Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
560/10.8TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
CONTRATO PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 236, 238, 300, 410, 830 CC
Sumário: 1.- Um contrato- promessa complexo, misto de recíprocas concessões e de permuta, pode ser celebrado em transacção judicial.

2.- Para efeitos de execução específica do contrato, a natureza da prestação prometida deve ser analisada segundo as regras da experiência e em função da vontade presumível das partes.

3.- Um acordo sobre declarações de renúncia, de não passar, não utilizar, reconhecer a propriedade, expressa uma natureza pessoal que mal se ajusta à substituição judicial, não sendo passível de execução específica.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            A (…) e mulher, C (…), residentes na (. ..) , Tondela, Nair Neves Pereira, residente em (. ..) , Brisbane Q.LD-4102, na Austrália e O (…), residente na (. ..) , Tondela, intentaram acção declarativa, com a forma de processo sumário, contra E (…), residente na (. ..) , Tondela, pedindo 1) seja proferida sentença que produzindo os efeitos da declaração negocial do réu opere a transmissão do direito de propriedade por permuta dos prédios identificados no contrato promessa de 14.10.2009, consequentemente se ordenando a inscrição das aquisições dos prédios rústicos na Conservatória do Registo Predial; 2) seja proferida sentença que, produzindo os efeitos da declaração negocial do réu, opere a formalização das transacções nos processos nº428/08.8 e 388/08.5 do Tribunal de Tondela, nos exactos termos constantes do protocolo celebrado pelas partes em 14 de Outubro de 2009; 3) seja o réu condenado a deixar livres e devolutos os prédios rústicos que prometeu ceder à autora O (…); 4) seja o réu condenado a pagar aos autores uma indemnização a título de danos patrimoniais e morais no valor global de três mil e quinhentos euros; 5) seja o réu condenado nas custas do processo.

           

            Alegaram, em síntese, que as partes são familiares entre si e mantinham vários litígios em Tribunal que se prendiam com direitos reais relativos a imóveis situados no Concelho.

            Acrescentam que o autor A (…) e o réu, no âmbito das diligências judiciais designadas nos processos identificados, reuniram na sala do Tribunal, em 14.10.2009, visando obter uma solução consensual que permitisse pôr termo aos litígios, tendo celebrado o protocolo que juntam, o qual foi manualmente elaborado na presença das partes.

            Alegam ainda que as partes se obrigaram a formalizar termo de transacção nos referidos processos, para o que seria previamente necessário proceder a uma escritura de permuta, pelo que as partes requereram nos referidos processos a suspensão das respectivas instâncias por um período de sessenta dias.

            Acrescentam que marcaram com alguma antecedência junto do Cartório Notarial de Tondela a escritura e enviaram ao réu notificação, dando-lhe conhecimento da data e local da escritura, não tendo o réu comparecido à mesma.  

            Alegam que com a conduta do réu, os autores tiveram de suportar despesas com a obtenção de documentação para a realização da escritura, como tiveram de suportar custos decorrentes da sua não realização, bem como tiveram os primeiros autores que se deslocar propositadamente de França a Portugal para resolver o assunto, com o que tiveram inúmeras despesas. Tal comportamento do réu causou aos autores angústia e intranquilidade, interferindo de forma decisiva na sua vida pessoal e profissional.

            Citado, o réu contestou que volvidos dois dias da assinatura do documento e após uma leitura reflectida do mesmo não concordou com uma parte do ali acordado, pelo que deu disso conhecimento à contraparte, tendo de imediato sugerido uma reunião, ao que os autores não anuíram, tendo avançado para a marcação da escritura.

            Acrescentou que no referido protocolo interveio apenas o autor A (…), sem poderes dos demais autores para intervir em representação daqueles, pelo que, não tendo aquele acto sido ratificado, é o mesmo ineficaz.

            Os autores responderam, concluindo como na petição inicial, pugnando pela improcedência das excepções invocadas na petição inicial.

            Notificadas as partes nos termos do disposto no artigo 3º, nº3, do Código de Processo Civil, para querendo se pronunciarem quanto ao facto de os autos estarem em  condições de serem decididos, vieram os mesmos dizer que efectivamente consideram tratar-se de uma questão jurídica que não carece de produção de prova.

