Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
462/20.0T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INVENTÁRIO
AVALIAÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 1114.º DO CPC
Sumário: No atual regime do processo de inventário, decorrente da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, não é admitida segunda avaliação dos bens.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

            Nos presentes autos de inventário facultativo para partilha de bens subsequente a divórcio de AA e BB, foi deferida a realização de uma avaliação a todos os bens imóveis e móveis que compõem o acervo a partilhar, avaliação essa a ser realizada por um único perito, CC, nomeado pela Exma. Juíza de 1ª instância, sendo certo que nenhuma das partes requereu que a perícia fosse colegial.

            No Relatório da avaliação apresentado por este Exmo. Perito, o mesmo consignou, relativamente ao bem imóvel, que a mesma tinha «(…) por objeto a determinação do presumível valor de mercado para a MÁXIMA E MELHOR UTILIZAÇÃO do imóvel já identificado, tendo em consideração a localização do mesmo, acessos, potencialidades edificativas, características construtivas, tipológicas e caracterização da realidade urbana envolvente, bem como o estado de conservação», sendo que o método a utilizar para a determinação do correspondente valor seria o “Método Comparativo de Mercado / Prospeção”, o qual foi definido como consistindo em «(…) relacionar o valor de um imóvel com os dados relativos à transação de propriedades com características semelhantes ou comparáveis, obtidos através do conhecimento do mercado ou de prospeção efetuada no local onde se situa o imóvel. O uso deste método no presente estudo de avaliação serviu como parâmetro referencial por utilizar os dados diretamente recolhidos do mercado, segundo critérios de homogeneidade, proporcionando um carácter objetivo e indicador dos valores de avaliação», sucedendo que, elaborando a essa luz nos termos tidos por convenientes, e que aqui se dão por reproduzidos, veio a atribuir ao imóvel o valor de € 144.000,00; já quanto aos bens móveis, consignou que a avaliação se fundamentava «(…) em métodos baseados no conhecimento do perito para encontrar o valor real do bem no seu estado atual à data de referência da vistoria, encontrando o valor mais provável pela qual a transação deve ser concretizada. Na presente avaliação dos bens móveis, foi considerado o estado aparente dos bens avaliados, o desgaste ou perda de utilidade por uso ou obsolescência», ademais se referindo que era pressuposto assumido a “Consulta e prospeção no mercado em plataformas de venda de bens móveis usados[2], sucedendo que, elaborando a essa luz nos termos tidos por convenientes, e que aqui se dão por reproduzidos, veio a atribuir aos móveis, sem prejuízo dos valores parcelares discriminados, o valor total de € 2.050,00.

                                                                       *

            Por requerimento entrado nos autos em 16.03.2022, a interessada BB disse vir apresentar a sua “reclamação” ao mesmo, o que fez sustentando a sua discordância quanto aos métodos/critérios de avaliação seguidos pelo Exmo. Perito, requerimento esse que concluiu pedindo que fosse ordenada a «(...) realização de segunda avaliação dos bens a partilhar.»

                                                                       *

            Apreciando um tal requerimento, a Exma. Juíza de 1ª instância proferiu a seguinte decisão

«Ref. ...69: a interessada BB veio reclamar do relatório pericial junto aos autos e requerer a realização de segunda perícia, afirmando não concordar com o método adotado pelo Senhor Perito.

Ora, visto o teor do relatório pericial, não resulta que o mesmo padeça de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, encontrando-se o mesmo fundamentado.

Não se verificando qualquer dos casos previstos no artigo 485.º do Código de Processo Civil, , indefere-se a reclamação apresentada, bem como a realização de segunda perícia requerida.»

