Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
164/11.8GAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
QUEIXA
ELEMENTOS DO TIPO
Data do Acordão: 02/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL DO FUNDÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 153.º E 155.º DO CP
Sumário: I - Dependem da apresentação de queixa os crimes de coação e de ameaça “simples” nos termos previstos no n.º 2 do art. 153.º e no n.º 4 do art. 154.º do C. Penal. Mas já não dependerão de queixa quer o crime de coação agravado quer o crime de ameaça agravado, previstos nas múltiplas alíneas do art. 155.º.

II - Os elementos constitutivos do crime de ameaça, p. e p. pelo art.153.º, n.º 1, do Código Penal, são os seguintes:

- A ameaça a outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- Que a ameaça seja de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e

- O conhecimento e vontade de realização do facto antijurídico, com consciência da ilicitude da conduta.

III - O bem jurídico protegido é a liberdade pessoal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

 Relatório

Pela Comarca de Castelo Branco – Instância Local do Fundão, Secção Criminal, J 1, sob pronúncia que recebeu parcialmente a acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

A... , casado, industrial, nascido a 01-11-1973, natural de Penamacor, filho de (...) e de (...) , residente na R. (...) , Penamacor,

imputando-se-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º , n.º 1 e 155.º , n.º 1, al. a ), com referencia ao art. 131.º, todos do C. Penal.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual, em 4 de Fevereiro de 2015, a Ex.ma Juíza proferiu o seguinte despacho:

« Atenta a natureza semipública dos crimes de injúria agravados, p. p. pelo artigo 181º, nº1 e 184º, ambos do Código Penal, o que coloca o procedimento criminal na disponibilidade dos ofendidos (188º, nº 1 do citado diploma legal), e tendo em conta a declaração de desistência de queixa dos ofendidos B... e C... , bem como a não oposição do arguido A... , e a douta promoção que antecede, considera-se válida, legítima, tempestiva e, por isso, juridicamente relevante a desistência de queixa, homologando-a nos seus precisos termos, determinando-se em consequência o oportuno arquivamento dos autos, nesta parte, por ilegitimidade do MºPº para exercício da ação Penal contra o arguido A... , nos termos das disposições conjugadas dos artigos 113º e 116º, nº 2 ambos do Código Penal e 49º e 51º nº 2 do C.P.P.

Quanto ao crime de Ameaça Agravado, anuindo integralmente à douta promoção do Digno Procurador Adjunto, não homologo a desistência da queixa apresentada e, em consequência, determino o prosseguimento da audiência de julgamento.».

Finda a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 25 de Março de 2015, decidiu julgar procedente, por provada a pronúncia e, em consequência:

- Condenar o arguido A... , pela prática em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), com referência ao artigo 131.º, todos do C.P., na pena de sete meses de prisão; e

- Suspender-lhe a execução da pena de prisão pelo período de um (1) ano, ao abrigo do disposto no art.50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.

Inconformado com o douto despacho de 4 de Fevereiro de 2015 dele interpôs recurso o arguido A... , apresentando as seguintes conclusões:

1. No início do Julgamento os lesados/queixosos declararam desistir do procedimento criminal de Ameaça Agravada contra o arguido.

2. Desistência que não foi aceite porquanto entendeu o d. tribunal a quo que estamos na presença de um crime público que, assim, não admite desistência de procedimento criminal.

3. Sendo este o interium do presente recurso: O crime de Ameaça Agravada é de natureza pública ou de natureza semi pública?

4. Com efeito, o art.155° do CP dá-nos a noção da agravação e em que circunstâncias o crime merece uma maior censura jurídico penal com o agravamento da medida da pena,

5. Uma vez que caso o agente realize os fatos previstos no art.153° (ameaça) nalguma das circunstâncias previstas nas alíneas do n.º l do art.155°, “é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”

6. Quando no caso de Ameaça simples, o mesmo agente “é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”

7. No caso da “Agravação” a moldura penal eleva-se para o dobro: de 1 ano de prisão passa para 2; de 120 dias de multa passa para 240 dias.

8. Não se trata assim de um crime individualizado mas outrossim do mesmo crime na forma agravada e da consequente agravação da moldura penal.

9. A actual previsão e a evolução que a ela conduziu, não é defensável que o art.155.° constitua um tipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do art.153.° - premissa de que parte o recorrente para atribuir natureza pública ao crime de ameaça agravada.

10. Com efeito, a previsão que contém a descrição da conduta ilícita, dolosa, tipificada como crime, encontra-se, inequivocamente, no art.153.°, acrescentando o art.155.° circunstâncias que representam uma agravação do limite máximo da pena.

11. Essa previsão típica centra-se “na adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar esses efeitos”; daí que para aferição da sua potencialidade intimidatória se tenha de ter em conta, conjugadamente, “a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do ameaçante(s) e do ameaçado(s)

12. É isso o que considera P. P. de Albuquerque, no Comentário do Código Penal (Univ. Católica Ed., Lisboa, 2008, p. 419):    “a disposição prevê, no n.°1, crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, pois as circunstâncias agravantes revelam um maior desvalor da acção, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo.

13. No n.°2, a lei prevê um crime agravado pelo resultado. A reforma de 2007 alargou o âmbito da agravação, determinando a aplicação ao crime de ameaças de todas as circunstâncias agravantes previstas para o crime de coacção, uma vez que anteriormente só a circunstância prevista na al.a a) se aplicava ao crime de ameaças.

14. A circunstância agravante da al. a) consiste na especial gravidade da ameaça.

15. É essa a interpretação que nos surge, também, no Código Penal Anotado de Maia Gonçalves (Almedina, 18.ª Ed., 2007, p. 602): “as alterações introduzidas pela Lei n.°59/2007 consistiram essencialmente em o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção”.

16. Conjugando as duas disposições  aplicáveis, no caso dos autos, deparamos com a seguinte previsão, agravação e estatuição: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, quando esses factos “ forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos”, “o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

17. Permanecendo na evolução histórica da Lei, e juntando-lhe a intenção dos revisores de 2007, verificamos que o crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública (mesmo - e este reparo reveste especial significado - se verificada a circunstância agravante, que é, no caso, imputada ao arguido).

18. Nesta última revisão foram “aglutinadas” no art.155° as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153° e 154°, colhendo-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.

19. Foram, pois, razões de utilitarismo sistemático - evitando-se a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas - que ditaram essas alterações.

20. Daí não se pode extrair qualquer intenção do Legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça (incluindo a sua - apenas ampliada - forma agravada), ou pública do crime de coacção (com as excepções previstas no n.° 4 do art.154.°), decorrente do respectivo tipo-base.

21. Por último, e recorrendo ao elemento racional ou teleológico e à unidade do sistema jurídico-penal, a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger.

22. Assim o referem Simas Santos e Leal Henriques, em Noções Elementares de Direito Penal (Rei dos Livros, 3a ed., 2009, p. 332-333):      “a exigência de queixa e de acusação particular vão buscar o seu fundamento: - à diminuta gravidade da infracção - certas infracções (v.g., ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc.), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, que façam desencadear, por parte desta, uma reacção automática. Essa reacção só surge mediante expressa manifestação de vontade das pessoas directamente ofendidas”.

23. Destacando essa perspectiva da pessoa ofendida (ou lesada), o Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime (Coimbra Editora, 2005, p. 667) adverte que “a existência de crimes semi-públicos e estritamente particulares serve a função de evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido,  possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem”.

24. No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade de decisão e de acção; a estes, secundária e reflexamente, entendemos ser de acrescentar a integridade psíquica da pessoa, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança.

25. Tratam-se, em todo o caso, de bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida), inexistindo - mesmo quando estes se mostrem violados sob a forma agravada - razões de ordem pública e colectiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.

26. Como bem se assinala no estudo publicado na revista Julgar - Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, de Jan.-Abr. de 2010, p. 40 a 44, apelando à unidade e congruência do sistema penal, a sanção aplicável à violação dos interesses jurídicos protegidos (prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) é congruente - em termos comparativos com outras estatuições do Código Penal, exemplificando com o crime de ofensas corporais simples, que em regra carece de queixa - com a atribuição de relevância à vontade do ofendido.

27. Não se vislumbram, com efeito, razões de política criminal para a desconsiderar, por completo.

28. O crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, é de natureza semi-pública.

29. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 153.°, n.°2, 155.°, 48.° e 49.° todos do CPP

30. Neste sentido andou o d. Ac. Do TRP de 13/11/2013.

Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida, e dados sem nenhum efeitos todos os posteriores atos praticados, julgando-se válida e eficaz a desistência de queixa aceite pelo arguido, procedendo-se, em consequência, à extinção do procedimento criminal contra o arguido.

Nestes termos, com o mui douto e sempre indispensável suprimento de VV. Exas deve dar-se provimento ao presente recurso conforme plasmado nas conclusões apresentadas.

Inconformado também com a douta sentença dela interpôs recurso o A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Sem prejuízo da alteração e aditamento à matéria de fato preconizada pelo recorrente, é entendimento deste que a matéria dada como provada é suficiente e adequada à procedência do recurso e da consequente absolvição do arguido.

2. Com efeito, a d. sentença na sua fundamentação refere no ponto 9: “o arguido, ao sair do veículo, disse a B... , em voz alta "isto é propriedade privada, agora é que estás fodido, ninguém sai mais daqui”

3. No ponto 11: o arguido respondeu ao B... “tira a farda caralho, tira a farda que eu fodo-te todo, cabrão. Eu mato-te, desgraço a minha vida, vou para a prisão, mas eu mato-te" (...) Isto aqui é da minha mãe, agora é que te fodeste.”

4. Como bem refere a d. sentença a quo “são três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente”

5. Mais refere que “o mal ameaçado tem que ser futuro. Isto significa que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois que, nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respectivo mal”

6. É justamente este mal futuro que o arguido ao proferir as expressões “AGORA É QUE ESTÁS FODIDO" (...) "ISTO AQUI É DA MINHA MÃE, AGORA É QUE TE FODESTE” (sublinhado nosso), conjuntamente com a utilização do modo verbal no presente “MATO-TE”, que não se verifica.

7. Na verdade, a atuação do arguido é pautada por, no seu entendimento, a GNR não ter competência para a apreensão de viaturas no âmbito de um processo executivo sem a presença do Agente de Execução, acrescido do fato de estarem no interior de uma propriedade privada da sua mãe sem qualquer consentimento ou autorização para esse efeito.

8. E também por não terem sido pedidos os documentos de todas as viaturas que vinham para apreensão logo no primeiro momento - nem tão pouco em qualquer outro momento - na sede da empresa "K..., Lda",

9. Os agentes da GNR tudo fizeram com se tratasse de uma busca ou mandato de busca e apreensão, quando, no caso se trata de uma ordem dada pelo Agente de execução para penhora com apreensão de documentos.

