Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1179/10.9TXCBR-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
CONCESSÃO
DOIS TERÇOS DA PENA
Data do Acordão: 04/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º, Nº 1 DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE E 61º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: Subjacente à concessão da liberdade condicional facultativa quando apreciada aos dois terços da pena, estão exigências de prevenção especial (prescindindo das necessidades de prevenção geral), onde se incluem as concretas circunstâncias do facto, a personalidade manifestada na prática do mesmo e o percurso de vida do condenado, para além das circunstâncias referentes à evolução da sua personalidade durante a execução da prisão.
Decisão Texto Integral: Nos autos supra identificados, o tribunal proferiu o seguinte despacho:

“(…)
O recluso cumpre uma pena única de 9 anos de prisão, imposta no Proc. nº 593/04.3GASEI do 1° Juízo do T. J. de Seia, por crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e furto qualificado e a pena residual de 1 ano, 6 meses e 14 dias, por revogação de anterior liberdade condicional de que beneficiou na execução da pena imposta no Proc. n.º 28/99.lTASNT, da 1ª Vara Mista de Sintra, cujo ½ ocorreu em 2010.03.30, os 2/3 em 2012.01.01, os 5/6 da primeira com a totalidade da residual em 2014.01.06, sendo a presente apreciação correspondente à renovação anual da instância e 2/3 das penas.
No caso em apreço, tendo em conta o teor dos relatórios da DGRS e dos Serviços de Educação e Ensino de fls. 328-332 e 336-339, bem como das percepções manifestadas pelos elementos que compõem o Conselho Técnico e que actualizaram aqueles elementos, considera-se que:
A) O recluso cumpre uma pena única de 9 anos de prisão, imposta no Proc. Nº 593/04.3GASEI do 1° Juízo do T. J. de Seia, por crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e furto qualificado e a pena residual de 1 ano, 6 meses e 14 dias, por revogação de anterior liberdade condicional de que beneficiou na execução da pena imposta no Proc. nº 28/99.1TASNT, da 1ª Vara Mista de Sintra, cujo ½ ocorreu em 2010.03.30, os 2/3 em 2012.01.01, os 5/6 da primeira com a totalidade da residual em 2014.01.06, sendo a presente apreciação correspondente à renovação anual da instância e 2/3 das penas;
B) A família de origem é bem referenciada no meio social e o condenado dispõe de plena inserção familiar, contando para além do apoio dos pais com muito apoio por parte da única irmã, já casada e residente em Lisboa, com quem mantém estreito relacionamento afectivo;
C) O condenado pretende reintegrar o agregado familiar dos pais, que residem em casa própria, constituída por dois pisos, sendo o piso de cima utilizado para habitação e o piso inferior para arrecadação, possuindo a residência condições de habitabilidade e todas as infra-estruturas básicas;
D) Alegando desmotivação o condenado abandonou os estudos após ter concluído o 6° ano de escolaridade, aos 13 anos de idade iniciou a actividade profissional numa oficina de automóveis, onde permaneceu até ir para Lisboa e quando terminou o serviço militar regressou a casa dos pais, tendo trabalhado na construção civil;
E) Caso saia em liberdade tem proposta de emprego numa oficina de serralharia de alumínio, com sede em ... , conforme declaração entregue pelo condenado;
F) Iniciou o consumo de estupefacientes durante o cumprimento do serviço militar, consumos que foi intensificando ao longo dos anos, encontra-se em tratamento/acompanhamento no CRI da Covilhã, no programa de metadona e após se ter efectuado análises clínicas teve conhecimento de que sofre de doença infecto-contagiosa grave, o que o deixou psicologicamente muito deprimido, passando a ser acompanhado pelo serviço de infecto-contagiosas do Hospital do Fundão;
G) Não frequenta qualquer grau de ensino, dado não ter revelado motivação para o efeito, desenvolvendo actividade laboral como faxina no parlatório;
H) Já beneficiou de saídas jurisdicionais que têm corrido sem incidentes mas na última, tendo tido conhecimento de que era portador de doença infecto contagiosa grave, não regressou na data indicada;
I) Tem um comportamento bastante passivo e com uma tendência acentuada ao isolamento;
J) Está colocado em RAI desde 13/11/2009;
L) Tem antecedentes criminais conforme CRC de fls. 307 e ss.
Ouvido pelo tribunal, após a realização do Conselho Técnico, o condenado autorizou a colocação em liberdade condicional.
Verificados os factos provados, e não obstante já ter atingido os 2/3 da pena (cumulativamente com a apreciação pela renovação anual), já não sendo valorizáveis as exigências de prevenção geral, continua a não ser adequada a concessão de liberdade condicional, por incapacidade de formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao sucesso da medida.
Podemos afirmar que, em reclusão, embora reservado e algo passivo, sem grande apetência pela aquisição de competências, o condenado vem mantendo um comportamento adequado e de acordo com as normas. Encontra-se em RAI e vem beneficiando de saídas jurisdicionais, actualmente suspensas na sequência de incumprimento quanto à data do regresso (embora apresentando-se voluntariamente e na sequência do conhecimento de que era portador de doença infecto-contagiosa).
Encontra-se laboralmente ocupado.
No exterior tem apoio familiar e apresentou proposta de emprego.
Não obstante, não se trata de um recluso primário. Apresenta grandes fragilidades pessoais decorrentes do percurso pela toxicodependência que constituiu importante factor criminógeno. Com várias recaídas, foi reincidindo no percurso criminoso, acabando por ver revogada liberdade condicional anteriormente concedida. Embora com empenho na superação, integrado no programa da metadona e com acompanhamento no CRI, é importante que crie resistências e consolide esse percurso de superação para que, em meio livre, possa manter o mesmo grau de abstinência e comprometimento.
Por todo o exposto, em conformidade com as disposições legais supra referidas, decide-se não conceder ao condenado … a liberdade condicional.”

