Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
93/20.4GAMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
DOLO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 287.º DO CPP
Sumário: I – Prescindir da alegação do elemento emocional do dolo eventual omissivo num RAI é despir de rigor uma peça processual fundamental no sentido da definição do âmbito e do objecto do processo a partir dela.

II – É necessário, pois, que do texto de um Requerimento de Abertura da Instrução, após um arquivamento do MP, constem factos de onde se retire – de forma completa e não sincopada (com apelo a perigosas generalizações ou indesejáveis analogias ou presunções) - este dolo omissivo eventual, sem margem para dúvidas.

III – É essencial que fique escrito no RAI que os eventuais agentes dos crimes em causa tinham consciência da ilicitude dos seus actos e do carácter proibido das suas condutas omissivas (descrevendo até o que lhes era suposto fazer para prevenir o resultado danoso letal ocorrido).

IV – O RAI que não descreva aqueles elementos deve ser totalmente rejeitado, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade da instrução.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

           

1. No processo n.º 93/20.4GAMDA (Instrução), do Juízo de Competência Genérica de Vila Nova de Foz Côa, recorre a assistente M., melhor identificada nos autos, do despacho do Mmº Juiz, datado de 22/6/2021, que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução – doravante RAI - que havia apresentado na sequência de um despacho de arquivamento de inquérito por parte do Ministério Público.

           

2. A assistente, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):

a. «O presente recurso tem como objeto o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução com o fundamento de que “(…) o requerimento de abertura de instrução não descreve a factualidade mínima necessária para que se considere estarmos perante uma acusação, uma vez que, como se disse, inexiste factualidade suficiente atinente aos elementos do tipo subjetivo dos crimes pelos quais a assistente pretende ver os arguidos pronunciados, (…)”

b. A par dos requisitos do artigo 287º do CPP em que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente a não acusação, a indicação dos atos de instrução que pretenda levar a cabo, os meios de prova não considerados, bem como a remissão para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.

c. Resulta do requerimento de abertura de instrução da assistente, que se dá por reproduzido, que nele se referiu a assistente ao inquérito e sua tramitação (nomeadamente quanto à arguida L.) expõe os factos e o direito (as normas legais aplicáveis, doutrina e jurisprudência), demonstrando a sua discordância com o arquivamento e indicou os actos e meios de prova (alias estes reiterados em requerimento posterior por via de despacho judicial), tal qual o dita o artigo 287 e 283 do CPP.

d. Assim, narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção dos arguidos nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 287º, do CPP.

e. Ou seja, a assistente narrou que tomou conhecimento que no dia 13 de outubro de 2020, cerca das 11.30/12 horas, dois canídeos propriedade de J., arguido nos presentes autos e por este entregues aos cuidados, vigilância e guarda da sua sogra, L., entraram na propriedade (prédio urbano) da aqui ofendida/assistente, M., sita na (…), (…), a qual está vedada, matando e levando consigo dois felinos (gatos) fêmeas (progenitora e cria de 4 meses), propriedade da ofendida que se encontravam no interior do seu imóvel; A ofendida/assistente deparou-se como os dois canídeos (de caça) na sua propriedade (mais concretamente a saírem da marquise aberta para o jardim) e um deles, levava um dos felinos na boca; Que os canídeos são animais de caça; Os dois canídeos, assim que viram a ofendida/assistente, saíram da marquise e jardim, um saltou por um muro que tem cerca de 2,50 metros de altura e outro saiu pela parede que dá acesso a uma ribeira, ainda no seu imóvel; Os canídeos, levavam a “presa” para entregá-la ao dono, cuja casa (não do dono, mas da sogra deste, a denunciada L., local de onde os cães foram soltos) fica a cerca de 1 km da propriedade da ofendida; Quando a ofendida/assistente se aproximou do portão da propriedade da denunciada L., viu os canídeos em questão na propriedade da denunciada, que continuavam soltos, e que naquele momento estavam-se em “posição de guarda” da felina- cria, já morta; A ofendida/assistente reportou o sucedido à L., que com indiferença viu o relatado; Nos dias seguintes, veio a ofendida/assistente a saber que também a felina-progenitora (que estava desaparecida), tinha sido morta e levada pelos canídeos; O dono dos canídeos reconhece ser legítimo proprietário dos mesmos, e que foram esses quem invadiram a propriedade da ofendida, matando e levando os dois felinos da propriedade da ofendida; Mesmo depois dos acontecimentos descritos, os cães de caça em causa continuaram a ser soltos e como tal andarem entregues a si próprios pela freguesia;  No dia 30 de dezembro, a ofendida/assistente foi novamente brindada com a presença dos mesmos canídeos na sua casa; Os canídeos, de caça, são usualmente vistos a vaguear na povoação, soltos, sem vigilância, portanto no exterior da propriedade do arguido e da denunciada, sendo conduta reiterada e habitual, bem o sabendo os mesmos, principalmente que estes podem e causam danos a outrem, conformando-se com isto e nada fazendo para o impedirem, antes sendo a sua conduta continua e não se importando com as consequências da mesma, mesmo após o sucedido, a deslocação da GNR e a existência e audição em inquérito.

f. Concluiu então a ofendida/assistente que, por todos os factos expostos os arguidos actuaram com dolo, agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

g. Não estamos perante insuficiente factualidade, sabendo através do requerimento de Abertura de Instrução quem, quando e de que forma foram praticados determinados factos e que esses factos constituem crimes, agindo os arguidos com dolo.

h. Atento o requerimento de abertura de instrução, que deve ser considerado no seu todo, mas para explicitação,

 Os factos estão narrados em 3, 4, 5, 6, 7, 9 A 16, 17 A 26, 38, 49;

 O elemento subjetivo do ilícito em 3,4, 6, 7, 9, 17, 20, 21, 25, 29, 33,35, 37, 38, 43, 45, 47, 48 E 50;

 A discordância do inquérito e do seu arquivamento, em 3 A 8, 27 A 50

 As disposições legais aplicáveis, em 30 A 50.

i. Requereu ainda a assistentes diligências de prova e juntou prova (em 51 do requerimento de abertura de instrução)

j. Não só a recorrente descreveu os factos, como alegou quais as disposições violadas, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual a recorrente entende dever haver acusação, pelo que o Requerimento de Abertura de Instrução deveria ter sido admitido.

k. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo, ao rejeitar liminarmente o Requerimento da Assistente para Abertura da Instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos artigos 283º e 287º, do CPP.

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada o despacho recorrido e, em consequência, ser aberta instrução».

3. Respondeu o Ministério Público, sustentando que a decisão recorrida não merece censura.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal (artigo 287º, n.º 3 do CPP).

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Do requerimento de abertura de instrução da assistente M. (cf. ref. n.º 1728553)

Por requerimento com a ref. n.º 1728553 veio a assistente M. requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público em relação ao arguido J..

Nesse sentido requer que seja proferido despacho de pronúncia contra o arguido J. e contra a denunciada L. (que, entretanto, foi constituída arguida – cf. ofício com a ref. n.º 1761933) pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, os quais, no seu entender, consubstanciam a prática pelos arguidos, em autoria material e por cada um, de 1 (um) crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1 do C.P. e de 1 (um) crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo art. 387.º, n.ºs 1 e 2 do C.P..

Mais requereu que, caso o Tribunal entenda não existir ilícito penal, que julgue os factos como contraordenação ou os remeta para a entidade tida por conveniente.

Cumpre apreciar e decidir.

Preceitua o art. 286.º, n.º 1 do C.P.P. que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.», sendo que o assistente pode requerer a sua abertura, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, em conformidade com o estabelecido no art. 287.º, n.º 1, al. b) do C.P.P..

No caso de a instrução ser requerida pelo assistente, o seu requerimento, nos termos do n.º 2 do art. 287.º do C.P.P., não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, sendo lhe ainda aplicáveis as als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º do C.P.P..

Assim sendo, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento dos autos e tendo sido a assistente quem requereu a abertura da instrução, tem o seu requerimento de indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo ainda indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente (cf. art. 283.º, n.º 3, als. b) e c) ex vi do art. 287.º, n.º 2, parte final, ambos do C.P.P.).

A este propósito Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo Editora, p. 161) refere o seguinte: «O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.», pois «o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial.” (cf. ob. cit. p. 144).