10. Aliás como bem é referido na Pronuncia a fls.260: “Com efeito, sendo as suas funções [dos agentes da GNR] restritas à "imobilização" e "apreensão de documentos" os agentes não ficaram impedidos de apor os selos ou imobilizadores no veículo, nem de apurar junto das demais pessoas presentes o paradeiro dos documentos, nomeadamente junto da outra sócia que se encontrava igualmente presente, uma    vez que a gerente de direito não se encontrava no

Local”

11. Acrescenta: “Atentas as especiais capacidades e qualidades dos agentes da GNR para gerir e suportar situações de confronto, não é de dar como provado que os mesmos ficaram impedidos de exercer as suas funções nos referidos termos, não podendo as meras ameaças do Arguido perante três militares da GNR ter esse efeito”

12. O que nos leva, necessariamente, à apreciação do relevante e imprescindível bem jurídico tutelado pela art. 153° do CP: tranquilidade e liberdade de auto determinação individual.

13. Que quanto a esta matéria se refere na Pronuncia, a fls.269, o seguinte:

       “No caso é de considerar, nos termos julgados provados, que a actuação dos agentes de autoridade se dirigia à imobilização do veículo e apreensão de documentação do mesmo, nos termos do disposto no artigo 851° do anterior Código Processo Civil, o qual remete para o art.161° do Código da Estrada, onde se estatui que o documento de identificação   do veiculo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou         de fiscalização ou seus agentes.

        Se no acto de apreensão não forem encontrados os documentos ou o requerido se recusar a entregá-los,            entendemos que deve o requerido ser notificado para proceder à sua entrega sob pena de incorrer em crime de desobediência (simples), em termos semelhantes ao anterior regime consagrado no art. 16°, n°2, do Decreto Lei n°54/75, de 12 de Fevereiro, com a divergência de que aí a cominação era de prática do crime de desobediência qualificada - neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Maio de 2012, relatado por Brizida Martins, proc. 569/10.1TATNV.Cl, disponível para consulta in dgsi.pt.

        Nestes termos, prendendo-se a actuação dos agentes com a imobilização do veículo e com a apreensão dos documentos, ou com a eventual cominação com a prática do crime de desobediência, em caso de inobservância do comando, não se vê como as aludidas palavras proferidas pelo Arguido, são idóneas a evitar a prática dos actos devidos pelo exercício de funções.

         Com efeito, o veículo sempre esteve à disposição dos militares, podendo os mesmos  livremente, proceder à sua imobilização, o mesmo sucedendo com o Arguido, a quem deveria ter sido efectuada a cominação com a prática de crime de desobediência.

         Assim resta concluir que a actuação do Arguido não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos militares da G.N.R porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum - em sentido semelhante cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Abril de 2014 (...)”

14. Não obstante as considerações efectuados pelo Mm° Juiz de Instrução se situarem na base que determinou a não pronuncia do crime de resistência e coação, não podem as mesmas perder a virtualidade e a assertividade, e, assim, a substancialidade para efeitos de caracterização das condutas quer do Arguido quer dos agentes da GNR para efeitos de ponderação no presente crime em análise.

15. Com efeito, ressalta à saciedade do que ali ficou expresso e assente, que:

- Os agentes da GNR deveriam ter solicitado no primeiro momento e na sede da sociedade “ K... , Lda” todos os documentos das viaturas que vinham indicadas no auto de penhora e procedido à sua imobilização.

16. O que nunca aconteceu. Os agentes da GNR primeiro andaram em busca dos veículos e só quando os detetavam procediam à sua apreensão. E mesmo após terem feito a 1.ª apreensão e na qual foram entregues os documentos e colocado o selo nunca solicitaram os documentos e a localização de qualquer dos outros veículos constantes no ofício da AE.;

17. Não tendo os documentos sido solicitados pelos Agentes GNR nunca se poderia proceder à cominação da falta de documentos que nunca foram solicitados, e, por tanto, à configuração de qualquer desobediência;

18. Os agentes não ficaram impedidos de apor os selos ou imobilizadores no veículo, nem de apurar junto das demais pessoas presentes o paradeiro dos documentos, nomeadamente junto da outra sócia que se encontrava igualmente presente e que assinou os 2 anteriores autos de apreensão.

19. O veículo sempre esteve à disposição dos militares, podendo os mesmos livremente, proceder à sua imobilização.

20. A actuação do Arguido não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos militares da G.N.R porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum.

21. O que nos leva, indubitavelmente, à não ofensa do bem jurídico tutelado pelo art. 153 do CP: tranquilidade e liberdade de auto determinação individual.

22. É que os agentes não ficaram impedidos de fazer ou concretizar as funções e o objetivo a que iam (imobilização do veículo e apreensão dos documentos).

23. As expressões dirigidas pelo arguido não foram idóneas e suficientes para constranger os agentes à prática do ato que iam concretizar, ou seja, as expressões dirigidas não foram suscetíveis de abalar a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação dos agentes porquanto os mesmos não procederam à imobilização e apreensão dos documentos que se encontravam na quinta da mãe do arguido porque não quiseram.

24. Primeiro, porque nunca os documentos foram solicitados à irmã do arguido - que já tinha assinado os 2 anteriores autos de apreensão - e sempre esteve no local quer com o arguido quer posteriormente;

25. Segundo, porque nunca estiveram impedidos de concretizar a apreensão e imobilização da viatura dado não existir nada que os impedisse - quer antes da presença do arguido, quer na presença do arguido, quer após na presença da irmã do arguido,

26. Terceiro, porque as expressões proferidas pelo arguido não tinham - nem podiam ter - a virtualidade de afastar os agentes das suas funções (imobilização e apreensão dos documentos) atenta as suas especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e de estarem munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum, bem como, nunca terem dado qualquer ordem de detenção ao arguido.

27. Quarto, porque sempre poderiam os outros 2 agentes da GNR proceder à imobilização e apreensão dos documentos porquanto o arguido nunca para estes dirigiu quaisquer expressões.

28. Assim, sem prejuízo da alteração / aditamento à matéria de fato que se preconizará, não se encontram verificados todos os elementos necessários ao preenchimento do ilícito em questão.

29. Com efeito, conforme se lê, entre outros, no d. acórdão Tribunal da Relação do Porto de 09-07-2014: “II. O crime de ameaça tutela a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação individual (liberdade de acção e de decisão), que são postas em causa mediante o constrangimento exercido sobre a vítima para que esta faça ou deixe de fazer algo, ou suporte uma actividade que não deseja.”

30. In casu, a vítima (agente B... ) nunca ficou constrangida para proceder à apreensão de documentos e imobilização do veículo.

31. Lê-se também, naquele mesmo aresto: “Exige-se que a acção ameaçadora seja idónea a lesar ou afectar, de modo relevante, a tranquilidade individual ou a liberdade de determinação do sujeito passivo, não sendo necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, sendo pacificamente aceite que o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objectivo-individual, devendo considerar-se «a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do(s) ameaçante(s) e do(s) ameaçado(s) -, por referência ao homem comum, ao cidadão normal

32. Que, como atrás já ficou bem patente e referido na d. pronúncia: “A actuação do Arguido não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos militares da G.N.R porque não se mostra tal comportamento adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum”.

33. Não sendo tendo sido assim afetada, de modo relevante, a tranquilidade individual ou a liberdade de determinação do sujeito passivo.

34. Nem as expressões usadas pelo arguido constituem a prática FUTURA de um mal, dado que as mesmas são antecedidas e procedidas da palavra “AGORA” o que determina a iminência da ameaça.

35. Na esteira do também doutamente decido no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-05-2012, in vww.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “1 - Para a consumação do crime de ameaça a expressão proferida tem de anunciar a prática de um mal no futuro, que constitua crime;

2- Quando o arguido de forma súbita, pega numa sachola e dirige à ofendida as expressões "eu mato-te, eu mato-te" e, "não há-de comer mais pão que Deus crie", não está a anunciar um mal futuro.”

36. Termos em que, não se verificam todos os elementos necessários ao preenchimento do ilícito criminal pelo qual o arguido foi condenado, violando-se, deste modo, entre outros, o art. 153°, n.º l, e 155° do Código Penal.

Da alteração / aditamento aos fatos provados.

37. Todo o desenrolar da factualidade que importa nos presentes autos desenvolveu-se em 3 momentos: O 1° momento na        oficina e na sede da sociedade K... Lda; O 2° momento no cruzamento junto às bombas de gasolina, e o 3° momento na quinta denominada (...) , propriedade da mãe do arguido.

38. De acordo com o depoimento de todas as testemunhas inquiridas (à exceção de H... ) todas referem estes 3 momentos.

39. Conjugada toda a prova, designadamente os depoimentos transcritos, bem como todo o seu integral depoimento gravado (A testemunha B... , depoimento gravado no dia 26/02/2015 das 15:04 horas até 16:00 horas ; A testemunha C... depoimento gravado no dia 26/02/2015 das 16:01h às 16:52h ; A testemunha D... depoimento gravado no dia 26/02/2015 das 16:56h às 17:30h ; A testemunha G... , depoimento gravado no dia 04/03/2015 das 14:22 h às 15:43 h ; A testemunha E... , depoimento gravado no dia 11/03/2015 das 16:59 h às 17:37 h) , terá que se proceder à seguinte alteração da matéria de facto.

40. Bem como das acareações entre a testemunha E... e B... e C... , embora as testemunhas tenham mantido os seus depoimentos, é altamente aconselhável a sua audição que se encontra gravada no dia 11/03/2015 pelas 17:42h às 17:4 9h, para se perceber a intensidade dos depoimentos e o sentido que dos mesmos se pode retirar.

41. Deve proceder-se ao seguinte ADITAMENTO dos seguintes factos:

42. Fato A- Foi a irmã do arguido G... que assinou todos os autos de apreensão realizados no dia 07-09-2011 antes da deslocação dos agentes da GNR à quinta da (...) .

43. Fato B- No cruzamento junto às bombas de combustível a irmã do arguido perguntou aos agentes se existia mais algum veiculo para apreensão, não tendo estes respondido.

44. Fato C- Os agentes da GNR nunca solicitaram os documentos e a localização de qualquer dos outros veículos constantes no ofício da AE

45. Fato D- Na quinta das (...) não foi solicitado à irmã do arguido a documentação da viatura MQ (...) nem a sua apreensão.

46. Fato E- Os agentes da GNR não ficaram impedidos de fazer ou concretizar as funções e o objetivo a que iam: imobilização do          veículo e apreensão dos documentos.

47. Fato F- Na quinta das (...) não havia qualquer barreira ou impedimento entre os agentes da GNR e a viatura que ali se encontrava estacionada e se encontrava para apreender.

48. Como também de deve proceder à seguinte ALTERAÇÃO dos seguintes factos:

49. Fato 4. Nenhuma das testemunhas referiu que “você tem a mania que é um espertalhão, um espertinho" nem que você é um incompetente (...) não lhe dou identificação nenhuma". Pelo que devem ser retiradas as referidas expressões daquele fato 4.