            O tribunal de 1ª instância julgou de imediato improcedentes os pedidos 1) a 3), deles absolvendo o réu e fez prosseguir o processo quanto ao pedido de indemnização.


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            Inconformados, os Autores recorreram, insistindo nos pedidos que fizeram e apresentaram as seguintes conclusões:

            I - A sentença recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 830º, 410º, 1250º do Código Civil e 300º do Código de Processo Civil.

            II - O documento que as partes apelidaram de protocolo contém a definição concreta e definitiva das concessões recíprocas que pretendiam fazer, com vista à celebração de transacção nos processos judiciais em curso e com o intuito de por termo à situação de compropriedade em que se encontravam os seus prédios, nada mais tendo ficado por definir ou negociar.

            III - Tratou-se pois de um documento subscrito pelas partes de forma livre e consciente, em que se obrigavam num determinado prazo à realização de um contrato de permuta e transacção, o que deve ser qualificado como contrato-promessa de transacção e permuta.

            IV – Não se pode entender que tal documento apenas correspondia a negociações preliminares.

            V - Não tendo ficado por definir qualquer aspecto negocial referente à vontade das partes, apenas se tendo fixado um prazo de sessenta dias, que se reputou suficiente, para proceder à outorga da escritura de permuta e da formalização da transacção nos processos judiciais referidos.

            VI - Os contratos prometidos não foram cumpridos pelo Réu, não porque tivessem sido malogradas quaisquer negociações posteriores ou complementares, mas tão só porque se recusou a cumprir com as promessas já efectuadas.

            VII - Não tendo as partes de modo algum afastado a possibilidade da execução específica das promessas que então efectuaram, bem pelo contrário, conforme decorre da cláusula 12ª do aludido documento.

            VIII - Logo não se verifica qualquer fundamento quer de facto quer de direito que leve à conclusão de que a natureza dos contratos-promessa firmados pelas partes fosse de alguma forma incompatível com a sua execução específica nos termos do disposto no artigo 830º do Código Civil.

            O réu não contra-alegou.


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            São 2 as questões a que temos de responder:

            1ªComo qualificar o acordo que o Autor A (…) e o Réu E (…) subscreveram?

            2ªSendo um contrato-promessa, o mesmo é passível de execução específica?


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            Provaram-se os seguintes factos:

            1- Os autores e réu mantêm vários litígios, existindo pendentes no Tribunal de Tondela pelo menos os processos 428/08.8TBTND, que corre termos pelo 1º Juízo e o 388/08.5TBTND, que corre termos pelo 2° Juízo.

            2- No âmbito dos referidos processos e na sequência de terem sido previamente designadas diligências judiciais para o mesmo dia, o autor A (…) e o réu E (…) acompanhados dos respectivos advogados, reuniram na sala do Tribunal no dia 14 de Outubro de 2009, visando obter uma solução consensual que permitisse por termo aos litígios pendentes.

            3- Na sequência da reunião aludida, entre o autor A (…) e o réu, acompanhados dos respectivos mandatários, foi elaborado o documento manuscrito de fls.23/24 dos autos, que intitularam de "protocolo".

            4- Do teor do documento aludido, consta além do mais o seguinte:

            "Tendo em consideração a pendência dos processos judiciais 428/08.8 e 388/08.5 do Tribunal de Tondela e com vista a uma solução global que ponha termo a todos os litígios existentes entre as partes, estão de acordo no seguinte: (…)

1º No âmbito do processo 428/08, os aí Autores renunciam ao direito de passagem pela servidão identificada na P.I. no artigo 8º.

2º Em contrapartida, o Sr. E (…) assume a obrigação de não utilizar por qualquer forma o prédio… (…), abstendo-se por isso de aí efectuar qualquer rego.

3º Uma vez que o réu E (…)r necessita que o prédio...artigo 4411...seja servido de água, acordam que a mesma provenha da poça identificada…

4º Chegado ao ponto x da planta anexa, o Sr. A(…) efectuará a suas expensas uma caixa…de acordo a trazer água…

5º O Sr. E (…)r não utilizará por qualquer forma os prédios do Sr. (…), sendo que no caso de se verificar qualquer obstáculo ao normal curso de água no supra aludido rego, o mesmo deverá solicitar junto dos proprietários do terreno que o mesmo seja desimpedido… (…)

7º O presente acordo será vertido para termo de transacção no processo 428/08 no prazo máximo de 60 dias. (…)

8º Ambas as partes acordam expressamente que a estrema do prédio com a letra C seja a linha….

