Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
92/13.2TACDR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS
CAUSAS DE EXCLUSÃO
Data do Acordão: 09/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 355.º E 379.º DO CPP; ARTS. 16.º E 31.º DO CP
Sumário: I - A falta de enumeração entre os factos provados ou não provados de factos relevantes alegados pela acusação, integra-se na falta de fundamentação ou insuficiência de fundamentação da facto da sentença e não propriamente na omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devia conhecer e que constitui a nulidade de sentença a que alude a alínea c), n.º1 do art.379.º do Código de Processo Penal.

II - A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

III - Se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjectivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido.

IV - Estando dado como provado que os arguidos agiram com conhecimento e vontade de danificar uma parte de uma vedação que não lhes pertencia, que agiam contra a vontade da dona, e que sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei, mesmo que o valor do dano seja pequeno, fica afastada a existência de qualquer erro sobre as circunstâncias do facto.

V - Não existindo factos provados que permitam o reconhecimento de existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, é inútil considerar a mera hipótese da sua existência para, em seguida e em face dos factos provados, se concluir que não se mostram preenchidos os pressupostos da legítima defesa, acção directa, estado de necessidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pela Comarca de Viseu – Instância Local de Viseu, Secção Criminal, J2, sob pronúncia que recebeu a acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos

A... , casado, natural de Reriz, freguesia do concelho de Castro Daire, de nacionalidade portuguesa, nascido em 09-02-1959, filho de (...) e de (...) , carteiro, residente na Rua (...) , Castro Daire, e

B... , solteiro, natural de Reriz, freguesia do concelho de Castro Daire, de nacionalidade portuguesa, nascido em 2-04-1965, filho de (...) e de (...) , pedreiro, residente na Rua (...) , Sesimbra,

imputando-se-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.° do C. Penal.

A demandante C... deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos pedindo a condenação destes a pagar-lhe a importância global de € 1.997,14, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Realizada a audiência de julgamento - no decurso da qual foi comunicada uma alteração não substancial dos factos constantes da pronúncia, nos termos do art.358.º, n.º1 do C.P.P. -, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 9 de Janeiro de 2015, decidiu julgar procedente a pronúncia e a parcial procedência do pedido de indemnização cível e, em consequência:

- Condenar o arguido A... pela prática, em co-autoria material  e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, o que perfaz o quantitativo de € 350;

- Condenar o arguido B... pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um       crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de  multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, o que perfaz o quantitativo de € 250 (duzentos e cinquenta euros); e

- Condenar os referidos arguidos/demandados a pagar à demandante C... a quantia de € 5 (cinco euros), a título de danos patrimoniais sofridos, absolvendo-os de tudo o mais que vem peticionado.

            Inconformado com a douta sentença dela interpuseram recurso os arguidos A... e B... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

Primeira - A queixosa usou de todas as artimanhas e falsidades para, ad odium, conseguir a perseguição criminal dos arguidos, que foram testemunhas em processo cível, no qual, a sentença final acabou por lhe retirar a razão de uma versão que, em desespero de causa, quis manter contra os recorrentes, até ao encerramento da audiência dos presentes autos, não obstante o veredicto do TRPorto e da lei atrás citada, em sentido bem contrário ao seu.

Segunda - Os arguidos, ora recorrentes, prévia e espontaneamente, interpelaram a queixosa sobre o que se propunha fazer no terreno ou barroco em causa, afirmando-lhe o direito de passagem, que por ali exerciam, em vista do exercício da servidão de águas, por ela e por todos confessada / reconhecida como existente.

Terceira - Os recorrentes, ao contrário do provado na douta sentença recorrida não praticaram o crime de dano, dada a não verificação, quer de elemento objectivo (a queixosa até confessou que o provado e insignificante prejuízo, de 5 €, foi reparado gratuitamente pelo seu genro) e, muito menos, do seu elemento subjectivo, a título de dolo. Com efeito,

Quarta - Atentos os princípios da procura da verdade material e da suficiência do processo penal, temos que, quanto à delimitação do dano provocado pela conduta dos arguidos, os mesmo se cingiram ao montante já dito, por necessidade de obter apenas a conseguida passagem de pé, consistente em cortar a rede em 1,10 metros de altura, junto a um dos pilares, por forma a enrolar-se e a voltar a engatar-se ao outro pilar, com um custo de apenas 5 €

Quinta - Assim, não se provou, ao contrário dos elementos ou documentos, para que a douta sentença também remete (bem como a queixa) os danos que as fotografias mostram, a que os recorrentes são alheios (os factos que estes assumiram fizeram-no, corajosa, voluntária e prudentemente, na companhia das testemunhas do M.º P.º), não ousando, por isso, atribuí-los sequer a outros utentes das águas em causa e aos que sempre passaram rumo ao seu cabal exercício.

Sexta - Os arguidos, dúvidas não existem a ninguém (a não ser insólita e indevidamente, á queixosa e seu ilustre mandatário) têm o direito de passagem pelo terreno que a queixosa quis fazer seu e vedar e, assim a vedação constitui uma agressão actual e/ou contemporânea de interesses protegidos dos arguidos, donos de prédio beneficiário da servidão de águas, com a extensão e modo de exercício já atrás extractados: posto que,

Sétima - Para efeitos de legítima defesa tanto basta que o bem ou interesse juridicamente ameaçado ou acabado de violar seja juridicamente protegido, não sendo necessário que seja, penalmente protegido, tal como o direito de propriedade ou a posse (vide, a este propósito: o citado art1565 do C.C. e, em sintonia, Figueiredo Dias, in Direito Penal, parte Geral, Tl, 2004, pág. 386). Para mais,

Oitava - Dúvidas também não restam que a agressão era actual (os arguidos mal viram os pilares ou esteios para a rede, logo foram ter com a queixosa para deixar uma cancela e que lhes desse 1 chave). Assim,

Nona - A agressão, colocação da rede, também era ilícita e culposa, à luz do acórdão do TRPorto e da lei citada, não tendo a queixosa, face ao ordenamento jurídico, qualquer justificação para agir de tal modo, pois, bem ao invés, estava obrigada a proporcionar aos arguidos a fruição do seu direito de passagem naquele local, tendo ela, isso sim, agido livre, voluntária e conscientemente; pelo que,

Decima - Aqui chegados, restará saber se o meio empregue pelos arguidos era o necessário para defender aquele direito de passagem e/ou entrada no terreno em causa, mesmo que ela tivesse provado pertencer-lhe, o que não fez.

Decima primeira - Certo é que, se se mostrar possível o recurso às forças da autoridade em tempo útil se terá de concluir que o meio empregue não é o necessário, já que o da autoridade se configurará, mas só por via da regra, como o menos gravoso para o agressor (vide, a propósito F. Dias, ob. Cit., pág. 396. Ora,

Decima segunda - Os arguidos tinham um campo de 150 alqueires de milho, que começar a regar e, assim, o meio necessário empregue pelos arguidos (dano remediável de 5 €) era claramente muito menos gravoso do que o seria o recurso às forças da autoridade (que sempre se não encarregariam de tal questão cível), aqui mesmo entendidos então, como os meios coercivos judiciais, nomeadamente uma providência cautelar, que obrigaria à acção principal, sob pena de caducidade daquela e se protelaria sempre pelo tempo (demasiado e com elevados custos), não lhes sendo possível pois, em tempo útil aos ditos meios jurídicos para fazer valer um necessário e elementar direito de passagem por um “barranco” ou precipício, que nem sequer admitem ser da queixosa, mas onde ela, não obstante, colocou a rede, esta sim, sua. Assim sendo,

Décima terceira - Ainda que os arguidos se encontrassem em erro sobre tal circunstância (necessidade do meio empregue: insignificante corte, reparável, em rede), tal sempre lhes excluiria o dolo nos termos das disposições combinadas, entre outros dos arts. 336. 337, 339-1, todos do CC, 7.º do CPP e 16-2, por referência ao art. 31-1 e 2 a) e b), 32 a 34, todos do Cód. Penal, que a douta sentença sob censura omitiu.