50. Fato 5. Nenhuma das testemunhas referiu aquelas expressões. Pelo que, o fato 5 deve ser eliminado.

51. Fato 9. Não é concretizado pelo depoimento de qualquer das testemunhas que tivesse sido colocado qualquer trator junto de outra passagem dado que nenhuma das testemunhas isso refere. Os agentes dizem mesmo desconhecer qualquer outra saída da propriedade e portanto não viram qualquer outra saída, que desconhecem, nem, por isso, obstruída.

52. Os agentes sempre puderam cumprir as suas funções de realização da diligência de imobilização e apreensão de qualquer veículo.

53. Bastava para tanto terem pedido os documentos à sócia da sociedade executada ( K... Lda) que sempre nos momentos anteriores acompanhou e assinou os autos de apreensão.

54. Acresce que, entre os agentes e a viatura que se encontrava na quinta da (...) não existia nenhum obstáculo que impedisse a sua imobilização ou aposição de selos.

55. Pelo que, tal fato 9 deve passar a ter a seguinte redação:

“ O arguido, ao sair do veículo, disse a B... , em voz alta "isto é propriedade privada, agora é que estás fodido, ninguém sai daqui até chegar o meu advogado”

56. Fato IX. Os agentes da GNR não conseguiram verbalizar qualquer ameaça sem para tanto terem que ser confrontados com o auto de notícia. O que revela a credibilidade do seu depoimento. Depois, não se lembravam de qualquer outro pormenor (do selo, das conversas, da perseguição do camião com o atrelado,...)

57. Por outro lado, o depoimento da testemunha E... e da G... é perentório no sentido de afirmar que não existiu qualquer referência à palavra "mato-te" nem tão pouco a qualquer outra tendo. Outrossim, havido ofensas mutuas entre o arguido e o agente B... .

58. Pelo que, deve ser eliminado o fato 11.

59. Fato 13. É  falso que o arguido tenha fechado o  portão de acesso à E.N. ou dado qualquer ordem nesse sentido. Vidé depoimento da testemunha E... . Pelo que deve o mesmo ser eliminado.

60. Fato 15. O arguido nunca impediu a imobilização do veículo e a apreensão da documentação. Nem provocou qualquer medo ou inquietação a B... . Pelo que, deve ser eliminado.

61. Fato 16. Não causou o arguido inquietação ou cerceou a liberdade e determinação de B... porquanto o mesmo poderia e sempre pode proceder à apreensão dos documentos e imobilização da viatura, porquanto devia ter pedido os documentos e procederá imobilização através de ordem a dar a irmã do arguido que tinha assinado os anteriores autos. Pelo que, deve ser eliminado este fato.

62. Procedendo-se à preconizada Alteração e Aditamento dos fatos supra, deve a d. decisão ser revogada por outra que, fazendo a respetiva subsunção destes fatos ao direito, absolva o arguido da condenação a que foi sujeito.

63. Quanto ao registo criminal do arguido: A d. sentença na apreciação "das condições sócio - economico - pessoais do arguido” refere todas as anteriores condenações do arguido.

64. Sucede que, tais condenações reportam-se a penas extintas pelo cumprimento nas seguintes datas (vd. Certificado registo criminal junto aos autos): 31/01/2002; 06/07/2005; 25/05/2004; 11/01/2005; 13/02/2006; e, 30/04/2010.

65. Tais condenações são já muito “antigas” revelando que o arguido viveu um período mais “conturbado” durante os anos 2004 a 2006, e

66. Só passados 4 anos, em 2010, foi objeto de nova condenação.

67. Não obstante, quer na versão do art. 15, n° l alínea b) da Lei 57/98 de 18 de Agosto - que s.m.o. se aplica no caso destes autos -, quer na atual versão do art. 11, n° l, alínea b) da Lei 37/2015, de 05 de Maio, proceder-se-á, de modo automático, ao cancelamento definitivo de “Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.”

68. Ora, sem prejuízo de à data da prolação da d. sentença em 1.ª instância ainda não se tinha esgotado aquele prazo, na verdade, desde 30/04/2010 até à presente data já decorreram mais de 5 anos.

69. Pelo que, não podem ser consideradas as condenações anteriores e referidas na d. sentença.

70. Tudo como também vem  expresso no d. Ac. TRC de 08-07-2009, in www.dgsi.pt com o seguinte sumário: I - O registo criminal está sujeito a prazos de cancelamento definitivo e irrevogável, dependentes da pena aplicada e da data da sua extinção, conforme decorre do art. 15° da Lei n°57/98 de 18 de Agosto. II - Não é legítimo levar em consideração condenações anteriores que tenham sido objeto de cancelamento, configurando essa utilização, quando efetuada, uma autêntica proibição de prova (cfr. Almeida Costa, “o registo criminal", 1985, pag. 377 e segs.; III - De igual modo, não é possível levar em consideração condenações que não tenham ainda sido canceladas se, de acordo com a Lei, já o devessem ter sido.” (negrito nosso)

71. Termos em que, as condenações referidas na d. sentença não devem ser levadas em consideração e, assim, não podendo ser valoradas.

Nestes termos,

Por a mui douta sentença de que ora se recorre violar os preceitos mencionados neste recurso, estes devem ser interpretados e aplicados nos termos expostos.

Termos em que, com o mui douto e sempre indispensável suprimento de VV. Exas deve dar-se provimento ao presente recurso conforme plasmado nas conclusões apresentadas.

O Ministério Público na Comarca de Castelo Branco, Instância Local do Fundão,  respondeu ao recurso interlocutório interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, bem como ao recurso interposto da sentença recorrida, pugnando pela rejeição  deste ou, assim não se entendendo, pela sua  não procedência.

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que os recursos deverão improceder.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não tendo o arguido respondido ao douto parecer.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constantes da sentença recorrida é  a seguinte:

            Factos provados

Da acusação

1. No dia 07-09-2011, cerca das 14h10 m, B... , C... e D... , militares da GNR , encontrando-se em serviço e devidamente fardados e identificados , deslocaram-se , no exercício das suas funções à oficina da Sociedade comercial « K... , Lda. », sita na E. N. 233, Sul, Penamacor, de que o arguido é sócio, a fim de procederem à imobilização e apreensão de documentos de um veiculo pesado de mercadorias, de matricula GP (...) , penhorado no âmbito do processo de execução n. 204832/10.0YIPRT, do 1 Juízo do T. J. de Castelo Branco.

2. Ali chegados, um dos funcionários que se encontrava de serviço facultou a documentação do referido veiculo a B... e telefonou ao arguido a solicitar a sua presença.

3. O arguido, ao chegar ao local, foi informado por B... da apreensão do veículo e dos motivos da mesma, tendo-lhe este pedido a identificação para proceder ao preenchimento do auto de apreensão.

4. Após, B... e C... se terem dirigido para o interior do escritório, localizado no edifício contíguo à oficina, a pedido do arguido, este dirigiu-se a B... , num tom de voz elevado, dizendo-lhe: «você tem a mania que é um espertalhão, um espertinho, pediu os documentos da viatura ao meu funcionário e não lhe diz o motivo, se fosse comigo e se soubesse para o que era, dava-lhe os documentos o caralho é que os dava , nem o carro aprendia », « você é um incompetente, você devia ter vindo era falar comigo e ter pedido os documentos a mim , você anda para aí a mandar parar as pessoas e você é que se farta de beber jarros de vinho e anda bêbado, foda-se não lhe dou identificação nenhuma.

5. Nesse momento, B... ordenou ao arguido para parar de o insultar, ao que o mesmo respondeu « estou-me a cagar para si e para isto, ponha-se daqui para fora que isto é propriedade privada, quem é que você pensa que é para estar aqui ? Rua daqui para fora, você ponha-se a pau comigo que eu sei onde você mora, onde dorme e onde gasta ».

6. Ao proferir tais expressões, o arguido sabia que estava na presença de um militar da GNR , devidamente fardado e no exercício das suas funções.

7. No mesmo dia 07-09-2011, cerca das 15h20 m, no decorrer do patrulhamento e, ainda, com vista à imobilização e apreensão de documentos de veículos automóveis, da propriedade da sociedade comercial « K... , Lda. » e penhorados à ordem do processo supra id., designadamente o veiculo de matricula MQ (...) , os militares acima ids., deslocaram-se ao estaleiro, sito na Quinta das (...) , Penamacor.

8. Passados alguns minutos, cerca das 15h30m, o arguido chegou ao local ao volante do veículo de matrícula (...) PP, tendo estacionado o mesmo atravessado no caminho de acesso ao estaleiro, de modo a que não fosse possível a passagem de outros veículos, nomeadamente do veiculo caracterizado da GNR.

9. O arguido, ao sair do veiculo, disse a B... , em voz alta « isto é propriedade privada , agora é que estas fodido, ninguém mais sai daqui » , tendo ordenado ao seu funcionário que ali se encontrava para que colocasse um trator junto de uma outra passagem de modo a que o veiculo da GNR ali ficasse bloqueado , não podendo os militares sair do local , nem cumprir as suas funções, obstando , assim , à realização da diligencia de imobilização e apreensão de qualquer veiculo pela autoridade policial.

10. B... , após lhe ter explicado os motivos da presença da autoridade policial, ordenou ao arguido que lhe facultasse os documentos do veiculo MQ (...) , ao que este recusou , respondendo, « vai te foder , pá ».

11. Após ter sido, mais uma vez, advertido por B... para cumprir a ordem proferida , o arguido respondeu-lhe, em voz alta « tira a farda caralho, tira a farda que eu fodo-te todo , cabrão. Eu mato-te, desgraço a minha vida, vou para a prisão, mas eu mato-te, cabrão. Ainda nos vamos encontrar hoje que eu sei onde tu paras. Eu e tu ainda havemos de ter uma conversa só os dois, mas sem farda. Tira a farda, se és homem. Não vales nada. Só sais daqui quando chegar o meu advogado, sem a farda não és nada. hei-de arranjar alguém para te foder , cabrão. Isto aqui é da minha mãe, agora é que te fodeste.»

12. Momentos depois, B... ordenou ao arguido que retirasse, de imediato , as viaturas que obstruíam a saída, tendo aquele respondido: « vai-te foder , só sais daqui quando eu quiser. » « estou-me a cagar para ti, não vales uma merda».

13. De seguida, o arguido abandonou o local sem cumprir as ordens proferidas pelos ofendidos, e fechando à chave o portão de saída para a E. N., por onde a patrulha havia entrado.

14. Os ofendidos ficaram no local, impedidos de sair ate à chegada de uma nova patrulha da GNR , de um serralheiro e da irmã do arguido.

15. O arguido, com a sua atuação, quis provocar medo e inquietação a B... , impedindo-o, deste modo, de exercer as suas funções, e opondo-se a que o mesmo efectuasse a imobilização do veiculo e apreensão da documentação, bem sabendo que estava perante um agente de autoridade e que este atuava no exercício das suas funções.

