Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
495/04.3TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE
RECURSO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.690-A, 712 CPC 1816, 1817,1871 CC, LEI Nº 14/2009 DE 1/4
Sumário: I - O ónus imposto ao recorrente que impugna a matéria de facto, no que tange a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, teve em vista essencialmente a situação em que a pretensão do recorrente se funda na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão, ou seja, nos casos em que o recorrente sustenta a existência de prova do contrário ou de contraprova daquela que na decisão foi relevada.

II - Nas situações em que o erro de julgamento da matéria de facto deriva simplesmente do meio de prova aduzido para fundamentar a decisão do ponto de facto impugnado, por não conduzir a tal resultado probatório ou em que é alegada falta de credibilidade de um meio de prova, o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa tem de ser adequadamente entendido.

III - Assim, na primeira situação enunciada o recorrente observará suficientemente o ónus processual previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 690º-A, do Código de Processo Civil, indicando o depoimento que afirma por si só insuficiente para conduzir ao resultado probatório que impugna, tal como quando estiver em causa a credibilidade de um certo meio de prova pessoal bastará a remissão para os segmentos do meio de prova em causa que contenham a sua razão de ciência e a sua análise crítica ou, nos casos em que não seja indicada razão de ciência, a mera referência à ausência dessa indicação.

IV – Porque o recurso da matéria de facto é um verdadeiro recurso e, como tal, para que proceda, importa que se possa concluir, com segurança, pela verificação de um erro de julgamento de facto, não bastará ao Tribunal da Relação adquirir uma convicção probatória divergente da que foi adquirida em primeira instância para que seja alterada a decisão de facto da primeira instância, sendo necessário para tanto que o Tribunal da Relação esteja em condições de afirmar a existência de um erro de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal de primeira instância.

V - A posse de estado, como resulta das previsões dos artigos 1816º, nº 2, alínea a) e 1871º, nº 1, alínea a), ambos do Código Civil, decompõe-se em três elementos distintos - o nome, o tratamento e a fama.

Existe nome quando o filho chama o pretenso pai como pai e este, por sua vez, chama ao investigante filho.

O tratamento consiste no comportamento do pretenso pai que, visto exteriormente, cria uma aparência reveladora de laços de filiação biológica.

A fama é a reputação de que goza o investigante, junto da generalidade das pessoas que o conhecem ou que sabem da sua existência, de que o seu pai é o investigado.

VI - Não é suficiente para integrar a posse de estado, a prova de que o pretenso pai era conhecido pela alcunha de “cigano” e a autora era alcunhada de “ciganucha” pelas pessoas da localidade, a circunstância do pai do investigado oferecer à autora dinheiro para o casamento e o facto de, perto da sua morte, o investigado dizer a uma testemunha que era o pai da autora.

V- O Ac do TC nº 23/2006 de 10/1 ( DR 1ª Série-A de 8/2) declarou “ a inconstitucionalidade , com força obrigatória geral, da norma constante do nº1 do artigo 1817 do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873 do mesmo Código, na medida em que prevê para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante”.

A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, retroage os seus efeitos até ao início da vigência da norma constitucional que determina a invalidade da norma legal, devendo ser havida como uma alteração da legislação vigente em termos de permitir a investigação de paternidade a todo o tempo.

VI – A Lei nº 14/2009 de 1 Abril alterou o nº1 do art.1817 do Código Civil, prevendo o prazo de dez anos posteriores à maioridade ou emancipação para a acção de investigação de maternidade, aplicável à investigação de paternidade ( art.1873 CC ).

A lei, que entrou em vigor em 2 de Abril de 2009, aplica-se aos processo pendentes, por força do seu art.3º ( “ A presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”).

VII – O art.3º da Lei nº 14/2009 de 1 de Abril que determina a aplicação aos processos pendentes do prazo de caducidade de dez anos ( nº1 do art.1817 CC), não é materialmente inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da confiança e da igualdade, quando a acção de investigação é proposta em 14/5/2004, antes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo ac. do TC nº 23/2006 de 10/1.

VIII – É que, nessa data, a autora não tinha qualquer razão plausível para confiar na insusceptibilidade da caducidade da acção de investigação de paternidade e a diversidade de regimes jurídicos que resulta para os cidadãos que instauraram acção antes e depois da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo ac. do TC nº 23/2006, deriva dos regimes jurídicos distintos que esses mesmos cidadãos tiveram em vista no momento da propositura da acção.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A (…)  instaurou, a 14 de Maio de 2004, no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, contra B (…)e mulher, por si e em representação das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de C (…) e D (…) a presente acção declarativa sob forma ordinária pedindo que seja reconhecida como filha de D (…).

            Em síntese, para fundamentar a sua pretensão, a autora alega que sua mãe, (…), em finais de 1931, inícios de 1932 e D (…) iniciaram uma relação de namoro, do conhecimento público, declarando D (…) que pretendia casar com a mãe da autora, assim a fazendo aceder a manter com ele relações de cópula completa, em consequência das quais veio a mãe da autora a engravidar e dessa gravidez nascendo a autora, a 20 de Novembro de 1932, não tendo sido feita no assento de nascimento da autora qualquer menção à paternidade. Mais alega que D (…) sempre tratou a autora como filha e que os pais de D (…) sempre trataram e reconheceram a autora como neta, sendo assim também considerada e tratada pelo público, que quando a autora casou, D (…)  e seus pais lhe deram os adobes necessários à construção da sua casa, que D (…) tratava as filhas da autora como netas, que a autora tem semelhanças fisionómicas e de tez com D (…) e que D (…)  não reconheceu a autora como sua filha por disso ter sido impedido por sua esposa enquanto viva e, após o óbito desta a 09 de Dezembro de 2003, por ter sido mantido em isolamento por B (…)  e mulher até ao seu óbito a 28 de Janeiro de 2004. Finalmente, a autora alega que D (…)  faleceu no estado de viúvo, sem deixar descendentes e fez doações e testamento a favor de B (…), enquanto a falecida esposa de D (…)  deixou testamento a favor de B (…) e mulher.

            Efectuada a citação dos réus pessoas singulares, estes ofereceram contestação em que impugnam a generalidade da factualidade articulada pela autora.

            A 13 de Setembro de 2004, a autora veio requerer a exumação dos cadáveres de sua mãe e de D (…) para recolha neles de material biológico, a fim de serem efectuados exames periciais para determinação dos perfis de ADN, em ordem a determinar a paternidade da autora.

            Os réus contestantes, em resposta ao requerimento de produção antecipada de prova, pediram também a exumação do cadáver de (…), pai de D (…) e que, efectuada a recolha do material biológico aos cadáveres de (…) e de (…), seja tal material convenientemente guardado e mantido no Instituto de Medicina Legal, para não sofrer degradação.

            A autora replicou, vindo os contestantes suscitar a nulidade de tal réplica por alegadamente apenas terem deduzido defesa por impugnação.

            A 19 de Outubro de 2004, proferiu-se despacho determinando o desentranhamento dos documentos oferecidos pela autora com a sua petição inicial, em virtude de serem certificados por entidade sem competência para o efeito, vindo a autora em requerimento datado de 08 de Novembro de 2004 juntar aos autos as certidões dos documentos cujo desentranhamento foi determinado.

            A 09 de Dezembro de 2004, a autora veio reiterar a pretensão da produção de prova antecipada que havia já requerido a 13 de Setembro de 2004.

            A 13 de Setembro de 2005, foi proferido despacho convidando o autor a indicar pessoa que deva ser nomeada curadora especial e para figurar como ré nestes autos, no caso de não existirem descendentes, ascendentes ou irmãos do pretenso pai e, quanto à produção antecipada de prova, determinou-se que os autos continuassem a aguardar relatório do Instituto de Medicina Legal para determinação dos perfis genéticos.

            Os réus contestantes interpuseram recurso de agravo do despacho que convidou a autora a indicar pessoa a ser nomeada como curadora especial, recurso que não foi admitido por despacho proferido a 29 de Novembro de 2005. Neste mesmo despacho nomeou-se como curador especial a pessoa indicada pela autora, ordenando-se a sua citação para os termos da acção e deferiu-se a produção de prova pericial antecipada requerida pela autora.

            A 16 de Dezembro de 2005, os réus contestantes reclamaram da não admissão do recurso de agravo que haviam interposto do despacho proferido a13 de Setembro de 2005 e interpuseram novo recurso de agravo contra a decisão que nomeou como curador especial o indivíduo indicado pela autora, bem como do mesmo despacho, na parte em que desatendeu a realização de perícia a (…), recurso que não foi admitido, por decisão proferida a 21 de Dezembro de 2005.

            A reclamação deduzida contra o despacho proferido a 29 de Novembro de 2005 foi indeferida por despacho de 16 de Fevereiro de 2006 proferido pelo Sr. Juiz Desembargador, Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.

            Os autos aguardaram o relatório da prova pericial antecipada e junto e, notificado às partes o relatório elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra, por carta registada expedida a 07 de Julho de 2006, a 20 de Julho de 2006, os réus contestantes vieram requerer nova perícia a efectuar por instituição diversa, bem como a realização de perícia que considere a hipótese do pai do investigado ser o pai da autora.

            A autora opôs-se a esta pretensão dos réus.

            A pretensão dos réus contestantes foi indeferida em despacho proferido a 22 de Setembro de 2006 com fundamento, em síntese, de que a realização de nova perícia não obstaria ao alegado deficiente estado de conservação das amostras biológicas que serviram de base ao primeiro exame, bem pelo contrário e que a invocada hipótese de (…) o pai da autora extravasa do objecto destes autos.

            Os réus contestantes, inconformados com a decisão proferida a 22 de Setembro de 2006 e notificada por carta registada expedida a 25 de Setembro de 2006, vieram a 09 de Outubro de 2006 pedir o seu esclarecimento e interpuseram logo recurso de agravo do mesmo despacho.

            O requerimento dos réus contestantes para esclarecimento do despacho proferido a 22 de Setembro de 2006 foi indeferido por decisão datada de 30 de Outubro de 2006, sendo a autora notificada para, querendo, se pronunciar sobre a atribuição do efeito suspensivo ao recurso de agravo interposto pelos réus a 09 de Outubro de 2006.

            A autora pronunciou-se no sentido de não ser atribuído efeito suspensivo ao recurso de agravo interposto pelos réus a 09 de Outubro de 2006, recurso que por despacho proferido a 17 de Novembro de 2006 e notificado às partes por cartas registadas expedidas a 23 de Novembro de 2006 veio a ser admitido como de agravo, com subida diferida e efeito meramente devolutivo.

            Os réus apresentaram alegações em que pugnam pela revogação do despacho proferido a 09 de Outubro de 2006, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

- que não houve perícia ao material biológico referente a D (…), tendo sido considerados os resultados já obtidos noutro exame;

- que dos autos resulta a probabilidade da autora ser fruto de relações sexuais mantidas por sua mãe com o pai do investigado;

- que tal possibilidade obriga a um cálculo estatístico diferente do índice de paternidade normalmente efectuado;

- que o despacho é nulo por não especificar fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, deixando de apreciar questões que lhe foram colocadas e que os verdadeiros fundamentos que deveriam ter sido especificados sempre estariam em contradição com a decisão que veio a ser tomada;

- que o despacho é obscuro por não mostrar por que se não há-de proceder a nova perícia.

A autora ofereceu contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso de agravo interposto pelos réus.

            Designou-se dia para realização de audiência preliminar e nesta proferiu-se despacho a mandar abrir conclusão para prolação de despacho saneador, já que o carácter indisponível da relação jurídica objecto dos autos obstava à realização de tentativa de conciliação.

            Proferiu-se despacho a julgar legalmente inadmissível a réplica oferecida pela autora, em virtude dos réus apenas terem contestado por impugnação, proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes a integrarem a base instrutória.

            A autora reclamou contra a factualidade assente, pugnando pela inclusão nesta do resultado da perícia antecipada realizada na fase dos articulados.

            A autora ofereceu as suas provas.

            Por seu turno, os réus contestantes reclamaram contra os factos assentes e contra a base instrutória, por omissão, oferecendo as suas provas.

            As reclamações deduzidas por ambas as partes contra a condensação da factualidade foram indeferidas, ordenando-se a rectificação de lapso de escrita nas alíneas F e G dos factos assentes, na parte em que aludiam a “escritura pública”, quando deveria aí referir-se “testamento”.

            Por despacho proferido a 16 de Janeiro de 2008, admitiram-se os róis de testemunhas oferecidos pela autora e pelos réus contestantes, indeferindo-se a prova pericial requerida pelos réus, em virtude de já existir nos autos perícia relativamente à probabilidade da autora ser filha de D (…) e por a perícia relativa a (…) exorbitar do objecto do processo, deferindo-se a pretensão das partes de gravação da audiência.

            Notificados do despacho proferido a 16 de Janeiro de 2008, por carta registada expedida a 17 de Janeiro de 2008, a 31 de Janeiro de 2008, os réus contestantes interpuseram recurso de agravo do despacho que indeferiu a realização de prova pericial, recurso que a 11 de Fevereiro de 2008 foi admitido como de agravo, com subida diferida, nos próprios autos e efeito devolutivo, decisão notificada às partes por cartas registadas expedidas a 13 de Fevereiro de 2008.

