Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
869/09.3TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMODATO
DIREITO DE RETENÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.216, 473, 755, 759, 1129, 1135, 1137, 1138, 1273 CC
Sumário: 1. O comodatário goza do direito de retenção sobre a coisa que lhe tiver sido entregue em consequência do respectivo contrato, pelo crédito dele resultante.

2. Sendo emprestada para uso determinado, a coisa deve ser restituída logo que o uso finde, independentemente de interpelação; e, se não for convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.

3. Até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações, pelo que, não fixado prazo para a restituição e exigida pelo comodante a entrega da coisa, o comodatário, pese embora o eventual exercício do direito de retenção, é obrigado a não usar dela sem consentimento daquele, excepto se o uso for indispensável à conservação da coisa.

4. Ao comodatário, munido do direito de retenção, se é lícito reter o bem objecto do contrato, já não poderá gozar e tirar dele gratuitamente todas as utilidades que pode proporcionar, enquanto não estiver pago do seu crédito, sob pena de vir a indemnizar o comodante pelo correspondente benefício segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. C (…) e mulher M (…) intentaram, no tribunal Judicial da Covilhã, a presente acção declarativa com processo sumário contra P (…) e marido J (…) pedindo a sua condenação a reconhecerem que os AA. são donos e legítimos possuidores da casa que identificam no art.º 1º da petição inicial (p. i.) e a desocuparem a mesma, entregando-a aos AA., bem como no pagamento aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, do montante de € 50 por cada dia de atraso na entrega da casa (a contar da data da citação até à entrega da casa) e de uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, por todos os danos decorrentes da deterioração da casa, e impedimento de utilização por parte dos AA..

Alegam, em síntese, que são donos da referida casa, tendo permitido que fosse usada pelos RR. como casa de morada de família, sem qualquer contrapartida, desde o início de 2000; pretendem reaver a casa mas os RR. recusam-se a entregá-la e impedem os AA. de a utilizar, o que lhes tem causado prejuízos.

A Ré contestou a acção e apresentou reconvenção, alegando, em resumo, que usa a casa por empréstimo, desde 22.12.1990, tendo nela realizado, juntamente com o marido, diversas obras de construção civil e pelas quais pretende ser ressarcida. Em reconvenção, descreve tais obras e peticiona que lhe seja reconhecido o direito de retenção do imóvel enquanto não lhe for pago, pelos AA., o valor das mesmas, a liquidar em execução de sentença.

Em resposta, os AA. aduziram que as obras em causa foram realizadas, muitas delas sem autorização, como contrapartida ou compensação pela utilização da casa sem retribuição, não dando assim lugar ao pretendido pagamento.

Afirmada a regularidade da instância e seleccionada a matéria assente e a factualidade controvertida, sem reparo, realizou-se depois a audiência de discussão e julgamento, decidindo-se a matéria de facto por despacho de fls. 116.

Na sentença, o tribunal recorrido julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção procedente e, em consequência, decidiu condenar os RR. a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores da casa identificada nos autos, condenando-os ainda a entregar aos autores a dita casa após o pagamento do valor das obras referidas nos pontos 8. a 15. da matéria julgada provada e a pagar a sanção pecuniária compulsória de € 25 por cada dia de atraso na entrega da casa, a partir do momento em que ocorra o referido pagamento, absolvendo-os do demais peticionado, sendo os AA. condenados a pagar aos réus o valor das obras referidas nos pontos 8. a 15. da matéria julgada provada, que se liquidar em execução de sentença e a reconhecer à Ré o direito de retenção sobre a casa até à realização desse pagamento.

            Inconformados com a sentença, os AA. interpuseram recurso de apelação[1] formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - Nas respostas aos quesitos 16, 17 e 18, o Mm.º Juiz fez errada avaliação da prova testemunhal, sendo que a “fundamentação” leva a concluir pela resposta contrária - o bom relacionamento ao longo de mais de 20 anos prova que os AA. não se opuseram às obras que beneficiavam a casa, mas seriam forma de compensação ou contrapartida pela ausência de qualquer pagamento.