16. O arguido agiu, ainda, com propósito de anunciar ao ofendido B... com a pratica de um crime contra a vida, a fim de o condicionar e, assim, o obrigar a não proceder à imobilização dos bens penhorados e apreensão da sua documentação, causando no mesmo inquietação e receio pela sua vida e cerceá-lo na sua liberdade e determinação, o que quis e conseguiu, bem sabendo que estava perante agentes de autoridade, no exercício das suas funções.

17. Ao estacionar o veiculo atravessado no caminho de acesso ao estaleiro e ao fechar o portão de acesso, o arguido estava ciente de que os três militares da GNR que ali se encontravam não conseguiriam abandonar o local com o veiculo da patrulha, obrigando-os a suportar atos contra a sua liberdade pessoal.

 18. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

DAS CONDIÇÕES SOCIO-ECONOMICO-PESSOAIS DO ARGUIDO:

19. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

Nos autos de processo 8/01, do 2 juízo do T. J. Castelo Branco, por decisão datada de 30- 01-2001 , transitada em julgado em 15-02-2001, por factos praticados em 11-01-2001 , pela pratica de crime de desobediência , o arguido foi condenado na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 1200$00;

Nos autos de processo 86/02.3TBCTB, do 1 juízo do T. J. Castelo Branco, por decisão datada de 24-09-2003, transitada em julgado em 17-10-2003, por factos praticados em 18- 07-1999, pela pratica de crime de ofensa á integridade física simples , o arguido foi condenado na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros;

Nos autos de processo 1/02.4TACVL, do 2 juízo do T. J. Covilhã, por decisão datada de 03-03-2004, transitada em julgado em 30-03-2004, por factos praticados em 07-04-2001, pela prática de crime de falsificação de documento, o arguido foi condenado na pena de 190 dias de multa à taxa diária de 5,00 euros;

Nos autos de processo 46/02.4TAIND, do T. J. Idanha a Nova, por decisão datada de 12-11-2004, transitada em julgado em 29-11-2004, por factos praticados em 17-04-1998 , pela pratica de crime de falsificação de documento, o arguido foi condenado na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros ;

Nos autos de processo 21/05.7GTCTB, do 1 Juízo do T. J. Fundão, por decisão datada de 30-11-2005, transitada em julgado em 15-12-2005, por factos praticados em 16- 01-2005, pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriagues, o arguido foi condenado na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 8,00 euros e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias;

Nos autos de processo 13/08.4GAPNC, do T. J. Penamacor, por decisão datada de 11-02-2009, transitada em julgado em 16-11-2009, por factos praticados em 01-02-2008, pela prática de crime de injurias agravadas, o arguido foi condenado na pena de 130 dias de multa à taxa diária de 8,00 euros.

20. O arguido é industrial, auferindo um rendimento líquido mensal de cerca de 1000,00 euros. Vive em união de facto com uma companheira que trabalha num callcenter, auferindo um vencimento líquido mensal de cerca de 500,00 euros. Tem um filho com cinco anos de idade. Reside em casa própria, com encargos bancários, despendendo a quantia mensal de cerca de 290,00 euros com os mesmos.

21. O arguido não confessou os factos que lhe vêem imputados.

 Motivação:

 Fundou o tribunal a sua convicção no conjunto das declarações e depoimentos produzidos em sede de audiência final, bem como no teor da prova documental junta aos autos, analisada de forma crítica, no cotejo das regras de experiência comum – cfr. Arts. 127 e 163 , ambos do C. P. Penal.

Assim e relativamente à prova junta aos autos e considerada relevante para a formação da convicção, revelou quanto à inserção sócio económica do arguido as declarações que este prestou a instâncias por dever de ofício deste T. J..

Foi considerado a nível documental:

O teor do auto de notícia junto a fls. 3 a 10.

O teor do ofício junto a fls. 11.

O teor das fotografias juntas a fls. 12 a 14.

O teor do C. R. C. junto a fls. 115 a 122.

Incidindo, agora, sobre a demais prova produzida, nomeadamente, os depoimentos prestados pelas testemunhas, importa reter que a apreciação de todos estes elementos , que redundam no juízo fáctico já supra concretizado , teve como presente a especial natureza dos factos em causa e as suas especificidades.

O arguido apenas esclareceu quanto à sua situação socio-económica, sendo certo que no que concerne à factualidade em apreço, e que lhe vem imputada, não confessou os factos tendo apresentado uma versão contraria e explicativa dos mesmos, a qual não convenceu , por falta de suporte probatório para tal , no contexto da prova produzida, designadamente pela prestação do depoimento presencial das testemunhas B... , C... e D... .

O ofendido B... (agente da GNR) esclareceu, profícua e credivelmente, as ameaças encetadas pelo arguido no dia 7 de Setembro de 2011, referindo, igualmente, não perceber as razões de tais comportamentos ameaçadores, sendo certo que se encontrava a cumprir o seu trabalho na sequência de oficio emanado por órgão jurisdicional – Tribunal. No mais, referiu pressentir que o arguido possa concretizar as expressões proferidas nas ameaças, tanto no decurso normal da sua vida pessoal, assim como no exercício normal e regular das suas funções no âmbito profissional.

A testemunha C... , agente da GNR, esclareceu quanto a toda a factualidade em apreço, tendo-a confirmado, profícua e credivelmente, porquanto presenciou a mesma na data de 7 de Setembro , acompanhando o ofendido B... .

A testemunha D... , agente da GNR, esclareceu quanto a toda a factualidade em apreço, tendo-a confirmado, profícua e credivelmente, porquanto presenciou a mesma na data de 7 de Setembro, porquanto acompanhava os seus colegas C... e B... .

A testemunha F... (motorista da empresa K... , Lda, desde 2001 a 2014), encontrando-se presente na quinta da mãe do arguido na data em que a patrulha da GNR , composta pelos agentes C... , B... e D... , ai se deslocou, esclareceu que ouviu o arguido a falar, em voz alta, para o agente B... «invadiste propriedade privada , isto é da minha mãe , agora esta tudo fodido».

 A testemunha H... (serralheiro que efectuou prestações de serviços nessa qualidade para a empresa do arguido durante dois anos, desde 2012 até presentemente ) referiu que a patrulha da GNR deslocou-se à sua serralharia , em Setembro de 2011 , a fim de conseguirem , em conjugação de esforços, abrirem um portão. No demais referente à factualidade em apreço, em nada esclareceu, porquanto não presenciou a mesma.

A testemunha G... (irmã do arguido) apresentou uma versão dos factos compreensivelmente coincidente com a apresentada pelo arguido, a qual não convenceu , por falta de suporte probatório para tal , no contexto da prova produzida , atento o depoimento profícuo , convincente e credível prestado pelas testemunhas B... , C... e D... .

A testemunha E... (assistente técnico ao serviço da K... , Lda desde há cerca de 15 anos) apresentou uma versão dos factos compreensivelmente coincidente com a apresentada pelo arguido, a qual não convenceu, por falta de suporte probatório para tal, no contexto da prova produzida, atento o depoimento profícuo, convincente e credível prestado pelas testemunhas B... , C... e D... .

Perante o cotejo da prova acima elencada e analisada, não tem este Tribunal qualquer dúvida de que as circunstancias conhecidas e provadas ao nível da factualidade de cariz objectivo, permitem e impõem, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, concluir de forma firme, segura e sólida, no que concerne à prova dos factos de índole subjectiva, que os mesmos se passaram nos termos vertidos na pronúncia. Com efeito, no que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação do arguido, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, vol. I, 1981, pág. 282, quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta – presunções naturais e não jurídicas -, a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados, o que sucedeu « in casu ».

Em todos estes elementos assentou a convicção do Tribunal.

                                                                        *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1]e de 24-3-1999 [2]e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso interlocutório do arguido A... a questão a decidir é a seguinte:

- se o crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, é de natureza semipública, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 153.°, n.°2, 155.°, do C.P. e artigos 48.° e 49.° do C.P.P., ao não julgar válida e eficaz a desistência de queixa aceite pelo arguido;

            As questões colocadas pelo recorrente nas conclusões da motivação do recurso interposto da sentença são, por sua vez, as seguintes:

- se não se encontram verificados, nos factos dados como provados, todos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.°, n.°1 e 155.°, n.º1, al. a), com referência ao art.131.º , todos do Código Penal;

- se deve proceder-se a aditamento e alteração de alguma matéria de facto dada como provada e, em consequência, deve absolver-se o arguido da condenação a que foi sujeito; e

- se as condenações constantes do C.R.C. do arguido referidas na sentença recorrida não deveriam ter sido levadas em consideração na decisão recorrida.


*

            Recurso interlocutório

O recorrente A... defende que o crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, é de natureza semi-pública, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 153.°, n.°2, 155.°, do C.P. e artigos 48.° e 49.° do C.P.P., ao não julgar válida e eficaz a desistência de queixa aceite pelo arguido

Alega para este efeito e em síntese, o seguinte:

- A previsão que contém a descrição da conduta ilícita, dolosa, tipificada como crime de ameaça, encontra-se no art.153.°, acrescentando o art.155.° circunstâncias que representam uma agravação do limite máximo da pena, pelo que este não é um crime individualizado;

- a propósito do art.155.º do Código Penal refere o Prof. P. P. de Albuquerque, no Comentário do Código Penal (Univ. Católica Ed., Lisboa, 2008, p. 419), que “a disposição prevê, no n.°1, crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, pois as circunstâncias agravantes revelam um maior desvalor da acção, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo.  No n.°2, a lei prevê um crime agravado pelo resultado. A reforma de 2007 alargou o âmbito da agravação, determinando a aplicação ao crime de ameaças de todas as circunstâncias agravantes previstas para o crime de coacção, uma vez que anteriormente só a circunstância prevista na al. a) se aplicava ao crime de ameaças.”

- A circunstância agravante da al. a) consiste na especial gravidade da ameaça.

- É essa a interpretação que nos surge, também, no Código Penal Anotado de Maia Gonçalves (Almedina, 18.ª Ed., 2007, p. 602), onde refere que “as alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007 consistiram essencialmente em o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção”.

- O crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública (mesmo se verificada a circunstância agravante, que é, no caso, imputada ao arguido).

Nesta última revisão foram “aglutinadas” no art.155.° as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153° e 154°, colhendo-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.

Foram, pois, razões de utilitarismo sistemático - evitando-se a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas – que ditaram essas alterações.

- Por último, e recorrendo ao elemento racional ou teleológico e à unidade do sistema jurídico-penal, a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semipúblicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger. Assim o referem Simas Santos e Leal Henriques, em Noções Elementares de Direito Penal (Rei dos Livros, 3a ed., 2009, p. 332-333) e o Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime (Coimbra Editora, 2005, p. 667).

