Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/18.3T8SEI-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
VIOLAÇÃO DE REGRAS PROCEDIMENTAIS
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL
Data do Acordão: 01/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - SEIA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 202, 214, 215, 216 CIRE
Sumário: 1.- A violação de regras procedimentais corresponde a um vício de natureza formal consubstanciado na violação de uma regra ou norma que regula o formalismo que deve ser observado no processo e as formalidades a que deve obedecer o plano de recuperação/vitalização apresentado.

2.- A violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano corresponde a um vício de natureza substantiva ou material consubstanciado na violação de uma regra, norma ou princípio que regula directamente o conteúdo do plano.

3.- A violação não negligenciável corresponde a uma violação grave das normas legais aplicáveis, ou seja, quando acarrete um resultado que a lei não permite em virtude de o conteúdo do plano violar disposições legais de carácter imperativo ou quando a violação se reporta a regras ou normas legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere e sempre que a violação seja susceptível de afectar/prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de protecção legal .

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito da insolvência referente a Farmácia (…) Ldª, a devedora/insolvente veio apresentar proposta de plano de insolvência.

A credora A (…), S.A. veio manifestar, desde logo, a sua oposição a tal plano de insolvência, alegando que a sua situação ao abrigo do plano proposto era menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano e, portanto, no caso de se concretizar a liquidação do património da Insolvente, uma vez que, estando o seu crédito garantido por penhor constituído sobre o estabelecimento comercial de farmácia, num cenário de liquidação, receberia a totalidade ou quase totalidade do valor do seu crédito, na pior das hipóteses, decorrido o período de 1 ano, considerando o disposto no artigo 169.º do CIRE, ao contrário do que aconteceria se o plano viesse a ser aprovado e homologado

A aludida credora veio, posteriormente, reiterar essa posição na sequência de alterações ao plano que foram apresentadas pela Insolvente.

Em assembleia de credores realizada em 12/07/2018, o plano de insolvência foi submetido a votação que obteve os seguintes resultados: A (…) (27.10%) votou contra e o credor V (…) (1.11%) votou a favor. Os credores B (…)S.A (28.75%) e C (…) (40.07%) requereram o voto escrito para o que lhes foi concedido o prazo de dez dias.

Mediante requerimento apresentado em 30/08/2018, a credora A (…) veio requerer:

a) A não homologação do Plano de Insolvência por violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE;

Caso assim não se entenda,

b) A não homologação do Plano de Insolvência, por a sua homologação implicar para a Credora Reclamante uma situação menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 216.º do CIRE.

Reafirmando a posição que já havia assumido anteriormente, alegou que a sua situação ao abrigo do Plano de Insolvência é, previsivelmente, menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, mais alegando que o plano viola, de forma não negligenciável, as normas legais aplicáveis e o princípio da igualdade dos credores.

Por despacho de 11/09/2018, declarou-se que o Plano de Insolvência havia sido aprovado, determinando-se a publicação da deliberação de aprovação do plano, mais se determinando que os autos aguardassem pelo menos 10 dias sobre a data da publicação da deliberação, de harmonia com o disposto no artigo 214º, do CIRE e uma vez que o Plano de Insolvência aprovado havia sido objecto de alterações em sede de assembleia.

Tal publicação foi efectuada em 13/09/2018.

O credor E (…) (habilitado, por decisões proferidas nos autos, no lugar da C (…) e B (…)  ), veio responder ao requerimento apresentado por A (…), S.A., alegando que o requerimento era extemporâneo por ter sido apresentado 1 mês e 7 dias após a aprovação do plano em clara violação do art 17 F nº 5 do CIRE. Sustentava ainda que não existia qualquer violação não negligenciável das normas legais e que não resultava dos autos que a situação da referida credora fosse mais favorável na ausência de qualquer plano, quando é certo que, em sede de liquidação, a credora tem apenas uma expectativa de receber quase a totalidade do valor reconhecido, enquanto que com o plano a credora vê assegurada já a efectiva totalidade daquele valor.

Em 20/09/2018, a credora A (..), S.A. veio reiterar o requerimento que havia apresentado em 30/08/2018.

Foi proferida decisão – em 16/10/2018 – que, ao abrigo do disposto no artigo 216º, nº 1, alínea a), do CIRE, não homologou o plano de insolvência apresentado pela Insolvente.

O credor E (…) veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

I – O requerimento de não homologação que dê entrada nos autos após o prazo que a lei determina para que o Tribunal decida da homologação do plano – isto é, 10 dias desde a aprovação do mesmo, art 17º F nº 5 do CIRE) deve ser julgado extemporâneo.

II – Ficou por demonstrar pela Credora A (…) S.A., com a necessária segurança, o pressuposto enunciado na mencionada al. a) do nº 1, do artº 216º, do CIRE, a saber, que na ausência do plano de Insolvência, o seu seria integralmente satisfeito por via da liquidação do património da devedora/insolvente, concretamente através da venda do trespasse onerado com o penhor.

III - É razoável afirmar-se que a situação do Credora A(…) hoje, face ao compromisso assumido pela devedora é melhor do que a situação anterior em que desconhecia como e quando (e mesmo se) obteria a satisfação do seu crédito.

IV - Mesmo em cenário de liquidação, não ficaria a Credora em situação mais favorável, desde logo porque a sua dívida está garantida por penhor sobre o trespasse da devedora, trespasse este cujo valor de mercado e efectiva possibilidade de venda, só poderá ser aferida em situação real, sendo, por isso, especulativa a alegação da credora apelante de que o seu crédito seria integralmente satisfeito através da venda do dito imóvel .

Conclui pedindo que seja revogada a sentença recorrida e que seja proferida sentença de homologação do plano da devedora.

A Insolvente veio também interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1º - O Senhor Administrador de Insolvência apreendeu/arrolou como bem pertencente à insolvência o alvará de farmácia e não o estabelecimento comercial de farmácia onde aquele se integra.

2º - Apreender/arrolar o alvará de farmácia é juridicamente diferente de apreender o estabelecimento comercial de farmácia.