            A 19 de Fevereiro de 2008 foi proferido despacho indeferindo os depoimentos de parte requeridos pela autora.

            A 04 de Março de 2008, os réus apresentaram as suas alegações relativamente ao recurso de agravo contra o indeferimento da prova pericial decidida no despacho proferido a 16 de Janeiro de 2008.

            Nestas alegações, os réus formulam, em síntese, as seguintes conclusões:

            - não foi nunca considerada a possibilidade do pai do investigado poder ser o pai da autora e nada garante que uma perícia que considerasse tal possibilidade não desse resultados mais próximos dos 100% de probabilidade do pai do investigado ser o pai da autora;

            - não houve perícia sobre o material biológico de D (…), tendo-se usado os resultados de outra perícia.

            A 27 de Março de 2008, realizou-se a primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, vindo a autora oferecer contra-alegações ao recurso de agravo interposto pelos réus a 31 de Janeiro de 2008, pugnando pela total improcedência de tal recurso.

A 18 de Abril de 2008 realizou-se a segunda sessão da audiência de discussão e julgamento, proferindo-se seguidamente decisão sobre a factualidade controvertida.

            Apenas os réus contestantes apresentaram alegações sobre o aspecto jurídico da causa.

            Proferiu-se sentença julgando procedente a acção, decisão que foi notificada às partes por cartas registadas expedidas a 07 de Julho de 2008.

            A 14 de Julho de 2008, foi emitido despacho de sustentação da decisão proferida a 16 de Janeiro de 2008.

            Inconformados com a sentença, a 21 de Julho de 2008, os réus contestantes interpuseram recurso de apelação contra a mesma, recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito suspensivo e com notificação efectuada às partes por cartas registadas expedidas a 17 de Setembro de 2008.

            A 03 de Novembro de 2008, os réus ofereceram as suas alegações de recurso, protestando juntar, atempadamente, para subir com os autos, transcrição integral da prova gravada em julgamento.

            As conclusões do recurso de apelação interposto pelos réus contestantes são as seguintes:

“1. D (…), em 14-03-2003, instituiu seu universal herdeiro, no caso de sua mulher (…), sua única herdeira legitimaria lhe prefalecer, B (…) (ora recorrente) impondo-lhe a obrigação de zelar pelo jazigo-capela no qual deverá ser sepultado com sua mulher, acima do solo, colocando e substituindo semanalmente as flores e procedendo à sua limpeza.

2. Por testamento celebrado em 28-11-2003, C (…)declarou não ter ascendentes ou descendentes vivos e instituir herdeiros de quota disponível dos seus bens, os seus primos B (…)  e mulher (…).

3(…) mãe da Autora nasceu a 29-05-1912, estando registada como filha de (…)e de (…)  e falecido em 1999, no estado de viúva de (…)s, filho de (…) e de (…).

4. A Autora nasceu a 20-11-1932, e no seu assento de nascimento não foi feita qualquer menção à sua paternidade.

5. D (…)  faleceu a 28-01-2004, e nasceu em 01-10-1015 sendo mais novo do que a mãe da Autora três anos e quatro meses.

6. Quando do período legal da concepção da Autora que decorreu de 25-01-32 a 24-05-32 (primeiros 120 dias que precederam o nascimento da autora) ou seja quando faltavam apenas, de dez meses a seis meses e 5 dias para a mãe da Autora atingir os 20 anos de idade e o investigado teria apenas 16 anos e 4 meses, e quando a Autora nasceu teria apenas 17 anos e quase 2 meses.

7. Conjugada a data de nascimento 29-05-1912 – com a do falecimento a 20-05-1999, verifica-se que a mãe da Autora faleceu quando faltavam apenas 20 dias para os 87 anos de idade e a autora, nascida a 20-11-1932, já tinha mais de 71 anos e dois meses quando D (…) faleceu.

            8. A mãe da Autora teve pelo menos mais dois filhos, nenhum do casamento nem reconhecido por pai – rotação 2220 – 39:55.pags. 21 da gravação.

           

            9. Não se provou que desde finais de 1931, inícios do mês de Janeiro de 1932 e até 1935 – incluindo, portanto, o período legal da concepção ela não tivesse mantido relações sexuais com qualquer outro homem.

            10. Tudo confirma que o Tribunal só teve como fundamentação para considerar provado que a (…)  manteve relações sexuais de copula completa com o investigado – quesito 7 – e que em resultado dos quais ela engravidou e deu à luz a Autora, o resultado do exame de sangue com uma probabilidade de W = 99,999985% que corresponde a paternidade praticamente provada.

            11. Mas este exame mão é credível e nem cientificamente correcto por não atender a probabilidade séria de o pai da autora poder ser o pai do investigado – o que alterava e tornava inferior o grau de probabilidade de paternidade do investigado. Assim,

12- Aquele exame não PROVA A FILIAÇÃO BIOLÓGICA nem que o investigado tenha mantido relações sexuais com a mãe da Autora, menos nova e que as pode ter mantido com (…)  pai dele – como corre entre o público e a própria alegação da Autora ao apontar factos não só não afasta mas até parece confirmar.

13. A nova perícia ou exame devia ser realizada pelo Instituto de Medicina Legal (mas não o de Coimbra) ou por Entidade de Nível Científico Reconhecido Nacional e Internacionalmente como o IPATIMUP – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto. De-resto

            14. Como se diz na sentença recorrida só a prova do exame – que afinal não considerando a hipótese de o pai do investigado ser o pai biológico não é assim tão cientificamente credível – nem se podiam ter como provadas as relações sexuais do investigado com a Autora que não provou que as não tivesse com outro, mesmo no período legal da concepção.

            15. O que se deixou referido é confirmado por um Parecer que se junta por cópia e é da responsabilidade de (…) – Mestre em Genética Humana Aplicada, por (…) Doutora em Biologia e Investigadora e por (…) – Prof. Catedrático da FCUP e Vice-Presidente do IPATIMUP.

 

            16. De-resto em cálculos feitos considerada a probabilidade de o pai da Autora ser o pai do investigado, o Instituto de Medicina Legal já, na outra acção referida, calculou para o pai do investigado uma probabilidade de paternidade de 99,999999% ou seja, ainda superior à de 99,999985% atribuída, nesta acção, ao investigado.

            17. Também não é possível reconhecer agora como se fosse um direito o que há décadas havia caducado, ao abrigo de outra lei de acordo com outra Constituição.

            18. Isso é que seria inconstitucional e deixaria sem poderem habilitar-se herdeiros que podiam ficar séculos sem saber se os nascidos no princípio do século passado viriam intentar acções de investigação .

            19. Não há qualquer prova da paternidade biológica e, portanto, de acordo com a sentença, não pode ser julgada procedente a acção, porquanto,

            20. Não estão provados os factos dos artºs 7º e 8º.E

            21. Ainda que, de reduzido interesse, não se provou também o que como provado se teve no quesito 18º - pelas razões invocadas a fls. 6 e 7 destas alegações;

            22. O mesmo sucedendo em relação a matéria dos outros quesitos a que nas nossas alegações escrevemos não estarem provados, acrescendo que

            23. Toda a matéria de facto não provada demonstra que nenhuma razão tem a Autora nesta acção.”

            A 22 de Dezembro de 2008, os réus vieram oferecer a transcrição integral da prova produzida em audiência e peticionaram a admissão de requerimento composto de onze folhas que precisa os concretos meios probatórios que na sua perspectiva impõem decisão diversa da recorrida.

            A 05 de Janeiro de 2009, a autora apresentou contra-alegações pugnando pela confirmação integral da sentença sob censura, referindo que os réus não cumpriram as normas legais referentes à impugnação da matéria de facto, devendo tal recurso ser julgado deserto, que o documento oferecido pelos réus com as suas alegações é impertinente e nem sequer se acha assinado pelos alegados autores do mesmo e, em todo o caso, pugna pelo não provimento do recurso interposto.

            A 14 de Janeiro de 2009, a autora veio requerer a repetição da notificação do requerimento oferecido pelos réus a 22 de Dezembro de 2008 e, em todo o caso, à cautela, requereu o desentranhamento dessa peça apresentada pelos réus.

            A 25 de Fevereiro de 2009 foi proferido despacho a determinar o desentranhamento e devolução aos réus do requerimento apresentado por estes a 22 de Dezembro de 2008, vindo os réus a 16 de Março de 2009 reclamar de tal decisão requerendo a manutenção nos autos do mencionado requerimento, deixando ao tribunal superior a apreciação da sua pertinência, pretensão a que a autora se opôs, decidindo-se, a 06 de Maio de 2009, pela manutenção do documento oferecido pelos réus com as alegações do recurso de apelação, deferindo-se ao Tribunal da Relação de Coimbra a apreciação da pertinência de tal documento.

            A 08 de Junho de 2009 foi proferido despacho de sustentação da decisão objecto de recurso de agravo interposto a 09 de Outubro de 2006 e ordenou-se a subida dos autos a este Tribunal da Relação para conhecimento dos recursos interpostos.

            Recebidos os autos neste Tribunal da Relação do Coimbra, a 30 de Junho de 2009, foi proferido despacho pelo Sr. Juiz Desembargador relator que não admitiu a peça de folhas 702 e seguintes (oferecida pelos réus a 22 de Dezembro de 2008), por configurar um aditamento às alegações de recurso, despacho notificado às partes por carta registada expedida a 03 de Julho de 2009.

            A 20 de Julho de 2009, os réus vieram reclamar para a conferência da decisão proferida a 30 de Junho de 2009, reclamação notificada à autora por carta registada expedida a 17 de Julho de 2009.

            A autora ofereceu requerimento entrado a 24 de Agosto de 2009 em que se pronuncia pelo indeferimento da reclamação dos réus para a conferência.

            Os réus vieram suscitar a intempestividade da pronúncia da autora sobre a reclamação para a conferência.

            Ordenou-se a notificação da autora para proceder ao pagamento de multa pela apresentação intempestiva de resposta à reclamação para a conferência apresentada pelos réus.

            A autora procedeu ao pagamento da multa devida pela apresentação intempestiva à reclamação dos réus para a conferência.

            Colhidos os vistos legais e após audição das partes sobre a eventual aplicabilidade ao caso dos autos da nova redacção do artigo 1817º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, cumpre agora apreciar e decidir pois que inexistem obstáculos ao conhecimento dos recursos interpostos pelos réus.

2. Questões a decidir, tendo em conta o objecto dos recursos delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas diversas alegações de recurso e da reclamação para a conferência, por ordem lógica e tendo em conta a prejudicialidade existente entre algumas questões e o disposto no artigo 710º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos

2.1 da lei adjectiva aplicável aos recursos objecto destes autos;

2.2 da existência de caso julgado formal obstativo de realização de perícia tendente a determinar da probabilidade de (…)  ser o progenitor da autora;

            2.3 do preenchimento dos requisitos legais para realização de segunda perícia para determinação da paternidade da autora;

2.4 da necessidade de realização de perícia, na fase de instrução, para determinação da probabilidade (…) serem progenitores da autora;

2.5 da admissibilidade legal do aditamento às alegações oferecido pelos réus a 22 de Dezembro de 2008;

2.6 da rejeição do recurso da decisão da matéria de facto;

2.7 do conhecimento do recurso sobre a matéria de facto;

2.8 da caducidade do direito da autora de obter o reconhecimento da sua paternidade;

            2.9 da prova da filiação biológica da autora.

            3. Fundamentos

            3.1 Da lei adjectiva aplicável aos recursos a conhecer nestes autos

A presente acção foi instaurada a 14 de Maio de 2004.

Por isso, visto o disposto no artigo 11º, nº 1, do decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aos recursos interpostos nestes autos é aplicável o regime vigente antes da entrada em vigor daquele que foi introduzido pelo citado decreto-lei, já que este regime apenas é aplicável às acções intentadas a partir de 01 de Janeiro de 2008 (artigo 12º, nº 1, do referido decreto-lei).

3.2 Da existência de caso julgado formal obstativo de realização de perícia tendente a determinar da probabilidade de (…) ser o progenitor da autora

Na sequência da audição dos réus para a prova pericial antecipada requerida pela autora, os réus requereram a recolha de material biológico aos cadáveres (…)e a subsequente manutenção e guarda do material biológico recolhido para não sofrer degradação e ser examinado conforme o Tribunal entenda haver ou não prova os pressupostos da acção.

            Sobre esta pretensão dos réus não recaiu qualquer decisão expressa. Apesar disso, os réus interpretaram a decisão proferida a 29 de Novembro de 2005 (folhas 158 e 159), como sendo de indeferimento da sua pretensão de recolha de material biológico ao cadáver de (…), a fim de ser objecto de perícia (folhas 179) e interpuseram recurso de agravo dessa decisão interpretada desse modo.

            O recurso interposto pelos réus a 16 de Dezembro de 2005 (folhas 179) não foi admitido por despacho proferido a 21 de Dezembro de 2005 (folhas 183), invocando-se para tanto o disposto no artigo 679º do Código de Processo Civil que prevê a irrecorribilidade dos despachos de mero expediente, bem como dos proferidos no uso legal de um poder discricionário.

            Os réus não reagiram contra tal decisão de não admissão daquele recurso.

            Coloca-se assim a questão de saber se existe caso julgado formal que obste à recolha de material biológico ao cadáver de (…).

