeito.

É, pois, ilícita, por um e outro destes dois prismas, a actuação da Autora.

E se o é não pode a Autora – que é quem interpôs a acção que ora se julga - na base de uma alegada utilização, pelos Réus, da sua fracção diversa do fim a que a mesma se destina, como na base de uma alegada realização de obras, por parte dos Réus, em partes comuns do prédio, pedir contra eles a protecção da legalidade das normas que ela própria violou com condutas em tudo similares ou idênticas àquelas que imputa aos Réus.

Na verdade, as partes têm de actuar de acordo com os ditames da boa-fé.

Por isso, consagra o art. 334.º do CC: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.” – negrito nosso.

Este normativo, decorrência do princípio geral da boa-fé, consagra o instituto do abuso do direito, instituto esse que, nas palavras de MANUEL DE ANDRADE, in RLJ, n.º 87, p. 307, conduz a que, por vezes, à máxima dura lex, sed lex tenha de se sobrepor a consideração de que “summum jus, summa injuria”, ou seja, de que, em certos e limitados casos, a aplicação estritamente formal do Direito redunda na maior das injustiças.

Sabendo-se que existem outras modalidades do abuso de direito (como a “supressio”), cumpre agora analisar as do “tu quoque” e do “venire contra factum proprium” por serem aquelas que se nos afiguram ser as atinentes à situação sub judice.

Com efeito, como afirma MENEZES CORDEIRO, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, in ROA, Ano 2005, Ano 65 - Vol. II, p. 359: O “Tu quoque” (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:

— ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;

— ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio;

— ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.”

Cremos que esta terceira hipótese de “tu quoque” é, precisamente, a que aqui se verifica.

A Autora deu à sua fracção autónoma uso diverso do fim a que se destina, assim violando o art. 1422.º, n.º 2, al. c) do CC e, mesmo assim, interpõe uma acção judicial contra os Réus acusando-os da violação desse mesmo preceito legal por darem, por seu turno, à sua fracção uso diverso do fim a que se destina.

E, por outro lado, a Autora fez obras nas partes comuns do prédio em que se integra a sua fracção sem autorização dos restantes condóminos e, mesmo assim, interpõe uma acção judicial contra os Réus acusando-os de terem feito obras em partes comuns do mesmo prédio em que também se integra a fracção deles sem autorização dos restantes condóminos, pedindo o seu levantamento.

Não pode ser.

Acresce que resultou provado, como vimos, que a Autora apresentou queixa junto da Provedoria da Justiça, queixa essa que foi arquivada por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”, arquivamento esse comunicado à Autora que o aceitou (cfr. factos provados 36 a 38).

Ora, pretender agora a demolição das obras cuja realização levou a Autora a satisfazer-se com o arquivamento da queixa que tinha apresentado devido ao funcionamento do restaurante que se localiza na fracção dos Réus e, bem assim, pretender impedir esse funcionamento – mesmo com as tais obras que antes a satisfizeram – é, indubitavelmente, contraditório.

E, como afirma ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª ed., p. 517, constitui também modalidade de abuso do direito o “venire contra factum proprium” - i.e, voltar contra o que se disse – que consiste, nomeadamente, numa conduta contraditória com outra anterior do mesmo sujeito de direito.

Diga-se ainda que o abuso do direito é um instituto puramente objectivo, não dependendo de culpa do agente, nem de qualquer específico elemento subjectivo. Neste sentido, como afirmou o STJ, em Ac. de 18.03.2010, rel. Serra Baptista e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed., pp. 536 e 563 e ss., não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objectivamente, se excedam tais limites.

Saliente-se também que o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado, sendo, nesse sentido, de conhecimento oficioso. Como afirma o STJ, em Ac. de 11.12.2012, Proc.n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1- 6ª, in www.dgsi.pt: (…) O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado.”