3º - Não estando apreendido/arrolado o estabelecimento de farmácia da insolvente não poderá ser o mesmo alienado.

4º - Não estando apreendido/arrolado o estabelecimento comercial da insolvente qualquer referência ao mesmo no Douto Despacho da Meritíssima Juíza a quo é inócuo por comparar as propostas do Plano de Insolvência com o eventual valor de um estabelecimento comercial de farmácia que não faz parte dos bens apreendidos/arrolados no processo e como tal não passível de alienação.

5º - O alvará de farmácia não é alienável por, desacompanhado do estabelecimento comercial de farmácia, ser uma coisa fora do comércio jurídico.

6º - É nula a apreensão/arrolamento do alvará de farmácia nos presentes autos por violação do disposto no artigo 280 nº 1 e 401 nº 1 do Código Cívil.

7º - Depois da reforma operada pela lei 16/2012 de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal a recuperação da empresa relegando para segundo plano a respectiva liquidação.

8º - O Plano de Insolvência prevê pagar à credora reclamante a quantia total de 818.822,82 €, estando incluído um valor acrescido de 78.445,68€ relativamente ao crédito reclamado pela reclamante no montante de 740.377,14€.

9º - Os argumentos aduzidos e os elementos carreados aos autos pela credora reclamante não são convincentes que esta receba mais com a liquidação da insolvente do que através de um Plano de Insolvência, por não considerar as despesas da massa insolvente a pagar pelo produto da venda.

10º - Sendo o juízo de prognose favorável a que a credora reclamante receba, e bem mais, através do Plano de Insolvência do que através da liquidação do ativo da insolvente.

11º - Não recebe é no prazo de um ano, mas dá-se assim cumprimento nos presentes autos ao objectivo principal da recuperação da empresa presente na reforma operada no CIRE pela lei 16/2012 de 20/4.

12º - Ao decidir como decidiu a Meritíssima Juíza a quo violou o disposto nos artigos 280 nº 1 e 401 nº 1 do CIRE e artigo 216 nº 1 al. a) do CIRE.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que homologue o Plano de Insolvência apresentado.

A credora A (…), S.A., apresentou contra-alegações, ampliando o objecto do recurso e formulando as seguintes conclusões:

1. O artigo 17.º-F n.º 5 do CIRE refere-se às maiorias exigidas para efeito de se considerar aprovado um Plano de Recuperação em sede de Processo Especial de Revitalização não tendo qualquer aplicação na questão ora em apreço nem sequer no caso dos presentes autos de insolvência.

2. Ainda que se admita tratar-se de um lapso de escrita e, como tal, o que o Recorrente (…) pretendia escrever era o artigo 17.º-F n.º 7 do CIRE, a conclusão é exatamente a mesma, ou seja a aludida disposição legal relativa ao Processo Especial de Revitalização não tem qualquer aplicação no caso dos presentes autos de insolvência.

3. Nos termos do artigo 214.º do CIRE e porquanto o Plano de Insolvência foi objeto de alterações na Assembleia de Credores para discussão e votação realizada no dia 12.07.2018, a ora Requerida dispunha do prazo de 10 dias a contar da data da publicação da deliberação do Plano de Insolvência: ou seja, de 10 dias contados a partir de 13.09.2018 e que terminariam no dia 24.09.2018.

4. A ora Recorrida apresentou o requerimento de não homologação do Plano de Insolvência no dia 30.08.2018 (ainda antes de o prazo para tal se ter iniciado), tendo, em 20.09.2018 (depois de o prazo efetivamente ter começado a correr), reiterado tal requerimento de não homologação do Plano de Insolvência, pelo que não surgem dúvidas o requerimento de não homologação do Plano é tempestivo nos termos dos artigos 216.º e 214.º do CIRE e, por conseguinte, improcedendo a conclusão I das alegações de Recurso do Recorrente (…)

5. A própria Insolvente/ aqui Recorrente FARMÁCIA (…). ao tratar a mesma realidade jurídica no Plano de Insolvência apresentado como “alvará” e, agora, em sede de Alegações de Recurso pretender que essa mesma realidade jurídica é o “estabelecimento comercial de farmácia”, incorre em abuso do direito na modalidade venire contra factum proprium.

6. Não há dúvidas quanto ao facto de a referência ao “Alvará de farmácia nº (...) ” no auto de apreensão/ arrolamento efetuado pelo Senhor Administrador da Insolvência se dever entender como relativo à apreensão/ arrolamento do estabelecimento comercial de farmácia designado “Farmácia (...) ” e do qual faz parte integrante o respetivo alvará.

7. Em substância, a apreensão/ arrolamento efetuado abrange o todo formado pelo estabelecimento comercial de farmácia, de que o alvará n.º (...) faz parte integrante, bem tendo andado a Meritíssima Juíza a quo na Sentença recorrida ao comparar a proposta do Plano de Insolvência com o eventual valor do estabelecimento comercial de farmácia em cenário de liquidação, razão pela qual improcedem as conclusões 1º a 6º e 12º das Alegações de Recurso da Insolvente/ aqui Recorrente FARMÁCIA (…)

8. Reconhecendo-se ser diversa a ratio do Processo Especial de Revitalização – Lei 16/2012, de 20 de abril – quando cotejada com a do CIRE, onde foi integrado, aquele visando a recuperação da empresa em estado pré insolvente mas recuperável, e o CIRE, antes da reforma de 2012, visando, em primeira linha, a liquidação do património do devedor insolvente em beneficio dos seus credores por via de uma execução universal, a verdade é que o paradigma do Direito da Insolvência resultante da Lei 16/2012, de 20 de abril, não é, em si mesmo, um objetivo absoluto, porquanto não se pretendeu impor – e não se impôs –, sem quaisquer condições ou limites, aos credores, todo e qualquer plano de recuperação, desde que aprovado.

9. Sendo/ continuando a ser a finalidade última do processo de insolvência a satisfação dos credores, improcedem as conclusões 7º e 11º das Alegações de Recurso da Insolvente/aqui Recorrente FARMÁCIA (…)

10. O que a alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE exige é a comparação, por via de um exercício intelectual de prognose, entre o que o credor recebe com o Plano e quanto se estima que receberia sem ele/ em cenário de liquidação do património da Insolvente.