Uma vez que o processo penal orienta-se sob a égide dos princípios do acusatório (cf. art. 32.º, n.º 5 do C.R.P.) e do contraditório, o requerimento de abertura de instrução, quando apresentado pelo assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado, uma vez que será o requerimento de abertura de instrução que condicionará a atividade de investigação do juiz e a decisão instrutória, como se extrai dos arts. 303.º, n.º 3 e 309.º, n.º 1 do C.P.P., estando ferida de nulidade uma decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento. O objeto do processo ficará assim cristalizado com o requerimento de abertura de instrução.

Como é consabido os tipos de ilícito são constituídos por elementos objetivos e subjetivos, pelo que a descrição fáctica constante de uma acusação tem que conter os elementos objetivos constitutivos do tipo incriminador, designadamente o agente, a conduta (comportamento humano voluntário) e o bem jurídico tutelado. Já no que concerne ao tipo subjetivo, o mesmo tem que ficar traduzido na matéria de facto descrita na acusação (ou no seu equivalente, como é o caso do requerimento de abertura de instrução) como a representação da situação objetiva na mente do agente, sendo que, para se verificar o tipo legal de crime, exige-se que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objetiva, tal como ela se revela.

No que concerne aos crimes dolosos, como o que está em causa nos presentes autos (segundo a assistente), a verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe o conhecimento e a vontade da realização do tipo por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo do dolo. Porém, não se esgotando o dolo no conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo, é ainda necessário que àqueles acresça um elemento emocional, consubstanciado na caracterização da atitude pessoal do agente exigida pelo tipo-de-culpa doloso, tendo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015) uniformizado a seguinte jurisprudência «(…) A falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. (…)».

Revertendo as considerações supra expendidas à situação de que nos ocupamos, temos que, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente aos factos que, no seu entender, poderiam ser suscetíveis de configurar a prática pelo arguido J. de 1 (um) crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1 do C.P..

Posto isto, e compulsado o requerimento de abertura de instrução da assistente constata-se que o mesmo não respeita o disposto no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c) do C.P.P., não se vislumbrando a referência a elementos do tipo subjetivo de ilícito, sobretudo do chamado elemento emocional, que na esteira de Figueiredo Dias configura um terceiro elemento do dolo.

Consideramos que o requerimento de abertura de instrução da assistente não descreve a factualidade mínima necessária para que se considere estarmos perante uma acusação, uma vez que do seu conteúdo apenas se extraem elementos do tipo objetivo do crime de dano e de maus tratos a animais de companhia (e em relação a este último também de forma não muito clara), fazendo-se referências genéricas ao tipo subjetivo, porquanto apenas consta que os arguidos bem sabiam que os canídeos (propriedade do arguido e que se encontram na posse e aos cuidados da arguida) podem e causam danos a outrem, conformando-se com tal resultado e nada fazendo para o impedirem, e ainda que atuaram com dolo.

Se, por um lado, do requerimento de abertura de instrução resulta, de forma não muito clara, o elemento intelectual do dolo (na modalidade de dolo eventual) em relação ao crime de dano (representação dos factos, i.e. que os arguidos sabem que os canídeos podem e causam danos a outrem), bem como do elemento volitivo (quando se refere que os arguidos conformaram-se com tal resultado e nada fizeram para o impedirem), não resulta do mesmo o elemento emocional, i.e., que os arguidos tinham consciência de que estavam a agir contra o direito.

Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/05/2019, relator: Orlando Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt a acrescer aos elementos objetivos do tipo de ilícito, da acusação (no caso concreto o requerimento de abertura de instrução, atento que esta cristaliza o objeto do processo), tem que constar os elementos em que se analisa o dolo, nomeadamente o elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, que faz parte do tipo de culpa doloso.

De outra banda, e compulsado o requerimento de abertura de instrução não resulta qualquer factualidade referente ao elemento subjetivo do crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo art. 387.º, n.ºs 1 e 2 do C.P. pelo qual a assistente pretende que os arguidos sejam pronunciados.

E não se diga que a alegação genérica da assistente de que os arguidos agiram com dolo é suficiente para se considerar que os elementos subjetivos dos crimes que pretende imputar aos arguidos se encontram alegados, pois, como é consabido, afirmar-se, de forma tabelar, que os arguidos agiram com dolo assume-se como inócuo, uma vez que tal afirmação traduz-se num conceito conclusivo e de direito, sendo necessário que a assistente no seu requerimento de abertura de instrução densifique tal conceito através de factos que o preencham. E estando nós perante um conceito de direito e conclusivo não será lícito o Tribunal atender ao mesmo enquanto factualidade.

Deste modo, constata-se, portanto, que do requerimento de abertura de instrução não constam os elementos subjetivos do crime de maus tratos a animais de companhia, bem como o elemento emocional pertencente ao dolo do crime de dano, que assistente pretende que os arguidos sejam pronunciados.

Ora, é entendimento unânime da jurisprudência e da doutrina que o requerimento de abertura de instrução deve conter os elementos subjetivos do crime imputado ao arguido sob pena de ser rejeitado por inadmissibilidade legal (a este propósito, e a título exemplificativo, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.02.2018, processo n.º 270/16.2T9CHV.G1, relator: Fátima Bernardes, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.01.2016, processo n.º 682/10.5TAVFR.P1, relator: Élia São Pedro, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017, processo n.º 36/15.7MAFIG.C1, relator: Orlando Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Já no que se refere ao elemento emocional do tipo subjetivo escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06.06.2012, relator: Melo Lima, disponível em www.dgsi.pt, que “A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação. Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude. A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo. Se na acusação ou no RAI não constem os factos atinentes ao elemento subjectivo "consciência da ilicitude", devem ser rejeitados por manifestamente infundados.” (no mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2011, relatora: Maria Pilar Oliveira, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, e como se referiu supra, não é possível ao juiz de instrução substituir-se à assistente, completando o requerimento de abertura de instrução com os factos em falta e que se revelam essenciais para a imputação do crime ao agente, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial de factos, o que sucede quando, como no caso dos autos, sejam omissos os factos subjetivos integradores da conduta típica.

Com efeito, não havendo lugar a nova acusação e estando o juiz de instrução impedido de carrear para a pronúncia factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução (sob pena de nulidade da decisão instrutória), o arguido só poderia ser pronunciado pelos factos constantes do requerimento de abertura da instrução do assistente. Só assim se respeita, formal e materialmente, a acusatoriedade do processo, só assim o arguido sabe os factos que lhe são imputados, podendo exercer, com eficácia e segurança, o contraditório e só desta forma se pode delimitar o objeto do processo e vincular-se (tematicamente) o tribunal, impedindo um alargamento arbitrário desse objeto.

Com efeito, a realização a instrução constituiria um ato inútil, já que, finda a mesma e atenta a ausência de descrição dos elementos subjetivos dos tipos incriminadores imputados ao arguido, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados no requerimento de abertura da instrução seria nula.

Estando assim assente a falta de factos no requerimento de abertura de instrução, cumpre referir que tal deficiência também não pode ser objeto de convite ao aperfeiçoamento (vide, neste sentido, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05, disponível em www.dgsi.pt).

Por último, diga-se que quando a assistente pretende, com o requerimento de abertura de instrução, que caso o Tribunal entenda não haver ilícito penal julgar os factos como contraordenação ou remeter os mesmos à entidade competente, que, conforme estipula o art. 286.º, n.º 1 do C.P.P., a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, pelo que, desta forma, não é admissível o requerimento de abertura de instrução para os efeitos que a assistente pretende a título subsidiário, sendo também, por esta via, a instrução inadmissível legalmente.

Estabelece o art. 287.º, n.º 3 do C.P.P. que o requerimento de abertura de instrução, só pode ser rejeitado se for extemporâneo, se existir incompetência do juiz, ou se for legalmente inadmissível a instrução.

A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que se verifica a falta de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, como sucede no caso concreto conforme aludido supra.

Em jeito de conclusão, o requerimento de abertura de instrução não descreve a factualidade mínima necessária para que se considere estarmos perante uma acusação, uma vez que, como se disse, inexiste factualidade suficiente atinente aos elementos do tipo subjetivo dos crimes pelos quais a assistente pretende ver os arguidos pronunciados, pelo que, nesse sentido, e estando afastada a hipótese de formular qualquer convite ao aperfeiçoamento, é de rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente M. por inadmissibilidade legal, atento o preceituado no art. 287.º, n.º 3 do C.P.P., o que se decide.