Décima quarta - Deste modo e sendo o crime de dano, apenas punível a título doloso, o que não se provou, contrariamente ao decidido, por erro e, até, contradição, de qualificação dos factos e da sua subsunção aos dispositivos legais acima citados, forçoso se torna concluir, finalmente, que aquele crime não foi praticado pelos recorrentes, e sempre, ou por agirem ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude (legítima defesa, acção directa, estado de necessidade), ou por falta do preenchimento do respectivo elemento subjectivo, atentos os apontados dispositivos.

Nestes termos e nos mais que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve revogar-se a sentença condenatória, absolvendo-se os arguidos do crime de dano de que vêm acusados.

            A ofendida/demandante C... respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, concluindo que deve manter-se a condenação dos arguidos pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.212.º do Código Penal e, se possível, serem condenados numa indemnização justa quanto à parte civil, ou seja pela destruição da rede que custou à recorrida a quantia de € 147,14, cujo prejuízo nunca foi de € 5,00.

 O Ministério Público na Comarca de Viseu respondeu também ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação da sentença recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer em que, como questão prévia, argui a nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do art.379.º, n.º1, al. c), do C.P.P., por omissão de pronúncia sobre matéria de facto alegada pelos arguidos na contestação de folhas 229 a 235, a justificar o reenvio dos autos à 1.ª instância para colmatar tal falha.

A não se entender dessa forma, é de entender que o recurso dos arguidos deverá improceder, como referiu o Ministério Público na 1.ª instância.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo os arguidos respondido ao douto parecer do Ministério Público.

           

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes da sentença recorrida é   seguinte:

Factos provados

1. No dia 04-05-2013, a hora não concretamente apurada, após as 14h00m, os arguidos A... e B... , munidos de um alicate, de características não concretamente apuradas, dirigiram- se ao terreno sito no lugar da Beçadinha, Solgos, freguesia de Reriz, concelho de Castro Daire pertencente à ofendida C... e, uma vez aí chegados, o arguido B... , em comunhão de esforços com o arguido A... , cortaram parte de uma rede de vedação aí existente, em cerca de 1,10 m em altura junto a um dos pilares de ferro, a qual delimitava o mencionado terreno e que tinha sido colocada pela ofendida.

2. Dessa forma, causaram um prejuízo de montante não superior a 5 euros.

3. Os arguidos, em comunhão de esforços e de intenções, agiram com o propósito alcançado de danificar parte da aludida vedação, bem sabendo que a mesma não lhes pertencia e que agiam contra a vontade da respectiva dona.

4. Agiram igualmente de modo livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Relativamente ao pedido de indemnização civil provou-se ainda que:

5. A ofendida comprou e pagou a rede e respectivos acessórios tendo gasto a quantia de 147,14 Euros.

6. Os arguidos sabiam que o aludido terreno da Beçadinha era e é propriedade da ofendida, tendo ambos sido testemunhas na acção sumária n° 73/09.0TBCDR, que correu seus termos no Tribunal de Castro Daire.

7. A ofendida antes de colocar a rede na sua propriedade teve de contactar com o vendedor e teve trabalho em colocar os ferros para depois amarrar a rede neles, o que lhe causou despesas em contactos e deslocação ao terreno para implantar a mesma.

8. Em consequência da conduta descrita dos arguidos a ofendida sentiu-se triste e aborrecida.

Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos provou-se que:

9. O arguido A... é carteiro e aufere cerca de 900 Euros mensais.

10. A sua esposa é empregada bancária, e aufere cerca de 1.700 Euros mensais, e tem dois filhos, com 35 e 25 anos de idade respectivamente, estando a filha mais nova a seu cargo.

11. Vive em casa própria e paga ao banco de empréstimo, pela aquisição da mesma, a quantia de cerca de 100 Euros mensais.

12. É ainda proprietário de vários prédios rústicos, de um outro prédio urbano, e de um veículo automóvel.

13. Tem o 9.º ano de escolaridade.

14. O arguido B... está desempregado, há cerca de três anos, encontra-se inscrito no Centro de Emprego e aufere de subsídio de desemprego cerca de 525 Euros mensais.

15. Vive com a sua companheira e com o seu filho que tem 18 anos, em casa própria, e paga ao banco de empréstimo, pela aquisição da mesma, a quantia de cerca de 520 Euros mensais.

16. A sua companheira é empregada doméstica e aufere cerca de 300 Euros mensais.

17. É ainda proprietário de vários prédios rústicos, de um outro prédio urbano, de um veículo automóvel e uma mota.

18. Tem o 6.º ano de escolaridade.

19. Ambos os arguidos são tidos como pessoas honestas, de bem e sérias.

Quanto aos antecedentes criminais provou-se que:

20. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

Factos não provados

Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos, maxime todos os que estejam em contradição com os supra enunciados e, designadamente, que:

1. O prejuízo causado foi no montante não inferior a 150 euros;

2. Os arguidos, com a sua conduta, procuraram evitar o sacrifício de interesses maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa, e agiram na convicção de ser legítima a sua actuação.

Convicção do tribunal

O tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com a prova documental junta aos autos, e com as regras da experiência.

Assim, e quanto à prova documental, teve-se em consideração: o teor da factura e recibo de fls. 22 a 24, as fotografias de fls. 25 a 27 e 58 a 61; certidão da sentença e do acórdão da Relação do Porto proferidos no processo 73/09.OTBCDR, que correu termos no Tribunal de Castro Daire constante de fls. 115 a 140.

Para além, da prova documental supra referida, foram, desde logo, valoradas as declarações de ambos os arguidos.

Com efeito, o arguido A... confessou os factos pela forma como foram dados como provados, tendo esclarecido que ele e o irmão (o arguido B... ) foram ao terreno em questão e levaram o alicate e cortaram a rede em questão da propriedade da queixosa, esclarecendo a este propósito que a rede não foi toda cortada, apenas foi cortada em parte junto a um dos prumos de ferro que servia para segurar a dita rede, em cerca de 1 metro de altura. Mais referiu que pese embora tenha sido o irmão a proceder ao dito corte agiram ambos em comunhão de esforços. Esclareceu ainda que ele e o irmão foram testemunhas num processo em que a queixosa C... era parte, e que ele e o irmão têm direito a passar no terreno da dita queixosa por causa da água existente numa mina. Mais referiu que o D... e o K... assistiram ao corte da dita rede, e que o objectivo deles (arguidos) foi ver se estava tudo bem com as minas, uma vez que são proprietários de terrenos que são regados com a água dessas minas. Mais referiu que a queixosa colocou a rede a um Domingo de manhã, e uma vez que ele e o irmão têm o dito direito de passagem para ir á água das minas, falaram com ela no dia anterior com vista a que fosse lá colocado um portão ou uma cancela, e que lhes fosse facultada uma chave para o puderem abrir e ela disse que sim, todavia, no dia a seguir quando lá chegaram já estava tudo vedado, razão pela qual foram novamente falar com ela, tendo esta referido que não podia fazer nada e que não mandava sozinha.

Por sua vez, o arguido B... confirmou a maioria das declarações prestadas pelo outro arguido, tendo designadamente esclarecido que foi ele quem cortou parte da rede em causa em comunhão de esforços com o irmão (o arguido A... ), desconhecendo ele o prejuízo causado. Mais referiu que não sabia que estava a cometer um crime - o que nesta parte não logrou convencer atentas as regras da lógica e da experiência, conforme adiante melhor se fará alusão.