11. Tendo por base os elementos de prova juntos aos autos – designadamente o próprio Plano de Insolvência apresentado e respetivos anexos, bem como os exemplos de venda, no âmbito de liquidação em processo de insolvência, de estabelecimentos comerciais de farmácias localizados em regiões próximas de (...) carreados para os autos pela ora Recorrida – conclui-se “com razoabilidade, ser previsível que, prosseguindo os autos para a liquidação do activo, o crédito titulado pela A (…) [garantido por penhor] seja pago na sua totalidade num curto espaço de tempo. – Os elementos constantes dos autos permitem, assim, comparar a situação que para a AA (…) emergiria do Plano de Insolvência com a situação hipotética que lhe adviria na ausência de plano, resultando demonstrada a provável e previsível situação de desfavor resultante da execução do plano para esta credora.”.

12. Resulta inequívoca a demonstração em termos plausíveis que a situação da ora Recorrida ao abrigo do Plano de Insolvência proposto é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, improcedendo, assim, as conclusões II, III e IV das Alegações de Recurso do Recorrente E (…), bem como as conclusões 8º, 9º, 10º, e 12º das Alegações de Recurso da Insolvente/ aqui Recorrente FARMÁCIA (…)

b. DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO

13. Prevenindo a necessidade da apreciação de circunstâncias que determinariam a não homologação do Plano de Insolvência por violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE, a ora Recorrida requer, quanto a tais circunstâncias/ fundamentos invocados em sede de requerimento de não homologação, a ampliação do âmbito do recurso.

14. Confrontando a redação do Plano de Insolvência e os esclarecimentos prestados em sede de Assembleia de Credores, não se alcançam quais serão as medidas de plano de pagamentos (se é que existem) a aplicar aos créditos comuns não titulados pelo Credor B (…), S.A., Sociedade Aberta e/ ou pelo Credor C (…) devendo, em consequência, ser recusada a homologação do Plano de Insolvência por violação do disposto no artigo 195.º n.º 2 do CIRE.

15. Se era intenção da Insolvente contemplar o perdão de dívida e posterior conversão de créditos em capital para todos os credores com créditos de natureza comum, como parece transparecer pela leitura do capítulo III, alínea iii) constante do Plano – que não faz qualquer distinção entre credores comuns – então, significa isto que a implementação do mesmo determinará a violação, não negligenciável, de normais aplicáveis ao conteúdo do Plano, dado que, à exceção dos Credores B (…) e C (…) os demais credores comuns não aceitaram, de forma expressa, a conversão do seu crédito em capital, nem votaram favoravelmente no Plano, conforme é exigido pelos artigos 192.º n.º 2 e 202.º n.º 2 do CIRE.

16. Se era intenção da Insolvente contemplar o perdão de dívida e posterior conversão de créditos em capital apenas para o Credor B (…) e C (…)conforme se poderá entender em face do esclarecimento prestado em sede de Assembleia de Credores de dia 12.07.2018), significa isto que os demais credores comuns foram excluídos do Plano de Insolvência, pelo que, a implementação do mesmo determinará a violação do princípio da igualdade dos credores previsto no artigo 194.º do CIRE e bem assim a violação do disposto no artigo 195.º n.º 1 do CIRE.

Conclui pela improcedência do recurso e, caso assim não se entenda, pede que seja admitida a ampliação do âmbito do recurso e que, em consequência, seja recusada a homologação do plano de Insolvência por violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o requerimento apresentado pela credora A (…)S.A. (requerimento em que solicitava a não homologação do plano) foi apresentado em tempo oportuno;

• Saber se estavam reunidos os pressupostos necessários para recusar a homologação do plano, ao abrigo do disposto no artigo 216º, nº1, alínea a), do CIRE, o que se reconduz a saber se a aludida credora demonstrou, em termos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Caso se conclua que a homologação do plano não deve ser recusada ao abrigo do artigo 216º, nº 1, alínea a), importa analisar as questões suscitadas pela Apelada em sede de ampliação do objecto do recurso e que se reconduzem a saber se a homologação do plano deve ser recusada ao abrigo do disposto no artigo 215º em virtude de o mesmo implicar violação não negligenciável de normas aplicáveis ao seu conteúdo por prever, designadamente, a conversão de créditos comuns em capital social sem a necessária anuência dos credores afectados que é exigida pelo artigo 202º, nº 2, do CIRE.


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III.

Com relevância para a decisão, consignam-se os seguintes factos que resultam dos autos:

1. Nos presentes autos de insolvência foram reconhecidos créditos no valor global de 2.746.488,14€ (desse valor 740.377,17€ corresponde a crédito garantido, 58.703,59€ corresponde a crédito privilegiado, 9.244,99€ corresponde a créditos subordinados e o restante valor corresponde a créditos comuns).

2. Nos presentes autos, foram arrolados os seguintes bens:

Verba nº 1: conjunto composto por diverso mobiliário: armários, bancadas, prateleiras, gôndolas, material informático, sistema de vigilância, material de apoio à actividade, painéis luminosos/publicitários;

Verba nº 2: Stock de medicamentos, produtos de dietética infantil, medicamentos e produtos de veterinária, produtos cosméticos, puericultura, suplementos alimentares, produtos de higiene;

Verba nº 3: um veículo ligeiro de mercadorias;

Verba nº 4: Alvará de farmácia nº (...) .

3. Por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos a 17 de Julho de 2018, já transitada em julgado, foi reconhecido o crédito reclamado da credora A (…) no montante global de 744.377,47€ garantido por penhor relativamente ao montante de 740.377,14€ e que, no que toca a este valor, foi graduado em 1º lugar relativamente ao produto da venda da verba nº 4 (alvará de farmácia nº (...) ), tendo ficado graduados em 2º lugar os créditos laborais, em 3º lugar os créditos comuns e em 4º lugar os créditos subordinados.

