Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CONVICÇÃO DO TRIBUNAL ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS CAUSAS DE EXCLUSÃO | ||
Data do Acordão: | 09/16/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 355.º E 379.º DO CPP; ARTS. 16.º E 31.º DO CP | ||
Sumário: | I - A falta de enumeração entre os factos provados ou não provados de factos relevantes alegados pela acusação, integra-se na falta de fundamentação ou insuficiência de fundamentação da facto da sentença e não propriamente na omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devia conhecer e que constitui a nulidade de sentença a que alude a alínea c), n.º1 do art.379.º do Código de Processo Penal. II - A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem. III - Se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjectivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido. IV - Estando dado como provado que os arguidos agiram com conhecimento e vontade de danificar uma parte de uma vedação que não lhes pertencia, que agiam contra a vontade da dona, e que sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei, mesmo que o valor do dano seja pequeno, fica afastada a existência de qualquer erro sobre as circunstâncias do facto. V - Não existindo factos provados que permitam o reconhecimento de existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, é inútil considerar a mera hipótese da sua existência para, em seguida e em face dos factos provados, se concluir que não se mostram preenchidos os pressupostos da legítima defesa, acção directa, estado de necessidade. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
Relatório Pela Comarca de Viseu – Instância Local de Viseu, Secção Criminal, J2, sob pronúncia que recebeu a acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos A... , casado, natural de Reriz, freguesia do concelho de Castro Daire, de nacionalidade portuguesa, nascido em 09-02-1959, filho de (...) e de (...) , carteiro, residente na Rua (...) , Castro Daire, e B... , solteiro, natural de Reriz, freguesia do concelho de Castro Daire, de nacionalidade portuguesa, nascido em 2-04-1965, filho de (...) e de (...) , pedreiro, residente na Rua (...) , Sesimbra, imputando-se-lhes a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.° do C. Penal.
A demandante C... deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos pedindo a condenação destes a pagar-lhe a importância global de € 1.997,14, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
Realizada a audiência de julgamento - no decurso da qual foi comunicada uma alteração não substancial dos factos constantes da pronúncia, nos termos do art.358.º, n.º1 do C.P.P. -, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 9 de Janeiro de 2015, decidiu julgar procedente a pronúncia e a parcial procedência do pedido de indemnização cível e, em consequência: - Condenar o arguido A... pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 7 (sete) euros, o que perfaz o quantitativo de € 350; - Condenar o arguido B... pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, o que perfaz o quantitativo de € 250 (duzentos e cinquenta euros); e - Condenar os referidos arguidos/demandados a pagar à demandante C... a quantia de € 5 (cinco euros), a título de danos patrimoniais sofridos, absolvendo-os de tudo o mais que vem peticionado.
Inconformado com a douta sentença dela interpuseram recurso os arguidos A... e B... , concluindo a sua motivação do modo seguinte: Primeira - A queixosa usou de todas as artimanhas e falsidades para, ad odium, conseguir a perseguição criminal dos arguidos, que foram testemunhas em processo cível, no qual, a sentença final acabou por lhe retirar a razão de uma versão que, em desespero de causa, quis manter contra os recorrentes, até ao encerramento da audiência dos presentes autos, não obstante o veredicto do TRPorto e da lei atrás citada, em sentido bem contrário ao seu. Segunda - Os arguidos, ora recorrentes, prévia e espontaneamente, interpelaram a queixosa sobre o que se propunha fazer no terreno ou barroco em causa, afirmando-lhe o direito de passagem, que por ali exerciam, em vista do exercício da servidão de águas, por ela e por todos confessada / reconhecida como existente. Terceira - Os recorrentes, ao contrário do provado na douta sentença recorrida não praticaram o crime de dano, dada a não verificação, quer de elemento objectivo (a queixosa até confessou que o provado e insignificante prejuízo, de 5 €, foi reparado gratuitamente pelo seu genro) e, muito menos, do seu elemento subjectivo, a título de dolo. Com efeito, Quarta - Atentos os princípios da procura da verdade material e da suficiência do processo penal, temos que, quanto à delimitação do dano provocado pela conduta dos arguidos, os mesmo se cingiram ao montante já dito, por necessidade de obter apenas a conseguida passagem de pé, consistente em cortar a rede em 1,10 metros de altura, junto a um dos pilares, por forma a enrolar-se e a voltar a engatar-se ao outro pilar, com um custo de apenas 5 € Quinta - Assim, não se provou, ao contrário dos elementos ou documentos, para que a douta sentença também remete (bem como a queixa) os danos que as fotografias mostram, a que os recorrentes são alheios (os factos que estes assumiram fizeram-no, corajosa, voluntária e prudentemente, na companhia das testemunhas do M.