- No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade de decisão e de acção; a estes, secundária e reflexamente, entendemos ser de acrescentar a integridade psíquica da pessoa, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança. Trata-se de bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida), inexistindo - mesmo quando estes se mostrem violados sob a forma agravada - razões de ordem pública e colectiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.

Como bem se assinala no estudo publicado na revista Julgar - edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, de Jan.-Abr. de 2010, p. 40 a 44, apelando à unidade e congruênciado sistema penal, a sanção aplicável à violação dos interesses jurídicos protegidos (prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) é congruente - em termos comparativos com outras estatuições do Código Penal, exemplificando com o crime de ofensas corporais simples, que em regra carece de queixa - com a atribuição de relevância à vontade do ofendido.

Não se vislumbram, com efeito, razões de política criminal para a desconsiderar, por completo.

- Sendo o crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, de natureza semi-pública, como decidiu o douto acórdão do TRP de 13/11/2013, deve proceder-se à extinção do procedimento criminal contra o arguido.

Vejamos.

O crime de ameaça, na versão primitiva do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, era descrito no art.155.º, sob uma forma simples no seu n.º1 - « Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 100 dias. » -, e sob uma forma qualificada no n.º 2 - « No caso de se tratar de ameaça  com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos ou com pena de multa até 180 dias. ».

Em ambos os casos, o n.º 3 estabelecia que o procedimento criminal dependia de queixa.

Com a revisão do Código Penal levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, o crime de ameaça passa a integrar o art.153.º.

Deixa de se exigir que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar e altera-se o limite máximo das penas de multa, mas continua a haver uma forma simples de ameaça no n.º1 e uma forma qualificada no n.º 2 , e o n.º3 mantém a natureza semi-pública do crime em ambas as situações.

Nos crimes semipúblicos, como nos crimes particulares, a promoção do Ministério Público está condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas.

Tradicionalmente assinala-se à queixa - e à acusação particular - , uma tripla função.

Por um lado, o significado criminal relativamente pequeno do crime (bagatelas penais e pequena criminalidade) pode tornar aconselhável, de um ponto de vista político-criminal, que o procedimento penal respectivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e vontade do titular do direito de queixa, ou mesmo, que o procedimento só possa prosseguir, após o inquérito, se tiver lugar a acusação particular. Tal sucederá com frequência nas hipóteses em que aquele pequeno significado se liga a uma alta medida de disponibilidade do bem jurídico respectivo.

Por outro lado, a existência de crimes semipúblicos e estritamente particulares serve a função de evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais estabelecidas entre ele e os outros participantes processuais.

Por último, a exigência de queixa ou (e) de acusação particular pode servir a função de específica protecção da vítima do crime, nomeadamente no caso dos crimes que afectam de maneira profunda a esfera da intimidade daquela. Reconhece-se que a vítima deve poder decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal da revelação processual da sua intimidade (quando o processo possa significar uma afronta ainda maior para a intimidade do ofendido do que o próprio crime), sob pena de, de outra forma, poderem frustrar-se as intenções político-criminais que, nesses casos, se pretenderam alcançar com a criminalização.[4]

Nos crimes de natureza pública estão em causa ofensas a bens jurídicos de maior relevância, que superando a vontade individual da vítima se apresentam de forma tão directa e imediata que justificam uma reacção automática do ius puniendi, não admitindo a cessação do procedimento criminal por vontade da vítima.

Inserto no Capítulo IV, dedicado a «Dos crimes contra a liberdade pessoal» do Título I «Dos crimes contra as pessoas», do Livro II - Parte especial, do Código Penal, estabelece actualmente e na data da prática dos factos o art.153.º, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, o seguinte:

« 1.Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

    2. O procedimento criminal depende de queixa

Sob a epígrafe «Agravação», o art.155.º, do Código Penal, com a redacção introduzida pelo citado diploma de 2007, passou por sua vez a estatuir o seguinte:

   «1- Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:

       a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; 

       b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

       c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

       d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;

       e) Por determinação da circunstância prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º;

o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.

2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça, da coação, da perseguição ou do casamento forçado, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.».

No artigo 153.º n.º 1 permaneceu, pois, o tipo simples e, em relação a ele, foi mantida a natureza semipública, no n.º 2.

Já a ameaça qualificada transitou para o art.155.º, onde se prevêem as circunstâncias e os resultados que qualificam tanto o tipo simples de ameaça como o tipo simples de coação e as penas que cabem a cada um dos tipos, em função da sua verificação.

É de realçar que as qualificativas da ameaça das alíneas b), c), d) e e) do art.155.º não se mostravam descritas no art.153.º do CP como agravantes da ameaça, antes da alteração operada pela Lei 59/2007.

Por sua vez, a coacção agravada prevista no art.155.º do CP antes da alteração operada pela Lei 59/2007, tinha natureza pública.

O actual art.155.º do Código Penal não contém norma que estabeleça a natureza semipública dos tipos qualificados de ameaça e de coação e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artigo 155.º, a estabeleça.

É pacífico que para expressar a natureza semipública de um tipo legal, o legislador usa a fórmula ritual “o procedimento criminal depende de queixa” e fá-la constar desse do próprio tipo, geralmente em número autónomo ou então em norma autónoma de um capítulo, reportado aos artigos precedentes, que o integram, especificando aqueles relativamente aos quais o procedimento criminal depende de queixa.

Na falta de norma expressa a indicar que o procedimento criminal depende de queixa, o crime tem natureza pública.

Se o legislador tinha, antes desta última revisão do Código Penal, um crime de ameaça qualificado semipúblico, e agora o autonomiza, nele abrangendo dois crimes distintos (o do art. 153º e o do art. 154º) omitindo qualquer referência à necessidade de queixa, cremos que, como é entendimento da generalidade da jurisprudência, tal resulta da vontade de autonomização do ilícito-típico de ameaça agravado e de lhe conceder natureza pública.

O acórdão do STJ n.º 7/2013, de uniformização de jurisprudência, ao estabelecer que «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155.º do mesmo diploma legal», reconheceu a autonomia do crime de ameaça agravada relativamente ao tipo fundamental.[5]

O crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art.155.º, n.º1 do C.P., constitui um tipo autónomo relativamente ao crime de ameaça simples, porque as circunstâncias nele previstas revelam um maior desvalor da acção, introduzindo um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo fundamental previsto no art.153.º.

Essa intenção revela-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, onde se consigna a propósito desta alteração do Código Penal: «O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.». 

Como já dissemos, quando o legislador confere natureza pública a determinados tipos de crimes, nomeadamente quando os agrava em tipo autónomo, tem em vista acautelar interesses públicos, que se prendem designadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública e que por isso não podem depender da vontade da apresentação de queixa ou da sua desistência.

No caso, a gravidade do crime que o agente anuncia vir a praticar no futuro, a situação de especial fragilidade da vítima ou a natureza das funções públicas que a vítima exerce, são fundamentos suficientes para justificar a desnecessidade da queixa para o crime agravado, de ameaça e de coacção.

No Código Penal são inúmeros os exemplos de tipos de crime que, na sua forma simples têm natureza semipública, e quando qualificados ou agravados, passam a ter natureza pública. É o que acontece entre o crime de furto simples e o crime furto qualificado, previstos respectivamente nos artigos 203.º, n.º1 e 204.º do CP; entre o crime de dano simples e qualificado, previstos respectivamente nos artigos 212.º e 213.º do CP; e entre o crime de ofensa à integridade física simples e o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. respectivamente nos artigos 143.º, n.º1 e 145.º do mesmo Código.

A solução legislativa de não manter a natureza semipública do tipo qualificado de ameaça é, por último, a mais harmónica com a opção de qualificar a ameaça pelas mesmas circunstâncias que qualificam a coacção.

Mal se compreenderia que o legislador tivesse agregado a agravação dos crimes de ameaça e de coação na mesma disposição legal, e depois não retirasse daí todas as consequências, designadamente as inerentes à desnecessidade de apresentação de queixa para ambos os crimes agravados. Não se vislumbra qualquer razão para o crime de ameaça agravada p. e p. na al. a) do nº 1 do artº 155º ser semipúblico e já não o ser o de coação agravada previsto na mesma disposição legal.

Assim, dependem da apresentação de queixa os crimes de coação e de ameaça “simples” nos termos previstos no n.º2 do art. 153º e no n.º4 do art. 154º do C. Penal. Mas já não dependerão de queixa quer o crime de coação agravado quer o crime de ameaça agravado, previstos nas múltiplas alíneas do art. 155º.

As regras que presidem à interpretação da lei, estabelecidas no art.9.º do Código Civil, assim o determinam.

No sentido de que o crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art.155.º do Código Penal tem natureza pública, podem consultar-se, como jurisprudência largamente maioritária, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 02 de Março de 2011, (processo nº 1729/09.3PBAVR.C1); de 30 de Março de 2011, (processo n.º 550/09.3GCAVR.C1) ; e de 12 de Novembro de 2014 (processo n.º 348/12.1PBVIS.C1); do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de Outubro de 2010, (processo nº 36/09.6PBSRQ.L1-3); do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Abril de 2011 (processo nº 53/09.6GBVNF.P1) e de 29 de Setembro de 2010 (processo n.º 162/08.9GDGDM.P1); do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Janeiro  de 2015 (processo n.º 59/13.0GVCT.G1); e do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Novembro de 2009 (processo n.º 2140/08.9PAPTM.E1) e de 14 de Outubro de 2014, processo n.º 2057/12.2TAFAR.E1), disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.

Nenhuma censura merece, assim, o despacho recorrido ao declarar irrelevante a desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravado e determinar o normal prosseguimento do processo.

Em face do exposto, improcede o recurso interlocutório.


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            Recurso da sentença

            Primeira questão

O recorrente A... defende que não se encontram verificados, nos factos dados como provados, todos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.°, n.°1 e 155.°, n.º1, al. a), com referência ao art.131.º , todos do Código Penal, pelo que deveria ter sido absolvido.

Alega o recorrente para o efeito e em síntese, o seguinte:

- Como bem refere a douta sentença a quosão três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente”. (…) “O mal ameaçado tem que ser futuro. Isto significa que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois que, nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respectivo mal”;

- É justamente este mal futuro que o arguido ao proferir as expressões “agora é que estás fodido (...)”-( ponto n.º 9) - e “isto aqui é da minha mãe, agora é que te fodeste”, conjuntamente com a utilização do modo verbal no presente “mato-te”- ( ponto n.º11) -, que não se verifica.

- A atuação do arguido é pautada por, no seu entendimento, a GNR não ter competência para a apreensão de viaturas no âmbito de um processo executivo sem a presença do Agente de Execução, acrescido do facto de estarem no interior de uma propriedade privada da sua mãe sem qualquer consentimento ou autorização para esse efeito. E também por não terem sido pedidos os documentos de todas as viaturas que vinham para apreensão logo no primeiro momento - nem tão pouco em qualquer outro momento - na sede da empresa “ K... , Lda”. Os agentes da GNR tudo fizeram com se tratasse de uma busca ou mandato de busca e apreensão, quando, no caso se trata de uma ordem dada pelo Agente de execução para penhora com apreensão de documentos.