*

Custas pela assistente, nos termos dos arts. 8.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e 515.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., corrigindo-se a taxa de justiça devida para 2 UC (duas unidades de conta).

Notifique».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Vem a assistente recorrer do despacho judicial que considerou inadmissível o requerimento da abertura de instrução que aquele fez nos autos, rejeitando-o.

O que se vai apenas aqui discutir é saber se o requerimento em causa deveria ou não ter sido recebido, de molde a dar-se início à fase instrutória dos autos, e já não saber se existem indícios suficientes para pronunciar os dois arguidos pelos crimes tidos por si como indiciados (e na sequência do despacho de arquivamento do inquérito, pelas mãos do Ministério Público).

A questão em discussão é somente formal – obedece ao não o requerimento de abertura de instrução ao figurino legal?

3.2. VEJAMOS QUAL O CONTEÚDO DESSE RAI:

«M., casada, professora, residente na rua de (…), (…), (…), ofendida e tendo já pedido a sua constituição como assistente nos autos e aí melhor identificada, não se conformando com o Despacho de Arquivamento, vem nos termos do art.º 287º, nº 1, al. b) do CPP,

 

REQUERER A ABERTURA DE INSTRUÇÃO,

Sendo arguido J, com TIR prestado nos autos que se dá por reproduzido, natural de (…), residente na Rua (…), n.º 24, (…).

E, denunciada L., de nacionalidade portuguesa, residente na rua do (…), (…), NIF (…)..

Nos termos e com os fundamentos seguintes:

Do inquérito

1.º A notificação do despacho de arquivamento à ofendida ocorreu na vigência da lei da suspensão dos prazos.

2.ºA ofendida, já requereu a sua constituição como assistente, que dá por reproduzido, tendo pago taxa de justiça e junto procuração à subscritora, o que dá por reproduzido, reiterando-o.

3.º A ofendida apresentou queixa contra L., vindo no decurso do inquérito o Ministério publico, a constituir arguido J., sendo aquela quem tem os canídeos consigo, tendo aquela o dever de deles cuidar, guardar e vigiar e este é o seu proprietário, que os usa para o exercício do acto venatório.

4.º No auto de notícia de 13.10.2020, consta a indicação de L. como proprietário de facto e detentor dos canídeos, aliás é tida como sendo a proprietária na localidade onde ocorreram os factos.

5.º Sendo a denunciada L. que no inquérito veio depois a identificar o seu proprietário de direito, o genro, aqui arguido.

6.º Os canídeos encontravam-se frequentemente soltos, entregues a si próprios, na rua pública, sendo tal conduta usual e reiterada.

7.º Á data dos factos, que se vão descrever, estava entregues e sob o dever de vigilância da denunciada L., pelo que por causa da conduta desta, a qual não mantem os cães de caça na sua propriedade, antes permite, bem o sabendo, que estes circulem livremente pela localidade, o que ocorre diversas vezes, causando danos (morte de duas gatas), propriedade da ofendida, tendo-se os cães introduzido no imóvel desta.

8.º Pelo que, deve a denunciada L., também ser constituída arguida- ex vi art. 57 do CPP-, o que se requer.


*

Dos Factos

9.º No dia 13 de outubro de 2020, cerca das 11.30/12 horas, dois canídeos propriedade de J., arguido nos presentes autos e por este entregues aos cuidados, vigilância e guarda da sua sogra, L., entraram na propriedade (prédio urbano) da aqui ofendida, M., sita na (…), (…), a qual está vedada, matando e levando consigo dois felinos (gatos) fêmeas (progenitora e cria de 4 meses), propriedade da ofendida que se encontravam no interior do seu imóvel.

10.º A ofendida deparou-se como os dois canídeos (de caça) na sua propriedade (mais concretamente a saírem da marquise aberta para o jardim) e um deles, levava um dos felinos na boca.

11.º Os canídeos são animais de caça, conforme resulta demostrado no doc.1 que se junta (Licença emitida pela Junta de Freguesia).

12.º Os dois canídeos, assim que viram a ofendida, saíram da marquise e jardim, um saltou por um muro que tem cerca de 2,50 metros de altura e outro saiu pela parede que dá acesso a uma ribeira, ainda no seu imóvel.

13º A ofendida correu para a rua, vendo já os canídeos no “largo de (…)” e a irem para terrenos, onde saltaram vedações com mais de 2 metros.

14.º Os canídeos, levavam a “presa” para entregá-la ao dono, cuja casa (não do dono, mas da sogra deste, a denunciada (…), local de onde os cães foram soltos) fica a cerca de 1 km da propriedade da ofendida.

15º A felina foi morta e levada pelos canídeos para a propriedade da sogra do arguido, na mesma localidade da (…), onde a depositaram – como demostra foto n.1 que se anexa, e como resulta do inquérito. 

16.º Quando a ofendida se aproximou do portão da propriedade da denunciada L., viu os canídeos em questão na propriedade da denunciada, que continuavam soltos, e que naquele momento estavam-se em “posição de guarda” da felina-cria, já morta. – como demostra foto n.º 2 que se junta.

17.º A ofendida reportou o sucedido à L., que com indiferença viu o relatado em 16 e depois dirigiu-se ao início da tarde, do dia em causa (13 de outubro de 2020) ao posto da GNR, onde apresentou queixa.

18.ºA GNR solicitou a uma patrulha que fosse averiguar os factos, a qual junto da denunciada souberam que não tinha documentos dos animais, sendo impossível à GNR apurar se os cães estavam registados, vacinados ou possuíam seguro.

19º Nos dias seguintes, veio a ofendida a saber que também a felina-progenitora (que estava desaparecida), tinha sido morta e levada pelos canídeos em causa, isto através da testemunha H., que no dia 13 de outubro, ao dirigir-se para a sua horta viu os ditos canídeos com a felina- progenitora na boca, o qual assistiu à morte do felino – progenitora, pelos mesmos cães no Adro da Igreja.

20.º O dono dos canídeos reconhece ser legítimo proprietário dos mesmos, e que foram esses quem invadiram a propriedade da ofendida, matando e levando os dois felinos da propriedade da ofendida.

21.º Mesmo depois dos acontecimentos descritos, que cominaram com a mortes dos dois felinos, os cães de caça em causa continuaram a ser soltos e como tal andarem entregues a si próprios pela freguesia.

22.º Aliás, já antes dos factos danosos, que a ofendida avalia em 120,00€ para cada animal morto, o seu marido viu os mesmos cães encurralarem a felina-cria numa arvore.

23.º Tendo inclusive, no dia 30 de dezembro, a ofendida ter sido novamente brindada com a presença dos mesmos canídeos na sua casa, o foi testemunhado por A..

24º Logrando registar a presenças dos ditos cães, já após saírem de sua casa, no largo da freguesia – como demostra foto nº 3 que se anexa.

25.º Os canídeos, de caça, são usualmente vistos a vaguear na povoação, soltos, sem vigilância, portanto no exterior da propriedade do arguido e da denunciada, sendo conduta reiterada e habitual, bem o sabendo os mesmos, principalmente que estes podem e causam danos a outrem, conformando-se com isto e nada fazendo para o impedirem, antes sendo a sua conduta continua e não se importando com as consequências da mesma, mesmo após o sucedido, a deslocação da GNR e a existência e audição em inquérito.

26.º A ofendida ficou emocional e psicologicamente abalada e com receio dos cães, mormente com o risco ao bem-estar, segurança, saúde do seu filho (criança de 9 anos) e ainda por causa da reação do seu filho à morte dos felinos, a quem era bastante ligado, na medida em que eram a sua constante companhia, sobretudo em período de confinamento devido à Covid-19, e subsequente ausência de aulas e de possibilidade de contactos socias como os seus amigos.


*

Do direito

27.º Entendeu a digníssima Magistrada do Ministério Público a quando do seu despacho de arquivamento que, no caso em apreso, “os factos descritos são suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal.”

28.º Porém entende a mesma que findo o inquérito e “Realizadas as diligências de investigação, entende o Ministério Público que não há indícios suficientes nos autos de que atuação dos canídeos tenha sido provocada pelos seus proprietários que, por meio e através deles, tenham querido causar a morte da gata da ofendida.”

29.º Face ao exposto e analisado o inquérito, não se concorda, pelo que entende a ofendida que os autos carecem de investigação e os factos comprovam a conduta dolosa do arguido e da denunciada e a existência de indícios suficientes, em atos contínuos e reiterados.