º P.º), não ousando, por isso, atribuí-los sequer a outros utentes das águas em causa e aos que sempre passaram rumo ao seu cabal exercício. Sexta - Os arguidos, dúvidas não existem a ninguém (a não ser insólita e indevidamente, á queixosa e seu ilustre mandatário) têm o direito de passagem pelo terreno que a queixosa quis fazer seu e vedar e, assim a vedação constitui uma agressão actual e/ou contemporânea de interesses protegidos dos arguidos, donos de prédio beneficiário da servidão de águas, com a extensão e modo de exercício já atrás extractados: posto que, Sétima - Para efeitos de legítima defesa tanto basta que o bem ou interesse juridicamente ameaçado ou acabado de violar seja juridicamente protegido, não sendo necessário que seja, penalmente protegido, tal como o direito de propriedade ou a posse (vide, a este propósito: o citado art1565 do C.C. e, em sintonia, Figueiredo Dias, in Direito Penal, parte Geral, Tl, 2004, pág. 386). Para mais, Oitava - Dúvidas também não restam que a agressão era actual (os arguidos mal viram os pilares ou esteios para a rede, logo foram ter com a queixosa para deixar uma cancela e que lhes desse 1 chave). Assim, Nona - A agressão, colocação da rede, também era ilícita e culposa, à luz do acórdão do TRPorto e da lei citada, não tendo a queixosa, face ao ordenamento jurídico, qualquer justificação para agir de tal modo, pois, bem ao invés, estava obrigada a proporcionar aos arguidos a fruição do seu direito de passagem naquele local, tendo ela, isso sim, agido livre, voluntária e conscientemente; pelo que, Decima - Aqui chegados, restará saber se o meio empregue pelos arguidos era o necessário para defender aquele direito de passagem e/ou entrada no terreno em causa, mesmo que ela tivesse provado pertencer-lhe, o que não fez. Decima primeira - Certo é que, se se mostrar possível o recurso às forças da autoridade em tempo útil se terá de concluir que o meio empregue não é o necessário, já que o da autoridade se configurará, mas só por via da regra, como o menos gravoso para o agressor (vide, a propósito F. Dias, ob. Cit., pág. 396. Ora, Decima segunda - Os arguidos tinham um campo de 150 alqueires de milho, que começar a regar e, assim, o meio necessário empregue pelos arguidos (dano remediável de 5 €) era claramente muito menos gravoso do que o seria o recurso às forças da autoridade (que sempre se não encarregariam de tal questão cível), aqui mesmo entendidos então, como os meios coercivos judiciais, nomeadamente uma providência cautelar, que obrigaria à acção principal, sob pena de caducidade daquela e se protelaria sempre pelo tempo (demasiado e com elevados custos), não lhes sendo possível pois, em tempo útil aos ditos meios jurídicos para fazer valer um necessário e elementar direito de passagem por um “barranco” ou precipício, que nem sequer admitem ser da queixosa, mas onde ela, não obstante, colocou a rede, esta sim, sua. Assim sendo, Décima terceira - Ainda que os arguidos se encontrassem em erro sobre tal circunstância (necessidade do meio empregue: insignificante corte, reparável, em rede), tal sempre lhes excluiria o dolo nos termos das disposições combinadas, entre outros dos arts. 336. 337, 339-1, todos do CC, 7.º do CPP e 16-2, por referência ao art. 31-1 e 2 a) e b), 32 a 34, todos do Cód. Penal, que a douta sentença sob censura omitiu. Décima quarta - Deste modo e sendo o crime de dano, apenas punível a título doloso, o que não se provou, contrariamente ao decidido, por erro e, até, contradição, de qualificação dos factos e da sua subsunção aos dispositivos legais acima citados, forçoso se torna concluir, finalmente, que aquele crime não foi praticado pelos recorrentes, e sempre, ou por agirem ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude (legítima defesa, acção directa, estado de necessidade), ou por falta do preenchimento do respectivo elemento subjectivo, atentos os apontados dispositivos. Nestes termos e nos mais que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve revogar-se a sentença condenatória, absolvendo-se os arguidos do crime de dano de que vêm acusados.
A ofendida/demandante C... respondeu ao recurso interposto pelos arguidos, concluindo que deve manter-se a condenação dos arguidos pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.212.º do Código Penal e, se possível, serem condenados numa indemnização justa quanto à parte civil, ou seja pela destruição da rede que custou à recorrida a quantia de € 147,14, cujo prejuízo nunca foi de € 5,00.
O Ministério Público na Comarca de Viseu respondeu também ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação da sentença recorrida.