4. No que toca às verbas nºs 1, 2 e 3, a mesma sentença graduou os créditos nos seguintes termos:

1º - Os créditos laborais reclamados pelo Trabalhadores da Insolvente, na devida proporção.

2º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos comuns.

3º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.

5. No que toca à regularização do passivo, o Plano de Insolvência aprovado prevê, no que toca à credora A (…) (crédito garantido), o seguinte:

 “i) - Carência – Estabelecimento de um período de carência de 12 meses no pagamento de capital e juros, com início no primeiro dia do mês seguinte ao trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano;

ii) - Juros – Perdão de juros vencidos entre a data da reclamação de créditos e o final da carência de pagamentos proposta;

iii) – Pagamento – Pagamento da totalidade do capital em dívida com garantia e respectivos juros (740.377,14Euros), em 108 prestações mensais, sucessivas, vencendo se a primeira prestação no último dia do mês seguinte ao do termo da carência de pagamentos e as seguintes em igual dia dos meses subsequentes, sendo as primeiras 107, de igual valor (4.807,91Euros – inclui capital e juros), e amortizando 65% do valor da dívida e uma prestação final (108), prestação bullet de 35% do valor da dívida acrescida dos respectivos juros (304.376,45€ - inclui capital e juros).

iv) Remuneração – Remuneração da dívida por via da aplicação de um spreed de 1,5% sobre a Euribor 12M até efectivo e integral pagamento sobre o valor a pagar as primeiras 107 prestações e um spreed de 1,94% sobre a mesma Euribor 12M para o valor bullet de 35% da dívida.

v) Garantias – Manutenção das garantias até efectivo e integral cumprimento do plano.

6. No que toca aos créditos comuns, o Plano estabelece uma diferenciação entre o crédito comum reclamado pela C (…) decorrente de um contrato de locação financeira e os demais créditos comuns, dispondo nos seguintes termos:

II – Credores comuns (via locação financeira)

i) Cumprimento do contrato – Exercício da opção pelo cumprimento do contrato:

ii) Rendas vencidas e não pagas – Pagamento das rendas vencidas e não pagas até à reclamação de créditos, a ocorrer até ao último dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que homologar o plano;

iii) Carência – Não estabelecimento de qualquer carência;

iv) Juros – Os remuneratórios constantes do contrato de locação financeira celebrado em por esta via retomado;

v) Pagamento – Pagamento das rendas vincendas, nos exatos termos em que inicialmente foram contratadas, retomando-se o pagamento no mês seguinte ao do pagamento estabelecido em ii) para as rendas vencidas e não pagas;

vi) Remuneração – Os juros remuneratórios constantes do contrato de locação financeira celebrado em por esta via retomado;

vii) Garantias – Substituição das garantias pessoais em vigor no presente contrato de locação pela garantia pessoal (aval) do Sr. (…)”.

III – Credores comuns

i) Carência – Estabelecimento de um período de carência de 12 meses no pagamento de capital, com início no primeiro dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano;

ii) Juros – Perdão integral de juros vencidos e vincendos;

iii) Capital – Perdão incondicional postecipado de 90% do capital em dívida (1.432.895,00 Euros), o qual ocorrerá na condição do integral pagamento do plano previsto infra em iv). O perdão aqui previsto, quando ocorrer (ano 10) passará a integral o capital social que, nessa data, será aumentado para 1.482.895,00 Euros).

iv) Pagamento – Pagamento dos 10% do capital em dívida (159.210,56 Euros) em 36 prestações iguais, trimestrais e, sucessivas de 4.422,52 Euros, cada uma, vencendo se a primeira prestação no último dia do terceiro mês posterior ao do termo da carência de pagamentos e as seguintes em igual dia dos trimestres subsequentes;

v) Remuneração – Sem juros”.

7. O plano de insolvência veio a ser aprovado com os votos favoráveis dos credores V (…), B (…) e C (…)tendo obtido o voto contra da credora A (…), S.A.


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IV.

Analisemos, então, as questões suscitadas.

Conforme resulta do disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE[1], além de dever recusar oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores “…no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”, o juiz deverá ainda recusar a homologação “…se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, desde que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:

a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;

b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar”.

No caso que analisamos, o juiz recusou a homologação do plano – ao abrigo do disposto no citado artigo 216º, nº 1, alínea a) – por tal lhe ter sido solicitado pela credora A (…), S.A. e por ter considerado que a situação dessa credora ao abrigo do plano era previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

E a primeira questão que se coloca no presente recurso – por ter sido suscitada pelo Apelante E (…) – consiste em saber se o requerimento formulado pela aludida credora (requerimento em que solicitava a não homologação do plano ao abrigo da disposição legal supra citada) foi apresentado em tempo oportuno, sustentando o referido credor que, nos termos do artigo 17º-F, nº 5, tal requerimento deveria ser apresentado no prazo de 10 dias após a aprovação do plano, por ser esse o prazo estabelecido na lei para que o Tribunal decida pela homologação ou não do plano, o que não aconteceu.

Antes de mais, cabe dizer que o citado artigo 17º-F corresponde a norma inserida no regime referente ao processo especial de revitalização e que, como tal, não é aplicável à situação dos autos.

O regime jurídico estabelecido no CIRE relativamente ao plano de insolvência – é esse o regime aqui aplicável – não contém qualquer norma onde se fixe, de modo expresso, o prazo dentro do qual deve ser solicitada ao juiz a não homologação do plano.  

Determina, contudo, o artigo 214º do citado diploma que “A sentença de homologação do plano de insolvência só pode ser proferida decorridos pelo menos 10 dias sobre a data da respectiva aprovação, ou, tendo o plano sido objecto de alterações na própria assembleia, sobre a data da publicação da deliberação”. Ora, esta disposição legal – vedando a possibilidade de ser proferida decisão acerca da homologação (ou não) do plano antes do decurso do prazo nela assinalado – visa apenas dar a oportunidade aos interessados de exercer a faculdade que lhes é concedida pelo artigo 216º, requerendo, com os fundamentos aí invocados, a recusa de homologação do plano. Importa notar que, na falta de disposição expressa sobre essa matéria, o prazo para o exercício dessa faculdade seria o prazo geral de dez dias previsto no artigo 149º, nº 1, do CPC (aplicável por força do artigo 17º, nº 1, do CIRE) e, portanto, o que está subjacente ao citado artigo 214º é apenas a necessidade de respeitar o prazo de que as partes dispõem para requerer a não homologação do plano, articulando esse prazo com o momento em que deve ser proferida a decisão sobre tal homologação[2].