Com efeito, uma vez que nos termos do art. 5.º, n.º 3 do CPC, iura novit curia ou la cour sait le droit, está de há muito firmado na jurisprudência do STJ que o abuso de direito é de conhecimento oficioso por ser princípio de interesse e ordem pública - cfr., neste sentido, CALVÃO DA SILVA, in RLJ, n.º 132, p. 272 e Ac. STJ, de 25.11.99, CJSTJ, VII, 3.º, p. 124 – sendo suficiente para impor o conhecimento ex officio do abuso de direito que essa questão se mostre suscitada em termos de facto, com a descrição dos comportamentos abusivos, mesmo se assim não qualificada pelas partes, com atribuição do nomen juris adequado à situação.

A Autora actuou, assim, com abuso de direito, ao interpor a presente acção judicial nas modalidades de “tu quoque” e de “venire contra factum proprium”.

Não se acompanha este discurso jurídico. Vejamos porquê e por partes.

- No que respeita ao “tu quoque” a decisão recorrida recorre a uma retaliação negativa, para negar a pretensão da A. (o mesmo fazendo quanto ao pedido dos RR), que podemos expor nos seguintes termos genéricos: como o agente A actuou ilicitamente não pode agir e reclamar contra o agente B, por causa de uma actuação ilícita deste; e como B também agiu ilicitamente não pode, por sua vez, demandar e reclamar de uma actuação ilícita de A !

Em termos mais concretos, como a A. terá violado o estatuto da propriedade horizontal em duas situações (especificadas na sentença recorrida, relacionadas com uso diverso da fracção e obras em parte comum do prédio) não pode reclamar contra os RR por estes terem violado tal estatuto numa situação (especificada na decisão apelada, relacionada com obras em parte comum do prédio), pois isso seria um abuso de direito, o que igualmente valeria para os RR, relativamente à sua reclamação contra a A. !

Tanto foi assim, que os pedidos da A. contra os RR e destes contra a A. foram julgados improcedentes, por ambos padecerem de abuso de direito !

A aceitarmos tal raciocínio, o mesmo levado até ao extremo, podia conduzir a que num prédio em propriedade horizontal, em que todos os condóminos houvessem adoptado conduta violadora do estatuto do mesmo ver-se-iam paralisados em demandar judicialmente os seus co-condóminos, para correcção/eliminação de outras suas condutas ilícitas, pois o abuso de direito cobria todas elas, funcionando como uma espécie de obstáculo impeditivo, como uma espécie de “guarda-chuva”, que apagava todas as ilegalidades !! O que decerto não é pretendido legalmente, nem será a melhor aplicação e funcionamento de tal figura do abuso de direito.

Veja-se, até, que na sentença apelada, a reboque do abuso de direito, se considerou improcedente o pedido formulado pela A. em a) da p.i., que abrangia a proibição de emissão de fumos, cheiros e ruídos, por a A. ter invocado como causa de pedir a violação do art. 1346º do CC, quando é certo que tal normativo nada tem a ver com o estatuto (stricto sensu) da propriedade horizontal, mas sim com o direito de propriedade de imóveis em geral e com direitos de personalidade.        

Ora, tal modalidade da figura do abuso de direito, nas três situações exemplificadas na decisão recorrida têm a ver com a primazia da materialidade subjacente: o agente violador não pode prevalecer-se da situação jurídica concreta daí decorrente; ou exercer a posição jurídica concreta violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação concreta já violada (vide Menezes Cordeiro, Tratado de D. Civil, I, Parte Geral, T. IV, 2007, págs. 327/337).

No nosso caso, não foi isso que aconteceu, a A. ao demandar os RR por estes explorarem a sua fracção como restaurante, e com as obras que aí fizeram, sem que o possam fazer de acordo com o fim a que estava afecta tal fracção, não está a pretender prevalecer-se da situação jurídica decorrente de querer usar a sua garagem para outro fim ou impor a instalação sanitária realizada na mesma, ou a exercer tal posição jurídica ou a exigir que os RR acatem essa sua situação jurídica. A A. move-se noutro plano, reclama dos RR o uso indevido da respectiva fracção para fim não legalmente possível.

Não há, assim, uma equivalência de condição jurídica concreta entre ambas as partes, que permita paralisar a demanda judicial da A. contra os RR, com base em abuso de direito. Ou destes contra aquela, pois que os RR também deduziram pedido reconvencional contra a A., com fundamento nesta ter violado o estatuto da propriedade horizontal, mas baseado numa situação jurídica concreta diferente.