            O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por decisão que já não admite recurso ordinário e havendo identidade jurídica de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (artigo 497º, nº 1 e 498º, ambos do Código de Processo Civil).

            “Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo” (artigo 672º do Código de Processo Civil).

            No caso dos autos, a decisão que os réus interpretaram como indeferindo o requerimento para recolha de material biológico ao cadáver de (…), nada decidiu quanto a esta matéria, sendo o seu objecto precípuo o requerimento da autora de folhas 147 e seguintes, como expressamente se refere a folhas 158. Será que se pode concluir que a diligência requerida pelos réus se deve ter por implicitamente indeferida na decisão tomada a folhas 158 e 159?

            A nosso ver, há que distinguir a decisão implícita da omissão de pronúncia. A decisão implícita é aquela que não sendo expressamente tomada resulta necessariamente de decisão expressamente tomada e desde que resulte do texto da decisão que a questão implícita foi tida em conta. Ao invés, a omissão de pronúncia verifica-se quando se não decidiu ou não se teve em conta uma questão posta à consideração do tribunal.

            No caso dos autos, entendemos que se verificou uma omissão de pronúncia sobre aquela pretensão dos réus, não sendo lícito configurar uma decisão implícita de indeferimento dessa pretensão na decisão tomada a folhas 158 e 159. De facto, a decisão que naquele despacho foi tomada não exclui necessariamente a pretensão dos réus e, ao invés, é perfeitamente compatível com o seu deferimento. Por outro lado, no texto dessa decisão não se divisa qualquer alusão à pretensão dos réus.

Por isso, apesar de entendermos que a decisão que recaia sobre pretensão probatória de qualquer das partes é, em regra, recorrível, verificados que estejam os restantes requisitos gerais de recorribilidade de qualquer decisão, afigura-se-nos que não se formou caso julgado formal que obste à reiteração da pretensão dos réus de recolha de material biológico ao cadáver de (…).

            Assim, no que tange a questão enunciada para ser conhecida em segundo lugar, entende-se inexistir caso julgado formal que obste à realização de perícia tendente a determinar da probabilidade de (…) ser o progenitor da autora.

            3.3 Do preenchimento dos requisitos legais para realização de segunda perícia para determinação da paternidade da autora

Os réus, notificados que foram do relatório pericial elaborado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra, requereram nova perícia a efectuar por instituição diversa, bem como a realização de perícia que considere a hipótese do pai do investigado ser o pai da autora, pretensão que foi indeferida e contra a qual os réus reagiram nos termos já sintetizados no relatório deste acórdão.

            A pretensão dos réus surgiu no âmbito de um procedimento de produção antecipada de prova pericial. Este procedimento não implica qualquer desvio às regras gerais das provas cuja antecipação de produção é requerida, importando apenas a produção de prova quando ainda não existe acção proposta ou quando nesta ainda se não atingiu a fase da instrução (artigos 520º e 521º do Código de Processo Civil).

            Nos termos do disposto no artigo 589º, nº 1, do Código de Processo Civil, “qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.”

            “A segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta” (artigo 589º, nº 3, do Código de Processo Civil).

            Assim, desde logo, face ao teor do normativo que se acaba de citar, é patente que nunca haveria lugar a segunda perícia a recair sobre um objecto novo e sobre o qual não incidiu a primeira perícia. Deste modo, a pretensão dos réus de em segunda perícia pretenderem a recolha de material biológico ao cadáver de (…), bem como o exame do perfil genético desse material em ordem a apurar da probabilidade do referido (…) ser pai da autora não tem qualquer apoio legal, pelo que o recurso de agravo interposto a 09 de Outubro de 2006 improcede necessariamente neste segmento.

            Apreciemos se é fundada a pretensão dos réus de realização de segunda perícia, desta feita a incidir sobre o material biológico recolhido no cadáver de (…).

            No requerimento que provocou a decisão sob censura, alega-se que do exame atento do relatório pericial resulta serem evidentes os sinais de degradação do material biológico analisado com prejuízo da qualidade técnica da perícia.

Os réus não indicam de forma precisa e concreta em que consistiu o aludido prejuízo da qualidade técnica da perícia. É que, uma coisa é a degradação do material biológico que impede a utilização de alguns marcadores na identificação do perfil genético e outra bem diversa é a falta de qualidade ou de rigor na realização da perícia.

A degradação do material biológico objecto de perícia é um facto a que a entidade que realiza a perícia é alheia e não constitui por si fundamento para que se afirme que por essa razão está afectada a qualidade técnica da perícia.

            Aliás, tal como se afirmou na decisão sob censura, a referida degradação ainda será maior se se proceder a nova colheita e subsequente exame. Por outro lado, mal se percebe que apesar da aludida degradação daquele material biológico, os réus acabem por admitir que a segunda perícia incida sobre o material biológico já recolhido e conservado no Instituto Nacional de Medicina Legal de Coimbra.

            No entanto, nas conclusões das alegações do recurso de agravo ora em apreciação, os réus alegam ainda para fundamentar o seu requerimento de segunda perícia que não foi efectuada perícia ao material biológico recolhido a (…) aproveitando-se os resultados de outro exame efectuado no âmbito de outra acção, que o despacho sob censura enferma de nulidade por falta de fundamentos de facto e de direito e por omissão de pronúncia.

            No que respeita ao argumento de que não foi efectuada perícia ao material biológico de (…), diga-se desde já que, a proceder, nunca justificaria uma segunda perícia, diligência que por definição pressupõe uma primeira perícia. Em tal caso, o que se impunha era uma reclamação contra o relatório pericial, requerendo-se a realização da perícia que se afirma omitida.

            No que tange a falta de fundamentação fáctica e jurídica do despacho sob censura, importa começar por referir que há que distinguir a falta de fundamentação de facto ou de direito da mera insuficiência de fundamentação.

            Ora, no caso dos autos, o despacho sob censura apresenta-se fundamentado de facto e de direito e, na perspectiva deste tribunal, como resulta do que precede, parte da sua fundamentação merece a nossa plena concordância.

            Por outro lado, não se divisa no despacho sob censura qualquer omissão de pronúncia, na medida em que as duas pretensões formuladas pelos réus foram apreciadas, de forma discriminada e indeferidas com fundamentos distintos.

            Assim, pelo que precede, improcede o recurso de agravo interposto contra o despacho proferido a 22 de Setembro de 2006 (folhas 337), o qual se mantém, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes.

3.4 Da necessidade de realização de perícia, na fase de instrução, para determinação da probabilidade de (…) ou de (…) serem progenitores da autora

Na fase da instrução, os réus vieram requerer a realização de uma perícia para determinação da probabilidade da autora ser filha de D (…) ou do pai deste, (…).

            Sobre esta pretensão dos réus recaiu despacho de indeferimento, afirmando-se, por um lado, que já foi feita perícia para determinar da probabilidade de D (…)ser o progenitor da autora e, por outro lado, em virtude da perícia relativa a (…) extravasar do objecto do processo, dado que o investigando é D (…) e não outro.

            Insurgem-se os réus contra esta decisão reiterando os argumentos já referidos a propósito do agravo anteriormente conhecido e que basicamente são a de não ter havido verdadeira perícia ao material biológico de D(…), mas antes e apenas o uso dos resultados obtidos no âmbito de exame realizado noutros autos e o não ter sido colocada a hipótese do pai da autora ser (…).

            Assinale-se que apesar da insistência dos réus no argumento de que no âmbito destes autos não se realizou efectivamente perícia ao material biológico de D (…) não apontam qualquer erro ou incorrecção nos resultados utilizados, limitando-se a aludir à possibilidade genérica de ocorrência de erro. É bom de ver que uma mera possibilidade não constitui fundamento bastante e sério para que seja posta em crise uma prova científica realizada por entidade credível. Esta posição dos réus, a ser levada a sério, conduzir-nos-ia a um radical pirronismo impossibilitador da tomada de qualquer decisão, àquilo que filosoficamente se denomina ataraxia.

            Neste contexto, face à prova pericial já existente no que respeita D (…), afigura-se-nos que não se justifica, nesta fase, a repetição de tal prova.

            Vejamos agora se a perícia tendente a determinar da probabilidade de (…)ser o progenitor da autora é de admitir.

            Entendeu-se na decisão sob censura que tal perícia extravasa do objecto do processo, dado que o investigado éX....e não outro.

            Afigura-se-nos que este entendimento cerceia injustificadamente o direito à prova dos réus, na vertente da contraprova, tanto mais que é sabido que a existência de parentesco próximo entre os indigitados progenitores pode determinar relativamente a todos elevadas probabilidades de paternidade.

            Na verdade, se do exame pericial ao material biológico de (…), se frutuoso, resultasse uma probabilidade tão ou mais elevada de paternidade do que a obtida relativamente a (…), surgiria uma dúvida fundada sobre quem é o progenitor da autora.

O parecer em que os recorrentes suportam a sua pretensão da necessidade de ponderação da hipótese do pai de D (…) ser o pai da autora refere que para que tal seja considerado é necessário que se trate de uma hipótese plausível.

Embora os autos não nos forneçam dados seguros sobre a data do óbito do pai de D (…), tudo indica que tal óbito se terá verificado vários anos antes do óbito do investigado. Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resulta que o cadáver do pai do investigado também se acha depositado num jazigo. Finalmente, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta que apenas a testemunha (…) aludiu ao boato de que a autora seria filha do pai de D (…)num depoimento sem consistência e sem qualquer referenciação de alguma pessoa concreta que fosse fonte de tal afirmação.

Neste contexto, podemos afirmar, com segurança que a hipótese do pai do investigado ser o pai da autora não é uma hipótese plausível, não sendo lícito desconsiderar a prova já produzida, sob pena de se dar azo à prática de actos inúteis legalmente proibidos (artigo 137º do Código de Processo Civil) ou ao afeiçoamento da prova tão comum no caso de repetições de julgamentos.

Por outro lado, se relativamente a uma pessoa falecida há pouco tempo, como era o caso do investigado, não foi possível uma recolha de material biológico com todos os marcadores, dadas as condições de conservação dos cadáveres em jazigo a obrigarem, certamente por razões sanitárias, à aplicação de produtos químicos que acelerem a alteração dos tecidos do cadáver, é previsível que maior seja o insucesso relativamente a um cadáver depositado em jazigo há mais tempo.

Assim, tudo sopesado, afigura-se-nos que neste momento o tribunal está em condições de concluir que a perícia requerida pelos recorrentes tem carácter dilatório, pelo se deve manter o despacho sob censura, com este fundamento.

3.5 Da admissibilidade legal do aditamento às alegações oferecido pelos réus a 22 de Dezembro de 2008

Os réus B (…), inconformados com a sentença proferida nestes autos a 02 de Julho de 2008, interpuseram recurso de apelação contra a mesma a 21 de Julho de 2008.

A 17 de Setembro de 2008, foi proferido despacho a admitir o recurso de apelação interposto pelos réus B (…) despacho que foi notificado às partes por cartas registadas expedidas nesse mesmo dia.

A 03 de Novembro de 2008, os recorrentes ofereceram as suas alegações de recurso, protestando juntar transcrição integral da prova gravada em julgamento, vindo a 22 de Dezembro de 2008 requerer a junção aos autos de requerimento que precisa os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida.

A autora, notificada do requerimento oferecido pelos recorrentes a 22 de Dezembro de 2008, requereu o seu desentranhamento dos autos, por ser manifestamente extemporâneo e constituir um mero “comentário” sem assento nem guarida na lei processual civil.

Depois das vicissitudes já descritas no relatório deste acórdão, a 30 de Junho de 2009, o anterior relator nestes autos proferiu despacho a considerar inadmissível o requerimento dos recorrentes entrado a 22 de Dezembro de 2008, por configurar um aditamento às alegações de recurso.

Os recorrentes, inconformados com esta decisão, reclamaram contra a mesma para a conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 700º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos, “salvo o disposto no artigo 688º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.”

“A reclamação deduzida é decidida no acórdão que julga o recurso, salvo quando a natureza das questões suscitadas impuser decisão imediata; neste caso, o relator mandará o processo a vistos por 10 dias, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 707º” (artigo 700º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

Os recorrentes, por se mostrarem inconformados quer com o julgamento da matéria de facto, quer com o julgamento da matéria de direito, interpuseram recurso de apelação contra a sentença que lhes foi desfavorável.

Admitido o recurso de apelação interposto pelos réus contestantes, dada a amplitude do inconformismo dos recorrentes, os mesmos dispuseram do prazo de quarenta dias para oferecerem as suas alegações de recurso (artigo 698º, nºs 2 e 6, do Código de Processo Civil), prazo que expirou precisamente no dia 03 de Novembro de 2008.

O prazo para apresentação das alegações de recurso é um prazo peremptório e o seu decurso extingue o direito de praticar o acto (artigo 145º, nº 3, do Código de Processo Civil) e, no caso concreto, a falta de apresentação das alegações de recurso é geradora da deserção do recurso (artigo 291º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Por isso, existindo um prazo legal para apresentação das alegações de recurso, não podem os recorrentes, a seu bel-prazer, contornar a peremptoriedade do referido prazo com o protesto de oferecimento ulterior de complemento de alegações.