Concluimos, portanto, que o prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 216º, nº 1, há-de coincidir com o prazo previsto no artigo 214º (dentro do qual a sentença de homologação do plano não pode ser proferida) e, portanto, será o prazo de 10 dias a contar da data da aprovação do plano ou, caso o plano tenha sido objecto de alterações na própria assembleia, o prazo de dez dias a contar da publicação da deliberação.

    Ora, no caso sub judice, o plano havia sido alterado em sede de assembleia, tendo sido proferido despacho – em 11/09/2018 – onde se determinou a publicação da deliberação de aprovação do plano e onde se determinou que os autos aguardassem pelo menos 10 dias sobre a data da publicação da deliberação, de harmonia com o disposto no artigo 214º, do CIRE.

É certo, portanto, que – em função deste despacho – o prazo de que os interessados dispunham para exercer a faculdade prevista no citado artigo 216º era o prazo de dez dias a contar da publicação da deliberação (prazo durante o qual a decisão não seria proferida – nos termos do referido despacho e nos termos do artigo 214º – com vista a viabilizar a possibilidade de reacção dos interessados).

Assim e uma vez que tal publicação foi efectuada em 13/09/2018, aquela faculdade poderia ser exercida até 24/09/2018 (uma vez que o dia 23/09 foi Domingo), impondo-se, por isso, concluir que o requerimento da credora (...) , S.A. – apresentado em 30/08/2018 – é tempestivo.

Improcede, portanto, o recurso no que toca a esta questão.

Impõe-se agora saber se estavam (ou não) reunidos os pressupostos necessários para recusar a homologação do plano.

A decisão recorrida, deferindo o pedido da credora A (…)S.A., recusou a homologação do plano, ao abrigo do citado artigo 216º, nº1, alínea a), considerando que a aludida credora havia demonstrado, em termos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, uma vez que, ao invés do que aconteceria ao abrigo do Plano – caso em que teria que suportar um período de carência de um ano e teria que aguardar 10 anos para ver o seu crédito pago, perdendo os juros vencidos entre a data da reclamação de créditos e o final da carência de pagamentos proposta –, é previsível que a credora em questão veja a totalidade do seu crédito satisfeito a curto prazo caso os autos prossigam para liquidação do activo, tendo em conta a natureza garantida do crédito e tendo em conta as características da Farmácia que a tornam particularmente atractiva para os compradores/investidores.

Baseou-se, para o efeito, nas seguintes considerações:

- Está em causa um estabelecimento comercial de farmácia situado numa zona central da cidade de (...) e que, como decorre do próprio Plano de Insolvência, detém uma “consistente carteira de clientes fidelizada ao longo de 30 anos”;

- Resulta da prova documental junta pela credora A (…) que dois Estabelecimentos Comerciais de Farmácias localizados em regiões próximas de (...) (concretamente, em (...) e em (...) ) foram trespassados, em 2015 e 2016, por setecentos e vinte e cinco mil euros e seiscentos e sessenta e oito mil euros;

- A localização verdadeiramente privilegiada da “Farmácia M (…)” e o seu volume de vendas e a actual conjuntura permitem concluir, com razoabilidade, ser previsível que, prosseguindo os autos para a liquidação do activo, o crédito titulado pela A (…) [garantido por penhor] seja pago na sua totalidade num curto espaço de tempo;

- O produto da venda dos bens que integram a massa insolvente (e muito particularmente, do alvará), que ocorrerá, no caso de não homologação do plano, chegará previsivelmente para satisfazer a totalidade da credora garantida num espaço de tempo bem inferior aos 10 anos previstos no Plano – o que consubstancia uma situação manifestamente mais favorável que a resultante do plano aprovado.

Os Apelantes discordam dessa decisão, sustentando, em linhas gerais, que não está demonstrada a situação prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 216º, sendo especulativa a alegação/afirmação de que a credora (...) veria o seu crédito integralmente satisfeito caso os autos prosseguissem para liquidação, sustentando ainda a Insolvente – nas suas alegações de recurso – que apenas foi apreendido o alvará de farmácia (não tendo sido apreendido o estabelecimento comercial de farmácia onde se integra esse alvará) e que tal apreensão é nula, nos termos dos artigos 280º, nº 1, e 401º, nº1, do CC, em virtude de o alvará de farmácia não ser alienável por ser uma coisa fora do comércio jurídico quando desacompanhado do estabelecimento comercial do qual faz parte.

Segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3], a verificação da situação prevista na alínea a) da norma citada pressupõe “…um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele” e continuam dizendo que “Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele”. Importará acrescentar que não se exige aqui uma prova absoluta da situação a que se reporta a norma mas apenas a demonstração de factos em função dos quais seja possível formular um juízo de plausibilidade ou probabilidade de verificação da situação que aí se encontra descrita.

Importa, portanto, fazer essa análise ou exercício intelectual.

Nos termos do plano de insolvência que foi aprovado, a credora (...) receberia a totalidade do seu crédito (ressalvando os juros vencidos entre a data da reclamação de créditos e o final do período de carência), recebendo ainda uma remuneração por via de aplicação de um spreed de 1,5% sobre a Euribor 12M até efectivo e integral pagamento sobre o valor das primeiras 107 prestações e um spreed de 1,94% sobre a mesma Euribor 12M para o valor bullet de 35% da dívida. É certo, no entanto, que, nos termos do plano, o crédito seria pago em 108 prestações mensais (as primeiras 107 de igual valor e a última correspondente a 35% do valor da dívida) após um período de carência de 12 meses e tal significa que a aludida credora apenas receberia a totalidade do que lhe é devido ao fim de 10 anos.