Concluímos, pois, que inexiste “tu quoque” no caso em apreço.      

- No que respeita ao “venire contra factum proprium” ensina o mesmo autor na citada obra (págs. 290/294) que na concretização de tal modalidade de abuso de direito nos deparamos com quatro proposições, além do “factum proprium”: uma situação de confiança da contraparte; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança, a imputação da situação de confiança àquele que a criou.

Na sentença recorrida entendeu-se que o comportamento da A. era contraditório por ter aceite o arquivamento da queixa por si apresentada na Provedoria.

Não pode ser, porque o comportamento da A. não foi só esse, nem o mesmo tem a feição que a sentença lhe empresta.

Desde logo, resulta do facto provado 37. que a queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se ter considerado que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”, mas porque foi essa a comunicação da autarquia nesse sentido. O que é coisa diferente, não tendo o pendor significativo que a decisão recorrida lhe quis dar. Ademais tal entidade é órgão meramente consultivo e sem força decisória. Depois, a A. nunca manifestou, ao longo do tempo, aquiescência a essa realidade, da abertura e funcionamento do restaurante, o que faz todo o sentido pois ela aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos RR não viesse a ser instalado um restaurante (facto provado 65.). Na realidade, a A. por diversas vezes reclamou contra os RR e participou a situação a entidades fiscalizadoras (CM  (...), ASAE e ao M. da Saúde), e à Provedoria de Justiça, o assunto foi colocado em assembleia de Condóminos, com consulta de advogado e posteriormente em nova assembleia a A. propôs à votação a apresentação de uma acção judicial para encerramento da actividade de restaurante (factos 17., 36., 39., 40., 43. e 57.).

Ora, este conjunto de factos demonstra que inexistiu “factum proprium” da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verifica qualquer conduta contraditória por parte daquela. Nem se demonstrando, também, a verificação de uma situação objectiva de confiança por parte dos RR.

Pelo que, também aqui, não se detecta o apontado “venire”.   

- Em suma, e tendo em consideração o exposto, entendemos inexistir, no caso concreto em análise, abuso de direito, pelo que o recurso nesta parte procede.

6. Com base no abuso de direito, os pedidos formulados na p.i. sob as a) a c), foram julgados improcedentes. Desaparecida esta construção, há que apreciar tal pretensão da A.

O título constitutivo da propriedade horizontal destinava a comércio a fracção dos RR, usando-a os RR como restaurante. Ora, de acordo com o art. 1422º, nº 2, c) do CC, é vedado aos condóminos dar à fracção uso diverso do fim a que é destinada.

A expressão “comércio” deve ser interpretada conforme o uso corrente da expressão de mediação e troca de bens e serviços, com exclusão das actividades transformadoras, de cariz industrial, normalmente dotadas de um acrescido impacto ambiental negativo, designadamente a actividade de restauração, a qual envolve a preparação e confecção de refeições para um número significativo de clientes, geradora normalmente de relevante emissão de cheiros e ruídos, perceptíveis nas demais fracções habitacionais, outra não podendo ser a interpretação para um declaratário normal, tal como vem sendo unanimemente decidido pelos nossos Tribunais Superiores - vide nesse sentido, a título meramente exemplificativo, os Acds. do STJ, de 4.12.2008, 13.2.2014 e 28.1.2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt (e também indicados pela recorrente).