A admitir-se o procedimento adoptado pelos réus, frustrar-se-ia o objectivo da lei de definição precisa dos prazos para a prática dos actos processuais e gerar-se-iam grande insegurança e instabilidade processuais.

Assim, é manifestamente destituído de suporte legal o aditamento às alegações do recurso sobre a matéria de facto oferecido pelos recorrentes a 22 de Dezembro de 2008, pelo que a reclamação dos recorrentes para esta conferência deve ser indeferida.

3.6 Da rejeição do recurso da decisão da matéria de facto

 No recurso em que se vise a impugnação da matéria de facto, o recorrente deve “obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida” (artigo 690º-A, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

“No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C” (artigo 690º-A, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

O nº 2 do artigo 522º-C do Código de Processo Civil prescreve que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.”

Os ónus impostos ao recorrente que pretende sindicar o julgamento da matéria de facto visam combater uma indiscriminada e vaga manifestação contra o julgamento de facto, obrigando o recorrente a uma tomada de posição precisa quanto aos pontos de facto que entende mal julgados e ainda à indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, indicação que, no caso de gravação dos meios de prova, deve ser feita com referência ao assinalado na acta relativamente a cada depoimento[1]. Além disso, esses ónus processuais ajustam-se ao figurino paradigmático dos recursos no nosso sistema processual enquanto recursos de revisão ou de reponderação[2].

No entanto, afigura-se-nos que o ónus imposto ao recorrente que impugna a matéria de facto, no que tange a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada, teve em vista essencialmente a situação em que a pretensão do recorrente se funda na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão sob censura. De facto, essa indicação parece mais talhada para os casos em que o recorrente sustenta a existência de prova do contrário ou de contraprova daquela que na decisão sob censura foi relevada (veja-se o artigo 346º do Código Civil).

Porém, estes casos não esgotam o universo das situações passíveis de motivar inconformismo contra a decisão de facto.

Assim, o erro no julgamento da matéria de facto pode derivar simplesmente do meio de prova aduzido para fundamentar a decisão do ponto de facto impugnado não conduzir a tal resultado probatório. Por exemplo, é afirmado que se julga provado o facto X, com base no depoimento da testemunha Y, quando, analisado tal depoimento, se chega à conclusão de que efectivamente essa testemunha não produziu um depoimento que permita a prova de tal facto, não tendo feito qualquer referência directa ou indirecta ao facto dado como provado.

Outra situação que nos parece não ter sido directamente contemplada na alínea b) do nº 1, do artigo 690º-A, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos, é a da alegada falta de credibilidade de um meio de prova pessoal aduzido para fundamentar um ponto de facto objecto de impugnação pelo recorrente.

Nas situações antes enunciadas é manifesto que o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da impugnada tem que ser adequadamente entendido, sob pena de conduzir a resultados absurdos.

Assim, na primeira situação enunciada, parece que o recorrente observará suficientemente o ónus processual previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 690º-A, do Código de Processo Civil, indicando o depoimento que afirma por si só insuficiente para conduzir ao resultado probatório que impugna, tal como quando estiver em causa a credibilidade de um certo meio de prova pessoal, bastará a remissão para os segmentos do meio de prova em causa que contenham a sua razão de ciência e a sua análise crítica ou, nos casos em que não seja indicada razão de ciência, a mera referência à ausência dessa indicação.

Afigura-se-nos bizantina a exigência de que a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa da tomada obrigue o recorrente à referência precisa das voltas da cassete ou dos minutos e segundos do CD em que é produzido o depoimento por ele invocado para confortar a decisão de facto que afirma ser a correcta.

É que, por um lado, a contagem dessas voltas, por razões diversas, pode variar de gravador para gravador, existindo mesmo gravadores que não indicam essas voltas. Por outro lado, a localização precisa dos segmentos probatórios que sustentam a pretensão do recorrente não dispensa o Tribunal da Relação de analisar a generalidade da prova, pois que o Tribunal da Relação deverá oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto (artigo 712º, nº 2, parte final, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), podendo mesmo ter em conta outros elementos que não sejam indicados como fundamento da decisão de facto (artigo 515º do Código de Processo Civil), desta feita ao abrigo dos poderes de reapreciação oficiosa da matéria de facto, com base no previsto na primeira parte da alínea a), do nº 1, do artigo 712º do Código de Processo Civil, reapreciação que, quando necessário, deverá ter em atenção o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil[3].

Salvo melhor opinião, o que será absolutamente necessário para que o recurso relativo à matéria de facto possa ser apreciado é que os pontos do julgamento da matéria de facto postos em crise, bem como as razões da discordância do recorrente quanto ao julgamento da matéria de facto se compreendam, de forma inequívoca. Nalgumas situações, deverá convidar-se o recorrente a proceder aos necessários aperfeiçoamentos, desde que tal não implique a apresentação de novas alegações[4].

Expostas estas considerações de ordem geral, identifiquemos os concretos pontos de facto que os recorrentes entendem terem sido mal julgados, a fim de depois, relativamente a cada um dos pontos de facto em causa, aferir se os ónus processuais impostos em caso de impugnação da decisão da matéria de facto foram ou não observados.

Analisadas as alegações e as conclusões do recurso de apelação dos recorrentes, é patente o inconformismo dos mesmos quanto às respostas aos artigos 7º e 8º da base instrutória, por se entender que a prova pericial produzida não oferece credibilidade.

A mesma análise permite-nos concluir também pela discordância dos recorrentes relativamente às respostas aos artigos 18º, 32º e 78º da mesma peça processual.

A razão da discordância quanto à resposta ao artigo 18º da base instrutória deriva da resposta em crise assentar apenas no depoimento da testemunha (…) depoimento cuja credibilidade os recorrentes põem em causa, afirmando, além disso, que o facto dado como provado não corresponde àquilo que foi enunciado pela testemunha (…).

No que respeita as razões da discordância relativamente à resposta ao artigo 32º da base instrutória, os recorrentes afirmam que a resposta assentou apenas no depoimento da filha da autora, que não indica qualquer facto em que apoia o seu depoimento, mas envolve na suposta oferta de mil escudos, o pai de D (…) .

Finalmente, no que tange as razões da discordância contra a resposta ao artigo 78º da base instrutória, os recorrentes invocam a falta de credibilidade da testemunha (…) que por se sentir frustrada por não ter sido instituída herdeira ou legatária de D (…), terá prestado um depoimento parcial.

A análise das alegações e conclusões do recurso de apelação dos recorrentes permitiu-nos identificar de forma precisa os pontos de factos que pretendem impugnar, bem como as razões de tal discordância, as quais se prendem, essencialmente, com a credibilidade dos diversos meios de prova que estiveram subjacentes à decisão de facto objecto de impugnação, como é evidenciado pela fundamentação de tal decisão.

 Deste modo, embora a impugnação da matéria de facto efectuada pelos recorrentes não seja modelar, este tribunal, sem esforço de maior, está em condições de determinar o objecto dessa impugnação e de identificar as razões da discordância dos recorrentes.

Assim, face ao que precede, não deve ser rejeitado o recurso de apelação dos recorrentes para impugnação da matéria de facto.

A título meramente incidental, refira-se ainda que mesmo que a impugnação da matéria de facto dos recorrentes devesse ser rejeitada, tal não implicaria a intempestividade do recurso sobre a matéria de direito interposto na mesma peça[5], salvo se se pudesse concluir de modo inequívoco pela utilização fraudulenta do recurso sobre a matéria de facto a fim de obter prazo mais longo para alegações sobre a matéria de direito.

3.7 Do conhecimento da impugnação da decisão de facto relativamente aos artigos 7º, 8º, 18º, 32º e 78º, todos da base instrutória

Enquanto o Supremo Tribunal de Justiça, apenas excepcionalmente conhece de matéria de facto (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), o Tribunal da Relação, é um tribunal de instância, em regra a segunda instância (artigo 210º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa) e, como tal, conhece de direito e de facto (artigo 712º do Código de Processo Civil).

            Assim, “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou” (artigo 712º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados” (artigo 712º, nº 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “A Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1ª instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes” (artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão” (artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            “Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade” (artigo 712º, nº 5, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).

            No que tange a força probatória, quer a prova pericial quer a prova testemunhal são apreciadas livremente (artigos 389º e 396º do Código Civil). Contudo, como tem sido repetido à exaustão, livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária da prova, mas antes a ausência de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam.

A força probatória reconhecida à prova pericial está directamente ligada à antiga máxima de que “o juiz é o perito dos peritos” e à convicção de que, não obstante os conhecimentos especiais dos peritos, o julgador está apto a efectuar o controlo do raciocínio do perito[6]. Estamos em crer que aquelas teses não têm inteiro cabimento na actualidade face à crescente especialização dos mais variados domínios científicos.

A nosso ver, um juiz que não disponha de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia[7], e, salvo casos de erros grosseiros, não está em condições de sindicar o juízo científico emitido pelo perito. Por isso, parece-nos bem mais ajustada às actuais realidades da vida, a norma do Código de Processo Penal relativa ao valor da prova pericial (artigo 163º, n.º 1, do Código de Processo Penal – presunção de que o juízo técnico, científico ou artístico, está subtraído à livre apreciação do julgador).

Na nossa perspectiva, é ao nível dos dados de facto que servem de base ao parecer científico que o juiz se acha em posição de pôr em causa o juízo pericial[8].

Esta visão crítica quanto à regra legal da livre apreciação da prova pericial, conduz a uma exigência acrescida de fundamentação da decisão de facto sempre que o julgador se afaste do relatório pericial[9].

Na apreciação da prova testemunhal, ao invés do que se acha consagrado legalmente no domínio da prova por confissão (artigo 360º do Código Civil), não rege nenhuma regra de indivisibilidade. Por isso, um mesmo depoimento testemunhal pode relevar positivamente para a formação da convicção do tribunal, num certo segmento, por efeito, por exemplo, da corroboração por dados objectivos ou por outras provas pessoais e, noutro segmento, não ter tal relevo probatório, sendo insuficiente ou até inidóneo para a formação de uma convicção positiva do tribunal quanto à realidade de tais factos.

Expostas as considerações gerais que antecedem é tempo de entrar na análise detalhada da impugnação da matéria de facto suscitada pelos recorrentes.

Os recorrentes pedem a alteração das respostas aos artigos 7º e 8º da base instrutória alegando que a prova pericial que exclusivamente sustentou tais respostas não merece credibilidade por não ter tido em consideração a hipótese da autora ser filha do pai do falecido D (…), sendo certo que se tal hipótese tivesse sido considerada, o resultado do exame pericial seria necessariamente diverso. Para apoiar esta argumentação, os recorrentes ofereceram documento superveniente onde se exara que a “ponderação da hipótese alternativa de o verdadeiro pai ser o pai do investigado conduziria (não tendo sido obtido o seu perfil genético) a um valor inferior ao agora apresentado.”

Que dizer desta argumentação dos recorrentes?

Note-se que para fundamentarem a sua discordância quando às respostas aos artigos 7º e 8º da base instrutória, os recorrentes não atacam directamente a prova pericial produzida, antes apontam para a sua infiabilidade por não ter sido considerada a hipótese do progenitor da autora ser o pai do investigado, razões que aliás fundamentam os recursos de agravo interpostos pelos recorrentes.

Porém, antes de mais, a questão que se deve colocar é a de se essa hipótese tem cabimento, já que como se refere no documento superveniente oferecido pelos recorrentes, a invocação da possibilidade do verdadeiro pai ser o pai do investigado deverá ser investigada, se julgada plausível.

Procedemos à audição de toda a prova testemunhal produzida em audiência[10] e apenas a testemunha (…..), cuja idade se não apurou[11], fez referência a essa possibilidade, aludindo, de forma genérica, a ter ouvido falar mais na possibilidade da autora ser filha do pai do investigado, sem concretizar a quem ouviu tais referências e em que contextos[12]. Refira-se que esta alusão genérica é em si mesma inconsistente na medida em que se era essa a voz corrente, mal se percebe que apenas uma testemunha faça alusão a essa versão. Assim, neste contexto, tendo em conta os pressupostos do documento superveniente oferecido pelos recorrentes, não existe sequer base para afirmar que a hipótese do pai do investigado ser o pai da autora é uma hipótese plausível, pelo que a omissão da consideração de tal hipótese não deve ser invocada para desvalorizar a prova pericial que foi produzida.

Afastada a plausibilidade da hipótese que poderia alterar os resultados da prova pericial produzida, cabe apreciar se uma perícia que conclui pela probabilidade da autora ser filha de D (…) numa percentagem de 99,999985 % é base suficiente para firmar as respostas aos artigos 7º e 8º da base instrutória.

Os factos em causa remontam ao ano de 1932, época em que as técnicas de procriação assistida ainda não eram utilizadas em seres humanos.

A percentagem obtida no exame pericial realizado ao material biológico da autora, da mãe desta e do investigado equivale de acordo com a escala de probabilidades do referido exame a “paternidade praticamente provada”, ou seja, significa que é muitíssimo provável que a autora seja filha de D (…), juízo assente na comparação dos perfis genéticos da autora, da mãe da autora e do investigado. Uma tão alta probabilidade de paternidade advinda de exame pericial com recolha e comparação de material biológico da autora, da mãe da autora e do presuntivo pai é bastante para firmar a conclusão directa de que a autora é efectivamente filha de D (…).