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

“1- Na decisão da concessão de liberdade condicional aos dois terços da pena esta deverá ser concedida se adequada às necessidades de prevenção especial.
2- Dos autos resultam os seguintes factos não devidamente considerados na decisão recorrida :
- Ao arguido foi em 2010 diagnosticada doença infecto-contagiosa incurável (SIDA).
- O arguido manifestou estar ciente que o consumo de estupefacientes se retomado conduziria à sua morte a curto prazo.
- O arguido aceitou que a liberdade condicional, se lhe viesse a ser concedida, ficasse sujeita à condição de abstinência e continuidade de acompanhamento médico.
3- As necessidades de prevenção especial presentes em relação ao arguido como é reconhecido reconduzem-se à sua não reincidência no consumo de estupefacientes
4 - Os factos supra enunciados em 2 permitem formular juízo de prognose favorável a essa não reincidência no consumo, relevando para esse efeito mais que o facto de em anterior liberdade condicional que lhe foi concedida o arguido ter recaído.
5- A liberdade condicional, sujeita nos termos previstos no n° 3 do art° 52° CP ã obrigação de o arguido demonstrar periodicamente que se mantém abstinente e que cumpre os tratamentos que se imponham, não só satisfaria plenamente as necessidades de prevenção especial presentes no caso como seriam bastante mais eficazes na consolidação do percurso de superação de toxicodependência do arguido que a sua libertação simples cumprida a pena
6- Termos em que ao decidir não dever o arguido beneficiar do regime de liberdade condicional violou a douta decisão ora sob recurso o disposto no nº 3 do artº 61° C.P .. “

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o recorrente nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questão a decidir: verificação dos pressupostos de concessão da liberdade condicional

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No caso “sub judice”, a liberdade condicional é apreciada por força do disposto das disposições conjugadas dos artºs 180º, nº 1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 61º, nº 3 do Código Penal, pelo que a sua concessão depende de ser “fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”.

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Apreciando:

A liberdade condicional tem como objectivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante a qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão» (nº 9 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro), visando «uma adequada reintegração social do internado», sendo que, nos termos do art.º 61º do Código Penal, reveste duas modalidades: a obrigatória e a facultativa.

Na primeira modalidade, a liberdade condicional é obrigatoriamente concedida ao recluso condenado em pena de prisão superior a seis anos, logo que tenha cumprido cinco sextos da mesma (art.º 61º, n.º 4 do Código Penal) e desde que tenha dado o seu consentimento (n.º 1 do mesmo artigo).

Na segunda modalidade, exige-se a verificação de diversos requisitos.
Desde logo, o cumprimento de metade ou dois terços da pena, no mínimo seis meses (requisitos formais).
No que ao caso interessa, estando em causa a apreciação referente aos 2/3 da pena, há que, nos termos da alínea a., do nº 2, do artº 61º do Código Penal, apreciar se é possível formular um juízo de prognose favorável ajustado à «finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização», implicando «uma certa medida de probabilidade de, no caso da libertação imediata do condenado, este conduzir a sua vida em liberdade de modo responsável, sem cometer crimes» (F. DIAS, DPP/PG-II, Lisboa: Aequitas, 1993, pág. 539 e 528), ou seja, num juízo de prognose, tem de se poder concluir que após ser colocado em liberdade o recluso adoptará conduta conforme ao direito e ir-se-á integrar na sociedade.
Temos assim que, subjacente à concessão da liberdade condicional facultativa estão irrenunciáveis exigências de prevenção especial, onde se incluem as concretas circunstâncias do facto, a personalidade manifestada na prática do mesmo e o percurso de vida do condenado, para além das circunstâncias referentes à evolução da sua personalidade durante a execução da prisão[ Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pág. 539.].
Em suma (sempre dependente do consentimento do arguido e do cumprimento de seis meses de reclusão), a concessão da liberdade condicional quando apreciada aos dois terços da pena, exige que a mesma se mostre adequada às necessidades de prevenção especial (prescindindo das necessidades de prevenção geral).