                                                           *

Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a referida interessada BB, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1 – O ora Apelante recorre da decisão do Tribunal a quo, proferida por despacho, que indeferiu a reclamação apresentada e a realização de segunda perícia, oportuna e atempadamente requerida pela ora Apelante.
2 – Da decisão de que se recorre consta o seguinte: “Ref. ...69: a interessada BB veio reclamar do relatório pericial junto aos autos e requerer a realização de segunda perícia, afirmando não concordar com o método adotado pelo Senhor Perito. Ora, visto o teor do relatório pericial, não resulta que o mesmo padeça de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, encontrando-se o mesmo fundamentado. Não se verificando qualquer dos casos previstos no artigo 485.º do Código de Processo Civil, indefere-se a reclamação apresentada, bem como a realização de segunda perícia requerida.”
3 – A interessada BB na reclamação que apresentou não reclamou quanto à escolha do método adoptado pelo Sr. Perito, como referido no despacho de que se recorre;
4 – O que a interessada veio afirmar é que o método utilizado pelo Sr. Perito não cabe na definição de método de comparação de mercado, porque a comparação não foi feita com imóveis e bens semelhantes aos bens a avaliar, nem se baseou no valor de transação, mas no valor de anuncio de venda, tratando-se o método utilizado de um método não reconhecido internacionalmente, nem pela CMVM, configurando por isso método ilegal.
5 – Da decisão proferida resulta que o Tribunal a quo não analisou as razões apontadas pela interessada BB para discordar do resultado da primeira perícia, nem verificou se os motivos apontados se mostram objetivamente aptos para que na segunda perícia resulte o apuramento de valores diferentes.
6 – A decisão de que se recorre, padece de falta de fundamentação, de facto e de direito, quanto ao motivo pelo qual não se admite a realização da segunda perícia, devendo por isso ser considerada nula, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º1 b) do CPC, por violar o disposto no artigo 154.º do CPC, que resulta do dever constitucionalmente consagrado no artigo 205.º da Lei Fundamental.
7 – Deveria o Tribunal a quo ter admitido a realização da segunda perícia requerida pela interessada BB, com a qual se visava o apurado do real valor de mercado dos bens a avaliar.
8 – Dispõe o artigo 487.º n.º 1 do Cód. Proc. Civil que “ Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
9 – A interessada BB requereu a realização de segunda perícia, em tempo e fundamentou devidamente as razões da sua discordância, baseando-se em fundamentos sérios, o que fez de forma clara e explicita, indicando ao Tribunal a quo as deficiências que detectou, relativas à insuficiência, incoerência e incorreção da peritagem.
10 - A consagração de realização de uma segunda perícia visa possibilitar a dissipação das concretas dúvidas sérias que possam decorrer da primeira perícia relativas a questões concretas que possam conduzir a um resultado diferente do alcançado na primeira perícia.
11 – A benfeitoria a avaliar é manifestamente diferente das moradias que o Sr. Perito usou para fazer a comparação, já que algumas destas moradias, quase todas, se podem considerar de luxo e outras têm espaços destinados a comércio, o que as torna mais valiosas e a benfeitoria é um imóvel modesto, destinado apenas a habitação.
12 – Os bens móveis a avaliar são também bem diferentes de alguns dos bens móveis escolhidos pelo Sr. Perito para fazer a comparação, seja devido à marca do fabricante ou às condições de conservação em que se encontram.
13 – O facto do Sr. Perito ter apurado o valor dos bens a avaliar por comparação com bens que não lhes são semelhantes e baseando-se nos valores anunciados para a venda, afigura-se só por si suficiente para que sejam criadas sérias dúvidas quanto à correção da peritagem efetuada.
14 – Além disto, afigura-se como aleatória a aplicação de 15% para depreciação da benfeitoria, já que se trata de imóvel sem ligação ao saneamento público, à água à rede pública ou à rede elétrica, o mesmo se afirmando quanto ao valor atribuído aos anexos exteriores, nada constando do relatório que esclareça como foi alcançado tal valor.
15 – O Tribunal a quo ao indeferir a realização da segunda perícia requerida pela interessada BB, proferiu decisão ilegal, pois a peritagem admitida nos autos padece de graves erros e deficiências, que foram devidamente apontados na reclamação apresentada, devendo ser admitida a realização da segunda perícia de modo a colmatar as deficiências da primeira perícia.
16 – A realização de perícia para avaliação de bens, pressupõe que o perito para a obtenção dos valores, faça uso de conhecimentos especiais que os julgadores não possuam.
17 - Não se afigura que a peritagem junta aos autos se mostre dotada desse cariz técnico, já que, por um lado, os valores apurados são obtidos pela mera consideração da média aritmética dos valores anunciados para a venda de vários imóveis situados na zona do ... ou de bens móveis do mesmo tipo ( sem que os bens a considerar sejam semelhantes com os avaliar) e quanto aos demais valores a apurar, que são a percentagem de depreciação da benfeitoria e o valor atribuído aos anexos exteriores, tratam-se de valores atribuídos de modo aleatório, já que nada consta quanto ao respetivo apuramento.
18 – Tal peritagem, por não ter sido realizada de acordo com os métodos internacionalmente aceites e estabelecidos nas normas legais aplicáveis, nomeadamente no regulamento CMVM n.º 2/2015, consultável em https://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Regulamentos/Pages/Reg2015_2.aspx, deverá ser declarada nula e de nenhum efeito a primeira perícia, e consequentemente, ordenada a realização de uma nova peritagem que cumpra as disposições legais.
19 – Com o devido respeito, o Douto despacho proferido violou, entre outros, o disposto no art.154.º, 487.º n.º 1 e 615.º n.º1 b) do Cód. Proc. Civil, o art. 37.º do Regulamento CMVM n.º 02/2015, bem como também o art. 205.º da Lei Fundamental.
***
Nos termos do disposto no n.º1 do art.646.º do CPC, pretende instruir o presente recurso com
certidão das seguintes peças:
(…)
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o Despacho de que se recorre ser revogado e substituído por outro que reconheça as nulidades invocadas, ordenando- a realização de nova perícia e/ou de segunda perícia.
ASSIM FARÃO V. EX.ªS
ACOSTUMADA E SÃ JUSTIÇA,
PEDE A V. EX.ª DEFERIMENTO.»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- nulidade por falta de fundamentação da decisão proferida [art. 615º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil];

