Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
769/09.7TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: AMEAÇA
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
SUJEITO PASSIVO
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DE COMPETÊNCIA ESPECIALIZADA CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 153º CP
Sumário: 1.- O crime de ameaça tem como elementos constitutivos:
- Que o agente ameace outra pessoa com a prática de crime do catálogo [crime contra a vida, a integridade física, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor];

- Que a ameaça seja adequada a provocar ao ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação;

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto;

2.- Trata-se de um crime comum – pode ser cometido por qualquer pessoa – de mera atividade – o preenchimento do tipo basta-se com a mera suscetibilidade de a ameaça afetar a liberdade pessoal do ameaçado, não sendo necessária a verificação do resultado isto é, que o ameaçado sinta medo ou inquietação ou fique prejudicado na sua liberdade de determinação – e de perigo abstrato – o perigo não é elemento do tipo, presumindo-se inelidivelmente a sua verificação;

3.- A ameaça é um mal futuro – de natureza pessoal ou patrimonial, que tem que constituir crime do catálogo – cuja verificação depende da vontade do agente, e que deve chegar ao conhecimento do sujeito passivo, por qualquer forma [pessoalmente, por meio de comunicação oral ou escrito, ou por interposta pessoa] ;

4.- Sujeito passivo do crime é o ameaçado, o destinatário da ameaça. O sujeito passivo do crime de ameaça não deve ser confundido com o sujeito passivo do crime ameaçado, nos casos em que não são a mesma pessoa.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I. RELATÓRIO

No 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, mediante despacho de pronúncia, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em concurso real, de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nº 2, 73º, 154º, nºs 1 e 2 e 155º, nº 1, a), todos do C. Penal, e de cinco crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do mesmo código.

Por sentença de 9 de Maio de 2012 foi o arguido condenado pela prática do imputado crime tentado de coacção agravada, na pena de um ano e dois meses de prisão, pela prática de cada um dos imputados cinco crimes de ameaça agravada, na pena de sete meses de prisão, e em cúmulo, na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período de tempo.


*


            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            “ (…).

                1ª – Requer-se a V. Exc.ªs a reapreciação da prova testemunhal produzida, através da audição integral dos depoimentos seguintes:

                - B..., assistente (sessão de 24.04.2012; das 14:49:38 às 15:19:18);

                - C...., assistente (mesma sessão; das 15:20:09 às 15:47:53 e das 15:54:03 às 16:29:48);

                - D..., testemunha (mesma sessão; das 16:30:51 às 16:33:29 e das 16:33:46 às 16:52:59);

                - E..., testemunha (mesma sessão; das 17:06:05 às 17:18:18 e das 17:21:33 às 17:40;02); 

                2ª – Uma vez que o arguido, com o presente recurso, e para além do mais que impugna, pretendia que o tribunal ad quem procedesse à reapreciação da prova gravada (e pretende ainda, obviamente), requereu (em 14.05.2012) a entrega de cópia da gravação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, para o que forneceu o competente CD.

3ª – O dito CD, já com a gravação, foi-lhe devolvido no dia (salvo erro) 18.05.2012.

4ª – Ao ouvir pela primeira vez a mencionada gravação, (que aqui se dá por reproduzida) a fim de elaborar a palie do presente recurso para a qual o conhecimento da mesma se mostrava necessário, apercebeu-se de que, a partir das declarações do assistente C..., a voz do defensor e as suas perguntas são praticamente inaudíveis.

5ª – É verdade que, por vezes, embora com grande esforço, é possível ouvir razoavelmente as perguntas do defensor, mas em muitas outras ocasiões, especialmente em relação ao mais extenso interrogatório a que submeteu a testemunha H..., as perguntas formuladas são totalmente, ou pelo menos de forma parcial e afectando decisivamente o conjunto da questão colocada, imperceptíveis na gravação.

6ª – Desconhece o defensor se, caso os seus computadores estivessem equipados com colunas de som mais potentes (porventura das usadas em concertos) as suas perguntas seriam perceptíveis, mas utilizando no máximo da capacidade sonora o equipamento de que dispõe (um portátil Toshiba e um outro computador equipado com duas colunas exteriores de marca Genius (capazes de produzir muitos decibéis), não consegue ainda assim ouvir a sua própria voz.

                7ª – Face a esta situação, necessário é concluir-se não se ter procedido à exigida documentação de tais declarações.

8ª – Ora, com a reapreciação da prova gravada, o arguido pretendia, e pretende ainda, impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto. Para tanto, a audição dos depoimentos prestados pelas ditas testemunhas seria absolutamente crucial.

9ª – Tendo em conta o exposto, está o recorrente ilegalmente impossibilitado de impugnar, como era e é sua intenção, a decisão proferida sobre a matéria de facto, vendo assim postergado o seu direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, o que, além do mais, se traduz numa violação flagrante do seu direito de defesa.