Vejamos:

Ponderou o tribunal que “não se trata de um recluso primário”, que é pessoa “sem grande apetência pela aquisição de competências”, que “apresenta grandes fragilidades pessoais decorrentes do percurso pela toxicodependência, [o] que constituiu importante factor criminógeno”, teve “várias recaídas” no consumo de estupefacientes e “foi reincidindo no percurso criminoso, acabando por ver revogada liberdade condicional anteriormente concedida”, pelo que, não obstante ter “apoio familiar” e apresentado “proposta de emprego”, há que concluir que “embora com empenho na superação, integrado no programa da metadona e com acompanhamento no CRI, é importante que crie resistências e consolide esse percurso de superação para que, em meio livre, possa manter o mesmo grau de abstinência e comprometimento.
Resulta assim do despacho recorrido que a liberdade condicional não foi concedida porquanto o tribunal a quo considerou que “continua a não ser adequada a concessão de liberdade condicional, por incapacidade de formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao sucesso da medida” sendo por isso “importante que [o (...)] crie resistências e consolide esse percurso de superação para que, em meio livre, possa manter o mesmo grau de abstinência e comprometimento”.
Aliás, esta decisão é coincidente com o entendimento dos diversos intervenientes no processo, que se mostraram unanimemente desfavoráveis à concessão da liberdade condicional: o Ministério Público emitiu parecer desfavorável (fls. 46/48) e o conselho técnico foi unânime nesse mesmo sentido (fls. 45).
Entende o recorrente que a decisão não sopesou devidamente que “ao arguido foi em 2010 diagnosticada doença infecto-contagiosa incurável (SIDA)”, que “o arguido manifestou estar ciente que o consumo de estupefacientes se retomado conduziria à sua morte a curto prazo” e que “aceitou que a liberdade condicional, se lhe viesse a ser concedida, ficasse sujeita à condição de abstinência e continuidade de acompanhamento médico”, o que permite “formular juízo de prognose favorável a essa não reincidência no consumo, relevando para esse efeito mais que o facto de em anterior liberdade condicional que lhe foi concedida o arguido ter recaído.

Não concordamos com esta visão dos factos apresentada pelo recorrente.

Com efeito, parece-nos claro que o grande problema reside no facto de, por força da sua toxicodependência, o recorrente ter, desde há muito, mais propriamente, desde 1993, pautado a sua vida pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e de crimes contra o património.
Tal toxicodependência não está debelada, mau grado alguma vontade que nesse sentido vem demonstrando ao longo dos tempos.
Actualmente, motivado pelo facto de se saber portador de SIDA, está integrado no programa da metadona e com acompanhamento no CRI, o que equivale a dizer que precisa de ajuda externa para vencer a sua incapacidade de ultrapassar aquilo que parece ser o grande drama que acompanha a sua vida há pelo menos duas décadas.
Por isso, parece-nos que o retorno à liberdade num momento em que o recorrente, após duas décadas de toxicodependência, embora demonstre vontade de alterar o seu comportamento aditivo ainda não consegue ultrapassá-lo sem ajuda externa, seria prematuro.
Tal como considerou o tribunal a quo ao entender que se torna necessário que “crie resistências e consolide esse percurso de superação para que, em meio livre, possa manter o mesmo grau de abstinência e comprometimento
Sem esta consolidação, torna-se impossível prognosticar positivamente uma integração do recorrente na sociedade.
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Assim sendo, não se mostrando verificado o pressuposto da alínea a., do nº 2, do artº 61º do Código Penal, ou seja, não havendo razão para, fundadamente, esperar que uma vez em liberdade o arguido conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável sem cometer crimes, teremos que concluir que nenhuma censura merece o despacho recorrido.
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Face ao exposto e sem necessidade de outros considerandos, julga-se improcedente o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
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Luís Ramos (Relator)
Olga Maurício