30.º Como diz o Ac. do TRP de 19 de fevereiro de 2015, Proc. n.º 1813/12.6TBPNF.P1: “Constitui um dado civilizacional adquirido nas sociedades europeias modernas o respeito pelos direitos dos animais. A aceitação de que os animais são seres vivos carecidos de atenção, cuidados e proteção do homem, e não coisas de que o homem possa dispor a seu bel-prazer, designadamente sujeitando-os a maus-tratos ou a actos cruéis, tem implícito o reconhecimento das vantagens da relação do homem com os animais de companhia, tanto para o homem como para os animais, e subjacente a necessidade de um mínimo de tutela jurídica dessa relação, de que são exemplo a punição criminal dos maus-tratos a animais e o controle administrativo das condições em que esses animais são detidos. Por conseguinte, a relação do homem com os seus animais de companhia possui hoje já um relevo à face da ordem jurídica que não pode ser desprezado.” (Sublinhado nosso)

31º Nesse sentido, entende-se por referência ao artigo 389º, n.º 1 do CP, que o animal de companhia é “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”.

32º Por seu lado, o artigo 387º, n.º 1 do CP dispõe quanto aos maus-tratos a animais de companhia que “quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

33º É um crime comum, na medida em que pode ser cometido por qualquer pessoa, detentor do animal ou não, por si ou servindo-se de outrem, de outros animais ou objectos.

34º Assim, o crime de maus-tratos a animais de companhia é um crime de dano e no que tange à forma específica de realização típica, pode o mesmo ser cometido quer por ação quer por omissão.

35.º Significa que, tanto pode ser agente de crime aquele que pontapeia o animal de companhia, como quem tem o dever de garante nos termos previsto no n.º 2 do artigo 10º do CP e não toma as diligências necessárias de forma a minimizar o seu potencial perigo.

36.º O crime de maus-tratos a animais de companhia pode abranger qualquer uma das três modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal (direto, necessário ou eventual).

37.º O dolo eventual é, nas palavras do Ac. do STJ de 13-07-2005, Proc. n.º 05P2122, “(...)uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas como a produção de resultado depende de eventualidades ou condições incertas, o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança o agente é consciente. (...) A conformação com um facto que preenche um tipo legal de crime (nos crimes de resultado, conformação como o resultado, que só é resultado se ocorrer, quando ocorrer e como ocorre) constitui o núcleo da construção dogmática do dolo eventual. (...) O resultado só tem, porém, consistência como realidade pela sua efetiva ocorrência, e, por isso, se o agente representou como possível um resultado a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera atuação não tem relevância nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da efetiva ocorrência do resultado, ou de um dos resultados possíveis, e com os quais o agente se conformou segundo as regras da experiência.

38º Note-se que os cães em causa, são cães de caça, especialmente vocacionados para atacar outras espécies animais, e andavam entregues a si próprios.

39.º O artigo 387º, n.º 2 do Código Penal prevê que, sempre que dos maus-tratos previstos no n.º 1 resulte a morte do animal, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

40.º De acordo com o disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta agente”.

41.º O artigo 212.º n.º 1, do Código Penal prevê que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

42.º Sem prescindir, o bem jurídico tutelado pelos dois crimes praticados pelos arguidos é completamente distinto – no dano protege-se a propriedade, nos maus-tratos a animais de companhia a vida e a integridade física dos animais.

43º É titular de um dever de garante em relação ao animal – o dono do animal e o responsável, ainda que a título temporário, sendo ilícita a conduta daquele que permite que o seu cão (de caça) se movimente livremente na rua, e entregue a si próprio sem que o perigo que este representa esteja acautelado, bem o sabendo, sendo esta conduta habitual, reiterada e usual e conformando-se com os resultados danosos que os mesmos viessem a causar e causassem ou causem.

44º Mais, estando em causa cães de caça, e por tal faz-se referência ao artigo 30º, n.º 1 da Lei da Caça (Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro), que dispõe: “A infração ao disposto no n.º 1 do artigo 6.º do presente diploma é punida com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.”

45º Dispõe para efeitos de aplicação do artigo 30º, n.º 1 da Lei da Caça, o artigo 6º, n.º 1, h) da mesma lei, que: “1 - Tendo em vista a conservação da fauna e, em especial, das espécies cinegéticas, é proibido: h) Abandonar os animais que auxiliam e acompanham o caçador no exercício da caça.”

46º Assim andou mal o digníssimo Magistrado do Ministério Publico ao não ter, oficiosamente procedido em conformidade no DL n.º 433/82 de 27 de Outubro, nomeadamente em cumprimento do disposto no seus artigos 57º e 77º, n.º 1 que lhe impõe que “O tribunal poderá apreciar como contraordenação uma infração que foi acusada como crime.”

47.º Ora no caso sub judice, dúvidas não restam que atendendo ao disposto no artigo 6º do DL n.º 276/2001 “Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais”

48.º Neste sentido comina o artigo 68º, n.º 1, j) do DL n.º 276/2001 que:

“1 - Constituem contraordenações puníveis pelo diretor-geral de Alimentação e Veterinária com coima cujo montante mínimo é de (euro) 200 e o máximo de (euro) 3740: j) A violação do dever de cuidado previsto no artigo 6.º que crie perigo para a vida ou integridade física de outro animal;”

49.º Sem prejuízo da necessária averiguação, que se impõe, em determinar se os arguidos cumpriam em relação aos animais os deveres legais (de registo, seguro, vacinação, licenças, circular na via publica, etc.), ou remetendo à entidade competente para processo contraordenacional.

50.º Os arguidos/denunciados actuaram com dolo, cometendo cada um deles em autoria material um crime de dano e de maus tratos a animais de companhia, previstos respectivamente nos artigos 212 e 387 do CP, como supra exposto, havendo indícios suficientes da verificação dos elementos essenciais do seu preenchimento.


*

51.º Nos termos do artigo 287.º, n. º2 do CPP a ofendida requer que sejam levados a cabo os seguintes atos e meios de prova, que não foram considerados no inquérito:

(…)

2.º Requer:

(…).

Termos em que e nos demais de direito requer a v. exa. seja  a denunciada  L. constituída arguida e sujeita a TIR, seja declarada  aberta a instrução e, consequentemente, proferido despacho de pronúncia contra os arguidos, pela autoria material da pratica, cada um, de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 212, n.º1 do Código Penal  e pelo crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387, n.º1 e 2 do Código Penal, sujeitando- os a julgamento perante tribunal singular.

A entender o tribunal não haver ilícito penal, julgar os factos como contraordenação ou remeter os mesmos e para o efeito, à entidade tida por competente».

3.3. Sabemos que o assistente pode requerer a instrução nos crimes de natureza pública e semi-pública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação ou, tendo o MP deduzido acusação, por factos que importem uma alteração substancial dos factos aí narrados – de facto, quando o MP não haja deduzido acusação, ao ofendido, constituído como assistente, resta a dedução de acusação alternativa, consubstanciada no requerimento de abertura da fase da instrução, podendo ainda, em 2ª opção, reclamar hierarquicamente do despacho do MP, nos termos e para os efeitos do artigo 278º, n.º 2 do CPP (não o poderá fazer cumulativamente, como é bem de ver – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 24/1/2002 e Acórdão da Relação de Guimarães de 16/10/2006, ambos visualizados em http: www.dgsi.pt).

Estipula o artigo 286.º, n.º 1 do C.P. Penal que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», adiantando o artigo 287.º, n.º 1 que «A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (...); b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (…)».

O n.º 2 do artigo 287º avança ainda que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...).»

Recuando para este normativo, pensado para os termos da acusação do Ministério Público, lê-se no seu teor, igualmente aplicável ao requerimento para abertura da instrução, que «a acusação contém, sob pena de nulidade:

« (...)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) As disposições legais aplicáveis; (…)».

O n.º 4 do artigo 287.º adianta que o requerimento de abertura da fase jurisdicional só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, tendo sido este último o motivo invocado para a decretada rejeição.

Este é o pano de fundo normativo em que nos devemos enredar para a apreciação do presente recurso.

3.4. A INSTRUÇÃO é uma fase processual jurisdicional e facultativa que compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

O JIC não tem intrínsecas funções investigatórias em sentido técnico-jurídico, sendo antes o seu mister o de comprovar de forma chancelar – porque jurisdicional - uma investigação que foi feita previamente por quem é titular da acção penal.

Deste modo, o artigo 288.º, n.º 4 estipula que: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.»