Deste último aresto respigamos o ensinamento que:
33. Impõe-se, pois, determinar o sentido que releva para o declaratário normal a que alude o artigo 236.º do Código Civil, considerando que determinada fração se destina a ser utilizada como loja num prédio predominantemente destinado a habitação …
34. O sentido que releva é o sentido " que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer" (Teoria Geral do Direito Civil, Mota Pinto, 4ª edição Coimbra Editora, 2005, pág. 444).
35. O autor faz equivaler este sentido ao exercício do comércio. E mais: considera que esse sentido resulta expressamente da licença de utilização emitida pela Câmara Municipal de Lisboa quando alude a "duas ocupações, destinadas a comércio (lojas 1 e 2) no piso 0" (ver artigos 5º e 6º da petição, lendo-se no artigo 5º " de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, a fração 'BA' destina-se a loja, o que pressupõe o exercício do comércio"
36. Importa, sem dúvida, o sentido atribuído pelo declaratário normal, não estando aqui em causa a questão do conhecimento pelo declaratário da vontade real do declarante (artigo 236.º/2 do Código Civil) Seja como for, evidencia-se que o autor empresta à loja o sentido de local destinado ao exercício do comércio, sentido este que é também partilhado pela ré. No entanto esta sustenta que o vocábulo " loja" é utilizado de "forma abrangente" que inclui o exercício de outras atividades económicas como é o caso da restauração. Essa abrangência, sem qualquer limitação, significa que afinal o local destinado a loja poderia ser utilizado para qualquer finalidade, o que não é aceitável, como se disse. A ré vai, portanto, no plano interpretativo, muito para além do próprio Plano Diretor Municipal que alarga, mas limitadamente, o âmbito do comércio de modo a incluir a restauração no seu seio, entre outras atividades que taxativamente designa.
37. O vocábulo loja é, sem dúvida, polissémico. O seu sentido tem variado, incluindo realidades várias. Hoje fala-se em lojas âncora dos centros comerciais, lojas de conveniência em que se vendem até horário tardio produtos de utilização comum e de utilidade imediata, loja do cidadão que constitui um espaço destinado à prestação de serviços e de informação.
38. Nos dicionários "loja" é um estabelecimento de comércio ou de venda de mercadorias sito em casa baixa, no plano ou andar de rua ou de venda (ver Dicionário da Língua Portuguesa de António Moraes Silva, 8ª edição, 1891; ver "O Novo Aurélio", 4ª impressão ou o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003 que, no entanto, estendem o significado de "loja" a atividades não apenas comerciais, mas também industriais, não deixando, porém, de associar sempre "loja" a estabelecimento comercial); associando "loja" a estabelecimento comercial que vende mercadorias ao público, veja-se o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António Morais Silva, 10ª edição, revista corrigida e muito ampliada por Augusto Moreno Cardoso Júnior e José Pedro Machado, Vol VI, Editora Confluência, Lisboa ou o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, Vol III, Círculo de Leitores, 1991; o Grande Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo 2001 faz equivaler loja a "estabelecimento comercial onde se vendem artigos não consumíveis, dentro do próprio estabelecimento".
39. O declaratário normal a que a lei faz referência, um declaratário sagaz e experiente, não pode ignorar o sentido amplo da loja, mas não pode deixar de considerar o sentido comum ou corrente que faz equivaler a "loja" ao estabelecimento comercial.
40. A questão que se põe ao intérprete é, pois, a de saber, quando se considera que o uso destinado a uma fração autónoma é o de " loja", se loja equivale a estabelecimento comercial ou a qualquer tipo de estabelecimento, podendo, por conseguinte, nela ser exercida também atividade que não seja comercial, designadamente industrial e ainda, no primeiro caso, se atividade industrial pode ser assimilada ao exercício do comércio.
41. Com efeito, e sendo o título constitutivo da propriedade horizontal, juntamente com o Regulamento do Condomínio, a carta fundamental do condomínio, o diploma fundamental que individualiza e fixa a adequada proporção entre as várias frações quanto ao seu uso (artigo 1418.º/1 e 2, alínea b) do Código Civil), já se vê que num condomínio destinado a habitação … é substancialmente muito diferente admitir frações com uma aptidão de uso tão amplo que inclua atividade simultaneamente industrial e comercial ou, mais ainda, qualquer outra que não seja a habitacional.