-  incorreto julgamento da decisão que, em processo de inventário, indeferiu uma segunda avaliação de bens.                                                                                                                                                  *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são, no essencial, os que resultam do relatório que antecede.

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. – Nulidade por falta de fundamentação da decisão proferida [art. 615º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil]

Que dizer?

Consabidamente, nos termos do disposto no art. 615º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil, a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Temos presente o corrente entendimento de que a sentença só é nula por falta de fundamentação quando seja de todo omissa relativamente à fundamentação de facto ou de direito.

É certo que importa ter em conta o mais completo e rigoroso entendimento quanto a este particular, que é o de que também e ainda ocorre essa nulidade «quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial»[3].

Na verdade, este mais completo conceito de dever de fundamentação cumpre ainda uma função primordial: pela necessidade das partes, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação, precisarem de conhecer a sua base fáctico-jurídica; para que não só as partes, como a própria sociedade, entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um ato autoritário, importa que tais decisões se articulem de forma lógica; a fundamentação da sentença revela-se indispensável em caso de recurso, pois na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a decisão recorrida.

Consequência da inobservância deste dever de fundamentação será então a nulidade da decisão recorrida, que não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – cfr. arts. 615º, nº 1, al. b) e 613º, nº 3 do n.C.P.Civil.

Mas será que na decisão sob recurso conclusivamente se expôs a convicção a que se chegou, com base em premissas não explicitadas ou cujo sentido não fosse apreensível?

Não ocorreu isso!

Antes pelo contrário: o Exmo. Juiz a quo explicitou muito claramente que a sua decisão de indeferimento decorria de «Não se verificando qualquer dos casos previstos no artigo 485.º do Código de Processo Civil (…)», mais concretamente que «(…) visto o teor do relatório pericial, não resulta que o mesmo padeça de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, encontrando-se o mesmo fundamentado».

Ou seja, a decisão mostra-se fundamentada de facto e de direito, ainda que em termos perfunctórios e lineares/singelos, sucedendo que importa não olvidar ser naturalmente diverso o nível de exigência quanto à fundamentação de uma sentença, em que se conheça do mérito da causa – onde não pode faltar adequada e aprofundada fundamentação da decisão (de facto e de direito) –, ou, diversamente, de uma simples decisão quanto a uma questão incidental [de um meio de prova].

É que, neste último caso, atenta a simplicidade usual do objeto decisório, bastará que se deixe transparecer o motivo da decisão, tendo em conta o âmbito normativo aplicável (o que in casu sucedeu com a invocação do art. 485º do n.C.P.Civil), não carecendo comummente a decisão, plasmada em despacho, de maiores desenvolvimentos, caso em que não poderá nunca falar-se em total/absoluta inexistência de fundamentação.

Sendo certo que questão diversa será, obviamente, o eventual erro/desacerto do entendimento que esteve subjacente e presidiu à decisão recorrida – aspeto que se apreciará de seguida. 

Termos em que, sem necessidade maiores considerações, improcede esta arguição de nulidade.

                                                           *

4.2. – Vejamos seguidamente da questão do incorreto julgamento da decisão que, em processo de inventário, indeferiu uma segunda avaliação de bens.

Antes de aprofundar a questão entendemos ser curial e até necessário – para a correta compreensão do que está em causa – começar por rememorar o teor literal expresso do artigos 485º e 1114º do n.C.P.Civil, normativos que mais diretamente estão em causa na situação ajuizada.