Foram ainda valorados e tidos em consideração os seguintes depoimentos:

- C... , queixosa e demandante, a qual, não obstante tal qualidade, depôs de foram isenta e credível, tendo a mesma esclarecido designadamente que não presenciou ao corte da rede em causa, todavia, confirmou que foi ela quem comprou e colocou a dita rede para vedar o seu terreno sito em Beçadinha, junto a um caminho público. Mais referiu que a rede foi colocada no dia 4/05/2013 e que o arguido B... foi lá na véspera e perguntou-lhe para que eram os ferros, tendo ela respondido que era para vedar a dita propriedade. Nessa ocasião ele referiu-lhe que queria lá colocar um portão, e ela disse-lhe que não queria lá portão nenhum. Confirmou ainda que no dia a seguir - 4/05/2013 - colocou a rede da parte da manhã e a mesma da parte da tarde já estava cortada, esclarecendo que o corte foi junto a um dos ferros de cima a baixo. Mais referiu que a rede tinha no seu todo cerca de 15 a 20 metros de comprimento. Depois de ver o corte emendou a dita rede, sendo que tal remendo foi feito pelo seu genro, não tendo ela despendido o pagamento de qualquer quantia para o efeito. Tal rede apareceu depois mais tarde cortada novamente e depois desapareceu, desconhecendo ela os autores desses factos. Mais referiu que pela colocação da rede toda despendeu cerca de 147 Euros, e que ficou triste e aborrecida com o corte da mesma. Confirmou ainda que os arguidos têm direito à água existente numa mina que está fora do seu terreno, apesar das nascentes se situarem no seu terreno.

- K... , o qual depôs de forma isenta, e esclareceu que em dia que não soube concretizar, mas no mês de Maio de 2013, a seguir ao almoço, ele estava no café e a certa altura apareceram ambos os arguidos que lhe pediram para ele e o D... , que também estava presente, irem com eles para verem uma coisa, e foi quando se deslocaram ao terreno em questão da queixosa, sito na Beçadinha, Solgos, freguesia de Reriz, concelho de Castro Daire, e quando lá chegaram o arguido B... cortou a rede em questão, com um alicate que trazia na mão, esclarecendo que tal corte foi feito em altura, junto a um pilar, em cerca de 1,10 m de altura, tendo a mesma ficado dobrada por forma a permitir a passagem. Os arguidos na ocasião disseram-lhe que queriam ir ver uma mina que lá estava, e depois do dito corte foram ver a mesma. Mais confirmou que os arguidos sabiam que a rede era da queixosa, e esclareceu ainda para proceder à reparação do corte da rede em causa - esclarecendo que foi cortada em cerca de 1,10 m de altura junto a um pilar - o custo seria de cerca de 5 Euros.

- D... , o qual depôs de forma isenta, e confirmou no essencial o relatado pela testemunha anterior.

- E... , o qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, viu a mesma cortada de cima a baixo junto a um pilar, e que a dita rede era da queixosa e estava a vedar a sua propriedade

- F... , a qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, esclareceu que teve um litígio com a queixosa em tribunal, tendo concretizado o mesmo e referiu que teve conhecimento que a mesma procedeu à vedação com uma rede do seu terreno, altura em que foi falar com ela, uma vez que ela e os arguidos têm de ter acesso a um poço ali existente, e ela disse-lhe que aquilo era dela. Depois o arguido B... disse-lhe que ele tinha ido falar com ela, para ver se ela punha lá uma cancela, todavia não chegaram a acordo.

- G... , a qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, esclareceu que é irmã da queixosa e que presenciou a uma conversa entre a mesma e o arguido B... , num dia que não soube concretizar, sendo que este perguntou-lhe quem tinha colocado os ferros no terreno em questão e a irmã disse-lhe que tinha sido ela, sendo que o referido arguido queria que ela deixasse lá colocar um portão e a irmã disse que não deixava.

Relativamente aos factos atinentes ao elemento subjectivo, dados como provados, cumpre dizer que o tribunal, em face do conjunto de toda a prova produzida, e das regras da experiência, não ficou com dúvidas que ambos os arguidos não ignoravam que a rede em causa pertencia à queixosa (conforme aliás os próprios confirmaram), e, nessa medida, bem sabiam os arguidos que aquela assumia carácter alheio e que, consequentemente, lhe estava vedada a sua destruição, e que a sua conduta era proibida e punida criminalmente (tudo isto sem prejuízo de outras considerações que adiante se irão mencionar em sede de direito, sobre as eventuais causas de exclusão de ilicitude, algumas delas invocadas na contestação apresentada pelos arguidos).

Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos relevaram as suas próprias declarações, e ainda o depoimento da testemunha Belmira Marques, a qual confirmou que ambos os arguidos são tidos como pessoas honestas, de bem e sérias.

Quanto à ausência de antecedentes criminais dos arguidos fundou-se a convicção do tribunal no teor dos certificados de registo criminal dos mesmos juntos aos autos.

Quanto aos factos dados como não provados cumpre dizer que tal se deve à circunstância de ou não ter sido produzida prova suficiente que lograsse convencer o tribunal da sua verificação ou de ter sido produzida prova em sentido contrário.

Com efeito, salienta-se aqui, no que concerne ao prejuízo sofrido, que não apurou que o mesmo foi de montante não inferior a 150 euros, já que a rede não ficou totalmente danificada, apenas se apurou que foi feito um corte em altura numa extensão de 1,10m, sendo que do depoimento das testemunha K... , e conforme o já acima mencionado, a reparação desse corte não importa numa quantia superior a 5 euros, o que logrou convencer, uma vez que se trata apenas da junção e reposição dos elos partidos/cortados da dita rede ao pilar de ferro, tendo inclusivamente a queixosa referido que o corte foi junto a um dos ferros de cima a baixo, que a rede tinha no seu todo cerca de 15 a 20 metros de comprimento, e que depois de ver o corte emendou a dita rede, sendo que tal remendo foi feito pelo seu genro, não tendo ela despendido o pagamento de qualquer quantia para o efeito.

*
                                                                        *
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação dos recorrentes A... e B... as questões a decidir são as seguintes:

- se da prova produzida em julgamento não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime; e

- se ao cortarem parte da rede os recorrentes agiram em legítima defesa, acção directa, estado de necessidade ou erro sobre as circunstâncias que excluem o dolo, pelo que devem ser absolvidos do crime de dano.  


-

            Embora sejam estas as questões suscitadas no recurso dos arguidos A... e B... , antes de as conhecer deparasse-nos uma questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-geral Adjunto no seu parecer, que consiste na nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.379.º, n.1, alínea c), do C.P.P..     

Uma vez que a proceder esta questão deverá o processo ser devolvido ao Tribunal a quo a fim de suprir a arguida nulidade, ficando assim prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelos recorrentes, importa decidir, antes do mais da existência da nulidade, que é aliás de conhecimento oficioso, nos termos do art.379.º, n.º 2 do C.P.P..

            Da questão prévia

O Ministério Público neste Tribunal da Relação defende que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.379.º, n.1, alínea c), do C.P.P., porquanto o Tribunal a quo não levou aos factos provados ou aos factos não provados da douta sentença recorrida a matéria de facto que foi alegada de folhas 229 a 235 da contestação dos arguidos. 

As questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa surgem abordadas na sentença recorrida a propósito da análise de direito, só que tal abordagem não tem o suporte factual em sede de matéria provada, apesar de estar alegada pela defesa na contestação.

Vejamos.

O art.374.º do Código de Processo Penal manda estruturar a sentença penal em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo.

Segue-se a fundamentação, «…que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição , tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .» ( n.º2). 

Na fundamentação há que distinguir, por um lado, os fundamentos de facto e por outro, os fundamentos de direito da decisão.

A fundamentação de facto começa pela enumeração dos factos provados e não provados; continua com uma exposição de motivos que fundamentam a decisão; e finda com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.  
Para saber quais os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença importa atender ao disposto no art.368.º do Código de Processo Penal, que dispõe, designadamente, o seguinte:
« 1. O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias e incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
    2. Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa, e bem assim os que resultarem da discussão da causa relevantes para as questões de saber:
a) se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime; b) se o arguido praticou o crime ou nele participou; c) se o arguido actuou com culpa; d) se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa; e) se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança; f) se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.».

Os factos provados e não provados são, assim, “… todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da decisão da causa, quando aceites nos termos do art.359.º, n.º2.”. [4]

Resulta do art.379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que é nula a sentença « Que não contiver as menções referidas no n.º2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas  a) a d) do n.º1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».

A falta de enumeração entre os factos provados ou não provados de factos relevantes alegados pela acusação, integra-se na falta de fundamentação ou insuficiência de fundamentação da facto da sentença e não propriamente na omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devia conhecer e que constitui a nulidade de sentença a que alude a alínea c), n.º1 do art.379.º do Código de Processo Penal. 