É indiscutível que, na ausência do plano, a aludida credora poderia receber de imediato o valor que viesse a ser realizado com a venda do alvará relativamente ao qual foi graduada em 1º lugar até ao valor de 740.377,14€ (parte do crédito que está garantido).

Mas, para que se pudesse afirmar que esta situação (decorrente da liquidação e venda dos bens) lhe era mais favorável seria necessário que existissem elementos suficientes para concluir pela probabilidade ou previsibilidade de a venda do bem em questão ser efectuada por valor que permitisse pagar à credora a totalidade do seu crédito ou, pelo menos, um valor que, apesar de inferior àquele que lhe seria pago ao abrigo do plano, fosse significativo ao ponto de o seu recebimento imediato ser manifestamente compensador quando comparado com o recebimento de um valor superior ao fim de dez anos.

Considerou a decisão recorrida que o produto da venda do alvará chegará previsivelmente para satisfazer a totalidade do crédito num espaço temporal bem inferior aos dez anos previstos no plano, mas, salvo o devido respeito, não partilhamos esse entendimento.

Com vista a demonstrar que, em termos plausíveis, o valor de venda do estabelecimento comercial de farmácia em causa nos autos se situa num valor muito superior ao valor do seu crédito, a credora (...) , S.A. juntou aos autos três escrituras de venda/trespasse de estabelecimentos de farmácia efectuados no âmbito de processos de insolvência em 2015, 2016 e 2017 pelos valores de 668.000€, 725.000€ e 1.382.000€, respectivamente.

No entanto, o facto de esses estabelecimentos terem sido vendidos por esses valores não significa, naturalmente, que tal também acontecesse com o estabelecimento dos autos, uma vez que o valor dos estabelecimentos poderá ter variações muito significativas em função das suas características e dos concretos elementos que neles estão integrados. Por outro lado, é bom que se note que os negócios a que se reportaram essas escrituras envolveram os móveis, utensílios, mercadorias e produtos existentes cuja extensão e valor desconhecemos, o que não acontecerá no caso dos autos pelas razões que passamos a explicar.

Ao contrário do que pretende a Insolvente, não caberá aqui apreciar e declarar a eventual nulidade do auto de apreensão/arrolamento pelo facto de ter procedido à apreensão/arrolamento do alvará ao invés de ter apreendido o estabelecimento comercial na sua globalidade. Essa questão não foi suscitada nos autos, não foi apreciada na decisão recorrida e extravasa o âmbito do presente recurso que apenas se prende com a homologação ou não homologação do plano de insolvência que foi aprovado.

Mas, independentemente dessa questão e ainda que se entenda – como sustenta a Apelada apoiada numa decisão que juntou aos autos por não estar publicada e outra que corresponde ao Acórdão da Relação de Guimarães de 03/05/2018, proferido no processo nº 2601/14.0T8VNF-B.G1[4] – que a apreensão/arrolamento do alvará tem, na realidade, como objecto o estabelecimento comercial ao qual se reporta, importará notar que o mobiliário, equipamentos, material informático e de apoio, bem como o stock de medicamentos e produtos farmacêuticos foram arrolados autonomamente e relativamente a estes bens a credora A (…) não foi graduada para ser paga em primeiro lugar pelo produto da respectiva venda. Significa isso que, ainda que se entenda que o alvará da farmácia corresponde ao estabelecimento comercial de farmácia, o estabelecimento a ter em conta para efeitos de apurar o valor da respectiva venda relativamente ao qual a credora A (…) foi graduada para ser paga em 1º lugar seria um estabelecimento despojado de quaisquer mobiliários, equipamentos e stocks (porque relativamente ao valor de venda destes bens a aludida credora não foi graduada em primeiro lugar), circunstância que diminui consideravelmente o seu valor (note-se que, conforme resulta do auto de arrolamento, estes bens foram avaliados em valor superior a 100.000,00€ numa perspectiva de “continuidade no local incorporado no conceito da unidade produtiva como um todo funcional” e tal significa que, considerando o estabelecimento na sua globalidade, aqueles bens representariam cerca de 100.000,00€ do respectivo valor). Ora, nestas circunstâncias, a realidade que importa considerar nos autos não é semelhante à realidade emergente das escrituras que foram juntas aos autos onde os estabelecimentos foram vendidos com os móveis, utensílios, mercadorias e produtos, não sendo, por isso, expectável que o valor de venda do estabelecimento que vai reverter a favor da credora A(…) (que corresponde, como vimos, ao valor de venda de um estabelecimento sem quaisquer móveis, equipamentos e stocks) se aproxime dos valores de venda dos estabelecimentos a que se reportam aquelas escrituras. Refira-se, além do mais, que, ainda que se diga no plano – como se afirma na decisão recorrida – que o estabelecimento em causa tem uma “consistente carteira de clientes fidelizada ao longo de 30 anos”, também ali se diz que, além da diminuição da população residente, houve um aumento de concorrência pelas deslocalização de outras duas farmácias para a cidade de (...) que obriga à partilha da quota de mercado e estas circunstâncias não deixarão de influenciar, em termos negativos, o respectivo valor de venda. Importa ainda notar que o valor apurado com a venda do estabelecimento não reverteria na totalidade a favor da aludida credora uma vez que, em primeiro lugar, teriam que ser pagas as dívidas da massa insolvente.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que não há elementos bastantes para concluir pela probabilidade ou previsibilidade de a liquidação/venda dos bens da Insolvente permitir pagar à A(…) a totalidade ou a quase totalidade do seu crédito e, nessas circunstâncias, não dispomos de bases reais que nos permitam antever ou considerar como previsível que a situação da aludida credora ao abrigo do plano aprovado (onde vai receber – ainda que só ao fim de dez anos – a totalidade do seu crédito, com excepção de uma parte dos juros, acrescido de remuneração e com manutenção das garantias até efectivo e integral cumprimento do plano) seja menos favorável do que a situação em que ficaria na ausência desse plano e caso o processo prosseguisse para a liquidação dos bens.