            2ª - Todas as testemunhas, e não foi posta em causa a credibilidade de qualquer delas, referem que as obras foram feitas ao longo dos anos, pois AA. e RR. sempre se deram bem, tendo uns (AA.) emprestado a casa, sem contrapartida e outros (RR.) utilizado a casa e fazendo as obras de acordo com a sua utilização e necessidades, como troca da utilização gratuita.

            3ª - Deveria ter-se respondido que existem obras autorizadas e outras que não foram autorizadas, e até, o caso da garagem, que foram contra a vontade e mesmo com a oposição dos AA. - de tais depoimentos resulta claro a destrinça entre obras autorizadas, outras consentidas, e até uma (garagem) com oposição expressa, sendo as autorizadas e consentidas como contrapartida da utilização sem qualquer pagamento ao longo de anos -, respondendo-se aos quesitos 16 e 17 no sentido de que todas as obras autorizadas foram feitas como compensação da utilização da casa e, quanto ao quesito 18, que a garagem não foi autorizada e foi feita com oposição expressa dos AA..

4ª - Um “acordo” não necessita de ser escrito, bastando estar reconhecido tacitamente, não podendo esquecer-se que AA. e RR. são pais e filhos, que ao longo de anos mantiveram bom relacionamento e assim foram toleradas, aceites e até feitas obras pelos RR., pois, da parte destes, não havia também qualquer contrapartida pela utilização do bem.

            5ª - Existiu erro na apreciação da prova quanto às respostas aos quesitos 16, 17 e 18, devendo tais depoimentos ser interpretados no sentido contrário, pois as razões de fundamentação apontam no sentido oposto - devem ser modificadas as respostas, nos termos do art.º 712°, n.°s 1 e 2, do CPC, com as consequências que daí advêm para a decisão, absolvendo os AA. do pedido reconvencional.

            6ª - Os RR. foram absolvidos do pedido de condenação em indemnização, não quantificada e a liquidar em execução de sentença, por se entender que não resultou provado qualquer dano que fundamente a remessa para liquidação. Ao provarem-se os pontos 17 e 18, ou seja, que os RR. foram avisados para abrir mão da casa e se recusam a fazê-lo, assim se mantendo, na casa, sem qualquer pagamento, tal factualidade traduz-se num dano, ainda não quantificado, mas bem real e continuado para os AA. que não podem dispor do que lhes pertence.

            7ª - Do relatório pericial resulta que a contrapartida da utilização da casa se cifra em € 200 mensais, o que se traduz em igual empobrecimento dos AA. e corresponde a igual enriquecimento para os RR..

            8ª - Os RR. ao manterem tal bem, nada pagando, lesam pelo menos no valor apurado (ou noutro a quantificar) o património dos AA.[2], sendo que não têm título que legitime tal não pagamento.

            9ª - O dano existe e foi provisoriamente quantificado, no que respeita à utilização, mas outros danos podem ocorrer, decorrentes do uso, como a deterioração, desvalorização, do bem, etc., tudo danos existentes (uso sem contrapartida) e outros, que só após a entrega se podem avaliar e quantificar.

            10ª - É manifesto que se fez prova bastante para concluir pela existência do dano, que permitia a condenação dos RR. e a futura liquidação e que se justifica até para o valor de tais danos poder ser eventualmente compensado com o valor a pagar pelas obras feitas (na perspectiva da decisão recorrida) - existem elementos bastantes para a sua fundamentação e só assim se equivalem as partes, permitindo uma eventual compensação, não se privilegiando uns (RR.) em detrimento dos outros (AA.).

            11ª - Entendendo-se que os RR. têm direito a indemnização, por obras, a liquidar futuramente (quando eles quiserem/direito protestativo) e não tendo os AA. direito a indemnização pelos danos decorrentes da continuação da utilização, não os podendo liquidar, permitir-se-ia, por tal meio, que os RR., usando o direito de retenção, se mantivessem indefinidamente e pelo tempo que entendessem na posse do bem sem contrapartida.

            12ª - Tal situação [condenação dos AA. com reconhecimento aos RR. do direito de retenção, a manter-se até à liquidação final] levaria à concessão aos RR. do direito de manutenção, enquanto quiserem, na casa, e sem qualquer pagamento.