Posto isto e retomando ao caso concreto, verificamos que os arguidos A... e B... apresentaram uma contestação conjunta, constante de folhas 229 a 235, onde referem o seguinte: que oferecem o merecimento dos autos ( art.1.º); que as razões de facto ínsitas no RAI e as do acórdão junto do Tribunal da Relação do Porto, foram omitidas na queixa, o que não terá levado o Ministério Público a valorizar o seu conteúdo ( art.2.º); que a valoração dessa matéria poria em evidência a “ridicularia” do dano e influiria na inexistência de uma motivação dolosa dos arguidos, quer no sentido de actuarem com conhecimento e vontade da prática do ilícito, quer mesmo na sua forma mais ténue, ou seja, como mera conformação com a possibilidade de ocorrência do resultado danoso (dolo eventual) ( art.3.º); que no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm o direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela ( art.4.º); como também se provou e continua a provar que os arguidos procuraram evitar o sacrifício de interesses seus maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa ( art.5.º); Fazendo-se, até, acompanhar de 2 agricultores experientes com quem trocaram opiniões sobre as medidas a tomar, tendentes à salvaguarda dos seus interesses muito superiores aos que a todos era dado observar, ainda por cima, podendo o bocadito de rede cortada ser até por eles colocada em cancela com tal medida, que permitisse o acesso às suas águas ( art.6.º); Águas aquelas que sempre vieram a ser utilizadas desde então, porquanto a queixosa jamais se opôs a tanto ( art.7.º); Assim, existindo como existe o seu apontado direito, a acção dos arguidos sempre, no caso, inserir-se-ia na acção directa, prevista no art. 336 do C. Civil ( art.8.º); Na verdade, no circunstancialismo referido, os arguidos, ao fazerem o que fizeram, terá sido sempre na convicção de que a rede colocada pela queixosa estava a prejudicar não só a passagem, como o acesso às águas a que têm direito ( art.9.º); Por conseguinte, não havendo sequer necessidade de afirmar o direito em acção cível, que sempre se arrastaria no tempo e demandaria despesas e prejuízos elevados, agiram os arguidos na convicção de ser legítima a sua actuação ( art.10.º); Sem sequer se poder, assim, falar em eventual erro em relação a uma causa de exclusão da ilicitude, ou seja no tocante aos pressupostos da acção directa, porquanto, à partida, os direitos dos arguidos eram reconhecidos por todos e pelo próprio Tribunal, no processo em que aqueles foram testemunhas arroladas pela parte contrária á da queixosa, que esta tais direitos litigou nessa sede cível ( art.11.º); De resto, os arguidos, antes dos factos, até foram abordados pela queixosa sobre se não se opunham à colocação, ali, de um portão ou cancela fechada, no que eles acordaram, desde que recebessem uma chave, o que não veio a acontecer depois ( art.12.º); Sem embargo, os arguidos são pessoas bem formadas, ordeiras, geralmente bem vistas e tidas como francas, credíveis e muito prudentes nas suas atitudes ( art.13.º).

O Ministério Público neste Tribunal da Relação refere que o Tribunal a quo não levou aos factos provados ou aos factos não provados da douta sentença recorrida a matéria de facto que foi alegada de folhas 229 a 235 da contestação dos arguidos e que as questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa surgem abordadas na sentença recorrida a propósito da análise de direito, só que tal abordagem não tem o suporte factual em sede de matéria provada, apesar de estar alegada pela defesa na contestação.

Salvo o devido respeito, não podemos deixar de notar que o Ministério Público neste Tribunal da Relação não indica quais os concretos factos, relevantes para a decisão da causa, com especial relevo para as causas de justificação da ilicitude ou da culpa dos arguidos, que foram omitidos na decisão recorrida e, por outro lado, não indica qual o concreto suporte factual omitido da contestação na base da qual o Tribunal a quo terá conhecido na abordagem das questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa.   

Posto isto, diremos que no entender do Tribunal da Relação os factos relevantes para a decisão da causa e que o Tribunal a quo não poderia deixar de dar como provados ou não provados são , no essencial, os que constam dos artigos 5.º e 10 da contestação , pois o demais aí referido a propósito do corte da rede de vedação gira à volta desta factualidade e da sua subsunção jurídica em causas de exclusão da sua responsabilidade criminal.

Mesmo assim, não podemos deixar de realçar que o facto que consta do art.5.º da contestação, ou seja, que «os arguidos procuraram evitar o sacrifício de interesses seus maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa», mais não é que um facto conclusivo.

Esta factualidade do art.5.º está ligado ao facto do art.4.º , onde se refere que « no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm o direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela».

Temos como medianamente claro que esta matéria do art.4.º da contestação não poderia incluir-se na factualidade provada, pois não é um facto, mas pura decisão de direito, apresentada na forma negativa, sem qualquer apoio em factos descritos naquele articulado. Deste modo, não poderia considerar-se como um facto, e incluir nos factos provados, que “no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela - sem que se perceba sequer o que os contestantes pretendem dizer com o «… pequeno prédio ou quelho da…» vedado por aquela».

O art.10.º contestação –  os arguidos agiram na convicção de ser legítima a sua actuação –, respeitante ao elemento subjectivo, integra efectivamente um facto e relevante para a defesa dos arguidos.

Olhando agora para a factualidade constante da fundamentação da douta sentença verificamos que não existe omissão de pronúncia sobre os apontados factos constantes dos artigos 5 e 10 da contestação dos arguidos, porquanto o Tribunal a quo levou os mesmos ao ponto n.º 2 dos factos não provados da douta sentença recorrida.

No que respeita à abordagem da existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa na sentença recorrida, a propósito da análise de direito, é verdade que o Tribunal a quo considerou que elas não se verificam, mas apenas e só porque os factos dados como provados não permitem a sua subsunção àquelas causas de exclusão. Ou seja, da audiência de julgamento não resultaram provados os factos que constam dos artigos 5.º e 10.º da contestação, nem resultaram provados outros factos cuja subsunção ao direito permitam dar como verificadas as causas de exclusão da ilicitude e da culpa que foram mencionadas, segundo a fundamentação de direito da douta sentença recorrida, “na contestação apresentada” e nas “alegações orais que forma proferidas pelo ilustre Defensor dos arguidos”. 

Assim, não se reconhece a nulidade de sentença, por omissão de pronúncia, arguida neste Tribunal da Relação pelo Ministério Público.


-

            Passemos agora ao conhecimento da primeira questão objecto do recurso.

Os recorrentes A... e B... alegam que da prova produzida em julgamento não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime, alegando para o efeito o seguinte:

- o dano provocado à queixosa, consistente no corte da rede em 1,10 m de altura, junto a um dos pilares, por forma a enrolar-se e a voltar a engatar-se ao outro pilar, teve o custo insignificante de € 5,00, e foi reparado gratuitamente pelo genro da queixosa, como esta confessou;