O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer em que, como questão prévia, argui a nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do art.379.º, n.º1, al. c), do C.P.P., por omissão de pronúncia sobre matéria de facto alegada pelos arguidos na contestação de folhas 229 a 235, a justificar o reenvio dos autos à 1.ª instância para colmatar tal falha. A não se entender dessa forma, é de entender que o recurso dos arguidos deverá improceder, como referiu o Ministério Público na 1.ª instância.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo os arguidos respondido ao douto parecer do Ministério Público.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes da sentença recorrida é seguinte: Factos provados 1. No dia 04-05-2013, a hora não concretamente apurada, após as 14h00m, os arguidos A... e B... , munidos de um alicate, de características não concretamente apuradas, dirigiram- se ao terreno sito no lugar da Beçadinha, Solgos, freguesia de Reriz, concelho de Castro Daire pertencente à ofendida C... e, uma vez aí chegados, o arguido B... , em comunhão de esforços com o arguido A... , cortaram parte de uma rede de vedação aí existente, em cerca de 1,10 m em altura junto a um dos pilares de ferro, a qual delimitava o mencionado terreno e que tinha sido colocada pela ofendida. 2. Dessa forma, causaram um prejuízo de montante não superior a 5 euros. 3. Os arguidos, em comunhão de esforços e de intenções, agiram com o propósito alcançado de danificar parte da aludida vedação, bem sabendo que a mesma não lhes pertencia e que agiam contra a vontade da respectiva dona. 4. Agiram igualmente de modo livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Relativamente ao pedido de indemnização civil provou-se ainda que: 5. A ofendida comprou e pagou a rede e respectivos acessórios tendo gasto a quantia de 147,14 Euros. 6. Os arguidos sabiam que o aludido terreno da Beçadinha era e é propriedade da ofendida, tendo ambos sido testemunhas na acção sumária n° 73/09.0TBCDR, que correu seus termos no Tribunal de Castro Daire. 7. A ofendida antes de colocar a rede na sua propriedade teve de contactar com o vendedor e teve trabalho em colocar os ferros para depois amarrar a rede neles, o que lhe causou despesas em contactos e deslocação ao terreno para implantar a mesma. 8. Em consequência da conduta descrita dos arguidos a ofendida sentiu-se triste e aborrecida. Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos provou-se que: 9. O arguido A... é carteiro e aufere cerca de 900 Euros mensais. 10. A sua esposa é empregada bancária, e aufere cerca de 1.700 Euros mensais, e tem dois filhos, com 35 e 25 anos de idade respectivamente, estando a filha mais nova a seu cargo. 11. Vive em casa própria e paga ao banco de empréstimo, pela aquisição da mesma, a quantia de cerca de 100 Euros mensais. 12. É ainda proprietário de vários prédios rústicos, de um outro prédio urbano, e de um veículo automóvel. 13. Tem o 9.º ano de escolaridade. 14. O arguido B... está desempregado, há cerca de três anos, encontra-se inscrito no Centro de Emprego e aufere de subsídio de desemprego cerca de 525 Euros mensais. 15. Vive com a sua companheira e com o seu filho que tem 18 anos, em casa própria, e paga ao banco de empréstimo, pela aquisição da mesma, a quantia de cerca de 520 Euros mensais. 16. A sua companheira é empregada doméstica e aufere cerca de 300 Euros mensais. 17. É ainda proprietário de vários prédios rústicos, de um outro prédio urbano, de um veículo automóvel e uma mota. 18. Tem o 6.º ano de escolaridade. 19. Ambos os arguidos são tidos como pessoas honestas, de bem e sérias. Quanto aos antecedentes criminais provou-se que: 20. Os arguidos não têm antecedentes criminais. Factos não provados Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos, maxime todos os que estejam em contradição com os supra enunciados e, designadamente, que: 1. O prejuízo causado foi no montante não inferior a 150 euros; 2. Os arguidos, com a sua conduta, procuraram evitar o sacrifício de interesses maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa, e agiram na convicção de ser legítima a sua actuação. Convicção do tribunal O tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com a prova documental junta aos autos, e com as regras da experiência. Assim, e quanto à prova documental, teve-se em consideração: o teor da factura e recibo de fls. 22 a 24, as fotografias de fls. 25 a 27 e 58 a 61; certidão da sentença e do acórdão da Relação do Porto proferidos no processo 73/09.OTBCDR, que correu termos no Tribunal de Castro Daire constante de fls. 115 a 140. Para além, da prova documental supra referida, foram, desde logo, valoradas as declarações de ambos os arguidos. Com efeito, o arguido A... confessou os factos pela forma como foram dados como provados, tendo esclarecido que ele e o irmão (o arguido B... ) foram ao terreno em questão e levaram o alicate e cortaram a rede em questão da propriedade da queixosa, esclarecendo a este propósito que a rede não foi toda cortada, apenas foi cortada em parte junto a um dos prumos de ferro que servia para segurar a dita rede, em cerca de 1 metro de altura. Mais referiu que pese embora tenha sido o irmão a proceder ao dito corte agiram ambos em comunhão de esforços. Esclareceu ainda que ele e o irmão foram testemunhas num processo em que a queixosa C... era parte, e que ele e o irmão têm direito a passar no terreno da dita queixosa por causa da água existente numa mina. Mais referiu que o D... e o K... assistiram ao corte da dita rede, e que o objectivo deles (arguidos) foi ver se estava tudo bem com as minas, uma vez que são proprietários de terrenos que são regados com a água dessas minas. Mais referiu que a queixosa colocou a rede a um Domingo de manhã, e uma vez que ele e o irmão têm o dito direito de passagem para ir á água das minas, falaram com ela no