O que sabemos é que, ao abrigo do plano, a aludida credora irá receber a totalidade do crédito ainda que de forma faseada, ao longo de 9 anos e após um ano de carência, acrescido de remuneração e com manutenção das garantias; na ausência de plano e mediante a liquidação dos bens, iria receber aquilo que lhe coubesse (em função do valor da venda e da graduação de créditos) em prazo que se perspectiva bem mais reduzido, mas, em contrapartida, não há qualquer garantia e tão pouco podemos ter como previsível que recebesse um valor que se aproximasse daquele que irá receber ao abrigo do plano.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que, perante os factos que resultam dos autos, não será possível afirmar que a situação da credora A (…)ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano e, nessa medida, a homologação do plano não poderá ser recusada com fundamento no disposto no artigo 216º, nº1, alínea a).

A credora A (…), S.A. havia também requerido a não homologação do Plano de Insolvência por violação, não negligenciável, de normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos do artigo 215.º do CIRE, questão que não chegou a ser apreciada pela decisão recorrida uma vez que recusou a homologação do plano ao abrigo do disposto no artigo 216º, nº 1, a).

Perante a procedência dos fundamentos dos recursos que foram interpostos, importa agora analisar a questão de saber se deve ser recusada a homologação do plano com fundamento do disposto no citado artigo 215º, uma vez que a Apelada veio ampliar o objecto do recurso requerendo a apreciação dessa questão.

Em conformidade com o disposto no artigo 215º, “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”.

As questões que sobre esta matéria são suscitadas pela Apelada (em ampliação do objecto do recurso) prendem-se com o ponto III da proposta de regularização do passivo constante do plano de insolvência que tem o seguinte teor:

III – Credores comuns

i) Carência – Estabelecimento de um período de carência de 12 meses no pagamento de capital, com início no primeiro dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente plano;

ii) Juros – Perdão integral de juros vencidos e vincendos;

iii) Capital – Perdão incondicional postecipado de 90% do capital em dívida (1.432.895,00 Euros), o qual ocorrerá na condição do integral pagamento do plano previsto infra em iv). O perdão aqui previsto, quando ocorrer (ano 10) passará a integral o capital social que, nessa data, será aumentado para 1.482.895,00 Euros).

iv) Pagamento – Pagamento dos 10% do capital em dívida (159.210,56 Euros) em 36 prestações iguais, trimestrais e, sucessivas de 4.422,52 Euros, cada uma, vencendo se a primeira prestação no último dia do terceiro mês posterior ao do termo da carência de pagamentos e as seguintes em igual dia dos trimestres subsequentes;

v) Remuneração – Sem juros”.

Diz a Apelada que, confrontando a redacção do Plano de Insolvência com os esclarecimentos prestados em sede de Assembleia de Credores, não se alcançam quais serão as medidas de plano de pagamentos (se é que existem) a aplicar aos créditos comuns não titulados pelo Credor B (…) S.A., Sociedade Aberta e/ ou pelo Credor C (…). Nessas circunstâncias – diz a Apelante –, se era intenção da Insolvente contemplar o perdão de dívida e posterior conversão de créditos em capital para todos os credores com créditos de natureza comum (como parece resultar do Plano), isso significa que a implementação do mesmo determinará a violação, não negligenciável, de normais aplicáveis ao conteúdo do Plano, dado que, à excepção dos Credores B (…)., C (…)os demais credores comuns não aceitaram, de forma expressa, a conversão do seu crédito em capital, nem votaram favoravelmente no Plano, conforme é exigido pelos artigos 192.º n.º 2 e 202.º n.º 2 do CIRE; se, pelo contrário, era intenção da Insolvente contemplar o perdão de dívida e posterior conversão de créditos em capital apenas para o Credor B (…).,e para o Credor C (…) (conforme se poderá entender em face do esclarecimento prestado em sede de Assembleia de Credores de dia 12.07.2018), significa isto que os demais credores comuns foram excluídos do Plano de Insolvência pelo que a implementação do mesmo determinará a violação do princípio da igualdade dos credores previsto no artigo 194.º do CIRE e bem assim a violação do disposto no artigo 195.º n.º 1 do CIRE.

Refira-se, desde já, que não tem fundamento a dúvida suscitada pela Apelada relativamente às medidas do plano de pagamentos a aplicar aos créditos comuns não titulados pelo Credor B (…) e/ ou pelo Credor C (…)

Com efeito, o único credor comum relativamente ao qual se estabeleceu um regime específico foi a C (…)cujo crédito decorre de um contrato de locação financeira, nada sugerindo a ideia de que o ponto III não se reporte a todos os demais credores comuns e que apenas se reporte ao B (…)., e C (…)O citado ponto reporta-se genericamente aos credores comuns – sem fazer qualquer distinção – e, portanto, ele dirige-se, naturalmente, a todos os credores comuns em relação aos quais não tenha sido previsto um regime diferente. As dúvidas que possam ter assaltado a Apelada em função dos esclarecimentos prestados na Assembleia de Credores não encontram qualquer apoio no plano que indica claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência e que, como tal, não viola o disposto no artigo 195º, nº 1, do CIRE.

Nestas circunstâncias, é claro que os demais credores comuns não foram excluídos do Plano de Insolvência, não estando, por isso, configurada a violação do princípio da igualdade dos credores – consagrada no artigo 194.º - que, com esse fundamento, era invocada pela Apelada.

Assim e dando como assente que o citado ponto III se dirige a todos os credores comuns – com excepção do C (…) relativamente ao qual foi previsto um regime diferente – apenas se impõe apreciar a questão de saber se ocorre violação do disposto no artigo 202º, nº 2, do CIRE em virtude os credores comuns – com excepção do B (…) e C (…) – não terem aceitado a conversão do seu crédito em capital que é prevista no plano.

Dispõe efectivamente o citado artigo 202º, nº 2, que “A dação de bens em pagamento dos créditos sobre a insolvência, a conversão destes em capital ou a transmissão das correspondentes dívidas com efeitos liberatórios para o antigo devedor depende da anuência dos titulares dos créditos em causa, prestada por escrito, aplicando-se o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 194.º”.