O grau de fiabilidade deste resultado probatório assente em exame pericial para determinação da paternidade[13] é o bastante para as exigências práticas do direito e é seguro que é dotado de muito maior fiabilidade do que a generalidade das restantes provas, designadamente a prova testemunhal[14].

O estado da ciência médica à data da concepção da autora, conforme já antes se referiu, permite-nos concluir, com base no resultado do exame pericial, pelo necessário relacionamento sexual da mãe da autora com D (…).

Assim, em conclusão, devem manter-se as respostas aos artigos 7º e 8º da base instrutória, improcedendo a impugnação dos recorrentes, nestes segmentos.

Os recorrentes insurgem-se contra a resposta ao artigo 18º da base instrutória por se ter baseado apenas no depoimento da testemunha (…) cuja credibilidade põem em causa atenta a idade da testemunha e as circunstâncias que descreveu no seu depoimento, apontando ainda infidelidade da resposta ao que foi declarado pela testemunha.

No artigo 18º da base instrutória perguntava-se se depois do nascimento da autora, os pais de D (…) por muitas ocasiões, se lhe dirigiram dizendo-lhe «(…) vai buscar a filha da (…), porque sabes muito bem que ela também é tua filha».

A resposta impugnada foi de que se provou apenas que “depois do nascimento da autora os pais de (…) disseram-lhe, algumas vezes: “(…) vai buscar a filha da (…) porque sabe muito bem que ela também é tua filha”.

À data da prestação do depoimento, a testemunha (…) afirmou ter setenta e quatro anos (ouça-se a parte final do depoimento desta testemunha, quando foi inquirida pelo Sr. Juiz que presidiu à audiência), pelo que terá nascido em 1933 ou 1934. Esta testemunha afirmou ter trabalhado, desde a idade de nove anos, para os pais de D (…)  e que trabalhou muitos anos para eles, sendo porém incapaz de precisar por quantos anos se prolongou tal relação laboral.

No que respeita a matéria do artigo 18º da base instrutória, a testemunha referiu que o pai do investigado dizia muitas vezes “tu podias ir buscar, a tua mulher não tem filhos, tu podias ir buscar a tua filha da (…), podias ir buscar…”

A audição da prova produzida em audiência não permitiu identificar qualquer outro depoimento testemunhal que sobre esta matéria se tenha pronunciado. Porém, ao contrário do que parecem entender os recorrentes, não vigora na nossa ordem jurídica o brocardo “unus testis, nullus testis”[15].

Uma vez que a depoente não logrou situar temporalmente os factos que afirma ter percepcionado, não existe base para afirmar, como afirmam os recorrentes, que tais factos, a terem sido efectivamente percepcionados, o foram numa altura em que a depoente era uma criança, pondo em dúvida que tal fosse declarado na presença de uma criança.

Porém, existe uma discrepância entre aquilo que a testemunha afirmou ter ouvido ao pai do investigado e aquilo que o tribunal julgou provado. Assim, por fidelidade à prova produzida, na ausência de elementos que retirem credibilidade a este depoimento testemunhal, sopesando a imediação que o tribunal de primeira instância teve com a prova e que este tribunal não tem, afigura-se-nos que a resposta dada ao artigo 18º da base instrutória deve ser alterada, dando-se como provado apenas que “o pai de D (…) disse-lhe, algumas vezes: “a tua mulher não tem filhos, tu podias ir buscar a tua filha da (…)”.

Os recorrentes impugnam a resposta ao artigo 32º da base instrutória em virtude do tribunal se ter para tanto baseado no depoimento da terceira testemunha, filha da autora, que não indica qualquer facto em que apoia o seu depoimento, mas envolve na suposta oferta de mil escudos, o pai de D (…)..

No artigo 32º da base instrutória era quesitado se a autora deu conhecimento do seu casamento a D (…) e ao pai deste, que lhe ofereceram mil escudos.

A resposta a este artigo foi positiva, sem qualquer restrição, fundamentando-se no depoimento da testemunha (…), alegadamente terceira testemunha da autora, que foi patroa da autora por uns tempos antes desta emigrar, tendo conhecimento directo da matéria vertida no artigo 32º da base instrutória por ter acompanhado a autora nessa circunstância.

Assinale-se que existe um lapso na identificação da testemunha (…)como sendo a terceira testemunha da autora pois efectivamente foi arrolada em nono lugar e depôs em quinto lugar (vejam-se folhas 443 e 600). Por isso, ao invés do que vem afirmado pelos recorrentes, o depoimento sobre o qual se baseou a resposta do tribunal ao artigo 32º da base instrutória foi o da testemunha (…) e não o da testemunha (…) filha da autora.

(…), de oitenta e quatro anos de idade no momento em que depôs (tendo nascido por isso em 1923 ou 1924), mais velha do que a autora entre oito a nove anos, em casa de quem a autora esteve desde os doze ou treze anos de idade desta, até momento que se não apurou, referiu ter acompanhado a autora, à feira do Sobreiro, onde, alegadamente, presenciou o convite da autora ao investigado e ao pai deste para o casamento da autora, referindo que o investigado deu nessa altura mil escudos à autora e que o pai do investigado declinou o convite afirmando “a gente não vai ao teu casamento por causa da minha nora, mas não ficas sem a tua prenda”.

A autora casou a 27 de Janeiro de 1951. O convite para um casamento, para poder ser tido como tal, é necessariamente anterior à sua realização. Deste modo, os factos relatados pela testemunha (…) terão ocorrido pelo menos mais de cinquenta e sete anos antes da realização da audiência de discussão e julgamento. Trata-se de um tempo muito longo. Não sendo a depoente interessada ou beneficiada com o facto em apreço, o decurso de um tempo tão longo, em regra, conduzirá ao esquecimento do facto. Porém, verifica-se uma circunstância que poderá justificar essa memorização, circunstância que aliás não foi convenientemente escalpelizada em sede de audiência de discussão e julgamento.

A testemunha (…) afirma ter presenciado a entrega de mil escudos à autora pelo investigado progenitor. Essa importância tinha nessa data um valor relevante. Na verdade, a título meramente exemplificativo, utilizando os factores de correcção monetária para o ano de 2009 e constantes da Portaria nº 772/2009, de 21 de Julho, a quantia de mil escudos em 1951 corresponderia a 72.200$00 (€ 360,13) em 2009 e se a dádiva ocorreu ainda em 1950, tal valor corresponderia a 78.720$00 (€ 392,65) em 2009. Afigura-se que o valor da oferta então alegadamente efectuada poderá justificar uma retenção e memorização do facto volvidos mais de cinquenta e oito anos[16], apesar da depoente nenhum interesse directo ou indirecto ter no facto em questão.

A circunstância da alegada oferta ocorrer numa feira, local onde o investigado e o pai do investigado tinham um estabelecimento, é compatível com a imediata disponibilidade desse valor pelo investigado, sem que tal signifique que fosse da sua exclusiva titularidade.

Assim, face aos elementos disponíveis, tendo em conta a forma segura e circunstanciada como a testemunha depôs, sopesando a imediação que o tribunal de primeira instância teve com a prova e que este tribunal não tem, entende este tribunal não haver razões que justifiquem a alteração da decisão sobre a matéria de facto relativamente a este artigo. Pelo exposto, improcede a impugnação dos recorrentes relativamente à resposta ao artigo 32º da base instrutória.

Vejamos agora a impugnação da resposta ao artigo 78º da base instrutória.

No artigo 78º da base instrutória perguntava-se: “desde a data em que soube da gravidez da mãe da autora até à data do seu falecimento, D (…) assumiu sempre publicamente e que era o pai desta?” Este artigo da base instrutória resulta, no essencial, do artigo 154º da petição inicial e não foi objecto de correcção por supressão a conjunção copulativa “e” a seguir a “publicamente” e antes de “que” que nele ficou a constar por lapso manifesto. 

A resposta do tribunal de primeira instância a este artigo foi restritiva, provando-se apenas que “o investigado perto da sua morte disse perante a testemunha Clélia que era o pai da autora.”

As razões da discordância dos recorrentes contra a resposta ao artigo 78º da base instrutória são a falta de credibilidade da testemunha (…)que por se sentir frustrada por não ter sido instituída herdeira ou legatária de D (…), terá prestado um depoimento parcial.

Apreciemos.

(…), comerciante, de sessenta anos de idade à data da audiência de discussão e julgamento, filha de um primo de D (…), depôs denotando algum ressentimento contra os réus contestantes, acusando-os, se bem percebemos a causa desse sentimento, de serem mal-agradecidos, já que em tempos os acolheu na Venezuela e lhes deu todo o apoio necessário. Apesar disso, quando confrontada com a sua eventual frustração por não ter sido instituída herdeira ou legatária de D (…), a testemunha (…)  respondeu de forma incisiva e espontânea refutando essa possível motivação para o conteúdo do seu depoimento. No que interessa directamente a resposta dada ao artigo 78º da base instrutória, a testemunha (…)declarou que D (…), numa altura em que a esposa deste já se achava internada, ao que pensa no Hospital de Aveiro, a contactou a informar que tinha recebido duas cartas de um advogado por causa das filhas e que pretendia que lhe indicassem um advogado que pudesse consultar para se aconselhar sobre o caso, em ordem a saber o que fazer para as reconhecer como suas filhas. De acordo com o depoimento da testemunha (…), o advogado contactado pelo falecido tê-lo-á informado de que na actualidade, com os exames de DNA, já não havia filhos incógnitos, pelo que não havia razões para se preocupar.

Será que face à razão de ciência da testemunha (…) e ao conteúdo do seu depoimento se pode afoitamente afirmar ter existido um erro de apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância[17], ou, face aos dados disponíveis, a resposta dada ao artigo 78º da base instrutória é possível, não se divisando qualquer erro notório ou ostensivo na apreciação da prova?

            A apreciação e valoração da prova é uma actividade dotada de alguma margem de variabilidade em função não só do concreto material probatório produzido, mas também por força do sujeito que efectua tal apreciação e valoração.

O horizonte cognitivo e a experiência da vida de quem assiste à produção da prova têm um papel decisivo na aferição crítica da prova que vai sendo produzida e, além disso, o juiz que preside à audiência de discussão e julgamento em primeira instância e assiste à produção de prova percepciona dados relevantes para tal valoração que a gravação da audiência não faculta ao Tribunal da Relação. Daí que se imponha uma particular prudência no juízo do Tribunal da Relação sobre a verificação da existência de um erro na apreciação da prova determinante da alteração do julgamento da matéria de facto.

Por isso, a nosso ver, não bastará ao Tribunal da Relação adquirir uma convicção probatória divergente da que foi adquirida em primeira instância para que seja alterada a decisão de facto da primeira instância, sendo necessário para tanto que o Tribunal da Relação esteja em condições de afirmar a existência de um erro de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal de primeira instância.

É que a impugnação da matéria de facto é um verdadeiro recurso e, como tal, para que proceda, importa que se possa concluir, com segurança, pela existência de um erro no julgamento da matéria de facto. O recurso da matéria de facto não é um novo julgamento em que o Tribunal da Relação, sem imediação com a prova pessoal, em face da prova pessoal gravada, da prova documental e da prova pericial eventualmente produzida, procede a novo julgamento da matéria de facto, fazendo tábua rasa do julgamento efectuado em primeira instância. Salvo melhor opinião, do que se trata em sede de recurso sobre a matéria de facto é de verificar se o julgamento dessa matéria, nos pontos questionados pelo recorrente, enferma ou não de algum erro.

No caso dos autos, atenta a razão de ciência da testemunha (…) e o conteúdo do seu depoimento, sempre sopesando a imediação que o tribunal de primeira instância teve com a prova e que este tribunal não tem, entende este tribunal não haver razões que justifiquem a alteração da decisão sobre a matéria de facto relativamente ao artigo 78º da base instrutória. De facto, não se identifica qualquer erro na resposta que foi dada a esta matéria e, ao invés, a convicção probatória adquirida pelo tribunal de primeira instância em face desta prova pessoal é perfeitamente aceitável. Pelo exposto, improcede a impugnação dos recorrentes relativamente à resposta ao artigo 78º da base instrutória.

Pelo que precede, conclui-se pela procedência parcial da impugnação da matéria de facto requerida pelos recorrentes, devendo alterar-se a resposta ao artigo 18º da base instrutória nos termos supra indicados e improcedendo nos restantes segmentos de facto impugnados.

3.8 Fundamentos de facto resultantes do julgamento da matéria de facto efectuado em primeira instância, da decisão deste tribunal sobre a impugnação da matéria de facto requerida pelos recorrentes e da prova documental autêntica junta de folhas 115 a 118


3.8.1

            (…) nasceu a 29 de Maio de 1912, estando registada como filha de (…)  e de (…) e faleceu em 1999, no estado de viúva de (…), filho de (…) e de (…)  (alínea A dos factos assentes e factos resultantes da certidão de folhas 115 e 116 cujo conteúdo foi relevado ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável nesta instância ex vi artigo 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).

3.8.2

            (…) também usava e era conhecida pelos nomes de (…)e de (…) (alínea B dos factos assentes).