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.

Vários doutrinadores já se têm pronunciado sobre esta «investigação» levada a cabo na fase instrutória de um processo penal.

Germano Marques da Silva opina que (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»

 Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta, no mesmo sentido, «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo».

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).

Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, contra o qual o assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal peça assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe acusação pública no que aos crimes de natureza pública diz respeito (crime de falsificação e crime de burla qualificada).

Verificando-se que o Ministério Público se absteve de acusar, arquivando o processo, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.

Decidiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004) que «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.     

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.»

A propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, lê-se no mesmo Acórdão:

«(…) a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

           

3.5. Diga-se ainda que se o requerimento para abertura de instrução não contém tais factos e até a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será também inexequível porque se tornará uma fase processual sem objecto, na medida em que o assistente deixou de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se do requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.

De facto, a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (Acórdão do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de rejeitar, por inadmissibilidade legal, atenta a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, omitindo em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (Acórdão do STJ de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3).

Por tudo isto, concluímos que a falta de indicação, no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente, tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório.

           

3.6. É, pois, por todos assumida a importância da delimitação do objecto através do requerimento de abertura da instrução formulado por assistente, o qual consubstancia uma verdadeira acusação alternativa.

E se o requerimento em causa não obedece a tal requisito legal?

Não nos esquecemos que tal requerimento deve conter a indicação dos elementos referidos no artigo 287.º, n.º 2, particularmente os das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º, do CPP, disposição para a qual remete, como vimos, o referido preceito legal.

De novo, a palavra à doutrina.

Souto de Moura defende que a instrução surge, no CPP, como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados (“Inquérito e Instrução”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.119).

Para este autor, sendo requerida a instrução, se o assistente não delimitar o campo factual de incidência, a instrução não deixará de ser inexequível (ob. cit., p. 120, nota).

Também se questionou se a remissão para o artigo 283.º, n.º 3, compreende a cominação de “nulidade” para o requerimento instrutório, debatendo-se a natureza dessa nulidade.

E também se debate se a omissão da narração dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a mencionada nulidade, não será um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do C.P. Penal.

Neste âmbito, questiona-se a interpretação do conceito de inadmissibilidade legal como causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução.

Em qualquer caso, é indubitável que não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º 1.

Defendeu-se, em certa altura, a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente.

O STJ resolveu a questão, tendo fixado jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» (Acórdão do STJ n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no D.R., I Série, de 4 de Novembro de 2005).

Neste aresto, salienta-se que o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4.º do CPP. 

A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º,n.º 3, alínea b), e 311.º, n. 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P.P.

Voltemos ao Acórdão do STJ atrás citado:

«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada - o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.

(…)

O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra».

Há que referir ainda que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 389/2005, de 14 de Julho de 2005 (DR, II, de 19 de Outubro de 2005), decidiu não ser inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 287.º e 283.º do CPP, segundo a qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes - «Desde logo, a Constituição, a par da consagração de todas as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º n.º 1), determina que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (artigo 32.º, n.º 7). É, pois, constitucionalmente reconhecida uma ampla margem de conformação legislativa da posição processual do assistente (ofendido) que inviabiliza uma abstracta equiparação entre o estatuto do assistente e o do arguido.

Tal diferenciação é naturalmente reconhecida pela jurisprudência constitucional, que reiteradamente tem realçado, a propósito de várias questões relacionadas com o estatuto do assistente, a diferença entre as posições processuais dos dois sujeitos do processo penal.

Assim, o que é afirmado a propósito das garantias de defesa do arguido não tem necessariamente aplicação tratando-se do assistente, pelo que a jurisprudência invocada pelo ora recorrente não tem pertinência significativa nos presentes autos.

(…) No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída (possibilitar a abertura da instrução, fixando o respectivo objecto). Trata-se, nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto anterior).

Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”».

Neste plano, em que a jurisprudência tem trilhado plurifacetados caminhos – apelando à nulidade de conhecimento oficioso (Acórdão da Relação de Guimarães, de 17 de Maio de 2004, processo 777/04-1), à nulidade por falta de objecto (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006, processo 60/03.2TANLS.C1), à inexistência (Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 2006, processo 7649/05-5.ª), à equiparação a acusação manifestamente infundada (Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2006, processo 0611178) –, conclui-se que todos eles conduzem ao mesmo fatal e incontornável resultado: a rejeição do requerimento.

Com a prevalência do entendimento de que o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer convite ao aperfeiçoamento, afigura-se-nos que o conceito de inadmissibilidade legal não pode, pois, deixar de abranger o caso de instrução requerida por assistente cujo requerimento não contenha uma descrição factual susceptível de integrar os elementos do tipo criminal que o requerente entenda ter sido preenchido.

Por isso, o requerimento é nulo, o que se reconduz à situação de inevitabilidade da rejeição do requerimento em causa por inadmissibilidade legal da instrução.

Quer isto dizer que nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia, só havendo que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissibilidade da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissibilidade de actos processuais em geral.

3.7. Situada a questão, haverá, agora, que atentar na narração dos factos tal como foi levada a efeito pela assistente, e ora recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, tendo em vista determinar se nos encontramos, ou não, perante uma situação de falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática do crime e consequentemente, se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, conforme se decidiu no despacho recorrido.

Está em causa, para a assistente, a prática, pelos arguidos J. e L., sua sogra, um crime de dano, previsto e punido pelo disposto no artigo 212º, n.º 1 do CP (morte de dois gatos da assistente à boca de cães do arguido) e um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387º, n.º 1 e 2 do CP.

Para o tribunal recorrido, a peça RAI:

• não contém a referência a elementos do tipo subjectivo de ilícito, sobretudo do chamado elemento emocional, no que tange ao crime de dano;

• não contém qualquer factualidade referente ao elemento subjectivo do crime de maus tratos a animais de companhia.

A assistente, in casu, no requerimento de abertura de instrução, pretende que sejam pronunciados dois sujeitos – os arguidos J., proprietário dos cães, e L., sua sogra, que, na sua óptica, os guardava, recaindo sobre os quais o dever de os vigiar de forma a evitar que eles ponham em risco a vida ou integridade física de outras pessoas e animais.

Descreve o facto naturalístico no ponto 9º do seu RAI (dois cães mataram dois gatos da assistente, levando-os consigo).

E quanto ao elemento subjectivo dos delitos mencionados?

Segundo a decisão recorrida, a instrução foi julgada inadmissível porque do requerimento para abertura de instrução formulado pela assistente não se extrai um quadro factual que contenha a narração, ainda que sintética, dos factos inerentes ao elemento subjectivo dos delitos em causa e que também, ao lado dos elementos objectivos, fundamentariam a aplicação ao arguido J. e à denunciada, entretanto também arguida por força do artigo 57º/1 do CPP – cfr. despacho de fls 169 -, L. de uma pena ou de uma medida de segurança.

Uma palavra sobre cada um dos delitos em apreço.

3.8. O crime de dano (artigo 212º do CP) é praticado por quem “destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios”.

A prática deste tipo legal – que é um crime de resultado - comporta o preenchimento dos seguintes elementos típicos:

Quanto a elementos objectivos, temos:

a) Quem destruir, danificar, desfigurar ou tornar inutilizável;

b) No todo ou em parte;

c) Coisa ou animal alheios (a parte referente aos animais foi aditada por força da Lei n.º 8/2017, de 03 de Março, que veio estabelecer um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro)

No que tange ao elemento subjectivo, exige-se dolo (sendo bastante o dolo eventual), não sendo aqui punível o dano negligente.

Neste delito, o bem jurídico protegido é a propriedade, protegendo-se a propriedade alheia contra agressões que atingem directamente a existência ou integridade do estado da coisa ou do animal.

Diga-se ainda que é configurável o dano na forma de omissão impura ou imprópria (artigo 10º do CP).

De facto, o tipo pode ser cometido por omissão, havendo um dever de garante sobre o agente (artigo 10º, n.º 2 do CP).

Assim opinam Costa Andrade no Comentário Conimbricense do Código Penal (Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, p. 221), Maia Gonçalves e Simas Santos (CP anotado, 2º Volume, Rei dos Livros, p. 511), entre outros.