9º De igual modo, no sentido de evitar a existência de compropriedade entre as partes em diversos prédios, acordam expressamente efectuar escritura de permuta de forma a pôr fim à compropriedade nos seguintes termos (...) O Sr. A (..) obteria junto da Dona (…) o reconhecimento expresso que o prédio 4411 é propriedade exclusiva e total do Sr. E (…)… (…) …será efectuada a transmissão de 2/3 do artigo rústico…, por permuta com 1/3 do artigo 4344 e ½ do…, que serão transmitidos para nome de O (…). (…)

10º Face à realização da permuta, o Sr. A (…)na data da escritura entregará ao Sr. E (…) o valor compensatório de 4.500 euros.

11º Até à realização da escritura, que deverá ocorrer no prazo máximo de 60 dias…

12ª Ambas as partes conferem ao presente acordo validade total por ser a vontade consciente dos outorgantes, conferindo-lhe valor de título executivo.

            5- Em virtude do aludido em 3) e 4) as partes declararam nos processos referidos que já tinham chegado a um acordo mas que para a formalização de todos os actos pretendiam a suspensão das respectivas instâncias por um período de sessenta dias.

            6- No dia 3 de Dezembro de 2009, no Cartório Notarial de Tondela, encontrava-se agendada pelas 15 horas, uma escritura marcada em nome de O (…), a qual tinha por objecto a permuta já referida, a qual não foi realizada, em virtude do réu não estar presente, apesar de ter sido convocado.


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            1ªquestão: como qualificar o acordo que o A (…) e o Réu E (…)r subscreveram?

            A Sra. Juíza que proferiu a decisão recorrida entendeu que o “protocolo” exterioriza uma negociação preliminar, sem autonomia própria que permita caracterizá-la como contrato promessa.

            Mas o Sr. Juiz do 1º Juízo do mesmo tribunal, no processo 428/08.8, confrontado com o pedido de homologação do “protocolo”, não o tendo homologado por entender que não se tratava de uma transacção, qualificou-o como uma promessa de permuta e transacção.

            Relendo as declarações subscritas, tendo em mente as normas dos artigos 236º e 238º do Código Civil, no contexto da pendência dos processos em tribunal, acompanhados os interessados por mandatários judiciais, não nos parece que aquelas manifestem apenas uma negociação preliminar.

            Normalmente, na negociação preliminar, os interessados procuram deixar claro que não querem vincular-se desde logo. Neste acordo, a cláusula 12º vai no sentido oposto.

            As suas declarações têm um conteúdo claro, de sentido definitivo e firme.

            Percebe-se bem o sentido regulador das relações de propriedade, as quais já tinham os seus termos de crise definidos nos processos em questão.

            A parte relativa à troca de posições de domínio nos prédios vai para além dos termos do conflito e procura prevenir outros conflitos decorrentes das dificuldades inerentes à compropriedade.

            Algumas das cláusulas são as próprias de uma transacção.

            Outras identificam as posições de domínio a trocar. A definição do valor compensatório resulta naturalmente de não serem absolutamente iguais as coisas permutadas, sendo certo que à permuta se aplicam as regras da compra e venda. (Artigo 939º do Código Civil; sobre a permuta, entre outros, ver C.J., do S.T.J., ano 1996, tomo 2, página 50.)

            Não vislumbramos que faltem termos essenciais dos contratos pensados, os quais exigissem novas negociações ou declarações.

            Sendo assim, como qualificar o acordo firmado?

            Porque não estavam todos os interessados e porque dependiam da escrituração da permuta, não restou outra solução aos subscritores senão firmar um prazo para a formalização final. Então ficou definido o prazo de 60 dias para a escrituração e a transacção nos processos.

            Quando assim é ajusta-se o contrato-promessa (artigo 410º do Código Civil; ver Ana Prata, O Contrato-promessa e seu regime civil, Almedina, 2006, página 105).

            Não é obstáculo a este contrato o facto de não estarem todos os interessados.