            13ª - A pretensa inexistência de danos, pela conduta dos RR., e direito de retenção até à liquidação final configuram manifesto abuso de direito - colocando na única disponibilidade dos RR. a liquidação, mantendo-se o direito de retenção, enquanto a liquidação não ocorrer e entendendo-se que inexiste dano dos AA., enquanto tal situação decorrer, é manifesto que se verificam os requisitos do art.º 334º, do CC.

            14ª - Tratar-se-ia duma situação objectiva (liquidação na disponibilidade única dos RR.) e manifesta (recusa na entrega do bem), baseada no direito de retenção e violadora dos limites da boa-fé, costumes e fim social do direito em detrimento do direito de propriedade e em particular do direito à normal utilização desse bem, tanto mais que os RR. já utilizam o bem há mais de 20 anos, sem contrapartida, e assim poderiam perdurar a ocupação, alicerçados na sentença.

            15ª - Ao não condenar os RR. em indemnização a liquidar posteriormente, entendendo-se não existir dano, fez-se errada análise da matéria provada, da qual resulta que é manifesto o dano que decorre para os AA. da recusa na entrega do bem, e de qualquer modo, sempre tal situação configuraria uma situação de manifesto abuso de direito, impondo-se assim a alteração da sentença.

            A Ré contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil[3], na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8), colocam-se as seguintes questões fundamentais: a) erro na apreciação da prova; b) existência e alcance do direito de retenção; c) se e em que medida devem os AA. ser indemnizados da actuação dos RR. depois de exigida a restituição do imóvel.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) O prédio composto de edifício de cave e rés-do-chão, com a superfície coberta de 94 m2, destinada a habitação, sita no ..., em ..., que confronta do norte com caminho, sul/nascente e poente com ..., e ..., inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o artigo ..., e descrito na Conservatório do Registo Predial sob o n.º .../19910404, encontra-se aí inscrito a favor de C (…), casado com M (…) no regime de comunhão de adquiridos. (A)

b) Hás mais de 15, 20 e 30 anos, inicialmente metade e depois a outra metade, os AA., por si e pelos seus antepossuidores, estão usando como coisa sua o prédio referido em II. 1. a), à vista de todas a gente e sem estorvo ou oposição de ninguém. (B)

c) Os AA. emprestaram parte da casa à Ré mulher, em 1990/1991, para nela passar a habitar com o seu agregado familiar logo após o seu casamento. (resposta ao art.º 4º)

d) Os AA. permitiram que os RR., e toda a sua família, sem qualquer contrapartida, usassem a casa aludida em II. 1. a). (C)

e) Em relação a uma parte da casa, tal ocorre desde o início de 2000. (resposta ao art.º 1º)

f) Os RR. vêm habitando e usando a casa referida em II. 1. a), nela dormindo e tomando as refeições. (D)

g) A casa era constituída por duas fracções, com entradas independentes. (5º)

h) Os AA. autorizaram os RR. a realizarem obras que unissem ambas as fracções, tendo demolido a parede que dividia o corredor de ambas as metades da casa. (6º)

i) Após rebocaram o corredor e pintaram-no. (7º)

j) Os RR. colocaram novas telhas na zona da cozinha. (resposta aos art.ºs 8º e 9º)

k) Colocaram placas de betão na casa, substituindo o soalho deteriorado na sala e na casa de banho. (10º)

l) Colocaram louças na casa de banho e revestiram as paredes com azulejos até ao tecto e o piso com mosaicos. (11º)

m) Revestiram as paredes da cozinha com azulejos e o piso com mosaicos. (12º)

n) Os RR. colocaram duas portas de madeira na casa; duas portas de alumínio, três janelas de alumínio e uma porta de ferro. (13º)

o) Edificaram um anexo que serve de garagem ou abrigo para o seu carro. (14º)

p) Os RR. pagaram as despesas de tais obras. (resposta ao art.º 15º)

q) Os AA. avisaram verbalmente os RR. no sentido de abrirem mão da casa descrita em II. 1. a). (resposta ao art.º 2º)

r) Os RR., até à presente data, não saíram da casa. (resposta ao art.º 3º)

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            (…)

            4. Os recorrentes insurgem-se contra a sentença sob censura na parte em que absolveu os RR. do pagamento da indemnização pedida (a liquidar em execução de sentença) pelos danos decorrentes da utilização da casa, após o pedido da entrega da mesma e subsequente recusa e, ainda, na parte em que julgou procedente o pedido reconvencional, quer condenando os AA. a indemnizarem os RR. por benfeitorias feitas, quer no direito da retenção, continuando estes a habitar a casa sem título, até pagamento duma indemnização a fixar após liquidação em execução de sentença.

            Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que a posição sustentada pelos AA. merece parcial acolhimento, pelas razões a seguir expostas.

            5. Não estando em causa e nada se devendo apontar ao reconhecimento da posse e do direito de propriedade dos AA. sobre o imóvel dito em II. 1. a), avancemos para as questões de direito que permanecem controvertidas.

Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir (art.º 1129º, do CC).

É obrigação do comodatário restituir a coisa findo o contrato (art.º 1135º, alínea h), do CC).

Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida (art.º 1137º, n.º 2, do CC).

Na falta de convenção em contrário, o comodatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização (art.º 1043º, n.º 1 ex vi art.º 1137º, n.º 3, ambos do CC).

O comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé (art.º 1138º, n.º 1, do CC).

Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art.º 1273º, do CC).

Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante (art.º 216º, CC).

O comodatário goza do direito de retenção sobre a coisa que lhe tiver sido entregue em consequência do respectivo contrato, pelo crédito dele resultante (art.º 755º, n.º 1, alínea e), do CC).

Até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações (art.º 759º, n.º 3, do CC).

O credor pignoratício é obrigado a guardar e administrar como um proprietário diligente a coisa empenhada, respondendo pela sua existência e conservação; a não usar dela sem consentimento do autor do penhor, excepto se o uso for indispensável à conservação da coisa [art.º 671º, alíneas a) e b), do CC].

Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (art.º 473º, n.º 1, do CC).

6. A operação negocial levada a cabo pelas partes - cedência gratuita da utilização/gozo de um imóvel cuja restituição é pedida na acção - foi considerada como um comodato realizado entre os pais, de um lado, e a filha e o genro, do outro.

Trata-se de um contrato, de sua natureza, real, quoad constitutionem: para que haja comodato, torna-se essencial a entrega da coisa, móvel ou imóvel, a fim de que a pessoa a quem o seu gozo é cedido se possa servir dela, com a obrigação de a restituir, mas a eficácia do contrato é puramente obrigacional.

A precariedade do uso facultado ao comodatário transparece claramente, quer nas obrigações específicas do comodatário (art.º 1135º, do CC), quer no regime estabelecido para a restituição da coisa (art.º 1137º, do CC). Sendo emprestada para uso determinado, a coisa deve ser restituída logo que o uso finde, independentemente de interpelação; e, se não for convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida – em qualquer dos casos, aplicar-se-á o disposto no art.º 1043º, do CC (ex vi do n.º 3 do art.º 1137º, do CC)[4].

Uma terceira coordenada que caracteriza o módulo legal do comodato é o da gratuitidade do contrato (art.º 1129º).[5]

A circunstância de o comodato envolver uma atribuição gratuita para o comodatário não justifica que o comodante não deva reembolsar as despesas que a outra parte tenha feito com a coisa, antes de lhe ser restituída.[6]

Quem, como o comodatário, detém uma coisa alheia e possui “um crédito contra o seu credor por despesas com a dita coisa”, é razoável que tenha a faculdade de a reter enquanto este crédito não for satisfeito, sendo que, em regra, tal crédito resulta de despesas com benfeitorias necessárias ou úteis, não sendo justo que o autor dessas despesas, com as quais se conservou ou aumentou o valor da coisa, se veja obrigado a entregar a coisa e a concorrer com os demais credores para se pagar pelo preço dela – dar-se-ia locupletamento à custa alheia quando tal se admitisse.[7]

Com o estatuído na alínea e) do n.º 1 do art.º 755º do CC, o legislador teve especialmente em vista os créditos do comodatário provenientes da execução do contrato, que são por via de regra os originados por despesas com benfeitorias necessárias ou úteis na coisa emprestada. E decorrendo do mencionado normativo o propósito de assegurar ao comodatário o benefício da retenção em relação aos gastos que ele tenha tido com benfeitorias na coisa, é porque o comodatário se não equipara, no tocante à cobrança dos créditos por benfeitorias, ao possuidor de má fé.