3.9. Já o artigo 387.º do CP, sobre maus tratos a animais de companhia, dispõe o seguinte:

“1 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia  é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias;

2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

Embora envolvida esta questão em alguma polémica, acabamos por defender que o bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras em análise é a vida e a integridade física dos animais, já que aquelas protegem os animais (de companhia) das condutas capazes de contra eles atentarem, por meio do abandono, da provocação de dor, sofrimento ou de quaisquer outros maus tratos físicos, sendo que nos parece que a punição dos maus tratos praticados pelo dono é demonstrativo de que o valor de bem-estar animal é tomado autonomamente e não já funcionalizado à fruição e aos interesses daquele.

A fundamentação da incriminação tem a sua fonte primordial no Direito ao Ambiente, constitucionalmente consagrado, não se esgotando nele claramente.

Este é um crime de resultado, que se consuma com a efectiva ocorrência de dor ou sofrimento do animal, ou de quaisquer outros maus tratos físicos naquele, bastando um único acto para se ter o mesmo por consumado.

Pode ser cometido por acção ou por omissão impura ou imprópria, desde que sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar o resultado, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 10.º, do Código Penal (assim, quem atropela, por negligência, um animal fica investido na posição de garante da vida e integridade física do mesmo; se omite dolosamente a prestação de socorro ao animal, estará preenchida a previsão do n.º 1 do artigo 387.º, do Código Penal, por omissão).

É um crime de execução livre, sendo indiferente a forma pela qual é produzido o resultado.

É um crime comum, pois que o agente do crime pode ser qualquer pessoa, inclusive o seu proprietário.

Não está, porém, prevista a punibilidade das pessoas colectivas (artigo 11.º, n.º 1, do Código Penal, a contrario), o que afasta a imputação criminal a associações ou sociedades zoófilas ou outras pessoas colectivas cujo objectivo comercial passe pela criação e venda de animais, por exemplo (sem prejuízo, contudo, – e obviamente – da responsabilidade individual dos titulares dos respectivos órgãos).

Quanto ao tipo subjectivo, trata-se de crime necessariamente doloso (admitindo-se qualquer uma das modalidades do dolo, previstas no artigo 14.º, do Código Penal), não sendo punível a negligência.

Já a imputação do resultado agravante, previsto no n.º 2, poderá ocorrer a título de dolo ou de negligência.

Ou seja:

No que diz respeito ao elemento subjectivo do crime de maus tratos, quer na sua forma simples, quer na forma qualificada, este poderá ser cometido com dolo em qualquer das suas três modalidades: directo, necessário e eventual, respectivamente previstas nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 14.º, do Código Penal.

Já quanto à negligência, a letra da lei não prevê expressamente que o crime possa ser cometido por essa forma, pelo que, de acordo com o artigo 13.º do Código Penal, não integrará o ilícito típico a conduta em que o agente não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz (artigo 15.º, do Código Penal).

3.10. Vejamos então o que dizer sobre a alegada omissão dos elementos subjectivos dos dois tipos de crime.

Antes de abordar, conviria ainda dizer que materialidade constante dos pontos 9º a 26º do RAI (bem como os posteriores, embora estes escritos debaixo do título «Do direito») – não se deixando de notar e alertar para o facto de só nos podermos ater ao RAI apresentado e não à explicação dada no recurso interposto e que tenta densificar muito do que no RAI foi escrito (ou não escrito), não podendo este tribunal levar em conta estas explicações suplementares mas só e apenas o texto puro e duro do requerimento que tentou, em vão, abrir a instrução neste autos - poderia naquela peça ter sido melhor explicitada, descrevendo as acções que seriam exigíveis ser tomadas pelos dois agentes quanto aos seus cães, no sentido de evitar este fatal desenlace, podendo ter feito até uma mais pormenorizada descrição dos cães em causa (descrevendo até a sua perigosidade ou potencial perigosidade ).

Mas onde naufraga mais este RAI é, de facto, ao nível da descrição do chamado dolo eventual omissivo dos dois agentes.

Fazendo a ponte entre o explanado e o caso concreto que nos é presente, verifica-se que o assistente, na sua descrição factual, faz uma descrição imperfeita dos elementos subjectivos dos crimes que imputa ao arguido.

Apenas se fazem referências genéricas ao tipo subjectivo, constando tão somente do RAI que os arguidos bem sabiam que os canídeos (propriedade do arguido e que se encontram na posse e aos cuidados da arguida) podem e causam danos a outrem, conformando-se com tal resultado e nada fazendo para o impedirem, e ainda que actuaram com dolo.

Falamos do ponto 25º do RAI que reza assim:

«Os canídeos, de caça, são usualmente vistos a vaguear na povoação, soltos, sem vigilância, portanto no exterior da propriedade do arguido e da denunciada, sendo conduta reiterada e habitual, bem o sabendo os mesmos, principalmente que estes podem e causam danos a outrem, conformando-se com isto e nada fazendo para o impedirem, antes sendo a sua conduta continua e não se importando com as consequências da mesma, mesmo após o sucedido, a deslocação da GNR e a existência e audição em inquérito».

 

Entendeu o despacho recorrido que do RAI resulta, de forma não muito clara, o elemento intelectual do dolo (na modalidade de dolo eventual) em relação ao crime de dano (representação dos factos, i.e. que os arguidos sabem que os canídeos podem e causam danos a outrem), bem como do elemento volitivo (quando se refere que os arguidos se conformaram com tal resultado e nada fizeram para o impedirem), não acontecendo o mesmo quanto ao elemento emocional do dolo (ou seja, que os agentes tinham consciência de que estavam a agir contra o direito).

3.11. Recordemos o básico.

Sabemos que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

Ora, quanto à estrutura do dolo, é ponto pacífico que o mesmo é composto por um

elemento cognitivo ou intelectual e por um elemento volitivo.

Nas expressivas palavras de Teresa Pizarro Beleza, “basicamente..., dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo acto que é tipificado na lei como crime”.

 Vejamos cada um dos referidos elementos, não esquecendo o ensinamento de Fernanda Palma, segundo o qual: “...a distinção entre um elemento intelectual e um elemento volitivo torna-se, fundamentalmente, uma distinção para efeitos de análise. Na conduta intencional, não há qualquer separação entre o estado cognitivo e a volição, que seja, realmente, vivida pelos agentes”.

Vejamos, pois, em primeiro lugar, o mencionado conhecimento - o elemento cognitivo ou

intelectual do dolo.

Para se poder dizer que o agente actuou dolosamente, tem de se poder dizer que o agente conhecia os elementos objectivos essenciais do tipo que a sua conduta, objectivamente, preenche.

Ora, esses elementos objectivos essenciais (ou seja, os elementos que definem o tipo) podem ser descritivos ou normativos, isto é, podem ser elementos correspondentes a conceitos da linguagem comum, vulgar e corrente ou elementos correspondentes a conceitos da linguagem jurídica (stricto sensu).

Para além do elemento cognitivo ou intelectual do dolo, ou seja, para além do conhecimento da realidade objectiva (lato sensu) que interessa ao tipo, é comum identificar e tratar no dolo uma dimensão de vontade, o chamado elemento volitivo do dolo, elemento este que se traduz na vontade de realizar uma certa conduta e/ou de obter um certo resultado.

Ou seja:

Ninguém ignora que a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.

O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável.

O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber:

• dolo directo – a intenção de realizar o facto;

• dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta e

• dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.          

Diga-se que, segundo esta doutrina tradicional do crime, sufragada por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento cognitivo ou intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.

Mais se diga que a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto e que, ao nível do processo, esta exigência satisfaz-se com a prova e, consequentemente, com a menção no elenco dos factos provados, do conhecimento do agente da ilicitude da sua conduta, seja pela fórmula habitual, e algo conclusiva de, «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», seja por qualquer outra forma que descreva com objectividade este facto da vida interior do agente.

O que não pode acontecer é ter-se por praticado o crime sem a prova da consciência da ilicitude. 

Em resumo:

O dolo desdobra-se nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou conhecimento dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade de realização daqueles elementos do tipo objectivo) nas modalidades nas 3 modalidades previstas no art. 14º do C. Penal – actuação com intenção de realizar o facto típico (dolo directo); aceitação da realização dos elementos do tipo objectivo como consequência necessária da conduta (dolo necessário); e conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível (dolo eventual).

A que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude.

3.12. No nosso caso, em lado algum do texto do RAI consta que os denunciados, quanto ao crime de dano, tenham agido de forma livre, voluntária e consciente e que sabiam que estavam a praticar um acto proibido por lei.

No que tange ao outro delito – do artigo 387º do CP, apenas se diz que os denunciados agiram com dolo.