3.8.3

            A (…) nasceu a 20 de Novembro de 1932, na freguesia de Troviscal, concelho de Oliveira do Bairro, estando registada como filha de (…) e casou a 27 de Janeiro de 1951 com (…) (alínea C dos factos assentes e factos resultantes da certidão de folhas 117 cujo conteúdo foi relevado ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável nesta instância ex vi artigo 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).

3.8.4

            No assento de nascimento de A (…) não foi feita qualquer menção à sua paternidade (alínea D dos factos assentes).

3.8.5

            D (…) faleceu a 28 de Janeiro de 2004, com 88 anos de idade, no estado de viúvo de (…) e era filho de (…) e de (…) (alínea E dos factos assentes e factos resultantes da certidão de folhas 118 cujo conteúdo foi relevado ao abrigo do disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável nesta instância ex vi artigo 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).

3.8.6

            Por testamento celebrado a 14 de Março de 2003, D (…) declarou que “no caso de sua mulher, (…), sua única herdeira legitimária, lhe pré-falecer, institui seu herdeiro universal B (…)”, a quem declarou impor a obrigação de zelar pelo jazigo-capela, no qual deverá ser sepultado com a sua mulher, acima do solo, colocando e substituindo semanalmente, as flores e procedendo à sua limpeza (alínea F dos factos assentes, corrigida em conformidade com o despacho de folhas 470).

3.8.7

            Por testamento celebrado em 28 de Novembro de 2003, C (…)declarou não possuir descendentes ou ascendentes vivos e instituir seus únicos herdeiros da quota disponível dos seus bens, os seus primos, B (…)  e mulher (…)  (alínea G dos factos assentes, corrigida em conformidade com o despacho de folhas 470).

3.8.8

            (…) manteve relações sexuais de cópula completa com o investigado (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

3.8.9

            Em resultado das quais (…) engravidou e deu à luz A (…)  (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.8.10

            Depois do nascimento de A (…), o pai de D (…)disse-lhe, algumas vezes: “a tua mulher não tem filhos, tu podias ir buscar a tua filha da (…)” (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

3.8.11

            Quer D (…) quer o pai deste eram conhecidos pela alcunha de cigano (resposta ao artigo 29º da base instrutória).

3.8.12

            A (…) sempre evidenciou caracteres fisionómicos parecidos com D (…) (resposta ao artigo 30º da base instrutória).

3.8.13

            A (…) era alcunhada de “ciganucha” ou simplesmente “nucha” pelas pessoas da localidade (resposta ao artigo 31º da base instrutória).

3.8.14

            A (…) deu conhecimento do seu casamento a D (…) e ao pai deste, que lhe ofereceram 1.000$00 (resposta ao artigo 32º da base instrutória).

3.8.15

            (…) mudaram-se para uma outra casa, em Bustos (resposta ao artigo 39º da base instrutória).

3.8.16

            Entretanto, tendo o marido de A (…) emigrado em 1958 para a Venezuela, passados cinco anos, esta também emigrou (resposta ao artigo 40º da base instrutória).

3.8.17

            A (…) ficou vinte e seis anos na Venezuela (resposta ao artigo 44º da base instrutória).

3.8.18

            Por volta de 1998, uma das filhas de A (…), (…), foi visitar uma amiga, de nome (…), ao Hospital de Aveiro, onde se encontrou com D (…) e (…), que também visitavam a (…), prima de (…) (resposta ao artigo 65º da base instrutória).

3.8.19

            D (…) manifestou felicidade por se ter encontrado com (…) (resposta ao artigo 66º da base instrutória).

3.8.20

            Em Novembro de 2003, (…) na companhia da sua amiga (…), foi visitar D (…)a casa deste, já doente (resposta ao artigo 67º da base instrutória).

3.8.21

            (…) encontrava-se acamada e os bombeiros, que trouxeram entretanto D (…) deitaram-no na cama, tendo-o deixado destapado e envolto apenas numa fralda, tendo sido (…) com a ajuda de uma empregada lá de casa, quem o cobriu com lençóis e cobertores (resposta ao artigo 68º da base instrutória).

3.8.22

            Uma vez A (…) procurou saber do estado de saúde de D (…) através do Dr. (…), médico de família daquele na altura (resposta ao artigo 69º da base instrutória).

3.8.23

D (…) esteve internado na Clínica de Oiã e, durante tal internamento, na porta do seu quarto foi afixado um papel proibindo as visitas (resposta ao artigo 70º da base instrutória).

3.8.24

            Durante 2003, A (…) encontrou-se por algumas vezes com D (…) (resposta ao artigo 73º da base instrutória).

3.8.25

            O que aconteceu designadamente numa rua de Bustos (resposta ao artigo 74º da base instrutória).

3.8.26

            O investigado perto da sua morte disse perante a testemunha (…) que era o pai de A (…)  (resposta ao artigo 78º da base instrutória).

            4. Fundamentos de direito

            4.1 Da caducidade do direito potestativo da autora a investigar a sua paternidade

            De forma larvar na contestação e de forma explícita nas conclusões das alegações do recurso de apelação, os réus suscitam a caducidade do direito da autora a investigar a sua paternidade.

            Ainda que assim não fosse, por estar em causa matéria excluída da disponibilidade das partes, sempre deveria este tribunal apreciar, oficiosamente, da existência ou não da referida caducidade (artigo 333º, nº 1, do Código Civil), sendo certo, além disso, que os réus, nesta situação, não estavam manietados pelo princípio da concentração de toda a defesa na contestação (vejam-se os artigos 489º do Código de Processo Civil e o já citado 333º, nº 1, do Código Civil).

            Porém, dir-se-á que esta referência à eventual caducidade do direito de acção da autora é de todo despropositada depois da declaração de inconstitucionalidade material, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, aplicável à investigação de paternidade por força do artigo 1873º, do mesmo Código, na medida em que prevê, a caducidade do direito de investigar a paternidade, num prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, declaração operada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, publicado na Iª série-A, do Diário da República, nº 28, de 08 de Fevereiro de 2006[18].

             Vejamos se assim é.

            A Constituição da República Portuguesa ao abrigo da qual foi proferida a decisão de inconstitucionalidade material antes citada entrou em vigor a 25 de Abril de 1976 (artigo 312º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, publicada na Iª série do Diário da República, nº 86, de 10 de Abril de 1976).

            Por força do disposto no artigo 282º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, em sede de efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, quando se trate de inconstitucionalidade ou ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, só produz efeitos desde a entrada em vigor da norma constitucional ou legal posterior.

Nestes casos, denominados de inconstitucionalidade superveniente, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apenas operam a partir do momento em que passou a vigorar o parâmetro constitucional determinante da invalidade do acto legislativo anterior[19].

A determinação do momento em que produz efeitos o parâmetro constitucional gerador do vício de inconstitucionalidade de uma certa norma é objecto de controvérsia doutrinal nos denominados casos de inconstitucionalidade deslizante, como aliás parece ser o caso que originou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006[20].

Ora, no caso dos autos, salvo melhor opinião, está em causa precisamente uma situação de inconstitucionalidade superveniente. De facto, o prazo de caducidade previsto no nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil e aplicável às investigações de paternidade por força do disposto no artigo 1873º, do mesmo diploma legal, constava na versão original do Código Civil aprovado pelo decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, no nº 1, do artigo 1854º, do Código Civil.

No nº 1 desta última previsão legal, fixou-se para a então denominada investigação de paternidade ilegítima um prazo de caducidade de dois anos a contar da maioridade ou emancipação do investigante. Esta solução legal veio alterar a que até então regia, por força do artigo 37º, do decreto nº 2, de 25 de Dezembro de 1910, normativo que substituiu o artigo 133º, do Código Civil de 1867. 

No artigo 37º, do decreto nº 2, de 25 de Dezembro de 1910, previam-se diversos prazos para a propositura das acções de investigação de paternidade ilegítima.

Assim, em primeiro lugar, o prazo geral da propositura da acção era até um ano após o falecimento do pretenso pai.

Nos casos de menoridade ou demência do investigante aquando do óbito do pretenso progenitor, o prazo era até quatro anos após a emancipação ou maioridade do investigante ou decorridos quatro anos sobre o estabelecimento da razão do investigante.

Finalmente, nos casos em que o investigante obtivesse após o decurso do ano sobre o óbito do investigado um escrito assinado pelo investigado em que revelasse a paternidade, a acção de investigação de paternidade poderia ser proposta até seis meses após a obtenção do referido documento, recaindo o ónus da prova de tal facto sobre o investigante e sem prejuízo das regras gerais sobre prescrição dos bens.

No caso dos autos, a autora nasceu a 20 de Novembro de 1932 e, atenta a legislação então vigente (artigo 311º, do Código Civil de 1867), atingiu a maioridade a 20 de Novembro de 1953. Porém, tendo contraído casamento a 27 de Janeiro de 1951, a autora emancipou-se nessa data (artigos 304º, 1º, 305º e 306º, todos do Código Civil de 1867).

Assim, à luz do disposto no artigo 37º, do decreto nº 2, de 25 de Dezembro de 1910, atenta a causa de pedir da presente acção alicerçada directamente na filiação biológica da autora, o prazo para a autora investigar a sua paternidade expiraria apenas no termo do ano subsequente ao do óbito do pretenso pai, óbito que ocorreu a 28 de Janeiro de 2004.

Porém, muito antes de tal óbito, como resulta do antes exposto, entrou em vigor o Código Civil de 1966, aprovado pelo decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, diploma legal que veio fixar para a propositura da acção de investigação de paternidade ilegítima os seguintes prazos de caducidade:

- um prazo geral de dois anos a contar da maioridade ou da emancipação (artigo 1854º, nº 1, do Código Civil, na redacção do decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966);

- nos casos em que a acção de investigação se funde em escrito em que o investigado declare inequivocamente a paternidade, o investigante disporia do prazo de seis meses a contar da data em que obteve o escrito (artigo 1854º, nº 3, do Código Civil, na citada redacção);

- nos casos em que o investigante beneficiasse de posse de estado, o investigante teria que propor a acção dentro do prazo de um ano a contar da data em que cessasse a posse de estado (artigo 1854º, nº 4, do Código Civil, na citada redacção).

            Em sede de disposições transitórias, derrogando as regras gerais sobre a contagem dos prazos constantes do artigo 297º do Código Civil, previu-se no artigo 19º, do decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, que “o facto de se ter esgotado o período a que se refere o nº 1 do artigo 1854º não impede que as acções de investigação de maternidade ou paternidade ilegítima sejam propostas até 31 de Maio de 1968, desde que não tenha caducado antes, em face da legislação anterior, o direito de as propor.”

            No caso em apreço, visto o novo prazo de caducidade constante do nº 1, do artigo 1854º, do Código Civil e atenta a circunstância da autora ser maior desde 20 de Novembro de 1953 e emancipada desde 27 de Janeiro de 1951, face ao citado normativo, estava já esgotado há muito o mencionado prazo à data da entrada em vigor do Código Civil de 1966 (01 de Junho de 1967 – veja-se o artigo 2º, do decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966). Por isso, por força do já citado artigo 19º, do decreto-lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, o prazo para a autora propor investigação de paternidade, com fundamento exclusivamente na filiação biológica, expirava a 31 de Maio de 1968.

            Ora, tendo caducado em 31 de Maio de 1968 o direito da autora de instaurar acção para reconhecimento da sua paternidade, com fundamento directamente na filiação biológica, depara-se-nos, à primeira vista, uma situação jurídica consolidada em data anterior à da vigência das normas constitucionais que fundamentaram o juízo de inconstitucionalidade com força obrigatória geral proferido pelo Tribunal Constitucional no já citado acórdão nº 23/2006[21].

Nada indica que as normas constitucionais invocadas para fundamentar o juízo de inconstitucionalidade daquela previsão legal tenham carácter retroactivo. Por isso, aquele direito extinto por caducidade não revivescerá por efeito de declaração de inconstitucionalidade posterior e baseada em norma constitucional também posterior, tal como não revivescerá por efeito dos novos prazos previstos na Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, na nova redacção dada ao artigo 1817º do Código Civil, aplicável à investigação de paternidade por força do artigo 1873º do mesmo diploma legal e aplicável às acções pendentes (veja-se o artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril).

            Dir-se-ia que entendimento diverso colidiria com o princípio da confiança e com a segurança jurídica que qualquer Estado de Direito deve tutelar (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa).

            No entanto, a causa de pedir da acção não se fundou apenas directamente na filiação biológica, mas também em posse de estado que constitui uma presunção legal de paternidade. Neste caso, o prazo de caducidade, na legislação repristinada pela declaração de inconstitucionalidade, como vimos, era de um ano a contar da cessação da posse de estado.

Porém, não se pode olvidar que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral se cingiu ao nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, subsistindo, entre outros, o prazo de caducidade quando o investigado trate o investigante como filho e ocorra a morte daquele, sem que antes tenha cessado voluntariamente tal tratamento, prazo que era de um ano, a contar da morte do investigado (o artigo 1817º do Código Civil é aplicável à investigação de paternidade por força do artigo 1873º, do mesmo diploma legal)[22].

Esse prazo de caducidade passou a ser de três anos a contar da cessação do tratamento como filho por força do disposto na alínea b), do nº 3, do artigo 1817º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, sempre que já tenham decorrido dez anos sobre a emancipação ou a maioridade do investigante. Esta previsão legal é aplicável aos processos pendentes (veja-se o artigo 3º, da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril)[23].