- Não obstante as considerações efectuadas pelo Mm° Juiz de Instrução nos segmentos do despacho de pronúncia de folhas 260 e 269, que se reproduzem, se situarem na base que determinou a não pronuncia do crime de resistência e coação, não podem as mesmas perder a substancialidade para efeitos de caracterização das condutas quer do arguido quer dos agentes da GNR para efeitos de ponderação no crime em análise, pois levam-nos indubitavelmente à não ofensa do bem jurídico tutelado pelo art.153.º do CP: tranquilidade e liberdade de auto determinação individual.

A actuação do arguido não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais dos militares da G.N.R, restritos à “imobilização” e “apreensão de documentos” dos veículos, porque não se mostra adequada a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos três militares na ocasião em causa, tanto mais que estes possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum.

As expressões dirigidas pelo arguido não foram idóneas e suficientes para constranger os agentes à prática do acto que iam concretizar, ou seja, as expressões dirigidas não foram suscetíveis de abalar a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação dos agentes porquanto os mesmos não procederam à imobilização e apreensão dos documentos que se encontravam na quinta da mãe do arguido porque não quiseram.

Vejamos.

A douta sentença recorrida descreve de modo razoavelmente exaustivo o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito do crime de ameaça. 

Sufragando a interpretação dos conceitos ali analisados, limitamo-nos a recordar aqui, sucintamente, que os elementos constitutivos do crime de ameaça, p. e p. pelo art.153.º, n.º 1 do Código Penal são os seguintes:

- a ameaça a outra pessoa com a prática de crime contra a vida , a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- que a ameaça seja de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e

- o conhecimento e vontade de realização do facto antijurídico , com consciência da ilicitude da conduta.

O bem jurídico protegido é a liberdade pessoal, como resulta do conteúdo do tipo e da sua inserção no capitulo IV (Dos crimes contra a liberdade pessoal) , do titulo I ( Dos crimes contra as pessoas), do Livro II ( Parte especial ) do Código Penal. 

É pacífico na doutrina e na jurisprudência, que ameaçar é prometer um mal futuro, é anunciar a prática de um mal em momento necessariamente futuro. - Cfr. entre outros ,  Américo Taipa de Carvalho , in “Comentário Conimbricense do Código Penal” , Tomo I , pág. 343 , e Leal-Henriques e Simas Santos , in “Código Penal” , 2º Vol., pág.185, 2ª edição, e acórdãos da Relação, do Porto, de 12 de Dezembro de 1984 ( CJ , 2º tomo , pág. 291.) e,  de  Coimbra, de 12 de Abril de 2000 ( BMJ n.º 496, pág.) e 25 de Janeiro de 2006, proc. n.º 3137/05, do mesmo relator do presente acórdão.

Para o preenchimento do tipo não é necessário que em concreto se chegue a verificar o medo, a inquietação ou o prejuízo para a liberdade. Basta que a ameaça seja adequada a provocar-lhe o medo, a inquietação ou o prejuízo para a liberdade.

Se o mal anunciado pelo agente se configura como imediato não há ameaça. Quando muito, caso hajam actos de execução, haverá uma tentativa de execução do respectivo mal.

O crime de ameaça é agravado, nos termos do art.155.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na redacção introduzida pelo já citado diploma de 2007, quando os factos previstos no art.153.º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos.

Retomando o caso concreto impõe-se, antes do mais, clarificar quais são, de entre os inúmeros factos descritos na factualidade dada como provada, os que respeitam ao crime de ameaça agravada pelos quais vem o arguido A... pronunciado.

Para saber quais são os factos que devem ser subsumidos aos tipos de ilícito que descrevem o crime de ameaça agravado, e a relevância ou não, dos argumentos que o recorrente retira de segmentos do despacho de não pronúncia do mesmo pela prática de um crime de resistência e coação, impõe-se fazer uma breve e sucinta referência à decisão instrutória.

O arguido A... vinha acusado pelo MP da prática de três crimes de injúria agravada, na pessoa do ofendido B... , por factos ocorridos em 7-9-2011 e 21-11-2011; um crime de resistência e coacção sobre funcionário, relativamente a factos ocorridos no dia 7-9-2011, pelas 15h30m; e três crimes de coacção agravada, na pessoa dos ofendidos B... , C... e D... , relativamente aos factos ocorridos no dia 7-9-2011.

No decurso da instrução foram comunicadas ao arguido duas alterações não substanciais, nos termos e para os efeitos do art. 303.º, n.º1, do C.P., uma das quais traduzida na eventual factualidade ser subsumível à prática de 1 crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.ºs 1 e 155.º, n.º1, al. a) e c) do C.P..

Realizada a instrução foi proferida decisão instrutória que culminou com o recebimento parcial da acusação da acusação do MP, traduzida na não pronúncia do arguido A... da prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, relativamente a factos ocorridos no dia 7-9-2011, pelas 15h30m e da prática dos três imputados crimes de coacção agravada e, na pronúncia, do mesmo arguido, pela prática três crimes de injúria agravada, na pessoa do ofendido B... , por factos ocorridos em 7-9-2011 e 21-11-2011 e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.ºs 1 e 155.º, n.º1 ,al. a)  do C.P..

Uma vez que o crime de ameaça agravada não constava da acusação do MP, é imperioso socorremo-nos da decisão instrutória para identificar os factos que integram indiciariamente a prática este tipo.

A este propósito consta da decisão instrutória, após descrição dos elementos constitutivos do crime de ameaça agravada o seguinte:

« No caso vertente, é de considerar que o Arguido, após ter sido, mais uma vez, advertido por B... para cumprir a ordem proferida, o arguido respondeu-lhe, em voz alta: «tira a farda caralho, tira a farda que eu fado-te todo, cabrão. Eu mato-te, desgraço a minha vida, vou para a prisão, mas eu mato-te, cabrão. Ainda nos vamos encontrar hoje que eu sei onde tu paras. Eu e tu ainda havemos de ter uma conversa só os dois, mas sem farda. Tira a farda, se és homem. Não vales nada. Só sais daqui quando chegar o meu advogado, sem a farda não és nada. Hei-de arranjar alguém para te foder, cabrão. Isto aqui é da minha mãe, agora é que tu te fodeste».

        As referidas expressões têm ínsitas a ideia de morte, de atentado contra a vida do ofendido, iniciando-se com a ameaça de um mal presente: “tira a farda que eu fodo-te todo, cabrão”; o que se entende que contínua no trecho seguinte, “Eu mato-te, desgraço a minha vida, vou para a prisão, mas eu mato-te, cabrão”: mas rapidamente resvalando para ameaça de um mal futuro “Ainda nos vamos encontrar hoje que eu sei onde tu paras. Eu e tu ainda havemos de ter uma conversa só os dois, mas sem farda.” o que termina de forma inequívoca com “Hei-de arranjar alguém para te foder, cabrão. Isto aqui é da minha mãe, agora é que tu te fodeste

       Destarte, encontram-se preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime, designadamente a ameaça, com um mal, no caso de natureza pessoal, futuro, sendo irrelevante que o agente não refira o prazo dentro do qual concretizará o mal.

       No caso, uma ameaça contra a vida tem forçosamente de se considerar apta a provocar medo e inquietação na pessoa visada, num juízo de prognose póstuma, tendo em conta as circunstâncias do caso. De facto, se entendemos que a vaguidade das ameaças não é apta a obstaculizar a actuação dos militares da G. N. R., a verdade é que, não deixa de ser uma ameaça contra a vida, que é susceptível de provocar um receio, ainda que residual, de que o Arguido, em qualquer momento, decida concretizá-las.

      O facto de constituir uma ameaça contra a vida é, ainda, fundamento de agravação, nos termos do artigo 155.°, n.º 1, al. a), do Código Penal, uma vez que o crime de homicídio é punido com pena de oito a dezasseis anos de prisão (cfr. artigo 131.° do Código Penal), uma moldura muito superior ao limite mínimo exigido para a agravação, estabelecido nos 3 anos - cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 7/2013 de 20 de Fevereiro de 2013, relatado por OLIVEIRA MENDES, proc. 723/08.6PBMAI.P1-A.Sl.

      Ainda que assim não se entendesse, sempre se encontraria preenchida a agravante da alínea c) do aludido preceito, por ter sido praticada contra os aludidos militares da G. N. R., no exercício das suas funções.

      No que respeita ao tipo subjectivo encontra-se provado que, o Arguido ao dirigir ao ofendido as expressões acima enunciadas, nomeadamente anunciando a prática de crime contra a vida, fê-lo com o propósito de provocar medo e inquietação e receio pela sua vida, o que quis e conseguiu, bem sabendo que estava perante agentes da autoridade no exercício das suas funções.

     Deste modo, actuou o Arguido com dolo directo, representando os factos que preenchem o tipo legal de crime e agindo com intenção de os realizar, restando concluir que o arguido cometeu um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.°, n.º 1 e 155.°, n.º l al. a), do Código Penal.»

Os factos que se mostra dados como provados no ponto n.º 11 da sentença recorrida constituem, sem qualquer dúvida, a factualidade pela qual foi o arguido pronunciado pelo crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.ºs 1 e 155.º, n.º1 ,al. a)  do C.P..

Como bem se anota na decisão instrutória, tendo o arguido começado por anunciar ao ofendido B... , um mal presente, traduzido na  morte imediata, com as expressões “tira a farda que eu fodo-te todo, cabrão”; e “Eu mato-te, desgraço a minha vida, vou para a prisão, mas eu mato-te, cabrão”, rapidamente resvalou para ameaça de um mal futuro, ao anunciar-lhe:

Ainda nos vamos encontrar hoje que eu sei onde tu paras. Eu e tu ainda havemos de ter uma conversa só os dois, mas sem farda.”, terminando de forma inequívoca, com a afirmação “Hei-de arranjar alguém para te foder, cabrão.”.

Da factualidade dada como provada essencialmente nos factos dados como provados nos pontos n.ºs 11 a 18 da sentença recorrida, resultam preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de ameaça agravada descritas na sentença recorrida, ou seja, o anúncio, por parte do arguido A... , de um mal futuro, ao ofendido e militar da GNR B... , com a prática de crime contra a vida, o qual nas circunstâncias em que tem lugar é idóneo a provocar-lhe receio pela vida e liberdade de determinação, o que conseguiu, tendo o mesmo agido com o conhecimento e vontade de realização do facto antijurídico e consciência da ilicitude da conduta.

Tendo o arguido A... , com a sua conduta supra descrita, praticado , em autoria material e na forma consumada, um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.°, n.º 1 e 155.°, n.º l al. a), do Código Penal.