Não ignoramos a tese seguida pelo Tribunal da Relação de Évora no acórdão proferido com data de 6/2/2018, no Pº 54/16.8T9CBA.E1:

«Posto isto, importa decidir ainda se a articulação dos factos integradores do dolo sempre estará incompleta por ser a acusação “… omissa no que concerne à atuação da arguida, designadamente se livre, deliberada e consciente da ilicitude da sua conduta», tal como se considerou no despacho recorrido.

a) Ora, a este respeito entendemos que apenas a expressão agiu deliberada (ou deliberadamente) usada na prática judiciária respeita ao elemento volitivo do dolo (geralmente acompanhada da expressão “conscientemente” que se refere genericamente ao elemento cognitivo do dolo), mas que não tem que ser utilizada nos casos em que se afirma especificamente, de forma mais precisa e rigorosa, a intenção de realizar o facto concreto que preenche o tipo legal como sucede no caso concreto (a arguida quis ofender a honra e consideração da ofendida), sendo mesmo redundante.

b) Quanto à locução “agir livremente” é expressão que se reportará antes á afirmação de uma suposta “capacidade de culpa” genérica, cuja articulação e prova em todo e cada caso não é exigida, desde logo porque a imputabilidade em razão da idade decorre direta e automaticamente da lei (art. 19º do C. Penal) e porque o agente imputável é em princípio “capaz de culpa”, havendo lugar a alegação, discussão e prova sobre a questão apenas nos casos em que o problema se coloque em concreto, quer nas hipóteses de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica (art. 20º do C. Penal), quer nas situações de exclusão da culpa.

c) No que concerne, por último, à locução “consciente da ilicitude da sua conduta” ou “bem saber ser proibida por lei a sua conduta”, ou equivalente, entendemos não nos encontrarmos perante facto que deva constar autonomamente da acusação nos termos do art. 283º nº3 do CPP, pois relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso presente, não cumpre articular e demonstrar positivamente a consciência da ilicitude em cada caso, uma vez que esta decorre ou está implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (maxime o dolo do tipo), assumindo autonomia apenas nos casos em que se discuta a “falta de consciência da ilicitude”, enquanto causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º do C.Penal.

(…)

Isto é, quando estejamos perante crime doloso do chamado direito penal clássico, como no caso presente (injúria), a consciência da ilicitude do facto decorre da representação e vontade de praticar factos que preenchem um tipo de crime, sem que acresça autónoma articulação e prova que o arguido estava consciente da ilicitude da sua conduta ou que “sabia ser proibida por lei a sua conduta”, ou expressões equivalentes.

Nas palavras de Wessels, “quem realiza intencional e voluntariamente um tipo de ilícito sem admitir a verificação de uma situação que justifique o facto (qualquer causa de exclusão da ilicitude), sabe comummente, como pessoa capaz de culpa, que comete uma injustiça. (…) Se não ocorrem circunstâncias que assinalem a sua ausência, a consciência da ilicitude deve presumir-se.” (Wessels, Derecho Penal. Parte General, Buenos Aires, Ediciones Depalma-1980, p. 118)».

No fundo, considerou-se que a locução “bem saber o agente ser proibida por lei a sua conduta”, não é facto que deva ser autonomamente narrado na acusação quando se está perante um crime do direito penal clássico, opinando-se que, em casos como o assinalado, a consciência de o agente ter agido sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico (dolo do tipo).

Ora, por muito que se considere que, por vezes, o «menos é mais», a verdade é que no nosso caso não estaremos perante uma situação linear e simples de um facto que, quase de forma automática e necessária, se impõe como naturalmente ilícito ao comum dos mortais.

Estamos a falar de um crime omissivo impróprio, praticado na veste de dolo eventual (assente que a negligência não é punível em qualquer um dos tipos legais em apreço).

Como tal, neste caso muito particular (é a primeira vez em quatro anos de Relação que tenho de reflectir, em aresto, sobre um crime omissivo), deve acrescer, na formulação escrita de um RAI (depois de um despacho de arquivamento do MP onde se decidiu que «não há indícios suficientes nos autos de que a actuação dos canídeos tenha sido provocada pelos eus proprietários que, por meio e através deles, tenham querido acusar a morte da gata da ofendida»), uma autónoma e rigorosa articulação e alegação de que os dois agentes estavam conscientes da ilicitude da sua conduta ou que sabiam ser proibida por lei a sua conduta. 

O princípio vigorante para os delitos omissivos, de que «dolo é a consciência e vontade acerca da realização do tipo» só serve analogamente para a omissão pois aqui falta, seguindo o pensamento de Wessels, um fazer activo conduzido pela vontade da realização.

O omitir-se doloso é a decisão entre a inactividade e o fazer possível e o objecto do dolo nos delitos omissivos impróprios é a totalidade dos elementos que preenchem o tipo objectivo, incluindo as circunstâncias fundamentadoras do dever de garantidor (o tal dever de garante pressuposto no n.º 2 do artigo 10º do CP).

Ao dolo do tipo (neste caso, dolo de omissão) pertence a vontade acerca da inactividade do agente, com o conhecimento de todos os elementos do tipo objectivo e com a consciência de que era possível o impedimento do resultado.

Ora, no RAI analisado, nada se diz sobre o que estaria ao alcance dos agentes ter feito para evitar este resultado danoso.

Dizer que nada fizeram para impedir que os cães fugissem é muito pouco.

É preciso que se perceba mesmo que havia um dever jurídico, palpável em factos naturalísticos, que pessoalmente os obrigassem a evitar o dito resultado (só é garante de um crime de omissão impura uma pessoa que tenha aquilo a que se chama um dever de agir que lhe advém do facto de estar numa situação de garante da não produção de um certo resultado que é o resultado do facto típico – e aqui, a este propósito, são chamadas à colação as divergências doutrinárias quanto à definição dos critérios ou dos princípios que regem a definição dessa posição de garante normalmente resultantes das suas tradicionais 3 fontes: lei, contrato ou ingerência).

Acresce a isto que, segundo até se depreende do testemunho de L., a fls 71 do inquérito, o seu genro apenas se desloca à sua propriedade para caçar com os cães, sendo ela a principal cuidadora dos canídeos.

Prescindir destas alegações num RAI é despir de rigor uma peça processual fundamental, como atrás se referiu, no sentido da definição do âmbito e do objecto do processo a partir dela - do RAI deve constar, sem dúvidas, a imputação de um facto ilícito e culposo a um agente em todas as suas vertentes, sobretudo num caso de crime omissivo praticado mediante dolo eventual (não se ignorando ainda como é ténue a linha que separa as situações de dolo eventual das de negligência consciente, assente que a negligência consciente se distingue do dolo eventual pela consideração de um elemento volitivo do tipo subjectivo, ou seja, a não conformação do agente com a realização do facto).

É necessário, pois, que do texto de um RAI, após um arquivamento do MP, constem factos de onde se retire – de forma completa e não sincopada (com apelo a perigosas generalizações ou indesejáveis analogias ou presunções) - este dolo omissivo eventual, sem margem para dúvidas.

E, por isso, era essencial que ficasse escrito no RAI que estas duas concretas pessoas tinham consciência da ilicitude dos seus actos e do carácter proibido das suas condutas omissivas (desconhecendo-se até o que lhes era suposto fazer para prevenir o resultado letal para os dois gatos da assistente).

Não ignoramos que tudo deve ficar cristalizado, a nível do objecto temático do processo, a partir do RAI.

Porque, como se decidiu em AFJ n.º 1/2015 (publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 18, de 27/1/2015): «(…) A falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. (…)».

Por isso, bem andou o tribunal «a quo» ao considerar que o requerimento instrutório não descreve os factos concretos e especificados imputados aos dois agentes em causa (uma das quais ainda nem sequer constituída como arguida nos autos), sob o ponto de vista subjectivo.

O alegado no RAI é nitidamente insuficiente para se caracterizar tal dolo genérico exigido nos 2 delitos, sendo a expressão «agiram com dolo», na parte referente ao delito do artigo 387º, absolutamente conclusiva e insuficiente para caracterizar os factos psicológicos que traduzem o dolo do tipo.