dia anterior com vista a que fosse lá colocado um portão ou uma cancela, e que lhes fosse facultada uma chave para o puderem abrir e ela disse que sim, todavia, no dia a seguir quando lá chegaram já estava tudo vedado, razão pela qual foram novamente falar com ela, tendo esta referido que não podia fazer nada e que não mandava sozinha. Por sua vez, o arguido B... confirmou a maioria das declarações prestadas pelo outro arguido, tendo designadamente esclarecido que foi ele quem cortou parte da rede em causa em comunhão de esforços com o irmão (o arguido A... ), desconhecendo ele o prejuízo causado. Mais referiu que não sabia que estava a cometer um crime - o que nesta parte não logrou convencer atentas as regras da lógica e da experiência, conforme adiante melhor se fará alusão. Foram ainda valorados e tidos em consideração os seguintes depoimentos: - C... , queixosa e demandante, a qual, não obstante tal qualidade, depôs de foram isenta e credível, tendo a mesma esclarecido designadamente que não presenciou ao corte da rede em causa, todavia, confirmou que foi ela quem comprou e colocou a dita rede para vedar o seu terreno sito em Beçadinha, junto a um caminho público. Mais referiu que a rede foi colocada no dia 4/05/2013 e que o arguido B... foi lá na véspera e perguntou-lhe para que eram os ferros, tendo ela respondido que era para vedar a dita propriedade. Nessa ocasião ele referiu-lhe que queria lá colocar um portão, e ela disse-lhe que não queria lá portão nenhum. Confirmou ainda que no dia a seguir - 4/05/2013 - colocou a rede da parte da manhã e a mesma da parte da tarde já estava cortada, esclarecendo que o corte foi junto a um dos ferros de cima a baixo. Mais referiu que a rede tinha no seu todo cerca de 15 a 20 metros de comprimento. Depois de ver o corte emendou a dita rede, sendo que tal remendo foi feito pelo seu genro, não tendo ela despendido o pagamento de qualquer quantia para o efeito. Tal rede apareceu depois mais tarde cortada novamente e depois desapareceu, desconhecendo ela os autores desses factos. Mais referiu que pela colocação da rede toda despendeu cerca de 147 Euros, e que ficou triste e aborrecida com o corte da mesma. Confirmou ainda que os arguidos têm direito à água existente numa mina que está fora do seu terreno, apesar das nascentes se situarem no seu terreno. - K... , o qual depôs de forma isenta, e esclareceu que em dia que não soube concretizar, mas no mês de Maio de 2013, a seguir ao almoço, ele estava no café e a certa altura apareceram ambos os arguidos que lhe pediram para ele e o D... , que também estava presente, irem com eles para verem uma coisa, e foi quando se deslocaram ao terreno em questão da queixosa, sito na Beçadinha, Solgos, freguesia de Reriz, concelho de Castro Daire, e quando lá chegaram o arguido B... cortou a rede em questão, com um alicate que trazia na mão, esclarecendo que tal corte foi feito em altura, junto a um pilar, em cerca de 1,10 m de altura, tendo a mesma ficado dobrada por forma a permitir a passagem. Os arguidos na ocasião disseram-lhe que queriam ir ver uma mina que lá estava, e depois do dito corte foram ver a mesma. Mais confirmou que os arguidos sabiam que a rede era da queixosa, e esclareceu ainda para proceder à reparação do corte da rede em causa - esclarecendo que foi cortada em cerca de 1,10 m de altura junto a um pilar - o custo seria de cerca de 5 Euros. - D... , o qual depôs de forma isenta, e confirmou no essencial o relatado pela testemunha anterior. - E... , o qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, viu a mesma cortada de cima a baixo junto a um pilar, e que a dita rede era da queixosa e estava a vedar a sua propriedade - F... , a qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, esclareceu que teve um litígio com a queixosa em tribunal, tendo concretizado o mesmo e referiu que teve conhecimento que a mesma procedeu à vedação com uma rede do seu terreno, altura em que foi falar com ela, uma vez que ela e os arguidos têm de ter acesso a um poço ali existente, e ela disse-lhe que aquilo era dela. Depois o arguido B... disse-lhe que ele tinha ido falar com ela, para ver se ela punha lá uma cancela, todavia não chegaram a acordo. - G... , a qual depôs de forma isenta e credível, e esclareceu que apesar de não ter presenciado ao corte da rede em causa, esclareceu que é irmã da queixosa e que presenciou a uma conversa entre a mesma e o arguido B... , num dia que não soube concretizar, sendo que este perguntou-lhe quem tinha colocado os ferros no terreno em questão e a irmã disse-lhe que tinha sido ela, sendo que o referido arguido queria que ela deixasse lá colocar um portão e a irmã disse que não deixava. Relativamente aos factos atinentes ao elemento subjectivo, dados como provados, cumpre dizer que o tribunal, em face do conjunto de toda a prova produzida, e das regras da experiência, não ficou com dúvidas que ambos os arguidos não ignoravam que a rede em causa pertencia à queixosa (conforme aliás os próprios confirmaram), e, nessa medida, bem sabiam os arguidos que aquela assumia carácter alheio e que, consequentemente, lhe estava vedada a sua destruição, e que a sua conduta era proibida e punida criminalmente (tudo isto sem prejuízo de outras considerações que adiante se irão mencionar em sede de direito, sobre as eventuais causas de exclusão de ilicitude, algumas delas invocadas na contestação apresentada pelos arguidos). Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos relevaram as suas próprias declarações, e ainda o depoimento da testemunha Belmira Marques, a qual confirmou que ambos os arguidos são tidos como pessoas honestas, de bem e sérias. Quanto à ausência de antecedentes criminais dos arguidos fundou-se a convicção do tribunal no teor dos certificados de registo criminal dos mesmos juntos aos autos. Quanto aos factos dados como não provados cumpre dizer que tal se deve à circunstância de ou não ter sido produzida prova suficiente que lograsse convencer o tribunal da sua verificação ou de ter sido produzida prova em sentido contrário. Com efeito, salienta-se aqui, no que concerne ao prejuízo sofrido, que não apurou que o mesmo foi de montante não inferior a 150 euros, já que a rede não ficou totalmente danificada, apenas se apurou que foi feito um corte em altura numa extensão de 1,10m, sendo que do depoimento das testemunha K... , e conforme o já acima mencionado, a reparação desse corte não importa numa quantia superior a 5 euros, o que logrou convencer, uma vez que se trata apenas da junção e reposição dos elos partidos/cortados da dita rede ao pilar de ferro, tendo inclusivamente a queixosa referido que o corte foi junto a um dos ferros de cima a baixo, que a rede tinha no seu todo cerca de 15 a 20 metros de comprimento, e que depois de ver o corte emendou a dita rede, sendo que tal remendo foi feito pelo seu genro, não tendo ela despendido o pagamento de qualquer quantia para o efeito. * No caso dos autos, face às conclusões da motivação dos recorrentes A... e B... as questões a decidir são as seguintes: - se da prova produzida em julgamento não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime; e - se ao cortarem parte da rede os recorrentes agiram em legítima defesa, acção directa, estado de necessidade ou erro sobre as circunstâncias que excluem o dolo, pelo que devem ser absolvidos do crime de dano. - Embora sejam estas as questões suscitadas no recurso dos arguidos A... e B... , antes de as conhecer deparasse-nos uma questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-geral Adjunto no seu parecer, que consiste na nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.379.º, n.1, alínea c), do C.P.P.. Uma vez que a proceder esta questão deverá o processo ser devolvido ao Tribunal a quo a fim de suprir a arguida nulidade, ficando assim prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelos recorrentes, importa decidir, antes do mais da existência da nulidade, que é aliás de conhecimento oficioso, nos termos do art.379.º, n.º 2 do C.P.P..
Da questão prévia O Ministério Público neste Tribunal da Relação defende que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.379.º, n.1, alínea c), do C.P.P., porquanto o Tribunal a quo não levou aos factos provados ou aos factos não provados da douta sentença recorrida a matéria de facto que foi alegada de folhas 229 a 235 da contestação dos arguidos. As questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa surgem abordadas na sentença recorrida a propósito da análise de direito, só que tal abordagem não tem o suporte factual em sede de matéria provada, apesar de estar alegada pela defesa na contestação. Vejamos. O art.374.º do Código de Processo Penal manda estruturar a sentença penal em três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. Segue-se a fundamentação, «…que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição , tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .» ( n.º2). Na fundamentação há que distinguir, por um lado, os fundamentos de facto e por outro, os fundamentos de direito da decisão. A fundamentação de facto começa pela enumeração dos factos provados e não provados; continua com uma exposição de motivos que fundamentam a decisão; e finda com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Os factos provados e não provados são, assim, “… todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da decisão da causa, quando aceites nos termos do art.359.º, n.º2.”. [4] Resulta do art.379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que é nula a sentença « Que não contiver as menções referidas no n.º2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º1 do artigo 389.º-A e 391.º-F». A falta de enumeração entre os factos provados ou não provados de factos relevantes alegados pela acusação, integra-se na falta de fundamentação ou insuficiência de fundamentação da facto da sentença e não propriamente na omissão de pronúncia sobre questão de que o tribunal devia conhecer e que constitui a nulidade de sentença a que alude a alínea c), n.º1 do art.379.º do Código de Processo Penal. Posto isto e retomando ao caso concreto, verificamos que os arguidos A... e B... apresentaram uma contestação conjunta, constante de folhas 229 a 235, onde referem o seguinte: que oferecem o merecimento dos autos ( art.1.º); que as razões de facto ínsitas no RAI e as do acórdão junto do Tribunal da Relação do Porto, foram omitidas na queixa, o que não terá levado o Ministério Público a valorizar o seu conteúdo ( art.2.º); que a valoração dessa matéria poria em evidência a “ridicularia” do dano e influiria na inexistência de uma motivação dolosa dos arguidos, quer no sentido de actuarem com conhecimento e vontade da prática do ilícito, quer mesmo na sua forma mais ténue, ou seja, como mera conformação com a possibilidade de ocorrência do resultado danoso (dolo eventual) ( art.3.º); que no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm o direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela ( art.4.º); como também se provou e continua a provar que os arguidos procuraram evitar o sacrifício de interesses seus maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa ( art.5.º); Fazendo-se, até, acompanhar de 2 agricultores experientes com quem trocaram opiniões sobre as medidas a tomar, tendentes à salvaguarda dos seus interesses muito superiores aos que a todos era dado observar, ainda por cima, podendo o bocadito de rede cortada ser até por eles colocada em cancela com tal medida, que permitisse o acesso às suas águas ( art.6.º); Águas aquelas que sempre vieram a ser utilizadas desde então, porquanto a queixosa jamais se opôs a tanto ( art.7.º); Assim, existindo como existe o seu apontado direito, a acção dos arguidos sempre, no caso, inserir-se-ia na acção directa, prevista no art. 336 do C. Civil ( art.8.