Uma última palavra acerca desta questão: os argumentos que o recorrente pretende retirar da decisão instrutória, na parte relativa à não pronúncia do arguido pela prática do crime de resistência e coação, em nada contendem com o ora exposto.

Por um lado, o bem jurídico tutelado pelos art.153.º e 155.º do CP e pelo art.347.º, n.º1 do CP não é o mesmo; por outro, mesmo na parte relativa ao conhecimento da existência ou não do crime de resistência e coação, o Ex.mo Juiz de Instrução consignou que “É de considerar que foi utilizada (…) ameaça grave, com a prática de crime contra a vida. Todavia, não entendemos, por um lado que tal conduta tenha impedido os agentes de praticar os seus deveres de ofício, nem que tivesse essa virtualidade.”. Ou seja, o anúncio futuro de prática de crime contra a vida do militar da GNR B... , não o impediu de, ainda assim, cumprir de imediato os seus deveres de ofício.

Improcede, deste modo, esta primeira questão.


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            Segunda questão

O recorrente A... defende em seguida que, a não se considerar insuficiente a matéria de facto dada como provada para o preenchimento do crime de ameaça agravada, deve proceder-se ao aditamento à factualidade provada dos seguintes factos:

- Facto A) Foi a irmã do arguido G... que assinou todos os autos de apreensão realizados no dia 07-09-2011 antes da deslocação dos agentes da GNR à quinta da (...) .

- Facto B) No cruzamento junto às bombas de combustível a irmã do arguido perguntou aos agentes se existia mais algum veículo para apreensão, não tendo estes respondido.

- Facto C) Os agentes da GNR nunca solicitaram os documentos e a localização de qualquer dos outros veículos constantes no ofício da AE.

- Facto D) Na quinta das (...) não foi solicitado à irmã do arguido a documentação da viatura MQ (...) nem a sua apreensão.

- Facto E) Os agentes da GNR não ficaram impedidos de fazer ou concretizar as funções e o objetivo a que iam: imobilização do veículo e apreensão dos documentos.

- Facto F) Na quinta das (...) não havia qualquer barreira ou impedimento entre os agentes da GNR e a viatura que ali se encontrava estacionada e se encontrava para apreender.

Para além deste aditamento, deverá proceder-se à alteração da factualidade dada como provada na sentença recorrida, com a eliminação da factualidade constante dos pontos n.ºs 5, 11, 13, 15 e 16 e nova redação dos pontos n.ºs 4 e 11, com a retirada do ponto n.º 4 das expressões “você tem a mania que é um espertalhão, um espertinho” nem que você é um incompetente (...) não lhe dou identificação nenhuma” e a consignação no ponto n.º 9 da seguinte redacção “ O arguido, ao sair do veículo, disse a B... , em voz alta "isto é propriedade privada, agora é que estás fodido, ninguém sai daqui até chegar o meu advogado”.

Em consequência, da alteração e aditamento desta factualidade e da sua subsunção ao direito deve absolver-se o arguido da condenação a que foi sujeito.

Alega o recorrente, para efeito de aditamento e alteração da factualidade provada, que todo o desenrolar da factualidade que importa nos presentes autos se desenvolveu em 3 momentos:

o 1.° momento na oficina e na sede da sociedade K... Lda; o 2.° momento no cruzamento junto às bombas de gasolina, e o 3.° momento na quinta denominada (.. .), propriedade da mãe do arguido, o que é referido por todas as testemunhas inquiridas (à exceção de H... ), conforme resulta da conjugação de toda a prova, designadamente, dos segmentos transcritos, na motivação do recurso, dos depoimentos das B... , C... , D... , G... e E... , bem como das acareações entre a testemunha E... e B... e C... .

As expressões “você tem a mania que é um espertalhão, um espertinho” nem que você é um incompetente (...) não lhe dou identificação nenhuma” devem ser retiradas do ponto n.º 4 da factualidade dada como provada porque nenhuma das testemunhas as referiu.

As expressões constantes do ponto n.º 5 devem ser eliminadas porque nenhuma das testemunhas as referiu.

A factualidade do ponto n.º 9 deve passar a considerar, como nova redacção, que “ O arguido, ao sair do veículo, disse a B... , em voz alta "isto é propriedade privada, agora é que estás fodido, ninguém sai daqui até chegar o meu advogado”, porquanto não é concretizado pelo depoimento de qualquer das testemunhas que tivesse sido colocado qualquer trator junto de outra passagem dado que nenhuma das testemunhas isso refere. Os agentes dizem mesmo desconhecer qualquer outra saída da propriedade e portanto não viram qualquer outra saída, que desconhecem, nem, por isso, obstruída. Os agentes sempre puderam cumprir as suas funções de realização da diligência de imobilização e apreensão de qualquer veículo. Bastava para tanto terem pedido os documentos à sócia da sociedade executada ( K... Lda) que sempre nos momentos anteriores acompanhou e assinou os autos de apreensão. Acresce que, entre os agentes e a viatura que se encontrava na quinta da (...) não existia nenhum obstáculo que impedisse a sua imobilização ou aposição de selos.

Os factos constantes do ponto n.º 11 da factualidade dada como provada devem ser eliminados porquanto os agentes da GNR não conseguiram verbalizar qualquer ameaça sem para tanto terem que ser confrontados com o auto de notícia. O que revela a credibilidade do seu depoimento. Depois, não se lembravam de qualquer outro pormenor (do selo, das conversas, da perseguição do camião com o atrelado...). Por outro lado, o depoimento da testemunha E... e da G... é perentório no sentido de afirmar que não existiu qualquer referência à palavra “mato-te” nem tão pouco a qualquer outra tendo. Outrossim, havido ofensas mutuas entre o arguido e o agente B... .

A factualidade constante do ponto n.º 13 deve ser eliminada porquanto é falso que o arguido tenha fechado o portão de acesso à E.N. ou dado qualquer ordem nesse sentido, como resulta do depoimento da testemunha E... .

Também o ponto n.º 15 dos factos dados como provados deve ser eliminado pois o arguido nunca impediu a imobilização do veículo e a apreensão da documentação, nem provocou qualquer medo ou inquietação a B... .

Por fim , também a factualidade constante do ponto n.º 16 deve ser eliminada pois o arguido não causou inquietação ou cerceou a liberdade e determinação de B... . Este poderia e sempre pode proceder à apreensão dos documentos e imobilização da viatura, porquanto devia ter pedido os documentos e proceder à imobilização através de ordem a dar à irmã do arguido que tinha assinado os anteriores autos.

Vejamos.

O  Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ). No entanto, a modificabilidade da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código, ou seja:

« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ;

    b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art.412.º , n.º 3 ; ou

    c) Se tiver havido renovação de prova.».

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

Ainda nos termos do n.º 6, deste art.412.º, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

No presente caso, o arguido A... especifica, nas conclusões da motivação, os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as passagens em que funda a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que os depoimentos constam, com localização da passagem na gravação e transcrição dos segmentos na motivação do recurso.

O Tribunal da Relação considera, assim, que o arguido deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, consequentemente, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.

A documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto.

Mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse; é antes um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art.127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que «Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.» .

As normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “subjudice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.

Sobre a livre convicção refere o mesmo Professor que esta « é um meio de descoberta da verdade , não uma afirmação infundamentada da verdade . É uma conclusão livre , porque subordinada à razão e à lógica , e não limitada por prescrições formais exteriores .». - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.298. Por outras palavras ,  diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é «... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.»- Cfr. “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra  Editora, 1974, páginas 203 a 205.

O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal . É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova .

O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para  fundamentar a decisão da matéria de facto. Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação, diz o mesmo que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.» - Cfr. “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra  Ed., 1974, páginas 233 a 234.

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002, “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” - C.J. , ano XXVII , 2º , página 44.

Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Antes de conhecer directamente da pretensão do recorrente de aditamento à factualidade dada como provada e de alteração à mesma factualidade, é fundamental saber quais os factos provados e não provados que devem constar da fundamentação da sentença.

O conhecimento desta questão remete-nos para o disposto no art.368.º, n.º2, do Código de Processo Penal, que sob a epigrafe «Questão da culpabilidade», dispõe, designadamente, que aquando da deliberação, «…o presidente enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa , e bem assim os que resultarem da discussão da causa relevantes para as questões de saber:

 a) se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime; b) se o arguido praticou o crime ou nele participou; c) se o arguido actuou com culpa; d) se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa; e) se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança; f) se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.».

O STJ vem seguindo o entendimento, que também sufragamos, de que a obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados se refere aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou alegados na contestação – cfr., entre outros, os acórdãos de 3 de Abril de 1991 ( C.J., ano XVI, 2º, pág. 19), de 28 de Setembro de 1994 ( C.J.,ASTJ, ano II , 3º, pág. 206 ) , de 15 de Janeiro de 1997 ( C.J.,ASTJ, ano V, 1º, pág. 181), e de 7 de Outubro de 1998, ( C.J.,ASTJ, ano VI, 3º, pág. 183). Neste sentido, ainda o acórdão da Relação de Évora, de 21 de Março de 2000 ( BMJ n.º 495,pág. 382).

No caso em apreciação  os factos que o recorrente defende que deviam ter sido aditado pelo Tribunal a quo, não constam, evidentemente, do despacho de pronúncia, que recebeu parcialmente a acusação do MP, nem da contestação, em que o arguido a propósito da pronúncia se limitou a oferecer o “merecimento dos autos”.

Assim, só deveriam constar da factualidade dada como provada se fossem relevantes para a «Questão da culpabilidade» .

Salvo o devido respeito, para a decisão sobre o preenchimento do crime de ameaça agravada, em face da factualidade pela qual o arguido vem pronunciado, é absolutamente irrelevante e inócuo, caso se tivesse apurado, que « Foi a irmã do arguido G... que assinou todos os autos de apreensão realizados no dia 07-09-2011 antes da deslocação dos agentes da GNR à quinta da (...) .» ( facto A); que «No cruzamento junto às bombas de combustível a irmã do arguido perguntou aos agentes se existia mais algum veículo para apreensão, não tendo estes respondido.» (facto B); que «Os agentes da GNR nunca solicitaram os documentos e a localização de qualquer dos outros veículos constantes no ofício da AE.» ( facto C); que «Na quinta das (...) não foi solicitado à irmã do arguido a documentação da viatura MQ (...) nem a sua apreensão.» (facto D) ; que « Os agentes da GNR não ficaram impedidos de fazer ou concretizar as funções e o objetivo a que iam: imobilização do veículo e apreensão dos documentos.» (facto E); e que «Na quinta das (...) não havia qualquer barreira ou impedimento entre os agentes da GNR e a viatura que ali se encontrava estacionada e se encontrava para apreender.» (facto F).