    «Artigo 485.º

                                            Reclamações contra o relatório pericial

1 - A apresentação do relatório pericial é notificada às partes.

2 - Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações.

3 - Se as reclamações forem atendidas, o juiz ordena que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado.

4 - O juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores.»;

                                                  «Artigo 1114.º

                                                                Avaliação

1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.

2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.

3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:

a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;

b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.

4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.»
De referir que este quadro legal logo nos suscita um primeiro ponto de ordem: é ele o de que no caso vertente a interessada BB ora recorrente nem sequer apresentou uma “reclamação” do relatório pericial nos termos e para os efeitos do disposto no art. 485º do n.C.P.Civil, isto é, visando que fosse ordenado ao Perito que «(…) complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado.» [cf. nº2 do citado normativo]
Na verdade, s.m.j. a “reclamação” apresentada cumpria apenas a função instrumental de fundamentar o pedido de segunda avaliação de bens – que efetivamente foi o que foi formulado no final do requerimento.[4]
Será então que, a esta luz, ou seja, enquanto fundamentada na não verificação dos requisitos para uma reclamação contra o relatório pericial, houve desacerto da decisão recorrida que indeferiu a segunda avaliação de bens?
Cremos bem que não, na medida em, s.m.j., essa decisão, ainda que não proferida com os corretos pressupostos normativos, foi inteiramente no bom sentido, havendo um amplo leque de razões dogmáticas e jurídicas que podem ser convocadas para a fundamentar.
Senão vejamos.
Cremos que decorre insofismavelmente do cotejo do quadro normativo do atual Código de Processo Civil atinente à disciplina legal do Inventário, com a constante do regime jurídico do processo de inventário na reforma introduzida pelo DL nº 227/94, de 8-09, que houve uma alteração dogmática expressa no respeitante a esta diligência de prova.
Na verdade, na redação constante do art. 1369º deste último diploma, com a epígrafe de “Realização da avaliação”, «a avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efetuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte geral do Código, com as necessárias adaptações». [sublinhado nosso]
Sendo certo que, a esse tempo, na parte respeitante ao “processo de declaração”  [Título II do Código] e na parte respeitante ao capítulo da “instrução do processo”, se previa a possibilidade de a uma primeira perícia, se suceder uma segunda, que teria por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira, e com a finalidade expressa de corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (cf. nº 3 do art. 589º respetivo), sendo que, para o efeito, a parte inconformada com a primeira perícia, requeria a segunda perícia, em 10 dias, expondo fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (cf. nº 1 desse mesmo art. 589º).
De forma autónoma ao Código de Processo Civil, mas com algum paralelismo a este regime vindo de citar, no subsequente “Regime Jurídico do Processo de Inventário” [constante da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, e que entrou em vigor em 2-09-2013], esta temática encontrava-se disciplinada no art. 33º do mesmo, com a epígrafe de “Realização da avaliação”, pela seguinte forma:
«1- Com a oposição ao inventário pode qualquer interessado impugnar o valor indicado pelo cabeça de casal para cada um dos bens, oferecendo o valor que se lhe afigure adequado;
2- Tendo sido impugnado o valor dos bens, a respetiva avaliação é efetuada por um único perito, nomeado pelo notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial.» [sublinhado nosso]
Foi com a Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, que o processo de inventário voltou de novo a ser regulado normativamente pelo Código de Processo Civil [para o efeito se encontrando disciplinado nos artigos 1082º a 1135º do n.C.P.Civil], mais concretamente e para o que ora releva tutelando-se esta temática no supra citado art. 1114º do mesmo.
Assim sendo, na medida em que a decisão da questão em apreciação passa pela interpretação desta vigente e atual norma, diremos o seguinte:
Salvo o devido respeito, logo ressalta que tendo deixado de existir a remissão legal para a parte geral do Código respeitante à prova pericial, tal significa que se quis disciplinar a temática de forma autónoma e específica, mormente quanto ao aspeto de nela só ter lugar uma única avaliação.
Dito de outra forma: a letra do art. 1114º do n.C.P.Civil «(…) deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusiva do regime de uma única avaliação.»[5]
Temos presente que o art. 549º do n.C.P.Civil  preceitua, como princípio geral,  a aplicabilidade ao processo especial de “disposições gerais e comuns”.[6]
Contudo, importa não olvidar que «(…) só na falta de disciplina específica deste processo especial, é que haverá que aplicar as normas “gerais e comuns” e, seguidamente as estabelecidas para o processo comum (…)».[7]
Ora se assim é, na medida em que, s.m.j., se encontra presentemente estabelecido um regime especial, no capítulo do processo especial de inventário, para a “avaliação” que nele tenha lugar, não haverá que recorrer, no que ao aspeto da admissibilidade de uma “segunda perícia” diz respeito, às normas “gerais e comuns” da “instrução do processo”.
Atente-se que a atual disciplina legal da temática da “avaliação” inculca a ideia de se tratar de uma diligência instrutória que deve ter lugar, em regra, num prazo limitado de 30 dias [cf. nº 4 do citado art. 1114º do n.C.P.Civil], o que constitui mais um elemento no sentido interpretativo de que só existe uma única avaliação no processo de inventário.
No nosso entendimento, a realização de uma segunda perícia, facultada em determinadas condições pelo Código de Processo Civil nas normas gerais da “instrução do processo”, não se coaduna com a tramitação mais simplificada estabelecida no capítulo do processo de inventário, no qual, em prol da celeridade em certas fases processuais, não se hesitou em sacrificar atos e fases processuais próprios do regime geral e comum previsto no Código de Processo Civil.
O que bem se compreende se se atentar que «a segunda perícia não constitui uma instância de recurso. Visa, sim, fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art. 488-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.»[8]
Assim sendo, na medida em que a “avaliação” no processo de inventário não tem em vista alcançar a verdade material, nem se vislumbra qual pudesse ser a verdadeira e efetiva relevância deste meio probatório [da segunda avaliação].
Com efeito, «(…) no inventário não se busca uma avaliação rigorosa e segura, mas uma estimação aproximada, já que não permanece imutável e aos interessados  fica livre corrigi-la, ou pela reclamação contra o seu excesso quando avaliados a mais, ou pela licitação em caso inverso.
Há, assim, uma fundamental diferença entre as avaliações em inventário para efeito da partilha e a avaliação dos mesmos bens para o efeito da liquidação dos impostos ou da correcção dos valores matriciais. Ali, o valor atribuído pelo louvado não decisivo, aqui reveste esta qualidade; no inventário as avaliações destinam-se a permitir a partilha dos bens, na avaliação para a Fazenda têm em vista determinar o valor da matéria tributável sobre que há-de recair o respectivo imposto.»[9]  
 A esta luz, salvo o devido respeito, a eventual incorreção da “avaliação” que tenha sido feita pode ser mitigada/corrigida através da “reclamação” à mesma, constituindo este mecanismo do contraditório a tutela suficiente e bastante na fase da “estimação” do valor dos bens, sem prejuízo do eventual (re)equilíbrio que, por acordo ou licitação, sempre será possível alcançar na fase subsequente do processo. 
O que tudo serve para dizer que, face quer à letra da lei, quer ao seu espírito, deve ser perfilhado o entendimento de que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário.
Nestes termos improcedendo as alegações recursivas e o recurso.