            Assim, se acaso a autora gozou de posse de estado relativamente a X....até ao óbito deste (ocorrido a 28 de Janeiro de 2004), a autora poderia instaurar a acção de investigação de paternidade até 29 de Janeiro de 2005, sendo a presente acção tempestiva com base em tal presunção legal de paternidade.  

            A posse de estado, como resulta das previsões dos artigos 1816º, nº 2, alínea a) e 1871º, nº 1, alínea a), ambos do Código Civil, decompõe-se em três elementos distintos[24]:

            - o nome;

            - o tratamento;

            - a fama.

            Existe nome quando o filho chama o pretenso pai como pai e este, por sua vez, chama ao investigante filho.

O tratamento consiste no comportamento do pretenso pai que, visto exteriormente, cria uma aparência reveladora de laços de filiação biológica.

A fama é a reputação de que goza o investigante, junto da generalidade das pessoas que o conhecem ou que sabem da sua existência, de que o seu pai é o investigado.

            No que respeita a alegada posse de estado por parte da autora provou-se apenas que quer D (…) quer o pai deste eram conhecidos pela alcunha de cigano (resposta ao artigo 29º da base instrutória), que A (…) era alcunhada de “ciganucha” ou simplesmente “nucha” pelas pessoas da localidade (resposta ao artigo 31º da base instrutória), que A (…) deu conhecimento do seu casamento a D (…) e ao pai deste, que lhe ofereceram 1.000$00 (resposta ao artigo 32º da base instrutória) e que o investigado perto da sua morte disse perante a testemunha (…)que era o pai de A (…)(resposta ao artigo 78º da base instrutória).

            Na nossa perspectiva, o epíteto da autora de “ciganucha” ou “nucha” é insuficiente para afirmar o preenchimento do requisito da fama da posse de estado, já que quer o investigado, quer o pai do investigado tinham o epíteto de “cigano”.

            A oferta à autora de mil escudos por parte do investigado e do pai deste, aquando do convite para o casamento formulado pela autora, pelo seu relevante valor, é passível de caracterizar um acto de tratamento da autora como filha pelo investigado. Porém, trata-se de um acto isolado que não se repetiu, pelo que falece a necessária continuidade e estabilidade necessária à verificação da posse de estado enquanto estado duradouro[25].

            A declaração do investigado, pouco antes da sua morte, de que era o pai da autora, constitui um acto integrador do elemento nome da posse de estado.

            Os restantes actos provados referentes a visitas, averiguação da autora sobre o estado da saúde do investigado, felicidade do investigado aquando do encontro com uma filha da autora e encontros da autora com o investigado, a nosso ver, não preenchem nenhum dos elementos da posse de estado, sendo compatíveis com outras relações que não as relações de filiação.

            O que antecede permite-nos concluir que a factualidade provada é insuficiente para integrar o requisito da posse de estado, pelo que a autora não beneficia da extensão do prazo de caducidade prevista no nº 4, do artigo 1817º, do Código Civil.

            Assim, por tudo quanto precede, estaríamos em condições de concluir que caducou em 31 de Maio de 1968 o direito da autora a investigar a sua paternidade. Tal caducidade, de conhecimento oficioso (artigo 333º, nº 1, do Código Civil), implicaria a absolvição do pedido dos réus e prejudicaria o conhecimento da restante questão a decidir antes enunciada.

            O relator deste acórdão subscreveu recentemente um acórdão em que, no essencial, se sufragou a argumentação antes expendida para fundamentar a caducidade do direito potestativo da autora a investigar a paternidade. No entanto, nessa decisão não se considerou a natureza duradoura da situação jurídica da investigante e da faculdade legal de investigação de paternidade e os reflexos de tais circunstâncias em sede de aplicação das leis no tempo. Impõe-se por isso agora uma ponderação autónoma destes dados do problema.

            A presente acção foi proposta ainda antes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, operada pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 e, não fora este aresto, dada a não prova dos pressupostos necessários ao preenchimento da posse de estado, cairia sob a alçada do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, se não houvesse recusa da aplicação de tal normativo com fundamento em inconstitucionalidade material. Porém, como já antes se expôs, a declaração de inconstitucionalidade retroage os seus efeitos até ao início da vigência da norma constitucional que determina a invalidade da norma legal, tudo se passando, afinal, como se aquando da propositura da acção não houvesse qualquer prazo de caducidade para a investigação da paternidade biológica.

            A relação de filiação biológica é um estado de facto duradouro e, por isso, no que respeita à aplicação das leis no tempo, cai na previsão da segunda parte do nº 2, do artigo 12º, do Código Civil[26]. Como é assinalado pelo autor que se citou na nota que antecede[27], o decurso do prazo fixado na lei para a investigação da maternidade ou da paternidade importa apenas a extinção de uma faculdade legal e não verdadeiramente a extinção de um direito subjectivo. O direito potestativo só se actualiza com a propositura da acção. Daí que relativamente a tais faculdades legais deva a lei nova que vem fixar um novo prazo aplicar-se mesmo relativamente a casos em que já expirara o prazo de caducidade previsto na lei anterior. Por isso, por estar em causa uma simples faculdade legal e não um verdadeiro direito subjectivo, pode a nova lei fixar um novo prazo ou abolir tal prazo, em termos de determinar o renascimento de uma faculdade legal extinta à sombra da lei anterior, isto apenas nos casos em que a faculdade legal não tenha sido exercida, pois que, nessa altura, converte-se em verdadeiro direito potestativo.

            Na nossa perspectiva, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, operada pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, deve ser havida como uma alteração da legislação vigente em termos de permitir a investigação de paternidade a todo o tempo, tendo assim incidência directa no juízo sobre a tempestividade da presente acção.         

            Contudo, como também já antes se aludiu, a 02 de Abril de 2009, entrou em vigor a Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, diploma legal que veio alterar o nº 1, do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, prevendo um prazo de caducidade para a investigação de maternidade de dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante, aplicável à investigação de paternidade, ex vi artigo 1873º, do Código Civil. Esta nova redacção do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, por força do artigo 3º, da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril é aplicável aos processos pendentes. Confrontamo-nos assim exactamente com a problemática que foi debatida circunstanciadamente no acórdão deste Tribunal da Relação relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Teles Pereira, a 23 de Junho de 2009, no processo nº 1000/06.2TBCNT.C1, embora o caso dos autos difira do caso objecto daquele aresto em virtude da presente acção ter sido proposta antes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil.

            Os trabalhos preparatórios da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, dão conta que a previsão da aplicação das novas regras sobre caducidade das acções de investigação de maternidade e paternidade e de impugnação de paternidade aos processos pendentes teve como justificação a “conformação com o princípio geral de aplicação da lei no tempo[28]. Ora, se a previsão legal deste modo justificada fosse efectivamente conforme com os tais princípios gerais de aplicação das leis no tempo, afigura-se-nos que seria uma previsão inútil, constituindo um mero “lembrete” das regras gerais aplicáveis. O que parece ressaltar da previsão legal assim justificada é que o legislador pretendeu uma aplicação retroactiva dos novos prazos de caducidade, aplicando-os às próprias acções pendentes, vindo a permitir a declaração de caducidade de acções que à face do direito vigente na data da propositura da acção eram tempestivas[29], quanto mais não seja porque não existia então qualquer prazo de caducidade.

            A questão que se coloca, tal como foi desenvolvidamente tratada no acórdão já citado relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Teles Pereira, é a de saber se tal norma transitória, com o referido alcance, de carácter retroactivo, se conforma com as regras de um estado de direito, na vertente do princípio da confiança e enferma ou não de inconstitucionalidade material por ofensa de tal princípio.

            A este propósito, escreve o Sr. Professor José Joaquim Gomes Canotilho[30] que a “mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas. O princípio do estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objectivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjectiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas.

            A Constituição da República Portuguesa veda a retroactividade das leis penais (artigo 29º, nºs 1 a 4, da Constituição da República Portuguesa), das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 18º, n º 3, da Constituição da República Portuguesa) e das leis fiscais (artigo 103º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa). Deste modo, não vigora no nosso ordenamento jurídico uma proibição geral de retroactividade, cingindo-se essa proibição aos segmentos normativos antes elencados, pelo que, em princípio, do ponto de vista constitucional, nada obsta à retroactividade da lei em matéria civil, desde que essa normação não constitua uma restrição a algum direito fundamental.

            A questão que ora se coloca é a de saber se o estabelecimento de um prazo de caducidade para a investigação da maternidade ou de paternidade constitui uma restrição ao direito fundamental à identidade pessoal e a constituir família (artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa), restrição vedada pelo artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e, consequentemente, materialmente inconstitucional.

            A resposta a esta questão obriga a distinguir a restrição de um direito fundamental de um mero limite a um tal direito. Alguma doutrina constitucional tem vindo a afirmar que a “restrição tem a ver com o direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite contende com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular. A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a certa categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam nele compreendidas; o limite reporta-se a quaisquer direitos. A restrição funda-se em razões específicas; o limite decorre de razões ou condições de carácter geral, válidas para quaisquer direitos, como a moral, a ordem pública e o bem-estar numa sociedade democrática (artigo 29º da Declaração Universal).

O limite pode desembocar ou traduzir-se qualificadamente em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício), ou de participação prévia (v.g., para realização de manifestações), ou de registo (para o reconhecimento da personalidade jurídica de associação), ou de conjugação com outros cidadãos num número mínimo (para a constituição de partidos), ou de posse de documentos (por exemplo, passaportes), ou de autorização vinculada (para a criação de escolas particulares e cooperativas). O condicionamento não reduz o âmbito do direito, apenas implica, umas vezes, uma disciplina ou uma limitação da margem de liberdade do seu exercício, outras vezes um ónus [31].

No caso dos autos, está em causa o estabelecimento de um longo prazo de caducidade para o exercício de uma faculdade legal que se funda nos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família (artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa). O estabelecimento desse prazo não contende com a extensão objectiva desses direitos, razão pela qual se nos afigura que não integra uma restrição daqueles direitos fundamentais.

Importa agora apurar se a aplicação do artigo 3º, da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril ao caso dos autos envolve uma violação do princípio da confiança e, nesta medida, enferma de inconstitucionalidade material determinante da desaplicação desse normativo nesta sede.

Salientámos já anteriormente que o caso dos autos tem uma diferença significativa relativamente àquele que foi objecto da decisão deste Tribunal da Relação no processo nº 1000/06.2TBCNT.C1 e que é a da presente acção ter sido proposta num contexto normativo em que ainda vigorava o nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, enquanto no caso decidido naquele acórdão se tratava de acção proposta após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, decretada pelo acórdão nº 23/2006.

No momento da propositura da acção, a autora fundamentou a sua tempestividade na alegação de factos integradores de posse de estado, a qual cessara há menos de um ano, nessa data.

Nesse momento, a autora não tinha qualquer elemento que lhe permitisse confiar na inexistência de qualquer prazo de caducidade para a investigação da sua paternidade, pois nem sequer havia ainda sido proferido o acórdão nº 486/2004 do Tribunal Constitucional[32] em que, pela primeira vez, se decidiu nos termos que foram acolhidos com força obrigatória geral pelo acórdão nº 23/2006.

À data da propositura da acção, a autora não tinha assim qualquer razão plausível para confiar na insusceptibilidade de caducidade da pretensão de investigação da sua paternidade. Por isso, afigura-se-nos que o artigo 3º, da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, aplicado ao caso objecto destes autos, não atenta contra o princípio da confiança e consequentemente não enferma de inconstitucionalidade material[33].

Ainda assim, importa questionar se uma aplicação daquela norma transitória, nos termos antes sufragados, não enfermará de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição da República Portuguesa).

O princípio da igualdade, na sua dimensão liberal, “impõe a igualdade na aplicação do direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em condições meramente subjectivas”[34]. Ora, no caso dos autos, a diversidade de regimes jurídicos que resulta da interpretação antes sustentada para cidadãos que instauraram acções antes e depois da publicação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 deriva dos regimes jurídicos distintos que esses mesmos cidadãos tiveram em vista no momento da propositura da acção e, nesta medida, afigura-se materialmente justificada. Conclui-se deste modo pela inverificação de inconstitucionalidade material por violação do princípio constitucional da igualdade.

Em conclusão, aplicando ao caso dos autos o nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, ex vi artigo 3º da citada lei, conclui-se que se verificou a caducidade da faculdade jurídica da autora investigar a sua paternidade com base exclusivamente na sua filiação biológica, a 28 de Janeiro de 1961, sendo certo que não se provaram os factos necessários à verificação de posse de estado de filha por parte da autora e relativamente ao investigado.

Pelo que antecede, conclui-se pela procedência do recurso de apelação interposto pelos réus, porquanto a verificação da caducidade do direito de acção da autora, implica, necessariamente, a absolvição dos réus do pedido, ficando prejudicado o conhecimento da questão enunciada para ser conhecida em último lugar.