º); Na verdade, no circunstancialismo referido, os arguidos, ao fazerem o que fizeram, terá sido sempre na convicção de que a rede colocada pela queixosa estava a prejudicar não só a passagem, como o acesso às águas a que têm direito ( art.9.º); Por conseguinte, não havendo sequer necessidade de afirmar o direito em acção cível, que sempre se arrastaria no tempo e demandaria despesas e prejuízos elevados, agiram os arguidos na convicção de ser legítima a sua actuação ( art.10.º); Sem sequer se poder, assim, falar em eventual erro em relação a uma causa de exclusão da ilicitude, ou seja no tocante aos pressupostos da acção directa, porquanto, à partida, os direitos dos arguidos eram reconhecidos por todos e pelo próprio Tribunal, no processo em que aqueles foram testemunhas arroladas pela parte contrária á da queixosa, que esta tais direitos litigou nessa sede cível ( art.11.º); De resto, os arguidos, antes dos factos, até foram abordados pela queixosa sobre se não se opunham à colocação, ali, de um portão ou cancela fechada, no que eles acordaram, desde que recebessem uma chave, o que não veio a acontecer depois ( art.12.º); Sem embargo, os arguidos são pessoas bem formadas, ordeiras, geralmente bem vistas e tidas como francas, credíveis e muito prudentes nas suas atitudes ( art.13.º). O Ministério Público neste Tribunal da Relação refere que o Tribunal a quo não levou aos factos provados ou aos factos não provados da douta sentença recorrida a matéria de facto que foi alegada de folhas 229 a 235 da contestação dos arguidos e que as questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa surgem abordadas na sentença recorrida a propósito da análise de direito, só que tal abordagem não tem o suporte factual em sede de matéria provada, apesar de estar alegada pela defesa na contestação. Salvo o devido respeito, não podemos deixar de notar que o Ministério Público neste Tribunal da Relação não indica quais os concretos factos, relevantes para a decisão da causa, com especial relevo para as causas de justificação da ilicitude ou da culpa dos arguidos, que foram omitidos na decisão recorrida e, por outro lado, não indica qual o concreto suporte factual omitido da contestação na base da qual o Tribunal a quo terá conhecido na abordagem das questões relativas à existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa. Posto isto, diremos que no entender do Tribunal da Relação os factos relevantes para a decisão da causa e que o Tribunal a quo não poderia deixar de dar como provados ou não provados são , no essencial, os que constam dos artigos 5.º e 10 da contestação , pois o demais aí referido a propósito do corte da rede de vedação gira à volta desta factualidade e da sua subsunção jurídica em causas de exclusão da sua responsabilidade criminal. Mesmo assim, não podemos deixar de realçar que o facto que consta do art.5.º da contestação, ou seja, que «os arguidos procuraram evitar o sacrifício de interesses seus maiores (o da rega do seu grande, fértil e produtivo prédio), tentando conciliar a sua actuação ao menor ou nenhum sacrifício dos interesses da queixosa», mais não é que um facto conclusivo. Esta factualidade do art.5.º está ligado ao facto do art.4.º , onde se refere que « no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm o direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela». Temos como medianamente claro que esta matéria do art.4.º da contestação não poderia incluir-se na factualidade provada, pois não é um facto, mas pura decisão de direito, apresentada na forma negativa, sem qualquer apoio em factos descritos naquele articulado. Deste modo, não poderia considerar-se como um facto, e incluir nos factos provados, que “no inquérito e na própria instrução foi possível provar que os arguidos, não só têm direito ás águas existentes no pequeno prédio ou quelho da e vedado por aquela” - sem que se perceba sequer o que os contestantes pretendem dizer com o «… pequeno prédio ou quelho da…» vedado por aquela». O art.10.º contestação – os arguidos agiram na convicção de ser legítima a sua actuação –, respeitante ao elemento subjectivo, integra efectivamente um facto e relevante para a defesa dos arguidos. Olhando agora para a factualidade constante da fundamentação da douta sentença verificamos que não existe omissão de pronúncia sobre os apontados factos constantes dos artigos 5 e 10 da contestação dos arguidos, porquanto o Tribunal a quo levou os mesmos ao ponto n.º 2 dos factos não provados da douta sentença recorrida. No que respeita à abordagem da existência de causas de exclusão da ilicitude e da culpa na sentença recorrida, a propósito da análise de direito, é verdade que o Tribunal a quo considerou que elas não se verificam, mas apenas e só porque os factos dados como provados não permitem a sua subsunção àquelas causas de exclusão. Ou seja, da audiência de julgamento não resultaram provados os factos que constam dos artigos 5.º e 10.