- Resulta da queixa, da sentença a esta junta, por confronto com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do decurso do inquérito, de toda a audiência e sobretudo das alegações orais finais do mandatário da queixosa e aliás da escritura junta ao RAI, que « existe umas nascentes e um poço; no fundo do terreno vendido (a “Vessadinha”, ora propriedade da queixosa e filhas, vide: sentença junta à queixa, proferida na acção, por elas movida contra a testemunha F... ), cujas águas irrigam os prédios denominados “Campo de Oitava” (o dos recorrentes, acrescentamos nós, como provado nos autos) e “Pereiros” (propriedade da dita F... , Ré naquela acção n° 73/09.OTBOFR, acrescentamos nós)»;
- Só depois do acórdão do Tribunal da Relação do Porto haver sido proferido e notificado às partes, é que a queixosa vedou a parte do terreno das nascentes, como resulta do depoimento gravado em audiência da testemunha, F... , cujo inicio e termo se indica. E isto, - como se foi revelando na audiência de julgamento sobretudo, pelo ilustre mandatário da queixosa - , por se pretender, com aquela rede colocada, afirmar a tese de que não está em causa o direito ás águas nascentes em mina por sobre o prédio da queixosa, mas apenas a passagem ou entrada naquele terreno inferior aonde provém aquelas águas a que os recorrentes também têm direito.
- Para tanto, pretendeu-se “ressuscitar” a condenação revogada (pelo TRP) da F... , na parte que condenava os RR «... 2o- no reconhecimento em «absterem-se de entrarem neste terreno, para qualquer fim», e fazer crer que tal sentença da 1a instância também vinculava os recorrentes quanto ao julgado em tal acção cível. Aliás, daquela sentença cível da 1a instância também já resulta que o predio “Vessadinha”, da ali Autora e ora queixosa, tem 3.800 m2 de área matricial e, só em relação a ele, ficou «vedado o direito de o comprador explorar água que possa afectar as nascentes de uma mina e um poço existentes no fundo do terreno».
Aquela sentença, na sua fundamentação de facto (n° III) e nos factos provados, aí elencados na al a), sobretudo, os conjugados sob os n°s 1 a 6, realça duas realidades factuais diversas, uma, a referente à propriedade sobre o prédio “vessadinha” (n°s 1, 4 e 5); a outra (que vem sendo posta em dúvida por várias pessoas e entidades e, também pelos recorrentes, nos seus depoimentos gravados, conforme ), é a concernente à falta de título da queixosa quanto ao direito de propriedade sobre e só o tal “terreno no fundo”, que ela tornou inacessível com uma armação de ferro e uma rede, com uma área de “30 e tal metros de comprido”, conforme depoimento da testemunha D... , que se localiza na gravação.
Tanto a testemunha D... , como a testemunha K... , cujo depoimento se indica do início até ao seu termo, afirmaram ter ido ao sítio dos “Currais” com os arguidos «ao barroco, terreno que a queixosa tinha acabado de vedar com ferros e rede e que ficava mais fundo ou inferior ao prédio onde entrava a boca da mina. Que tal barroco fica afastado da povoação 600/700 metros, demorando mais ou menos 1/4 de hora a aLcançá-lo, de pé».
- Os recorrentes ao constatarem que, ao domingo, a queixosa andava a colocar uma armação de ferro para a rede em toda a volta do tal “barroco” ou “terreno no fundo” do seu “vessadinha”, onde tinham o direito de entrar, não só providenciaram em falar com a queixosa para que deixasse ali uma cancela, dando-lhes uma chave, como, por tal não ter acontecido, se fizeram acompanhar das testemunhas D... e K... para que, ali, pudessem testemunhar a única possibilidade de acederem ao sítio ou local da servidão de àguas, causando o o menor prejuízo possível e para que, sendo como é um lugar ermo, de mais ninguém se suspeitasse senão deles.
- os recorrentes não aceitaram que com o corte da rede sabiam que estavam a cometer um crime e também as testemunhas F... e E... , não só referem a inserção da boca da mina no prédio superior “Vessadinha”, como afirmam ter direitos às águas existentes ali e de entrarem no terreno vedado para exercer tal direito e que o prédio dos recorrentes, se regado, produz mais de 150 alqueires de milho e que eles próprios passaram lá sempre várias vezes, sem que houvesse rede a estorvar o acesso, mas que se lá chegassem e houvesse lá rede colocada a impedi-los, arrancá-la-iam ou cortá-la-iam, porque não consideravam praticar com isso um crime, conforme resulta dos seu depoimentos gravados, cujo início e termo indicam.
Vejamos.

Os recorrentes ao defenderem que não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime de dano o que fazem, entre muitas referências a matéria de direito, é questionarem o acerto da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo.

Deste modo, impõe-se realçar que a impugnação da matéria de facto pode realizar-se através de dois meios: pelos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, ou através do disposto nas várias alíneas do art.431.º do mesmo Código.
Os vícios do art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
No caso, a impugnação da matéria de facto efectuada pelos recorrentes, nos termos supra descritos, não se integra nos vícios do art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, uma vez que a discordância sobre a factualidade apurada não se limita, como estes exigem estes vícios, « ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum». Efectivamente, os recorrentes invocam, designadamente, a prova produzida oralmente em audiência de julgamento, remetendo para alguma dessa prova gravada.

Nos termos do art.431.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no art.410.º,  o tribunal de recurso poderá modificar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, se se verificarem as seguintes condições: « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou c) Se tiver havido renovação de prova.”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento. 
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al. c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P..
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
     c) As provas que devam ser renovadas

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.
Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
A documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.
O recurso é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[5].

Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode esta deixar de ser “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela ( deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[6].

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Assim, se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjectivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido. 

Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efectivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida.

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do C.P.P., deve manter a decisão recorrida.
No caso em apreciação, está afastada a possibilidade de modificação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância ao abrigo das alíneas a) e c) do art.431.º, do C.P.P., uma vez que sentença recorrida se fundamenta, não só em prova documental que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento e não foi requerida nem se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
Assim, a modificação da decisão da matéria de facto da 1.ª instância apenas poderá ter lugar ao abrigo ao abrigo da alínea b) do art.431.º do C.P.P..

A este propósito, importa notar que os recorrentes A... e B... não especificam, nas conclusões da motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nem indicam as concretas passagens em que funda a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que essas declarações constam e localização da passagem na gravação.

Embora não especifiquem nas conclusões da motivação, nem na motivação do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que devem ser levados à factualidade provada ou os factos provados que devem ser alterados, é possível perceber - com dificuldade, diga-se - que os recorrentes defendem, no essencial, que deveria ter sido dado como provado:

- que os arguidos ao cortarem da rede quiseram aceder à mina que fica “no fundo do terreno” conhecido por “beçadinha” mas não integra este prédio da ofendida C... , onde nascem águas que irrigam um seu grande, fértil e produtivo prédio;

- que o corte da rede foi a única possibilidade de acederem à mina e evitarem um prejuízo maior ou nenhum que o sofrido pela ofendida com o corte da rede;

- e que agiram na convicção de ser legítima a sua actuação.

Esta última factualidade consta do ponto n.º 2 dos factos dados como não provados na sentença recorrida.
Uma vez que os recorrentes, juntamente com prova documental, localizam na motivação do recurso, passagens das declarações de testemunhas, em que fundam a impugnação, o Tribunal da Relação considera que os recorrente, embora muito deficientemente, ainda deram  cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P.. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.

Para este efeito, o Tribunal da Relação procedeu à audição da gravação das declarações dos arguidos e das testemunhas indicadas na motivação do recurso.
Antes de entrar propriamente na reapreciação da prova produzida oralmente em audiência de julgamento, importa clarificar, três situações.