Não se pode, assim, aceitar o que se escreve no artigo 2ºº da motivação de recuso:

«20. Por último em respeito ao elemento emocional que com dito atrás se traduz numa atitude de indiferença aos valores protegidos pela norma, é por demais evidente a sua manifestação no requerimento de instrução quando se refere: “17.º A ofendida reportou o sucedido à L., que com indiferença viu o relatado em 16 e depois dirigiu-se ao início da tarde, do dia em causa (13 de outubro de 2020) ao posto da GNR, onde apresentou queixa”.

Esta factualidade refere-se, como está bem de ver, a uma situação no tempo posterior à consumação do resultado típico, ou seja, após a morte dos gatos, o que é irrelevante para o nosso caso em que se pretende aferir do dolo anterior a essa morte, contemporâneo do acto de omitir doloso.

O acórdão da Relação de Guimarães, datado de 28/5/2012, decidiu que:

«Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui –, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).» – Ac.R.Coimbra de 30/9/2009, proc. 910/08.7TAVIS (…).

Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos (…) subjectivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.

Acresce que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos (…) subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.

Por outro lado, contrariamente ao pretendido pela assistente, não se pode inferir da materialidade objectiva, o elemento dolo, pois tal traduzir-se-ia numa presunção de iure do dolo, o que é inadmissível.

Uma coisa é a alegação dos factos (no caso concreto relativos aos elementos subjectivos) e outra, diferente, é a respectiva prova. O facto de o dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação».

Quanto ao elemento subjectivo do tipo, isto basta para lançar por terra a tese do recorrente, tal a concordância que damos a este aresto.

Cumpre-nos voltar a frisar que o requerimento de abertura de instrução, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, como na situação sob recurso, equivale a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo, pois, ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar ao arguido.

Nesta decorrência, o requerimento formulado pelo assistente, como acusação alternativa à do Ministério Público, com a função de delimitar o objecto do processo, deve conter, sob pena de nulidade, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" (cfr. art° 283°, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal ex vi art° 287°, n.º 2, in fine, do Código de Processo Penal).

Diga-se ainda que seria nula uma decisão instrutória que pronunciasse um arguido por factos não alegados pelo assistente ou que em relação a estes configurasse uma alteração substancial, nos termos do disposto no art° 309°, n.º 1, do mesmo diploma legal.

A acusação e a pronúncia fixam, pois, o objecto do processo e é imodificável até ao julgamento.

De facto, se fosse o MP a acusar assim um arguido, o destino dessa peça seria o seu não recebimento.

Porque tratar diferentemente esta peça da assistente, então?

E não se diga que compete ao Juiz de Instrução pronunciar a final um arguido.

Exactamente porque o JIC só o faz com base em factos que devem ser rigorosamente delineados no RAI, não competindo a tal Juiz colmatar as lacunas factuais do assistente, aqui a «parte acusadora».

Há que incutir rigor processual, não primando, pois, por tal qualidade a peça da assistente.

Como bem conclui a decisão sumária emitida por este tribunal, em 6/6/2012, no Pº 135/10.1TALSA.C1:

«Por conseguinte, irrepresentando-se-de-lhe (do RAI) o indispensável conteúdo e virtualidade acusatória por bem-definida conduta jurídico-criminal – absolutamente essencial à delimitação do objecto processual e da decisão-instrutória –, deixou-se esvaziada de sentido prático-jurídico a respectiva fase processual, assim incontornavelmente votada ao malogro, e, logo, à inexequibilidade, pela impossibilidade de realização do visado/legal desiderato de comprovação judicial da pretensa indiciação da dolosa e voluntária autoria comissiva de concreto/demarcado, típico, ilícito e culposo acto comportamental-criminal de tal cidadã, e à consequente determinação da pessoal sujeição a referente julgamento, nos seus precisos limites, já que, como supra se esclareceu, qualquer eventual complementarização descritivo-factual que em hipotética pronúncia fosse operada pelo juiz de instrução a inquinaria com o vício processual de nulidade, em conformidade com o postulado no art.º 309.º, n.º 1, do CPP, com referência ao conceito normativo ínsito no preceito 1.º, al. f), do mesmo compêndio».

3.13. Como bem sintetiza o Digno Procurador da República em 1ª instância:

«Com efeito, tal requerimento é completamente omisso quanto a factos que preencham o tipo subjetivo dos imputados crimes, já que em nenhum momento é alegado pela Requerente que os arguidos tivessem atuado com efetiva intenção de praticarem cada uma das suas condutas típicas, fazendo-o de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem tais condutas proibidas e punidas por lei penal.

Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25/02/2015 (in www.dgsi.pt), «não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objetiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos”».

Isso equivale a afirmar ser essencial que o requerimento de abertura da instrução descreva todos os factos integradores dos tipos de crime imputados, entre os quais se encontra a narração factual do dolo, afastada que está a possibilidade de tais factos virem a ser posteriormente aditados (artigos 309.º e 359.º do Código de Processo Penal).

Nesse sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.06.2011 (in www.dgsi.pt), que se subscreve, e onde se sustenta que «(…) da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo). O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação».

Posição elevada através do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2014 (DR, 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015), onde foi decidido que «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal».

Acrescentando este acórdão que, «de forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com “recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum” (…)».

Assim, os factos integradores do elemento subjetivo dos crimes em causa nos autos (crime de dano e crime de maus tratos a animais de companhia) tinham que constar do requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente, o que não sucedeu.

Não o tendo feito, e atento dos fundamentos acima expostos, a instrução afigura-se legalmente inadmissível».

3.14. Face ao exposto, estamos em crer que o RAI apresentado pela assistente não obedece ao que se estatui no art. 287.º, n.º 2, do CPP, pois é manifesto que, contrariamente ao exigido art. 283.º, n.º 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente o arguido e a denunciada L. pelos crimes que lhes imputa.

Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação ao arguido e à denunciada de uma pena ou medida de segurança pelos aludidos crimes.

Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo [cf. art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2, ambos do CPP], sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.

Deve, pois, ser totalmente rejeitado, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução, o que foi, e bem, feito pelo tribunal recorrido.

3.15. Conclui-se, assim, sem necessidade de mais considerações, que o recurso não merece provimento.

3.16. Não se deixará, contudo, de lembrar duas circunstâncias:

a)- fica a certeza de que esta questão tem uma natureza mais civil do que criminal;

b)- poderá, de facto, caída a hipótese de perseguição criminal contra o dono e detentora dos animais em causa, existir responsabilidade contra-ordenacional por parte destes, cabendo à entidade administrativa competente (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária) essa decisão, nos termos do diploma referente ao ilícito de mera ordenação social (DL 433/82, de 27/10) e, mais especificamente , do DL 276/2001, de 17/10, cujo artigo 68º foi alterado, entretanto, pelo DL 9/2021, de 29/1, aí agora se determinando que poderá estar em causa uma – ou mais - contraordenações económicas graves, puníveis nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE) e já não com os montantes de coima anteriormente gizados pela redacção original do preceito, referidos no artigo 48º do RAI, redacção essa, contudo, vigente à data da prática das eventuais contra-ordenações (cfr. artigo 3º do DL 9/2021, de 29/1). 

Para esse efeito – análise da eventual responsabilidade contra-ordenacional dos agentes denunciados -, deverá o tribunal recorrido, uma vez baixados estes autos à 1ª instância, enviar para a DGAV os elementos tidos por convenientes para se poder aí iniciar o competente processo contra-ordenacional.

3.17. Em sumário desta decisão, diríamos:

1º- Prescindir da alegação do elemento emocional do dolo omissivo eventual num RAI é despir de rigor uma peça processual fundamental no sentido da definição do âmbito e do objecto do processo a partir dela.

2º- É necessário, pois, que do texto de um Requerimento de Abertura de Instrução, após um arquivamento do MP, constem factos de onde se retire – de forma completa e não sincopada (com apelo a perigosas generalizações ou indesejáveis analogias ou presunções) - este dolo omissivo eventual, sem margem para dúvidas.

3º- É essencial que fique escrito no RAI que os eventuais agentes dos crimes em causa pessoas tinham consciência da ilicitude dos seus actos e do carácter proibido das suas condutas omissivas (descrevendo até o que lhes era suposto fazer para prevenir o resultado danoso letal ocorrido).

                                                          

III - DISPOSITIVO  

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.


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Deverá, contudo, o tribunal recorrido actuar como determinado no ponto 3.16 b) da parte II deste aresto.

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Custas pela assistente [artigo 515º, n.º 1, alínea a) do CPP], fixando em 4 UCs a taxa de justiça (tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 2 de Fevereiro de 2022

(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

Paulo Guerra (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)