Assim e não ocorrendo a situação prevista no artigo 203º, a conversão de créditos em capital da Insolvente estava efectivamente dependente do consentimento dos titulares dos créditos em questão (prestado por escrito ou prestado tacitamente por via da emissão de voto favorável à aprovação do plano – cfr. artigo 194º, nº 2).

Ora, os credores comuns (…). não deram o seu consentimento à conversão em capital de uma parte dos seus créditos e tão pouco o fizeram de forma tácita nos termos previstos na lei uma vez que não votaram favoravelmente o plano (nem sequer estiveram presentes na assembleia de credores aquando da realização da votação).

Nessas circunstâncias, o plano violava, efectivamente, o disposto no citado artigo 202º, nº 2 e o que importa agora saber é se a violação da norma citada corresponde a violação não negligenciável que, nos termos do citado artigo 215º, deva conduzir à recusa oficiosa de homologação do plano.

A violação de regras procedimentais corresponde a um vício de natureza formal consubstanciado na violação de uma regra ou norma que regula o formalismo que deve ser observado no processo e as formalidades a que deve obedecer o plano de recuperação/vitalização apresentado. Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[5], as normas procedimentais são “…todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado”. A violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano corresponderá, por seu turno, a um vício de natureza substantiva ou material consubstanciado na violação de uma regra, norma ou princípio que regula directamente o conteúdo do plano, incluindo – como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[6] - não só as que respeitam à parte dispositiva do plano, mas também “…aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”.

No caso, estamos perante a violação de uma norma que se reporta ao conteúdo do plano e a violação dessas normas considera-se não negligenciável quando ela acarrete um resultado que a lei não permite em virtude de o conteúdo do plano violar disposições legais de carácter imperativo ou quando a violação se reporta a regras ou normas legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere e sempre que a violação seja susceptível de afectar/prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de protecção legal[7].

A violação não negligenciável corresponderá, portanto, a uma violação grave das normas legais aplicáveis; conforme refere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[8], “violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano”.

Conforme se referiu, o plano em causa nos autos contempla a conversão em capital de uma parte significativa dos créditos comuns (90% do capital em dívida) sem que tivesse sido obtido o consentimento (expresso ou tácito) de todos os credores afectados por essa medida e, portanto, viola, clara e frontalmente, o disposto no citado artigo 202º.

Pensamos, no entanto, que, nas circunstâncias concretas do caso e com a devida ponderação dos interesses em jogo, essa violação deve ser considerada como negligenciável, não devendo obstar à homologação do plano de insolvência.

Tal como referimos, os credores comuns (com excepção da C (…) e B (…)) não consentiram na conversão dos seus créditos em capital (não o fizeram de modo expresso e não o fizeram de modo tácito pela forma prevista na lei uma vez que não votaram a favor da aprovação do plano). Mas, em todo o caso, também não manifestaram qualquer oposição a tal aprovação, sendo certo que, apesar de o plano – já alterado – lhes ter sido notificado, não compareceram à assembleia de credores e nada disseram na sequência da deliberação que aprovou o plano (foi a credora A (…) – que não é afectada pela medida – que veio suscitar a questão com vista a evitar a homologação do plano). É certo que essa conduta não releva, nos termos da lei, como anuência tácita à medida em questão (razão pela qual se concluiu que existiu violação da norma que exige tal anuência), mas, em todo o caso, essa conduta passiva não deixa de revelar que os aludidos credores estarão dispostos a aceitar a medida em questão e que não se sentem por ela afectados/prejudicados.

E, em bom rigor, tal medida não terá, à partida, grande aptidão para afectar os interesses desses credores e, de algum modo, até os beneficia.

Na verdade, falamos de um conjunto de sete credores comuns cujos créditos perfazem no seu conjunto um valor de cerca de 53.0000,00€, num universo de créditos reconhecidos no valor de 2.746.488,14€ (desse valor 740.377,17€ corresponde a crédito garantido e 58.703,59€ corresponde a crédito privilegiado), sendo que o maior desses créditos é de 14.728,16€. Tendo em conta os bens apreendidos (o alvará de farmácia e os bens, equipamentos e stocks), os aludidos credores não terão, naturalmente, grandes expectativas de recuperar um valor significativo dos seus créditos caso o plano de insolvência não seja homologado e o processo venha a prosseguir para liquidação dos bens. O plano de insolvência garante-lhes, apesar de tudo, o pagamento de 10% do crédito em 36 prestações mensais após carência de 12 meses (valor que não se pode ter como garantido com a liquidação dos bens) e ainda lhes dá alguma compensação (que não obteriam com a liquidação dos bens) uma vez que o valor restante do crédito não fica inteiramente perdido, sendo convertido em capital social.

Nestas circunstâncias, pensamos que, além de permitir a recuperação da empresa, a situação resultante do plano de insolvência para os aludidos credores se perspectiva, apesar de tudo, mais favorável do que a situação que para eles resultaria da liquidação dos bens, não se apresentando, por isso, como susceptível de afectar e prejudicar, em termos reais, os aludidos credores no confronto com a situação em que ficariam se o plano não fosse homologado. Assim e porque os aludidos credores nunca se manifestaram expressamente contra a aprovação do plano, entendemos que a falta da sua anuência expressa (ou tácita por via da emissão de voto favorável à aprovação do plano nos termos exigidos por lei) à conversão de parte dos seus créditos em capital social corresponderá a uma violação negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano que, como tal, não deve conduzir à recusa da sua homologação.


/////

V.
Pelo exposto, concede-se provimento aos recursos e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e homologa-se o plano de insolvência que foi aprovado pelos credores.
Custas a cargo da Apelada A (…)
Notifique.

  Coimbra, 2019/01/22

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Ferreira Lopes

Freitas Neto


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, págs. 709 e 710 e Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 268.
[3] Ob. cit., págs.718 e 719.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Ob. cit.,  pág. 713.
[6] Ob. cit., pág. 713.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, págs. 713 e 714.
[8] Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 266.