A primeira é que os recorrentes não impugnam que o dano na rede teve um não superior a € 5,00, limitando-se a concluir é tal custo é insignificante e foi reparado gratuitamente pelo genro da queixosa, como esta confessou. Portanto é de manter na factualidade dada como provada que o corte da rede causou um prejuízo de montante não superior a € 5,00.
A segunda clarificação a fazer é que as menções feitas pelos recorrentes ao que terá sido dito nas “alegações orais finais do mandatário da queixosa” ou, genericamente, ao que resultará do “decurso do inquérito”, são inócuas para alterar a factualidade da sentença recorrida, pois esta só poderá ser modificada em face de concretos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e as alegações de mandatários e o “decurso do inquérito”, não são concretos meios de prova.
A terceira clarificação respeita à sentença e ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferidos na acção sumária n° 73/09.OTBCDR, que foi tida em consideração na fundamentação da matéria de facto provada e é largamente referida pelos recorrentes no presente recurso.
A acção declarativa supra aludida foi intentada pela aqui queixosa C... e outros, contra, designadamente, a F... , testemunha nos presentes autos pedindo-se a condenação dos réus: a reconhecerem que as autoras são proprietárias do terreno identificado no artigo 1° da petição inicial e absterem-se de entrar nesse terreno para nele abrirem poços; a taparem ou aterrarem o poço que abriram no terreno das autoras e a fazerem obras no rego que passa a norte do poço, de modo que a água não venha a verter-se para dentro dele; e a pagarem uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 1.000,00 por cada vez que entrem naquela propriedade para abrirem um poço.
Alegaram para o efeito e em síntese, que pelo menos desde 1979, H... e as autoras, em comum, vêm cultivando o prédio incrito na matriz predial rústica da freguesia de Reriz, Castro Daire, sob o art.5.766, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, ininterruptamente, e sempre na convicção de que eram donos do terreno. No interior desse prédio os réus construíram, em Dezembro de 2008, uma poça, que taparam com um boeiro, na qual se deposita a água de um rego.
Os réus contestaram a acção, impugnando os factos alegados pelos autores, alegando que a referida poça existe há pelo menos 40 anos servindo para represar a água que irriga prédios pertencentes aos réus, há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição, e na convicção de que exercem um direito próprio e de que não ofendem direitos alheios.
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal de 1.ª instância deu como provado, nomeadamente, a seguinte matéria de facto provada:
« 1. O prédio composto de terra de pinhal e pastagem, sita tio lugar da Beçadinha. lugar de Solgos. freguesia de Reriz. concelho de Castro Daire, com a área de 3.800m2, que confronta de Norte com (...) , Sul com o caminho (embora na matriz esteja a confrontar com (...) ), Nascente com (...) e Poente com (...) tra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Reriz, Castro Daire, sob o art. 5.766, a favor de H... , conforme resulta do documento dc fls. 7, cujo teor sc dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea A));
2. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Castro Daire. datada de 5 de Fevereiro de 1979, I... e mulher, JI... . na qualidade de primeiros outorgantes, declararam vender a H... , segundo outorgante, e este declarou comprar-lhes o prédio descrito em 1., conforme resulta do documento de fis. 9 a 13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais alínea B));
3. Na referida escritura, mais declararam aqueles primeiros outorgantes «que fica vedado ao comprador o direito de explorar, no prédio mencionado, qualquer água que possa afectar as nascentes de uma mina e um poço existentes no fundo do terreno, cujas águas irrigam os prédios denominados Campo de Oitava e Pereiros; E que se esta cláusula não for cumprida pelo segundo outorgante reverterá o prédio para os vendedores, pelo mesmo preço de vinte e um mil escudos.», tendo declarado aquele segundo outorgante «que aceita este contrato, com as condições agora impostas.» (alínea C));».
Na fundamentação de direito, para além do reconhecimento do direito de propriedade das Autoras sobre o prédio descrito por estas na petição inicial consignou-se, nomeadamente:
« ... não lograram os autores demonstrar que essa poça foi construída pelos réus em Dezembro de 2008. conforme haviam alegado na presente acção, como pressuposto do pedido de condenação dos réus na prática de actos que visavam reconstituir uma situação de facto anteriormente existente (tapar ou aterrar o poço que supostamente haviam aberto num local onde antes inexistia qualquer poço), no âmbito da responsabilidade civil extra- contruatual.
Pese embora os réus não tenham deduzido qualquer pedido reconvencional, alegaram que a referida poça que se encontra no prédio das autoras existia há pelo menos 40 anos, servindo para represar a água que irriga prédios pertencentes aos réus, há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição, e na convicção de que exercem um direito próprio e de que não ofendem direitos alheios, o que era susceptível de configurar um facto impeditivo do direito do autor.
A este propósito, ao invés do que alegaram na contestação, constatou-se que a água da poça não é utilizada, pelo menos, há cerca de 20-25 anos, desde que a poça ficou atulhada e nela começaram a crescer silvas, conforme sc referiu já. Nesta medida, não lograram os réus comprovar que utilizam a água dessa poça nos termos que alegaram (há mais de 30 anos, para regar o prédio constituído por cultura com oliveiras denominado Chão da Vinha, à vista de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição, e na convicção de que exercem um direito próprio e de que não ofendem direitos alheios).
De facto, ainda que não tenham deduzido reconvenção no sentido de ver reconhecido um eventual direito de servidão, tendo por objecto as águas oriundas e recolhidas na poça em questão, os réus alegaram factos que, a serem demonstrados, impediriam a pretensão das autoras, porquanto se traduziriam numa actuação tutelada pela ordem jurídica.
Com efeito, dc um modo geral, pode dizer-sc que o facto, embora prejudicial aos interesses de outrem ou violando o direito alheio se considera justificado e, por consequência, licito, sempre que é praticado no exercício regular de um direito (6)
No entanto, não tendo os réus provado a factualidade necessária para reconhecer que a sua conduta foi praticada a coberto de qualquer causa justificativa, capaz de afastar a sua aparente ilicitude - designadamente o lapso temporal necessário para a constituição de um direito real sobre as águas, por usucapião, ou os factos respeitantes a qualquer outra forma de aquisição desse direito (prova essa que lhes incumbia enquanto facto impeditivo do direito das autoras, atento o disposto no artigo 342.°, n.° 2 do Código Civil) - terá que se concluir que essa conduta é antijuridica, na medida em que atenta contra um direito de outrem.».
Na sequência do exposto, o Tribunal de 1.ª instância, decidiu julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente:
« a) condenar os réus a reconhecerem que as autoras são proprietárias do prédio composto de terra de pinhal e pastagem, sito no lugar da Beçadinha, lugar de Solgos, com a área de 3.800m2, que confronta de Norte com (...) , Sul com o caminho, Nascente com (...) e Poente com (...) inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Reriz sob o artigo 5.766 e a absterem-se de entrar nesse terreno;
 b) Absolver os réus do demais peticionado.».
O mesmo Tribunal reconheceu e supriu entretanto uma nulidade arguida pelos Réus relativa à última parte do dispositivo da sentença e onde constava a condenação deste “ a absterem-se de entrar nesse terreno” passou a constar, como fora peticionado pelas Autoras, a “absterem-se de entrar nesse terreno para nele abrirem poços”.
Interposto recurso desta sentença proferida na acção sumária, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 21 de Março de 2013,  consignou designadamente o seguinte:
« Na génese das questões suscitadas encontra-se o propósito dos recorrentes em verem salvaguardado o seu direito a usufruírem da água acima referida conforme consta da matéria de facto dada como provada e realçada a negrito. Nesta perspectiva, a decisão em questão em nada contende com os eventuais direitos dos recorrentes consubstanciados no agroveitamento da água em causa (não decidiu acerca dos mesmos). (...) ... pedindo os autores que os réus fossem condenados a absterem-se de entrar no seu prédio para nele abrirem poços a condenação nesta parte é uma consequência do reconhecimento prévio do seu direito de propriedade (porquanto os réus se devem abster de quaisquer actos que perturbem esse direito), não transcende o pedido formulado (antes o contempla) e não está, em absoluto, em oposição com os fundamentos da decisão (considerando que nesta se considerou antijurídica a entrada no prédio das autoras para qualquer fim).
Contudo, como não foi provado que os réus tivessem aberto qualquer poço no terreno das autoras carece de substrato fáctico a condenação a este propósito sendo certo que o dever geral de abstenção já decorre da declaração de propriedade acima referida (nesta medida, existe contradição entre os fundamentos e a decisão).
Pelo exposto, conclui-se pela ausência de fundamento de facto na condenação dos réus a absterem-se de entrarem no terreno dos autores para nele abrirem poços sendo certo que estão sujeitos, como se referiu, ao dever geral de abstenção de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade das autoras, o que está implícito na declaração do direito de propriedade consignado na decisão sob recurso.».