42. Admitir-se que a atividade industrial constitui finalidade admissível em 3 lojas num piso térreo de um imóvel predominantemente destinado a habitação, levaria a que, não apenas a restauração fosse consentida, restauração que implica uma atividade mista de comércio e indústria, mas também fosse possível a instalação de pequenas unidades fabris ou oficinas ou unidades mistas de comércio ou indústria em que a componente industrial prevalecesse.
43. Num imóvel predominantemente habitacional não se pode perder de vista que as frações não adstritas a habitação são em regra destinadas a atividades que pela sua natureza se compaginam com a vida das famílias e a tranquilidade e sossego que devem imperar nas zonas residenciais, designadamente durante as horas de repouso. Não são desejadas unidades cuja utilização determine uma afluência elevada de pessoas que perturbem a vida habitacional ou que sejam causadoras de ruídos, de odores ou de vibrações perturbadoras.
44. Ora se esse risco existe sempre, mesmo quando estamos face à utilização de frações destinadas a escritórios ou a atividades comerciais, não se pode duvidar de que esse risco é francamente maior quando nos deparamos com atividades de outra natureza.
45. Compreende-se, assim, neste horizonte de circunstâncias, que quando se pondera se o destino que está implicado numa fração destinada a loja é o de estabelecimento comercial, se está a sustentar o entendimento tradicional e mais corrente; dele se pode dizer que, apesar de tudo, se assegura e limita a sua utilização para finalidades que mais se harmonizam com a utilização de um imóvel predominantemente destinado à habitação.
46. Na verdade, hoje, a coexistência, em zonas urbanas predominantemente habitacionais, da habitação com o exercício do comércio ou da indústria ou de serviços, passa por uma conjugação dos interesses públicos e privados tendo em vista um objetivo fundamental que é o de assegurar condições de vida ambientais que beneficiem toda a comunidade, proporcionando níveis qualitativos de vida elevados.
47. Os critérios e interesses prosseguidos e salvaguardados pelas autoridades públicas situam-se em zonas de proteção que não coincidem em absoluto com os interesses privados; o licenciamento administrativo preocupa-se, por exemplo, com as condições de segurança dos equipamentos, preocupa-se com os níveis de insonorização, mas não pode garantir que o exercício da atividade licenciada será efetuado, respeitando-se integral e continuadamente os direitos fundamentais dos proprietários de frações destinadas à habitação. Neste plano, mais do que a exigência de condições de instalação de determinados equipamentos que implica um índice de proteção dos utentes do condomínio e da fração licenciada, estão sobretudo em causa as condições em que decorre o funcionamento do estabelecimento licenciado.
48. Por isso, a jurisprudência tem assinalado que o licenciamento administrativo se pauta por critérios que não visam a tutela dos direitos da propriedade em que assenta o regime da propriedade horizontal, propriedade cujo conteúdo e valor é indissociável das condições do seu exercício e fruição.
49. Queremos com isto significar que a imposição no título constitutivo de um determinado fim para a utilização das frações pressupõe sempre uma utilização efetuada de um modo razoável e equilibrado, não abusiva nem excessiva.
50. Daqui decorre que o licenciamento administrativo não implica o afastamento do regime que decorre do título constitutivo da propriedade horizontal. E porque os critérios de classificação das atividades económicas que a Administração utiliza têm em vista essencialmente os interesses que a Administração prossegue, tais critérios não se impõem às finalidades de utilização das frações que decorrem do título constitutivo da propriedade horizontal, não querendo isto significar que a classificação resultante do Plano Diretor Municipal quanto às atividades que se inserem no comércio não deva em nenhuma circunstância merecer ponderação.
51. A jurisprudência não tem aceitado um critério amplo na determinação da finalidade dada às frações quando, no título constitutivo, estas se destinam à instalação de estabelecimentos comerciais; exclui, por conseguinte, a restauração porque esta envolve, para além da venda do produto final, uma atividade prévia essencial de produção ou de transformação de produtos alimentícios, de natureza industrial e não comercial (ver Ac. do S.T.J. de 15-3-2013, rel. Ernesto Calejo, Processo n.º 3424/07.9TBVNG.P1.S1, Ac. do S.T.J. de 13-2-2014, rel. Lopes do Rego in Processo, P. n.º 373/04.6TBVFR.P2.S1).