º da contestação, nem resultaram provados outros factos cuja subsunção ao direito permitam dar como verificadas as causas de exclusão da ilicitude e da culpa que foram mencionadas, segundo a fundamentação de direito da douta sentença recorrida, “na contestação apresentada” e nas “alegações orais que forma proferidas pelo ilustre Defensor dos arguidos”. Assim, não se reconhece a nulidade de sentença, por omissão de pronúncia, arguida neste Tribunal da Relação pelo Ministério Público. - Passemos agora ao conhecimento da primeira questão objecto do recurso. Os recorrentes A... e B... alegam que da prova produzida em julgamento não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime, alegando para o efeito o seguinte: - o dano provocado à queixosa, consistente no corte da rede em 1,10 m de altura, junto a um dos pilares, por forma a enrolar-se e a voltar a engatar-se ao outro pilar, teve o custo insignificante de € 5,00, e foi reparado gratuitamente pelo genro da queixosa, como esta confessou; - Resulta da queixa, da sentença a esta junta, por confronto com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do decurso do inquérito, de toda a audiência e sobretudo das alegações orais finais do mandatário da queixosa e aliás da escritura junta ao RAI, que « existe umas nascentes e um poço; no fundo do terreno vendido (a “Vessadinha”, ora propriedade da queixosa e filhas, vide: sentença junta à queixa, proferida na acção, por elas movida contra a testemunha F... ), cujas águas irrigam os prédios denominados “Campo de Oitava” (o dos recorrentes, acrescentamos nós, como provado nos autos) e “Pereiros” (propriedade da dita F... , Ré naquela acção n° 73/09.OTBOFR, acrescentamos nós)»; Os recorrentes ao defenderem que não resultaram provados os elementos objectivo e subjectivo do crime de dano o que fazem, entre muitas referências a matéria de direito, é questionarem o acerto da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo. Deste modo, impõe-se realçar que a impugnação da matéria de facto pode realizar-se através de dois meios: pelos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, ou através do disposto nas várias alíneas do art.431.º do mesmo Código. Nos termos do art.431.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no art.410.º, o tribunal de recurso poderá modificar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, se se verificarem as seguintes condições: « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou c) Se tiver havido renovação de prova.”. « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.» O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie. As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[5]. Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode esta deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela ( deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[6]. O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5. Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem. Assim, se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjectivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido. Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efectivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida. Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do C.P.P., deve manter a decisão recorrida. A este propósito, importa notar que os recorrentes A... e B... não especificam, nas conclusões da motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nem indicam as concretas passagens em que funda a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que essas declarações constam e localização da passagem na gravação. Embora não especifiquem nas conclusões da motivação, nem na motivação do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que devem ser levados à factualidade provada ou os factos provados que devem ser alterados, é possível perceber - com dificuldade, diga-se - que os recorrentes defendem, no essencial, que deveria ter sido dado como provado: - que os arguidos ao cortarem da rede quiseram aceder à mina que fica “no fundo do terreno” conhecido por “beçadinha” mas não integra este prédio da ofendida C... , onde nascem águas que irrigam um seu grande, fértil e produtivo prédio; - que o corte da rede foi a única possibilidade de acederem à mina e evitarem um prejuízo maior ou nenhum que o sofrido pela ofendida com o corte da rede; - e que agiram na convicção de ser legítima a sua actuação. Esta última factualidade consta do ponto n.º 2 dos factos dados como não provados na sentença recorrida. Para este efeito, o Tribunal da Relação procedeu à audição da gravação das declarações dos arguidos e das testemunhas indicadas na motivação do recurso. A primeira é que os recorrentes não impugnam que o dano na rede teve um não superior a € 5,00, limitando-se a concluir é tal custo é insignificante e foi reparado gratuitamente pelo genro da queixosa, como esta confessou. Portanto é de manter na factualidade dada como provada que o corte da rede causou um prejuízo de montante não superior a € 5,00. Assim, mantemos a matéria de facto tal como foi apurada pelo Tribunal a quo, improcedendo consequentemente esta primeira questão. - Segunda questão Importa agora decidir se os arguidos A... e B... ao cortarem parte da rede os recorrentes agiram em legítima defesa, acção directa, estado de necessidade ou erro sobre as circunstâncias que excluem o dolo, pelo que devem ser absolvidos do crime de dano. Alegam os mesmos, em síntese, que não existem dúvidas a ninguém, a não ser à queixosa, de que os arguidos têm direito de passagem pelo terreno que esta quis fazer seu e que o dano feito na rede, para além de insignificante, visou a necessidade de passagem para observação do estado das suas nascentes de água, com vista à rega do seu prédio, que iria iniciar-se (nesse mês de Maio, pois o milho fora semeado como usualmente, em Abril), assim acautelando interesses ou prejuízos dezenas de vezes. Para passarem, rumo às suas águas (nascente e presa), os recorrentes fazem-no pelo dito “barranco” insolitamente vedado por quem não é nem poda ser dele dono (a queixosa), ou, sendo até desta ( o que só por hipótese absurda se admite) por ele têm de transitar (e não só), em ordem e á defesa do exercício da servidão de águas, em tudo o que a sua extensão encerra. Os factos praticados pelos recorrentes tiveram em estrita linha de conta a defesa do interesse legalmente protegido da constituída servidão de águas com o integral conteúdo e extensão, essencial e complementar ou suplementar que ele comporta e que, por isso, nem sequer é de complexa natureza a/ou dificuldade de análise e decisão, atento o disposto nos artigos 1544.º e 1565.º, ambos do C.C.. Vejamos. A legítima defesa vem prevista no art.