Em face de todo o exposto decidiu revogar a decisão recorrida « na parte da sobredita condenação (abstenção de entrada dos réus no terreno dos autores para nele abrirem poços) confirmando-a quanto ao mais.».
Posto isto, começamos por anotar que os arguidos/recorrentes referem que a ofendida C... com a junção da sentença da 1.ª instância quis fazer “ressucitar” a condenação, revogada pelo Tribunal da Relação do Porto, da Ré e ora testemunha F... e fazer crer que ela também vinculava os recorrentes quanto ao julgado na acção cível .
Não sufragamos este entendimento, pois a sentença da acção cível foi junta pela queixosa C... com a participação criminal de folhas 3 e seguintes, para provar que os arguidos/participados tinham conhecimento de que a queixosa era a dona do prédio inscrito na matriz predial sob o art.5766 da freguesia de Reriz , quando o arguidos cortaram a rede de vedação nele colocada pela queixosa, porquanto os arguidos foram testemunhas na dita acção onde lhes foi reconhecido o direito de propriedade.
Assim não foi propriamente para fazer “ressucitar” a parte da sentença revogada pelo Tribunal da Relação do Porto que foi junta a sentença cível.
Aliás a condenação, revogada pelo Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2013, “de abstenção de entrada dos réus no terreno dos autores para nele abrirem poços”, não significa que a ali Ré tenha ficado com o direito de entrar no prédio das Autoras inscrito no citado art.5766 da matriz predial da freguesia de Reriz, tanto mais que a existência, alegada na contestação dos Réus, de uma servidão de àguas onerando o prédio das Autoras a favor de um prédio dos Réus, não resultou provada ( embora seja de assinalar também que não tendo os ali Réus deduzido pedido reconvencional nada ficou decidido acerca dos eventuais direitos dos Réus quanto ao  aproveitamento da água em causa, como bem acentua o acórdão da Relação do Porto).
A revogação do Tribunal da Relação do Porto, de parte do dispositivo da sentença, teve lugar  porque não ficou provado que os Réus tivessem aberto qualquer poço no terreno das autoras  e porque existe um dever geral de abstenção de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade das autoras.
Se é verdade que a sentença cível e respectivo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto não formam caso julgado relativamente aos aqui arguidos A... e B... , uma vez que não foram partes na acção cível, nada impede que o Tribunal a quo tenha considerado o mesmo para dar como provado que a queixosa C... é proprietária do prédio e que os arguidos/recorrentes tenham conhecimento, até porque foram testemunhas na acção, de que foi reconhecido em Tribunal à aqui queixosa o direito de propriedade sobre o prédio das Autoras inscrito no citado art.5766 da matriz predial da freguesia de Reriz.
A este respeito, o arguido A... declarou em julgamento que “ a rede é dela [da C... ] porque estava no terreno dela” e o arguido B... declarou que “é verdade que [a C... ] é dona do prédio”, que “ dizem isso”.
Os arguidos/recorrentes alegam que a fundamentação de facto (n° III) da sentença cível, realça duas realidades factuais diversas: uma referente à propriedade sobre o prédio “vessadinna” (n°s 1, 4 e 5); e outra (que vem sendo posta em dúvida por várias pessoas e entidades e, também pelos recorrentes, nos seus depoimentos gravados, conforme ), é a concernente à falta de título da queixosa quanto ao direito de propriedade sobre e só o tal “terreno no fundo”, que ela tornou inacessível com uma armação de ferro e uma rede, com uma área de “30 e tal metros de comprido”, conforme depoimento da testemunha D... na gravação.
Salvo o devido respeito, não consta em lado algum da sentença cível identificado um terreno sito “no fundo” do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.5766, com uma área de “30 e tal metros de comprido”, que não faz parte deste prédio, nem tal área é mencionada pela testemunha D...
Esta testemunha declarou, designadamente, que foi com a testemunha K... , a pedido dos arguidos, aos “currais” , onde antes já tinha havido um problema e por isso houve um processo onde também prestou depoimento; que os arguidos têm direito à àgua que sai da mina, e que a queixosa colocou uma rede de 30 ou 30 e tal metros de comprimento, na parte que confronta com o caminho público, vedando assim o acesso à mina e a um “carreiro por onde se passava”. Apenas vedou a sua propriedade , na parte do caminho, mas não vedou o resto da propriedade.
A testemunha K... declarou, por sua vez, a este propósito, designadamente, ter ido ao sítio dos “currais” com os arguidos “ao barroco dos currais” ou “beçadinha”, que se situa no máximo a 5/10 minutos do Café onde antes estavam e que ali chegados os arguidos disseram que queriam ir ver a mina, ou melhor a água que sai de lá para um poço, e que só no fundo é que o terreno estava vedado com uma rede; quem uma vez desentupiu a mina e foi a C... e aos arguidos nunca os viu na mina.
O Tribunal da Relação não pode deixar de notar que os recorrentes, pese embora referiram no recurso que o terreno com uma área de “30 e tal metros de comprido”, onde estará a mina, sito “no fundo” do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.5766, não integra este, não indicam quem é o proprietário desse terreno, não sendo da ofendida C... .
Quanto à conversa entre a ofendida C... e os arguidos A... e B... , no dia 3 de Março de 2014, ou seja, no dia anterior à colocação da rede por parte da ofendida C... , em que aqueles solicitaram a esta para deixar um portal ou portão na vedação que esta estava em vias de realizar, é pacifico das declarações de todos eles que existiu uma conversa nessa altura eles. Mas enquanto os arguidos declaram que a ofendida lhes disse que deixaria o tal portão para eles poderem ir à àgua da mina, a ofendida declarou que falou com o arguido B... e lhe disse que ia vedar o seu prédio na parte do caminho e que não ia deixar portal nenhum.
Se tivermos em consideração que a vedação foi mesmo efectuada sem qualquer portão ou portal e já depois da decisão transitada em julgado a citada accção cível que reconheceu à ora ofendida o direito de propriedade do citado prédio inscrito na mantriz sob o art.5766 ( certidão de folhas 115 e seguintes), não existe qualquer razão lógica para concluir que a versão dos arguidos a este respeito deve prevalecer sobre a da ofendida.
Por outro lado,  as testemunhas D... e K... não declararam que a única possibilidade dos arguidos acederem ao sítio da mina, no âmbito da alegada servidão de àguas, fosse através da parte vedada do prédio da ofendida.
A testemunha D... declarou, nomeadamente, que a água que sai da mina atravessa um caminho e vai para um poço e que a ofendida C... vedou apenas onde está a mina, na parte do caminho; não vedou o resto da propriedade.
Por sua vez, a testemunha K... declarou que só no fundo é que o terreno estava vedado com uma rede e que podiam ir à mina por outro lado, “mas era mais dificil”.
Também a ofendida C... declarou que o seu prédio é grande e que apenas o vedou na parte mais baixa, junto ao caminho público, a sul, onde se situa uma mina, cuja água vai encanada por baixo do caminho para uma poça.
Quanto à questão dos recorrentes não aceitarem que com o corte da rede sabiam que estavam a cometer um crime, e que também as testemunhas F... e E... terão dito que não consideravam praticar com um crime se tiverssem sido elas a cortar a rede por afirmrem ter direitos às águas ali existentes e de entrarem no terreno vedado para exercer tal direito, diremos que efectivamente a testemunha F... , prima direita dos arguidos, deixou claro que não aceita que o Tribunal tenha “ dado o terreno à D. C... ” e a testemunha E... , tio por afinidade do arguido B... , declarou que “ aquilo agora é da C... ” , acrescentando que, de vez em quando, quando saia do caminho público, passava no local vedado pela C... , porquanto ali havia um caminho de pé, público, pelo qual se deslocava para cima, para um seu olival.
Do depoimento das testemunhas F... e E... resulta que não concordam com a decisão cível que “deu” o terreno à ofendida e que se a rede não tinha sido cortada pelos arguidos poderia ter sido cortada pelas testemunhas, embora a testemunha E... não invoque uma qualquer servidão de àguas a favor de um seu prédio, para querer aceder à mina, mas antes um alegado  “caminho de pé”, público, pelo que resulta razoavelmente claro que estas testemunhas não estavam dispostas a recorrer ao tribunal para defender os seus pontos de vista; pelo contrário, aceitam que até podem  afrontrar uma decisão judicial que não corresponda ao seu ponto e vista.
Se tivermos em consideração que os arguidos não se queixam de que lhes faltava àgua proveniente da mina para irrigar “um seu grande, fértil e produtivo prédio” quando cortaram a rede de vedação; que após o corte da rede apenas o arguido B... entrou no prédio e se dirigiu à mina, nela entrando e saindo, e que os arguidos impugnam no recurso os limites do prédio da ofendida que esta quis estabelecer com a rede de vedação na parte sul, entendemos que os arguidos o que verdadeiramente quiseram com o corte da rede, foi colocar em causa os limites do prédio da ofendida, não sendo o acesso à mina mais do que um pretexto de afirmação dessa discordância, tanto mais que o prédio só ficou vedado da parte sul e não havia impedimento ao acesso à mina por outros lados.   
Deste modo, entendemos que não deve ser dado como provado os arguidos ao cortarem da rede quiseram aceder à mina que fica “no fundo do terreno” conhecido por “beçadinha” mas não integra este prédio da ofendida C... , onde nascem águas que irrigam um seu grande, fértil e produtivo prédio – seja lá o que for “um grande, fértil e produtivo prédio” que nem sequer é descrito –, que o corte da rede foi a única possibilidade de acederem à mina e evitarem um prejuízo maior ou nenhum que o sofrido pela ofendida com o corte da rede, e que agiram na convicção de ser legítima a sua actuação.