52. No que respeita ao termo "loja", a jurisprudência tem afirmado a sua equivalência ao "estabelecimento comercial"(ver Ac. do S.T.J. de 22-9-2009, rel. Santos Bernardino 5033/04.5TVLSB.S1 também na C.J., 3, pág. 62); ver ainda Ac. da Relação de Lisboa de 4-11-2008 (rel. Abrantes Geraldes), C.J.,5, pág. 88 que sustenta ser o "mais comum significado do termo 'loja' o de 'estabelecimento comercial para venda de mercadorias ao público' ou o de 'local onde se exerce o comércio', sentido que também resulta do artigo 95.º do Código Comercial". Excluem-se, pois, segundo este acórdão, com o termo 'loja', "o restaurante, padaria, escritório, fábrica, oficina, colégio, sala de cinema, casino".
53. No Ac. do S.T.J. de 15-5-2008 (rel. Mota Miranda), revista n.º 779/08 decidiu-se que "naquela fração do réu pode ser exercitada a atividade de comércio e não qualquer atividade industrial; ora, ao exercer a atividade de restauração, o réu faz da sua fração um uso indevido, um uso diverso do fim a que se destina, um uso não normal da fração por contrário ao do título constitutivo de propriedade horizontal - 1422.º, n.º 2, al. c), do CC", não sendo relevante para a determinação do destino da fração a "instalação noutra fração de um café-bar".
54. No Ac. do S.T.J. de 4-12-2008 (rel. Pires da Rosa) apesar se reconhecer que num centro comercial é comum a existência de restaurantes, ainda assim importa sempre, quando se atribui a uma fração o destino de "centro comercial", alegar e provar que o sentido visado era mais amplo de modo a abranger atividades industriais como é o caso da restauração.
55. A jurisprudência tem, pois, sustentado que a afetação das frações à atividade comercial exclui as atividades que não sejam comerciais e tem considerado que os restaurantes se inscrevem no exercício da atividade industrial. E mais sustenta, quando o título constitutivo fixa à fração o destino de "loja", que o sentido a considerar é o sentido comum ou corrente em que "loja" equivale ao local onde se exerce atividade comercial.
56. No Ac. do S.T.J. de 11-1-2005 (rel. Moreira Alves), revista n.º 3615/04 considera-se que "constando do título constitutivo da propriedade horizontal que determinada fração se destinava a loja, nela não poderá ser desenvolvida a atividade industrial de panificação, com os inerentes riscos, cheiros, barulhos e as necessárias obras de adaptação suscetíveis de perturbar os condóminos das frações habitacionais e afetar as partes comuns dos edifícios ou o seu arranjo arquitetónico. O licenciamento administrativo da atividade em causa em nada afeta o fim a que se destina a fração segundo o título constitutivo".
57. Reconhecendo que a atividade de restauração é uma atividade mista, industrial e comercial, uma vez que "se verifica a atividade de transformação de matérias alimentares, anteriormente à comercialização dos produtos transformados" ainda assim ocorre violação do artigo 1422.º/2, alínea c) do Código Civil) pois não se pode exercer nessa fração "atividade mista de restauração" (Ac. da Relação de Coimbra de 9-11-2005, rel. João Cura Mariano,C.J.,5, pág. 5).
(…)
59. A verdade é que os critérios seguidos na lei para a atribuição de licenciamento administrativo não se impõem para outros efeitos, designadamente para a definição do fim a que se destinam as frações autónomas; saliente-se ainda que estes critérios não correspondem ao sentido comum e corrente de atividade comercial e, não obstante o título constitutivo ter sido outorgado depois do Regulamento, nada nos diz que, afetando-se a lojas os espaços identificados, se haja, desse modo, pretendido garantir que nesses espaços se podia exercer atividade industrial, designadamente a restauração. Aliás, se assim fosse conscencializado e desejado, o título constitutivo não deixaria de mencionar que as lojas podiam ser afetadas à restauração ou que nelas podia ser exercido o comércio nos termos considerados pelas entidades administrativas.
60. Como se disse, a ré sociedade, enquanto declaratária face ao teor do título constitutivo, não está em posição diferente daquela em que se encontram os demais condóminos, designadamente os RR pessoas singulares. O declaratário normal a que alude o artigo 236.º do Código Civil, sagaz e experiente em face dos termos do texto do título constitutivo, não deixaria de o interpretar considerando que a atividade de restauração- atividade tão comum e relevante - teria obviamente sido incluída no título se quem o lavrou quisesse vê-la incluída, sabendo-se que o sentido comum atribuído à afetação das frações a lojas exclui a atividade industrial, sabendo-se que a atividade industrial não se inclui no âmbito da atividade comercial, sabendo-se que essa tem sido a posição assumida pela jurisprudência e sabendo-se que os critérios que são aferidos para o licenciamento administrativo não se impõem aos condóminos.”.