                                                                       *

(…)

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter o sentido da decisão recorrida.

            Custas pela interessada recorrente.

Coimbra, 13 de Dezembro de 2022

                                                     Luís Filipe Cravo

                                                   Fernando Monteiro

                                                      Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] elencadas na sequência, a saber, «https://www.custojusto.pt/; https://www.olx.pt/; https://www.mobiliariocomhistoria.pt/; https://www.coisas.comhttps://www.anunciosgratis.pt; https://www.facebook.com/MoveisUsadosEntroncamento/; https://www.vivalocal.pt/mobiliario-usado/pt; http://leiloeiradofuturo.pt/; https://www.vendamoveisonline.pt/»
[3] cf., “inter alia”, o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 17-04-2012, no processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível in www.dgsi.pt/jtrc, o qual não obstante proferido no quadro do pré-vigente C.P.Civil entendemos que mantém plena atualidade face ao n.C.P.Civil.
[4] Que, relembre-se, era o de que fosse ordenada a «(...) realização de segunda avaliação dos bens a partilhar»!
[5] Citámos agora o acórdão deste mesmo TRC de 10.05.2022, proferido no proc. nº 1734/20.9T8FIG-B.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[6] Neste sentido MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e outros, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, a págs. 115.
[7] Assim LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil anotado”, volume 2º, 3ª edição, Livª Almedina, 2017, a págs. 475.
[8] Assim os já citados LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil anotado”, volume 2º, 3ª edição, Livª Almedina, 2017, ora a págs. 342.
[9] Cf. J. A. LOPES CARDOSO, in “Partilhas Judiciais”, Vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1990, a págs. 25.