Assim, mantemos a matéria de facto tal como foi apurada pelo Tribunal a quo, improcedendo consequentemente esta primeira questão.       


-

Segunda questão

Importa agora decidir se os arguidos A... e B... ao cortarem parte da rede os recorrentes agiram em legítima defesa, acção directa, estado de necessidade ou erro sobre as circunstâncias que excluem o dolo, pelo que devem ser absolvidos do crime de dano.  

Alegam os mesmos, em síntese, que não existem dúvidas a ninguém, a não ser à queixosa, de que os arguidos têm direito de passagem pelo terreno que esta quis fazer seu e que o dano feito na rede, para além de insignificante, visou a necessidade de passagem para observação do estado das suas nascentes de água, com vista à rega do seu prédio, que iria iniciar-se (nesse mês de Maio, pois o milho fora semeado como usualmente, em Abril), assim acautelando interesses ou prejuízos dezenas de vezes.

Para passarem, rumo às suas águas (nascente e presa), os recorrentes fazem-no pelo dito “barranco” insolitamente vedado por quem não é nem poda ser dele dono (a queixosa), ou, sendo até desta ( o que só por hipótese absurda se admite) por ele têm de transitar (e não só), em ordem e á defesa do exercício da servidão de águas, em tudo o que a sua extensão encerra.

Os factos praticados pelos recorrentes tiveram em estrita linha de conta a defesa do interesse legalmente protegido da constituída servidão de águas com o integral conteúdo e extensão, essencial e complementar ou suplementar que ele comporta e que, por isso, nem sequer é de complexa natureza a/ou dificuldade de análise e decisão, atento o disposto nos artigos 1544.º e 1565.º, ambos do C.C..

Vejamos.

A legítima defesa vem prevista no art.º 32.º do Código Penal e consiste no facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

Seguindo aqui o Cons. Maia Gonçalves, os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legitima defesa, são os seguintes: « a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro; b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P.     

c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.

A necessidade objectiva de defesa constitui o cerne da tutela privada de bens jurídicos que a figura acolhe em seguimento do disposto no art.21.º da Constituição da República.
Já quanto à necessidade subjectivamente conduzida pela vontade de se defender, a intenção de defesa, o chamado
animus deffendendi, a larga maioria do entendimento a nível de jurisprudência, continua a exigir que o agente actue com este animus e que a sua actuação seja adequada a evitar a lesão iminente, para que possa ter-se por verificada a legítima defesa. Negando a necessidade do chamado “animus defendendi” para a verificação da legítima defesa, pronunciam-se os Prof.s Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, II, pág. 97) , Figueiredo Dias (Direito Penal I, pág. 408) e Taipa de Carvalho ( Direito Penal, Parte Geral, II, 219), e o acórdão do STJ de 19.1.99 ( BMJ 483, pág. 57). De qualquer modo, como afirma Taipa de Carvalho no local citado, é sempre necessário que se tenha conhecimento de todos os elementos ou pressupostos objectivos da justificação por legítima defesa.
Neste capítulo, são ainda necessárias ponderações normativas e ético-sociais para determinar se uma acção é imposta ou não através da legítima defesa.

No que respeita ao direito de necessidade e ao estado de necessidade desculpaste, importa considerar o disposto nos artigos 34.º e 35.º do Código Penal.

O art.34.º do Código Penal estatui que « Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os  seguintes requisitos:

   a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

   b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e 

    c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.».

Enquanto neste art.34.º se incluem casos de direito de necessidade que excluem a ilicitude, no art.35.º do Código Penal incluem-se casos de estado de necessidade desculpante que excluem ou diminuem a pena, mas não excluem a ilicitude.

O art.35.º do Código Penal dispõe que «1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

  2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou o agente ser dispensado de pena.».

Por fim, faremos uma referência ao n.º2 do art.16 do Código Penal, invocado pelos recorrentes.

O art.16.º do Código Penal, prevê o chamado “erro sobre as circunstâncias do facto”, estatuindo o seguinte:

« 1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do facto, exclui o dolo.

    2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.

   3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.». 

O erro a que se alude neste preceito existe quando o agente, no cometimento do facto, desconhece uma circunstância pertencente ao tipo legal, de facto ou de direito.

O erro do tipo é o lado inverso do dolo do tipo. O agente não sabe o que faz ou falta-lhe a imagem representativa exigível para o dolo do tipo.

Traçados, assim, esquematicamente, os contornos das figuras, e atentando aos factos provados, é evidente que não existe qualquer facto de onde resulte qualquer erro sobre as circunstâncias do facto, nem qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Estando dado como provado que os arguidos agiram com conhecimento e vontade de danificar uma parte de uma vedação que não lhes pertencia, que agiam contra a vontade da dona, e que sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei, mesmo que o valor do dano seja pequeno, fica afastada a existência de qualquer erro sobre as circunstâncias do facto.

Os recorrentes referem que o corte da rede de vedação que fizeram tiveram em estrita linha de conta a defesa do interesse legalmente protegido da constituída servidão de águas com o integral conteúdo e extensão, essencial e complementar ou suplementar que ele comporta, mas o certo é que não constam dos factos provados, da contestação, e nem sequer do recurso,  factos de onde resulte que se encontra constituída uma “servidão de águas” sobre o prédio da ofendida - que como resulta da lei civil não se basta com uma simples utilização de águas por parte de um prédio, que nascem noutro.

Não existindo factos provados que permitam o reconhecimento de existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, é inútil considerar a mera hipótese da sua existência para, em seguida e em face dos factos provados, se concluir que não se mostram preenchidos os pressupostos da legítima defesa, acção directa, estado de necessidade.

De todo o modo sempre diremos que, caso se tivesse dado como provada a existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, subscreveríamos a decisão recorrida na parte em que, admitindo por mera hipótese essa possibilidade, afasta a verificação dos pressupostos das causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, que os recorrentes voltam a invocar no seu recurso.

Em suma, verificando-se todos os elementos constitutivos do crime de dano, p. e p. pelo art.212.º do Código Penal, não pode o Tribunal da Relação deixar de manter a decisão recorrida , e respectiva condenação dos arguidos pela prática do crime de dano.

Improcede, assim, também esta questão e, consequentemente, o recurso.

 

           Uma última nota, agora sobre o pedido da demandante, efectuado na resposta ao recurso interposto pelos arguidos.

A demandante solicita ao Tribunal da Relação que os arguidos/demandados sejam condenados, se possível, numa indemnização justa quanto à parte civil, pela destruição da rede que custou à recorrida a quantia de € 147,14, e cujo prejuízo nunca foi de € 5,00,

Salvo o devido respeito, esta petição da demandante tem pouco sentido.

A sentença indemnizatória não admite recurso, quer porque o valor do pedido é inferior à alçada do tribunal recorrido, quer porque a decisão impugnada não é desfavorável à demandante em valor superior a metade da sentença desta alçada ( art.400.º, n.º 2) do C.P.P.). Não tendo a demandante interposto recurso da sentença indemnizatória,  nem o podendo fazer legalmente, nunca  poderia o valor da indemnização ser aumentado para uma outra qualquer quantia “justa”, designadamente de € 147,14, tanto mais ainda que este não é o valor do dano dado como  provado no ponto n.º 2 da factualidade constante da sentença recorrida.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos A... e B... e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pelos recorrentes, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça a cargo de cada um deles.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).                                                                                                   

  *

Coimbra, 16-09-2015

(Orlando Gonçalves - relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Verbo, 2.ª edição, Vol.III, pág. 292.

[5]   cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[6]  cfr. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.