Deste modo, o Tribunal da Relação nada tem a censurar à não inclusão entre a factualidade dada como provada desta matéria que o ora recorrente entende que devia ter sido aditada pelo Tribunal a quo

Relativamente aos factos constante do ponto n.º 4 da factualidade dada como provada, resulta da mesma que as expressões em causa proferidas pelo arguido A... terão teriam tido lugar no interior do escritório, pelas 14h10m, do dia 7 de Setembro de 2011, quando aí estavam presentes as testemunhas B... e C... .

Consta da motivação da factualidade da douta sentença recorrida, que o Tribunal a quo teve em consideração para esta prova, não só o “auto de notícia” junto de folhas 3 a 10 dos autos, como ainda os depoimentos das testemunhas B... e C... .  

As expressões “você tem a mania que é um espertalhão, um espertinho” nem que você é um incompetente (...) não lhe dou identificação nenhuma” , constam do “auto de notícia”, que é um documento autentico e dos segmentos dos depoimentos das testemunhas B... e C... indicados e transcritos pelo recorrente não consta que não as confirmaram. Pelo contrário, resulta do segmento do depoimento da testemunha C... que o mesmo depôs de acordo o teor do auto de notícia, que leu na primeira vez que terá ido ao Tribunal para o julgamento, levando o Ex.mo Advogado a dizer-lhe “ que o seu depoimento foi muito pegado ao auto”. Tendo decorrido mais de 3 anos desde a prática dos factos só merece louvor a testemunha por antes de se deslocar ao julgamento reavivar a sua memória com a leitura do auto de notícia que assinou. Importa é saber se mantém o que assinou ou não. Do depoimento da testemunha B... resulta também claro que tem memória de boa parte das situações e afirmações , designadamente as ora em causa, e que mantém o que consta do auto de notícia.

Deste modo, deve manter-se a factualidade que consta do ponto n.º 4. 

As expressões constantes do ponto n.º 5 dos factos dados como provados na sentença constam do “auto de notícia” e foram referidas e confirmadas pelos depoimentos das mesmas testemunhas, tidas como credíveis pelo Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade.

Assim, não devem estas expressões ser eliminadas.

Relativamente à factualidade do ponto n.º 9 dos factos dados como provados, respeitante já às 15h30, do mesmo dia, no estaleiro da sociedade “ K... , Lda”, diremos mais uma vez que a factualidade, designadamente as expressões usadas pelo arguido ao militar da GNR e ao impedimento de saída daquele local, estão de acordo com o presenciado e relatado no “auto de notícia” e dos segmentos dos depoimentos das testemunhas B... , C... e D... que ouvimos, não resulta que estas testemunhas disseram coisa diversa.

Uma vez que foi com base nestas provas documental e testemunhal que se deu como provada a factualidade que consta do ponto n.º 9, mantemos a mesma nos factos provados.

Quanto aos factos constantes do ponto n.º 11 da factualidade dada como provada, passa-se o mesmo. Os agentes da GNR conseguiram verbalizar parte das expressões e quando confrontados com o auto de notícia mantiveram e confiram o que ali escreveram, sendo que quem afere da credibilidade das testemunhas para dar os factos provados é o Tribunal.

Os depoimentos das testemunhas E... e da G... , que negam que o arguido A... tenha referido a palavra “mato-te” e outras das ali descritas, e que houve ofensas mútuas entre o arguido e o agente B... , foram desvalorizados pelo Tribunal a quo, em favor dos depoimentos dos militares da GNR.

O recorrente, se quer impugnar a credibilidade das testemunhas deve indicar os elementos objectivos que impunham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois a credibilidade, quando estribada em elementos subjectivos, é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes, é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação gravada.  

No caso em análise não encontramos indicados elementos objectivos que possam por em causa a credibilidade, não de uma, mas de três testemunhas, que são militares da GNR.  

Deste modo, mantemos na matéria de facto dada como provada a factualidade que consta do ponto n.º 11 da sentença recorrida.

O depoimento da testemunha E... , na base do qual pretende o recorrente que se elimine da factualidade provada o ponto  n.º 13 não mereceu a credibilidade do Tribunal a quo e o Tribunal da Relação não vislumbra qualquer elemento objectivo para considerar mais credíveis as suas afirmações que as proferidas no depoimento das testemunhas  B... , C... e D... . Assim, não se ordena a eliminação da factualidade deste ponto n.º 13.

Relativamente aos pedido de eliminação dos pontos n.ºs 15 e 16 dos factos dados como provados , o recorrente não indica em concreto qualquer prova que imponha um sentido diverso ao dado como provado na sentença recorrida.

Da fundamentação da matéria de facto da sentença, designadamente do “auto de notícia”, dos depoimentos dos militares da GNR e, de algum modo, da testemunha H... que “… referiu que a patrulha da GNR deslocou-se à sua serralharia , em Setembro de 2011, a fim de conseguirem , em conjugação de esforços, abrirem um portão.”, resulta não ser irracional dar como provado que o arguido A... tenha agido com o propósito , conseguido, descrito naqueles pontos n.ºs 15 e 16 da sentença recorrida. 

Reapreciada a prova indicada pelo recorrente nas conclusões do recurso, conclui o Tribunal da Relação que a convicção a que o Tribunal a quo chegou mostra-se objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Assim, não se impondo uma decisão diversa da recorrida, mais não resta que confirmar a decisão recorrida relativamente à matéria de facto e, consequentemente, manter a sentença condenatória, quanto á prática pelo mesmo do crime de ameaça agravada.


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Última questão

O recorrente A... defende, por fim, que as condenações constantes do seu C.R.C., referidas na sentença recorrida, não deveriam ter sido levadas em consideração na decisão recorrida, alega para o efeito, no essencial, o seguinte:

Quer na versão do art.15.º, n.º l, alínea b), da Lei 57/98 de 18 de Agosto - que se aplica no caso destes autos -, quer na actual versão do art.11.º, n.º l, alínea b), da Lei 37/2015, de 05 de Maio, proceder-se-á, de modo automático, ao cancelamento definitivo de “Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.”.

A sentença recorrida, na apreciação “das condições sócio-económico-pessoais do arguido” refere todas as anteriores condenações do arguido.

Estas condenações reportam-se a penas extintas pelo cumprimento nas seguintes datas (vd. Certificado registo criminal junto aos autos): 31/01/2002; 06/07/2005; 25/05/2004; 11/01/2005; 13/02/2006; e, 30/04/2010.

AS condenações são já muito “antigas” revelando que o arguido viveu um período mais “conturbado” durante os anos 2004    a 2006, e só passados 4 anos, em 2010, foi objecto de nova condenação.

Sem prejuízo de que à data da prolação da sentença recorrida ainda não se tinha esgotado aquele prazo, na verdade, desde 30/04/2010 até à presente data já decorreram mais de 5 anos, pelo que, as condenações referidas na sentença não devem ser levadas em consideração e, assim, não podendo ser valoradas.

Vejamos.

A documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido é uma circunstância a que o Tribunal deve atender, nos art.369.º, n.º1 do Código de Processo Penal, quando após ter decidido a questão da culpabilidade passa a decidir a questão da determinação da sanção.

Tendo a douta sentença recorrida sido proferida a 25 de Março de 2015, o regime jurídico sobre identificação criminal que então vigorava era o estabelecido pela Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, que no seu art.15.º, sob a epígrafe «Cancelamento definitivo», estabelecia, na parte aqui com interesse:

« 1 - São canceladas automaticamente, e de forma irrevogável, no registo criminal:

        b) As decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, decorridos cinco anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime; ».[6]

Da douta sentença recorrida proferida a 25 de Março de 2015  e do CRC junto de folhas 115 a 122, resulta o seguinte sobre os antecedentes criminais do arguido A... :

1) Nos autos de processo 8/01, do 2.º Juízo do T. J. Castelo Branco, por decisão datada de 30- 01-2001, transitada em julgado em 15-02-2001, por factos praticados em 11-01-2001, pela prática de crime de desobediência, o arguido foi condenado na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 1200$00. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 31/01/2002;

2) Nos autos de processo 86/02.3TBCTB, do 1 juízo do T. J. Castelo Branco, por decisão datada de 24-09-2003, transitada em julgado em 17-10-2003, por factos praticados em 18- 07-1999, pela prática de crime de ofensa á integridade física simples, o arguido foi condenado na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 6/07/2005;

3) Nos autos de processo 1/02.4TACVL, do 2 juízo do T. J. Covilhã, por decisão datada de 03-03-2004, transitada em julgado em 30-03-2004, por factos praticados em 07-04-2001, pela prática de crime de falsificação de documento, o arguido foi condenado na pena de 190 dias de multa à taxa diária de 5,00 euros. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 25/05/2004;

4) Nos autos de processo 46/02.4TAIND, do T. J. Idanha-a-Nova, por decisão datada de 12-11-2004, transitada em julgado em 29-11-2004, por factos praticados em 17-04-1998, pela prática de crime de falsificação de documento, o arguido foi condenado na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 11/02/2005;

5) Nos autos de processo 21/05.7GTCTB , do 1 Juízo do T. J. Fundão, por decisão datada de 30-11-2005, transitada em julgado em 15-12-2005 , por factos praticados em 16- 01-2005 , pela prática de crime de condução de veiculo em estado de embriagues, o arguido foi condenado na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 8,00 euros e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 13/02/2006 ;

6) Nos autos de processo 13/08.4GAPNC, do T. J. Penamacor, por decisão datada de 11-02-2009, transitada em julgado em 16-11-2009, por factos praticados em 01-02-2008, pela prática de crime de injúrias agravadas, o arguido foi condenado na pena de 130 dias de multa à taxa diária de 8,00 euros. A pena foi declarada extinta pelo pagamento em 30/04/2010.

Das condenações supra referidas resulta que nunca decorreram cinco anos sobre a extinção da pena, sem que o arguido não tenha sido novamente condenado em nova pena.

Mesmo a pena aplicada ao arguido no processo 13/08.4GAPNC, do T. J. Penamacor, só se extingui em 30/04/2010, pelo que tendo o arguido sido condenado no presente processo antes de terem decorrido 5 anos a partir desta data, bem andou o Tribunal a quo ao tomar em consideração todas as condenações do CRC do arguido.

Mais não resta, assim, que confirmar a douta decisão recorrida.

Não se reconhecendo a violação de qualquer das normas invocadas pelo recorrente nas conclusões da motivação, impõe-se negar provimento ao recurso.

 Decisão

 Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.

 Custas pelo recorrente, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                             

Coimbra, 3 de Fevereiro de 2016

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Cfr. Prof.Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências Juridicas do crime”, ed. Noticias editorial, páginas 666 a 668.   

[5]Diário da República, de 20.03.2013, I-A Série.

[6] A Lei 37/2015, de 05 de Maio, que revogou a Lei n.º 57/98, actualmente vigente, não introduziu alterações revelantes para a presente questão, ao passar a estabelecer no art.11.º, designadmente:

« 1 - As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos:

       b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;».