            5. Dispositivo

            Pelo exposto, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no seguinte:

            - em julgar improcedentes os recursos de agravo impetrados por B (…)a 09 de Outubro de 2006 e a 31 de Janeiro de 2008, respectivamente;

            - em julgar improcedente a reclamação para a conferência deduzida por B (…)s e, em consequência, declara-se legalmente inadmissível o complemento às alegações sobre a impugnação da matéria de facto oferecido pelos recorrentes a 22 de Dezembro de 2008 e junto de folhas 702 a 711;

            - em julgar parcialmente procedente a impugnação de B (…)contra o julgamento da matéria de facto e, em consequência, em alterar a resposta ao artigo 18º da base instrutória, julgando-se no mais improcedente a impugnação, passando a resposta ao artigo 18º da base instrutória a ser a seguinte:

“Depois do nascimento de A (…), o pai de D (…) disse-lhe, algumas vezes: “a tua mulher não tem filhos, tu podias ir buscar a tua filha da (…)”;

- em julgar procedente o recurso de apelação interposto por B (…) e em consequência, em declarar a caducidade da faculdade jurídica de A (…) investigar a sua paternidade, improcedendo por tal fundamento a acção e absolvendo-se os réus do pedido;

- custas dos recursos de agravo e da reclamação para a conferência a cargo B (…)s, fixando-se a taxa de justiça devida pela reclamação para a conferência em duas unidades de conta, sendo as custas do recurso de apelação a cargo de A (…).


[1] Repare-se que a lei não indica em que parte das alegações devem ser observados os referidos ónus. Na nossa perspectiva, essas especificações devem decorrer quer do corpo das alegações propriamente ditas, local onde de modo desenvolvido se exporão os pontos de facto impugnados bem como as razões dessa impugnação, quer das conclusões das alegações, segmento do recurso que de forma precisa e incisiva delimitará o objecto do recurso.
[2] Sobre esta classificação veja-se, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora 2009, Armindo Ribeiro Mendes, páginas 50 a 51.
[3] A este propósito veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 346/2009, de 08 de Julho de 2009, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, acessível no site do Tribunal Constitucional.
[4] Neste sentido, que nos parece mais conforme com as exigências de prevalência do fundo sobre a forma visadas pela Reforma do Processo Civil operada pelo decreto-lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro e pelo decreto-lei nº 180/96, de 25 de Setembro, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Outubro de 2008, relatado pela Sra. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no processo nº 07B3011. Esta interpretação é também a que conduz a uma congruência dos poderes de actuação do tribunal em primeira e em segunda instância, evitando-se o contubérnio de um processo civil que dá prevalência ao fundo sobre a forma com um outro processo civil hiperformalista que se desinteressa pela finalidade última que corresponde à instrumentalidade do processo e que é a resolução substancial do litígio que opõe as partes. Nos recursos a que se aplique o regime introduzido pelo decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, face à estatuição de imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto no caso de inobservância do disposto no nº 1, alínea b), do artigo 685º-B, do Código de Processo Civil (artigo 685º-B, nº 2, do Código de Processo Civil), este procedimento não será viável. Ainda assim, mesmo neste novo regime, cremos que nos casos de recurso que vise impugnação da matéria de facto, quando se detectem vícios nas conclusões do recurso, no que respeita essa impugnação, será viável o aperfeiçoamento das conclusões por força do disposto no artigo 685º-A, nº 3, do Código de Processo Civil. Além disso, é de questionar a conformidade constitucional da estatuição de imediata rejeição do recurso que vise a impugnação da matéria de facto nos termos previstos no nº 2, do artigo 685º-B, nº 2, por poder configurar-se como um ónus excessivo e desproporcionado atentatório do direito fundamental de acesso ao direito (sobre esta questão veja-se com pertinência para a questão equacionada, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2005, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 190 e 191).
[5] Neste sentido, veja-se o acórdão de 03 de Março de 2009, do Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Urbano Dias, no processo 09A293, acessível no site da DGSI.
[6]  Veja-se o Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora páginas 582 e 583; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, Manuel A. Domingues de Andrade com a colaboração do Prof. Antunes Varela, nova edição revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, página 263; Código de Processo Civil anotado, volume IV, reimpressão, 1981, Professor Alberto dos Reis, página 185.
[7] É questionável esta possibilidade de utilização por parte do julgador dos conhecimentos especiais que disponha para sindicar os juízos científicos emitidos pelos peritos. De facto, pode entender-se que tal utilização de conhecimentos especiais colide com o dever de imparcialidade do julgador, gerando a confusão entre o seu estatuto de julgador e de meio de prova. No entanto, a delimitação dos conhecimentos que o julgador pode utilizar na sua tarefa de apreciação crítica da prova não é uma tarefa isenta de dificuldades. Na verdade, o horizonte cognitivo de cada julgador é variável, não sendo possível proceder a uma sua uniformização. Por outro lado, o perigo para a imparcialidade do julgador só existirá quanto a factos de que tenha conhecimento acidental, quando o julgador seja chamado a efectuar valorações relativamente às suas próprias percepções. Tal sucede quando o julgador presencia um facto que depois é chamado a julgar. No que tange os conhecimentos especiais de que seja possuidor, tal perigo não existe já que tais conhecimentos são utilizados na análise crítica da prova e desde que o julgador expresse de forma clara com que bases infirma o juízo pericial. Sobre esta questão veja-se, Libre Apreciación de la Prueba, Temis Libreria, Bogotá – Colombia, 1985, Gerhard Walter, páginas 290 a 314.
[8] Acerca do valor da prova pericial em processo penal e crítico quanto à regra irrestrita da livre apreciação da prova pericial em processo civil veja-se, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, Jorge de Figueiredo Dias, páginas 208 a 210.
[9] Numa perspectiva constitucional, e aferindo da conformidade da regra de livre apreciação da prova pericial em processo civil com a nossa Lei Fundamental, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional de 30 de Junho de 1999, publicado na II ª série do Diário da República de 29 de Novembro de 1999,  n.º 278, páginas 18030 a 18033.
[10] A transcrição integral da prova gravada em audiência que os recorrentes ofereceram é, no essencial, fiel à gravação, notando-se pequenas discrepâncias, sem grande relevo, a repetição de parte do depoimento da testemunha (…)(folhas 23 do primeiro volume da transcrição) e a omissão de uma pequena parte do depoimento da testemunha (…) (seria certamente a folha 99 da transcrição).
[11] Dado o objecto do litígio e o tempo a que remontam alguns dos factos objecto da instrução, a idade dos depoentes é um elemento muito importante para a aferição crítica da razão de ciência dos mesmos.
[12] A identificação da razão de ciência da testemunha tem um relevo decisivo para a aferição crítica do depoimento produzido. Como já escrevia Lobão in Segundas Linhas sobre o Processo Civil ou antes Addicções às Primeiras do Bacharel Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Lisboa 1817, Parte I, página 517, nota 479, na sua expressiva linguagem, “A razão do dito, he a alma de testemunho: A Testemunha, que depõe sem razão de dito, ou inadquada, depõe como bruto, não como homem, e não se atende”. Daí que a recolha do testemunho deva seguir uma certa metódica, parecendo-nos ainda plena de actualidade a que resultava do disposto no artigo 947º, da Novíssima Reforma Judiciária, onde se dispunha que “Às testemunhas será perguntado o modo por que souberam o que depõem: se disserem que o sabem de vista, serám perguntadas em que tempo, e logar o viram, se estavam ahi outras pessoas, que tambem o vissem, e quaes eram: se disserem que o sabem de ouvida, serám perguntadas a quem o ouviram, em que tempo e lugar, e se estavam ahi outras pessoas, que o ouvissem, e quaes sejam”.
[13] Sobre o valor da prova pericial para demonstração das relações de filiação, entre outros, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Serra Baptista, no processo nº 08B1827, de 12 de Setembro de 2006, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Alves Velho, no processo nº 06A2113, de 15 de Março de 2005, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Ferreira Girão, no processo nº 04B4798 e de 20 de Julho de 2003, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Ponce de Leão, no processo nº 04A1974.
[14] Sobre a finalidade da prova e as suas exigências no domínio jurídico veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2005, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Salvador da Costa, no processo nº 05B1238 onde a dado passo se afirma que a “prova não visa a certeza da verificação de determinado facto, mas apenas a certeza subjectiva e a convicção do juiz e, face à precariedade ou contingência dos meios de conhecimento da realidade, há que aceitar-se nesta matéria o grau de probabilidade que baste, no quadro das circunstâncias envolventes para o referido convencimento.”
[15] Assim sucedia, nas Ordenações, no parágrafo 21, do título 62, do livro primeiro das Ordenações e Leis do Reino de Portugal, confirmadas e estabelecidas pelo Senhor Rei D. João IV, em matéria de testamentaria, em que eram exigidas pelo menos duas testemunhas.
[16] Isto a supor que não houve nenhum “auxiliar de memória” prévio à realização da audiência de discussão e julgamento. O simples contacto da autora com a testemunha no sentido de saber se esta se lembrava do episódio em causa, mesmo de boa fé, pode ter levado a testemunha (…) a recuperar a memória da factualidade em causa.
[17] Sobre a enunciação da questão da amplitude do erro na apreciação da prova para alteração da decisão de facto da primeira instância veja-se, Dos Recursos, Quid Juris 2009, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, página 258 e nota 272.
[18] Na publicação do acórdão nº 23/2006, no Diário da República nº 28, de 08 de Fevereiro de 2006, refere-se, por manifesto lapso, a violação do artigo 16º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quando pelos fundamentos se verifica que se pretendia aludir à violação do artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
[19] Vejam-se Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina 2003, José Joaquim Gomes Canotilho, página 1013 e A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Portuguesa 1999, Rui Medeiros, páginas 540 a 546.
[20] Veja-se sobre esta questão o ponto nº 14, do acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional; acerca da figura da inconstitucionalidade deslizante e do momento de produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade nesse caso, veja-se, A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Portuguesa 1999, Rui Medeiros, páginas 542 a 546.
[21] Sobre a determinação das situações jurídicas consolidadas veja-se, A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Portuguesa 1999, Rui Medeiros, páginas 636 a 639. Afigura-se-nos que nos casos de prescrição e de caducidade em matéria na disponibilidade das partes, não bastará o mero decurso do prazo legalmente fixado, sendo ainda necessária a tempestiva invocação da prescrição ou caducidade por parte da pessoa com legitimidade para o efeito (artigos 303º e 333º, nº 2, ambos do Código Civil).
[22] O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou em vários arestos pela inconstitucionalidade do prazo de caducidade previsto no nº 4, do artigo 1817º do Código Civil e não atingidos pela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006: vejam-se, entre outros, o acórdão de 14 de Dezembro de 2006, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Alves Velho, no processo nº 06A2489 e o acórdão de 23 de Outubro de 2007, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Mário Cruz, no processo nº 07A2736; na doutrina, in Cadernos de Direito Privado, nº 15, páginas 46 a 52, Jorge Duarte Pinheiro pronuncia-se pela inconstitucionalidade do estabelecimento de quaisquer prazos de caducidade em matéria de investigação da maternidade e da paternidade, propugnando por uma interpretação do artigo 1817º do Código Civil em conformidade com a constituição e no sentido de admitir a investigação da maternidade e da paternidade para além dos prazos de caducidade mas com efeitos restritos ao estabelecimento da filiação e sem que tal estabelecimento releve para efeitos sucessórios.
[23] Pronunciando-se pela inconstitucionalidade material desta norma transitória quando aplicada a acção para investigação de paternidade instaurada após a publicação do acórdão nº 23/2006, do Tribunal Constitucional, por violação do princípio da confiança, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Junho de 2009, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Teles Pereira, no processo nº 1000/06.2TBCNT.C1.
[24] Para uma análise circunstanciada dos elementos da posse de estado veja-se, Filiação, Coimbra Editora, José da Costa Pimenta, páginas 162 a 167.
[25] Veja-se a este propósito, Filiação, Coimbra Editora, José da Costa Pimenta, páginas 164 a 165.
[26] Sobre a qualificação da relação de filiação biológica e com incidência especial na determinação da lei aplicável no tempo veja-se, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Almedina 1968, João Baptista Machado, páginas 220 a 226.
[27] Veja-se a obra antes citada, páginas 231 a 243.
[28] Veja-se o Projecto de Lei nº 178/X (1ª), publicado na II série A, nº 68, do Diário da Assembleia da República.
[29] A caducidade é impedida pela prática do acto em juízo a que a lei atribua efeito impeditivo (artigo 331º, nº 1, do Código Civil).

[30] In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, página 259.
[31] Citação extraída de Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2005, Jorge Miranda e Rui Medeiros, página 159, nota XIV.
[32] Este acórdão data de 07 de Julho de 2004.
[33] O Professor Baptista Machado, na obra antes citada, páginas 234 a 236, em sede de definição das regras gerais aplicáveis no caso de encurtamento do prazo de caducidade, a nosso ver transponíveis, por identidade de razão, para os casos de previsão inovadora de caducidade para faculdade até então não sujeita a tal vicissitude, sustentava a aplicação a tal hipótese do disposto no nº 1, do artigo 297º do Código Civil, desde que as razões objectivas que levaram a lei nova a fixar o prazo ou a encurtá-lo não impuserem diferente solução. No entanto, esta doutrina é inexequível quanto se trate de prazo de caducidade e a lei nova surja após a propositura da acção, porquanto o facto impeditivo da caducidade é a propositura da acção (artigo 331º, nº 1, do Código Civil).
[34] Citação extraída da Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora 2007, José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, páginas 336 e 337, anotação I.