Ao equiparar o comodatário, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé [a equiparação justifica-se, pois ele sabe que não é proprietário da coisa[8]], o legislador teve concretamente em mente apenas a questão do levantamento ou da perda das benfeitorias voluptuárias, já que relativamente às benfeitorias necessárias e úteis, ao direito de reembolso das despesas e ao cálculo da indemnização devida, há perfeita paridade de tratamento entre o possuidor de boa fé e o possuidor de má fé.[9]

7. Resta a questão de saber se o comodatário tem ou não, como titular do direito de retenção, a faculdade de gozar a coisa comodada.

É certo que o ius retentionis não constitui apenas uma garantia do crédito do retentor (com os poderes dimanados dos art.ºs 754º, 758º e 759º, do CC) mas funciona também como uma causa legitimadora do não cumprimento da obrigação de entrega da coisa.[10]

Contudo, isso não quer significar que ao credor, munido do direito de retenção, seja lícito, não apenas reter, mas gozar também a coisa, tirar dela gratuitamente todas as utilidades que a coisa pode proporcionar, enquanto não estiver pago do seu crédito, como decorre claramente do preceituado no art.º 759º, do CC, permitindo-se, apenas, a execução da coisa retida (como o pode fazer o credor pignoratício ou o credor hipotecário) e o pagamento sobre o valor dela com preferência sobre os demais credores - o direito de retenção constituiu um meio de coerção do cumprimento da obrigação e incorpora um direito real de garantia [o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores do devedor – art.º 759º, do CC].

Assim, tendo presente as disposições legais atrás citadas [maxime, art.ºs 671º, alíneas a) e b) e 759º, n.º 3, do CC], importa verificar se os RR./comodatários, findo o contrato e em face da obrigação de restituir, se limitaram a reter o imóvel, no legítimo exercício do direito de retenção que a lei lhes confere para pagamento da dívida exigida aos pais/sogros (por obras realizadas no prédio), ou se indevidamente continuaram e continuam a fruí-lo, fazendo dele a sua habitação ou residência normal, poupando desse modo a renda do imóvel que teriam de arrendar para satisfazer as suas necessidades de alojamento.

Ficou apurado que os AA. avisaram verbalmente os RR. no sentido de abrirem mão da casa descrita em II. 1. a) e que estes, até à presente data, não saíram da casa [cf. II. 1. alíneas q) e r)], pelo que é forçoso concluir que os RR. passaram a fruir ilicitamente o prédio.

E se os RR., com a sua descrita (e apurada) actuação, não incorreram em responsabilidade civil [visto que os AA./donos do imóvel, não tendo direito à entrega da casa enquanto não pagarem ou caucionarem o débito proveniente das benfeitorias, nenhum dano ressarcível poderão alegar], antolha-se, porém, inequívoco o seu enriquecimento sem causa, na medida da renda que já pouparam e continuarão a poupar à custa da utilização do imóvel pertencente aos AA., daí surgindo a consequente obrigação de restituir segundo as regras do enriquecimento sem causa (art.º 473º, do CC).[11]

8. Atendendo ao descrito enquadramento jurídico e à factualidade apurada, dúvidas não restam quanto a ter existido um contrato de comodato entre as partes, no desenvolvimento do qual surge o direito de retenção dos RR. sobre a casa, maxime, pelo seu crédito de despesas feitas com o imóvel [atinentes às obras aludidas em II. 1. alíneas h) a o), supra] e para garantir o seu pagamento, tal como lhes foi reconhecido na sentença sob censura - enquanto comodatários, têm direito a serem indemnizados pelo valor das benfeitorias, a determinar em execução de sentença e segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Contudo, ao contrário do propugnado na mesma sentença, assiste aos AA. o direito a que os RR. lhes restituam a importância com que injustificadamente enriqueceram e, porventura, continuem a enriquecer, na medida da renda que pouparam e venham a poupar à custa daqueles, rectius, à custa da utilização do imóvel pertencente aos demandantes [e a partir do momento em que a casa deveria ser desocupada ou (deveria) deixar de ser utilizada pelos RR., nos termos legais – momento/data não determinado em concreto mas apontando os elementos disponíveis para que não seja anterior a Abril de 2009 e, porventura, também não posterior a esse mês…], a liquidar em execução de sentença (art.º 661º, n.º 2), sem prejuízo, obviamente, do mais que possa constituir os RR. na obrigação de indemnizar (cf., sobretudo, art.ºs 1043º e 1137º, n.º 3, do CC)[12].