            Percebe-se que o Autor A(…)se compromete pelos ausentes, prometendo as suas declarações no momento oportuno. (A possibilidade deste compromisso confirma-se pela presença de todos na autoria desta acção.)

            A promessa pode consistir na obrigação de contratar com terceiro.

            A promessa pode ser a de obter a prestação de terceiro.

            Voltando a ler as declarações subscritas, tendo em mente as normas dos artigos 236º e 238º do Código Civil, concluímos que os subscritores concretizaram um contrato promessa complexo, misto de recíprocas concessões (transacção) e de permuta, integrados numa solução global, para por termo às suas (e de mais duas pessoas) relações conflituosas de domínio, vizinhança prediais e, porventura (ver artigo 1º da petição), familiares.

            2ªquestão: sendo um contrato-promessa, o mesmo é passível de execução específica?

            Não há no contrato cláusula expressa que expresse um sentido contrário à execução específica.

            Porém, assinalou a Sra. Juíza que proferiu a sentença, opõe-se à execução específica a natureza das obrigações assumidas (artigo 830º, nº1, do Código Civil), consideradas como um todo e solução global.

            Vejamos se assim é.

            A natureza da prestação prometida é também analisada à luz das presunções da experiência e da vontade presumível das partes. (A. Varela, Das Obrigações, vol.1, 2ª edição, Almedina, página 257.)

            “A natureza da obrigação assumida pela promessa opõe-se à execução específica, nomeadamente, sempre que o contrato prometido apresente uma índole pessoal que justifique deixar-se às partes a liberdade de facto de o não celebrar…” (acórdão do STJ, de 20.5.2010, processo 1126/07.5TBPVZ.P1.S1, em www.dgsi.pt.)

            O acordo, no que respeita às declarações de renúncia, de respeito e negativas (não passar, não utilizar, reconhecer a propriedade), parecendo ligadas a estas concretas pessoas, expressa uma natureza parcialmente pessoal que mal se ajusta à substituição judicial.

            (A renúncia relativa a direito real (pleno, menor) pode ser entendida como “equiparada a uma doação” – Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II volume, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1979, Imprensa Nacional, páginas 784 e 785; a doação  opõe-se à execução específica – ver acórdãos do STJ, de 1.7.2010 e 29.6.2010, respectivamente nos processos 8091/04.9TBMAI.S1 e 476/99.P1.S1, em www.dgsi.pt.)

            Mas estas considerações não nos parecem seguras ou decisivas por falta de outros elementos pertinentes do caso. Faltam-nos dados relativos aos prédios e aos termos dos processos pendentes no Tribunal de Tondela.

            O que entendemos decisivo é o seguinte:

            A transacção judicial tem implícita uma actualidade e tem uma estrutura que não se coadunam com a execução específica. (ver, com interesse, Ana Prata, obra citada, páginas 453, 469, 471 e 921-923.)

            Quanto à actualidade:

            Concretiza-se a transacção e leva-se a mesma à homologação judicial. Não acontecendo assim, adiando-a, as partes não a concretizam.

            Concordamos com a Sra. Juíza do tribunal a quo quando refere que a transacção pressupõe uma “actualidade da vontade, incompatível com a subrogação judicial.”

            Os subscritores da promessa não fazem a transacção. (Porque a permuta é considerada prévia àquela (artigo 7º da petição).)

            Quanto à estrutura da transacção judicial ou seu processo de comprometimento:

            A imposição do acto judicial homologatório (ou não), que está para além da transacção, torna esta dependente e não perfeita ou completa em si mesma, diferenciando-a do contrato prometido (completo) pensado para a execução específica.

            Se este tribunal se substituísse ao incumpridor, o pretendido não ficaria completo, dependendo ainda (a condição) da homologação de outro tribunal, o que podia não ocorrer.

            Estas dificuldades não existem na promessa de permuta.

            Porém, esta promessa está intrinsecamente ligada às outras promessas, não podendo umas sobreviver sem as outras, sem destruir todo o sentido do acordo global.

            Por tudo isto, este contrato-promessa não é passível de execução específica, o que leva à improcedência dos pedidos 1) a 3), como foi decidido.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a sentença recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

Maria Inês Carvalho Brasil de Moura

Luís Filipe Dias Cravo