Face ao vindo de expor, temos que os RR instalaram ilicitamente um restaurante numa fracção destinada a comércio, assim como fizeram obras de adaptação quer no interior da sua fracção com ligação às partes comuns quer nas próprias partes comuns.

Contudo não se demonstra modificado o título constitutivo da propriedade horizontal, com o acordo de todos os interessados, para uso da fracção dos RR para efeitos de restauração, como o exige o art. 1419º, nº 1, do CC. Nem se mostra que tivesse havido autorização do condomínio para as obras dos RR, para o efeito de adaptarem a sua fracção a restauração (facto provado 10.).

Em consequência, - certo que se provou a não emissão de fumos, cheiros e ruídos perturbadores do descanso da A. e da sua saúde (facto provado 35. e não provado 4.) -, tem a acção de ser julgada parcialmente procedente, e os RR condenados a cessar a actividade da sua fracção como restaurante e afectar a dita fracção ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando por qualquer meio a sua utilização por terceiros, para a actividade de restauração e bebidas, e proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot” e do respiradouro instalados no edifício identificado nos autos, repondo as partes comuns do edifício em causa no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua materialização.

7. Relativamente à peticionada sanção pecuniária compulsória, prevista no art. 829º-A, do CC, a lei prevê-a nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo as que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, devendo o tribunal, se requerido pelo credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso, a fixar segundo critérios de razoabilidade (nº 1 e 2 do citado artigo).

A obrigação a que os RR vão ser condenados, definida no ponto 6. que antecede, é uma prestação de facto e infungível, pois só eles a podem cumprir.

Como professa A. Varela (CC Anotado, Vol. II, 3ª Ed., nota 5. ao mencionado normativo, pág. 107), o critério de razoabilidade (equidade) que deve nortear o julgador na sua determinação há-de naturalmente ter em conta as possibilidades económicas do devedor, pois só assim será possível calcular, com verdadeiro conhecimento de causa, o quantum da sanção pecuniária compulsória capaz de subjugar a sua resistência, sem perder de vista, por sentido das proporções, o valor do interesse do credor na prestação em dívida. É em sanções desta índole, que constituem um convite natural ao arbítrio do juiz, por nenhuma relação terem com o montante do prejuízo sofrido pelo credor, que mais importa o sentido de moderação do julgador.  

No nosso caso é desconhecida a situação económica dos RR e os rendimentos que auferem da exploração do restaurante. Tratando-se de um estabelecimento dessa natureza em  (...), meio pequeno, em lugar pacato e sossegado (facto 33.), os rendimentos dessa exploração não hão-de ser muito elevados ou significativos.

Assim, com critério moderado, fixa-se no montante de 50 € o valor a pagar pelos RR, por cada dia de atraso, até que a sua obrigação se mostre cumprida. Faculta-se aos RR, para facilidade do cumprimento da sua obrigação, o prazo de 30 dias para tanto, a iniciar-se após a data do trânsito em julgado da presente decisão.    

8. Quanto aos danos não patrimoniais, diga-se que não se provaram quaisquer danos que a A. houvesse sofrido, dos que reclamou ter sofrido, por responsabilidade/causa dos RR, com a abertura e funcionamento do restaurante, como decorre do facto provado 34. e não provados 3. a 6., 8., e 13. a 16. Como assim, tem de improceder o seu pedido indemnizatório de condenação dos RR a pagarem-lhe a quantia de 5.000 € a esse título.  

9. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Quando as conclusões contenham um fundamento ou razão que não tenha sido exposta/desenvolvida nas alegações/contra-alegações deve considerar-se não formulada tal questão, com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, da pretensão apresentada, designadamente uma litigância de má fé do apelante ao interpor o seu recurso;

ii) Uma coisa é uma nulidade da sentença, por eventual não especificação dos fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão (art. 615º, nº 1, b), do NCPC), outra é um eventual vício da decisão da matéria de facto, por indevida fundamentação de factos essenciais (art. 662º, nº 2, d), de tal código), realidades diferentes, contudo;

iii) Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório;

iv) O julgador só se pode afastar e postergar os factos relatados pelos peritos e as suas conclusões, tecnicamente fundamentadas, oriundas da valoração dos mesmos, se outra prova, de carácter probatório elevado e fidedigno, inequivocamente apontar em sentido diverso;

v) A modalidade do “tu quoque”, da figura do abuso de direito, nas três situações elencadas na decisão recorrida: o agente violador de uma norma jurídica não pode prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada; tem a ver com a primazia da materialidade subjacente, e, portanto, com a situação jurídica em concreto e específica que se quer fazer impor;

vi) Se a A. demanda os RR, por violação por parte destes do fim a que destinam a sua fracção, constituída em propriedade horizontal, restauração em vez de comércio, não é por ela ter usado a sua fracção de garagem a uso diferente, a actividade de vidente, e ter feito obras na mesma de ligação às partes comuns do prédio, que ao demandar judicialmente aqueles RR para pôr fim a tal uso está a actuar com abuso de direito na modalidade de “tu quoque” (nem os RR ao demandarem reconvencionalmente a A., por tal actuação ilícita da mesma);

vii) Inexistindo “factum proprium” da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verificando qualquer conduta contraditória por parte daquela, não se verifica qualquer abuso de direito da sua parte, na modalidade de “venire”;
viii) O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos arts. 236º a 238º do CC;
ix) O sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a comércio um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial, para mediação e troca de bens e serviços, e não um estabelecimento em que se exerça actividade industrial como é o caso da restauração;
x) Não resultando do título quaisquer outras indicações quanto à finalidade a prosseguir nesse espaço, mas dele resultando que a maioria das fracções se destina a habitação, o declaratário normal, exigente e sagaz, sabe que o licenciamento administrativo do estabelecimento, e respectivos critérios e condicionante, não releva no sentido de permitir que, à luz das finalidades que constam do título constitutivo, seja admissível, no imóvel, um restaurante;
xi) O declaratário normal e diligente sabe que as actividades industriais, incluindo a restauração, são susceptíveis de facilmente pôr em causa em causa a tranquilidade e o sossego dos moradores e a própria qualidade ambiental do imóvel; é, pois, levado a considerar que, quando se referencia no título constitutivo determinada fracção para comércio, a loja a instalar é para estabelecimento comercial cuja actividade, em regra, implica afluência limitada de pessoas, um horário de funcionamento diurno e a ausência de cheiros, odores e ruídos próprios do exercício de outras actividades, designadamente as de natureza industrial.

xii) A obrigação a que os RR vão ser condenados, definida no ponto 6. que antecede, é uma prestação de facto e infungível, pois só eles a podem cumprir.

 

 

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, parcialmente, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, indo os RR condenados a:

A) a cessar de imediato a actividade de restauração na sua fracção autónoma “CD” e afectar a mesma ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer meio, a sua utilização por terceiros para a actividade de restauração e bebidas;

B) a proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot”, do respiradouro e dos aparelhos de ar condicionado instalados no edifício identificado nos autos, repondo as partes comuns do edifício no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua instalação;

C) a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 50 €, decorridos 30 dias após a data do trânsito em julgado desta decisão, até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas;

D) Absolver os RR do demais peticionado.

*

Custas da acção (sobre o valor de 36.000,01 €, atribuído pela A. aos seus pedidos), na proporção do vencimento/decaimento de 1/5 para a A. e 4/5 para os RR.

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Coimbra, 31.3.2020

 Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Alberto Ruço