Relativamente ao caminho (consensual ou litigioso) e aos procedimentos adjectivos porventura a adoptar no futuro, não haverá que cuidar agora, o que se justifica tendo presente o objecto do processo e da apelação e que o eventual “encontro de valores” a efectuar e o mais que importe ainda esclarecer ou definir ficará necessariamente entregue - por ora e no tempo próximo futuro -, ao arbítrio e à vontade das partes, ainda que “limitados”/conformados pelo regime jurídico vigente…

Mostra-se desta forma prejudicado ou insubsistente o demais invocado nas “conclusões” da alegação recurso, assim parcialmente atendidas.


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            III. Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando nessa medida a sentença recorrida, condenam-se ainda os RR. a pagar aos AA. a importância com que injustificadamente enriqueceram, na medida da renda que pouparam e venham a poupar em razão da utilização do imóvel em causa, conforme se refere em II. 8, supra, a liquidar em execução de sentença, mantendo-se no mais o decidido.

Custas da acção em partes iguais e as da reconvenção a cargo dos AA., sendo as do recurso na proporção de 3/5 e 2/5, por AA. e Ré contestante, respectivamente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que gozam.

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Fonte Ramos ( Relator )
Carlos Querido
Pedro Martins


[1] Devidamente admitido pelo despacho de fls. 163 e seguintes, sufragando-se o aí explanado quanto à “irregularidade” cometida pelos AA./recorrentes na sua formalização.
[2] Rectifica-se lapso manifesto existente no ponto 14 das “conclusões” da alegação/fls. 150.
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[4] A restituição deve efectuar-se, mesmo que a necessidade do comodatário se prolongue para além do prazo estipulado ou que a coisa não seja necessária ao comodante. Dadas as razões de cortesia ou amizade em que o contrato se funda, só o comodante será juiz de decidir sobre a continuação ou prorrogação dele – Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 752.
[5] Vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, ob e vol. cit., pág. 741 e Antunes Varela, Anotação ao acórdão do STJ de 07.10.1982, in RLJ, 119º, págs. 185 e seguinte, que seguiremos de perto na subsequente exposição.
[6] Era essa a orientação que as Ordenações (Livro IV, Tít. 53º, parágrafo 1º) consagravam e que o Código de 1867 havia abandonado [art.º 1521º, n.º 1: “O comodante é obrigado a indemnizar o comodatário das despesas extraordinárias e inevitáveis que ele fizer com a coisa emprestada, sem que por isso o dito comodatário goze do direito de retenção”].
    Quanto à justificação apresentada para o seu acolhimento no Código Civil de 1966, vide Vaz Serra, Direito de Retenção, BMJ, 65º, págs. 156 e seguinte, “nota (92)”.
[7] Vide Vaz Serra, estudo citado, pág. 153.
[8] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob e vol. cit., pág. 757.
[9] Vide Antunes Varela, RLJ, 119º, págs. 203 e seguinte.
[10] Cf. o citado acórdão do STJ de 07.10.1982, in RLJ, 119º, pág. 184.

[11] Vide Antunes Varela, RLJ, 119º, págs. 204 e seguinte.

[12] No entanto, quanto a estes últimos eventuais danos patrimoniais (por concretizar e quantificar - caso existam e sejam atendíveis), face aos elementos dos autos, afigura-se correcto o expendido na sentença recorrida:

    “Do cotejo do disposto nos arts. 661º, n.º 2 do CPC e 565º e 566º, n.º 3 do CC, resulta que é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove a sua existência, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem recorrendo à equidade.

    Trata-se de situação em que, estando provada a verificação do dano, apenas não existem elementos de facto para operar a sua quantificação, quer por estes factos ainda não serem conhecidos ou estarem em evolução no momento em que a acção é instaurada ou no momento da decisão, quer por na acção declarativa não se ter logrado fazer a prova do quantitativo desses mesmos danos.

    Ora, da matéria de facto provada nestes autos, não resulta, pois, a existência de quaisquer danos que fundamentem a remessa da sua quantificação para liquidação em execução de sentença.”