º 32.º do Código Penal e consiste no facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Seguindo aqui o Cons. Maia Gonçalves, os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legitima defesa, são os seguintes: « a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro; b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P. c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente. A necessidade objectiva de defesa constitui o cerne da tutela privada de bens jurídicos que a figura acolhe em seguimento do disposto no art.21.º da Constituição da República. No que respeita ao direito de necessidade e ao estado de necessidade desculpaste, importa considerar o disposto nos artigos 34.º e 35.º do Código Penal. O art.34.º do Código Penal estatui que « Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos: a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro; b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.». Enquanto neste art.34.º se incluem casos de direito de necessidade que excluem a ilicitude, no art.35.º do Código Penal incluem-se casos de estado de necessidade desculpante que excluem ou diminuem a pena, mas não excluem a ilicitude. O art.35.º do Código Penal dispõe que «1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente. 2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou o agente ser dispensado de pena.». Por fim, faremos uma referência ao n.º2 do art.16 do Código Penal, invocado pelos recorrentes. O art.16.º do Código Penal, prevê o chamado “erro sobre as circunstâncias do facto”, estatuindo o seguinte: « 1. O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do facto, exclui o dolo. 2. O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente. 3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.». O erro a que se alude neste preceito existe quando o agente, no cometimento do facto, desconhece uma circunstância pertencente ao tipo legal, de facto ou de direito. O erro do tipo é o lado inverso do dolo do tipo. O agente não sabe o que faz ou falta-lhe a imagem representativa exigível para o dolo do tipo. Traçados, assim, esquematicamente, os contornos das figuras, e atentando aos factos provados, é evidente que não existe qualquer facto de onde resulte qualquer erro sobre as circunstâncias do facto, nem qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. Estando dado como provado que os arguidos agiram com conhecimento e vontade de danificar uma parte de uma vedação que não lhes pertencia, que agiam contra a vontade da dona, e que sabiam que as suas condutas eram proibidas por lei, mesmo que o valor do dano seja pequeno, fica afastada a existência de qualquer erro sobre as circunstâncias do facto. Os recorrentes referem que o corte da rede de vedação que fizeram tiveram em estrita linha de conta a defesa do interesse legalmente protegido da constituída servidão de águas com o integral conteúdo e extensão, essencial e complementar ou suplementar que ele comporta, mas o certo é que não constam dos factos provados, da contestação, e nem sequer do recurso, factos de onde resulte que se encontra constituída uma “servidão de águas” sobre o prédio da ofendida - que como resulta da lei civil não se basta com uma simples utilização de águas por parte de um prédio, que nascem noutro. Não existindo factos provados que permitam o reconhecimento de existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, é inútil considerar a mera hipótese da sua existência para, em seguida e em face dos factos provados, se concluir que não se mostram preenchidos os pressupostos da legítima defesa, acção directa, estado de necessidade. De todo o modo sempre diremos que, caso se tivesse dado como provada a existência de uma servidão de águas onerando o prédio da ofendida, a favor de um prédio não identificado dos arguidos, subscreveríamos a decisão recorrida na parte em que, admitindo por mera hipótese essa possibilidade, afasta a verificação dos pressupostos das causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, que os recorrentes voltam a invocar no seu recurso. Em suma, verificando-se todos os elementos constitutivos do crime de dano, p. e p. pelo art.212.º do Código Penal, não pode o Tribunal da Relação deixar de manter a decisão recorrida , e respectiva condenação dos arguidos pela prática do crime de dano. Improcede, assim, também esta questão e, consequentemente, o recurso.
Uma última nota, agora sobre o pedido da demandante, efectuado na resposta ao recurso interposto pelos arguidos. A demandante solicita ao Tribunal da Relação que os arguidos/demandados sejam condenados, se possível, numa indemnização justa quanto à parte civil, pela destruição da rede que custou à recorrida a quantia de € 147,14, e cujo prejuízo nunca foi de € 5,00, Salvo o devido respeito, esta petição da demandante tem pouco sentido. A sentença indemnizatória não admite recurso, quer porque o valor do pedido é inferior à alçada do tribunal recorrido, quer porque a decisão impugnada não é desfavorável à demandante em valor superior a metade da sentença desta alçada ( art.400.º, n.º 2) do C.P.P.). Não tendo a demandante interposto recurso da sentença indemnizatória, nem o podendo fazer legalmente, nunca poderia o valor da indemnização ser aumentado para uma outra qualquer quantia “justa”, designadamente de € 147,14, tanto mais ainda que este não é o valor do dano dado como provado no ponto n.º 2 da factualidade constante da sentença recorrida.
Decisão Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos A... e B... e manter a douta sentença recorrida. Custas pelos recorrentes, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça a cargo de cada um deles. * (Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). * Coimbra, 16-09-2015
(Orlando Gonçalves - relator)
(Inácio Monteiro - adjunto)
[5] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. |