10ª – Nos termos do artigo 363º do C.P.P., «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade». A não documentação das aludidas declarações constitui uma violação legal cominada com nulidade, sendo assim inválida essa documentação, bem como a audiência de julgamento no seu todo, e ainda todos os actos subsequentes, incluindo, naturalmente, a sentença ora impugnada., nulidade esta que expressamente deduz.

11ª – Conforme o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do art. 412° do CPP «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devam ser renovadas e, Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que4 se funda a impugnação». 

12ª – E, nos termos do disposto no artigo 363° do CPP (com a alteração introduzida pela Lei n.° 48/2007, de 29-8) «As declarações prestadas oralmente em audiência são sempre documentada na acta, sob pena de nulidade», estando a forma da documentação descrita no artigo 364º.

13ª – Assim, quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua imperceptibilidade (quando esse segmento da prova for essencial ao apuramento da verdade) constitui nulidade, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no citado artigo 412º.

14ª – Sendo um funcionário judicial que procede à gravação da prova e, sendo os meios técnicos utilizados do próprio tribunal, quando um sujeito processual solicita cópia da gravação tendo em vista o recurso, confia que a gravação da prova está em perfeitas condições técnicas e que o registo magnético é totalmente perceptível.

15ª – Ainda que se entenda que uma actuação prudente implicará a verificação imediata da qualidade da gravação, afigura-se-nos que pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia das cassetes/CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da RC de 1-7-2008, de 15-4-2008 e da RP de 5-5-2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

16ª – Não sendo perceptível a gravação da prova, ficou inviabilizado o recurso do recorrente e a apreciação da prova pelo Tribunal ad quem, e consequentemente foram lesados os direitos de defesa do arguido/recorrente garantidos pelo artigo 32°, n.º 1 da CRP.

17ª – Deste modo – mas apenas subsidiariamente em relação à nulidade que culmina a deficiente fundamentação da sentença, uma vez que a referida nulidade decorrente da deficiente gravação depende de arguição e por isso estará na disposição do arguido argui-la ou não, deverá proceder a arguida nulidade decorrente da deficiente gravação da prova oral produzida e, independentemente de alguns depoimentos serem perceptíveis – conforme Acórdão de fixação de jurisprudência, de 29-10-2008, tendo o STJ decidido que "a perda da eficácia da prova ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do CPP", mostrando-se excedido o prazo de 30 dias previsto no n.º 6 do artigo 328° do CPP – deverá proceder-se a novo julgamento.

18ª – Reina, na douta sentença, e com todo o respeito por opinião contrária, a arbitrariedade e a ausência de labor lógico-racional na interpretação e conjugação crítica da prova produzida.

19ª – A fundamentação da decisão recorrida quanto à matéria de facto é, por demais, vaga e injustificada, tanto mais que não existe qualquer prova directa, mas meramente circunstancial, indirecta ou de presunções, o que impõe uma acrescida necessidade de justificar a "verdade material" encontrada pelo julgador.

20ª – A d. sentença é, por isso, nula.

21ª – A convicção de quem julga terá de obedecer ao requisito de ser recondutível a critérios objectivos e, portanto, susceptível de motivação e controle.

22ª – A apreciação da prova, maxime da prova testemunhal, não pode, obviamente, limitar-se à simples absorção das palavras ouvidas, antes devendo ser criticamente valorada de acordo, não com a mera impressão subjectiva e arbitrária gerada no espírito do julgador, mas antes fazendo uso de critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.

23ª – Ora, é exactamente essa mera impressão, arbitrária e subjectiva, que, salvo todo o devido respeito se encontra reflectida na sentença recorrida.

24ª – A análise cuidada, ponderada e atenta de toda a prova produzida, ou melhor, da escassez da prova produzida, e que é meramente circunstancial, não pode deixar de, pelo menos, causar no espírito do julgador a séria dúvida sobre a culpabilidade do arguido, In dubio pro reo.

25ª – A sentença recorrida não se socorreu (devendo-o fazer oficiosamente, se tal considerasse necessário à boa resolução da causa,) de qualquer análise, exame ou auxílio pericial.

26ª – Nos serviços de telecomunicações podem distinguir-se, fundamentalmente, três espécies ou tipologias de dados: os dados de base, os dados de tráfego e os dados de conteúdo. Os dados de base, são relativos à conexão à rede, os dados de tráfego, são os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e dados gerados pela utilização da rede, os dados de conteúdo, são os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem; A identificação completa, morada c endereço de correio electrónico, bem como o IP de criação dessa caixa de correio electrónico e o IP pelo qual foi enviada determinada mensagem, constituem dados de base, que podem ser revelados a pedido de uma autoridade judiciária.

27ª – Pois, e conforme pode ler-se em "Constituição Portuguesa Anotada" – Jorge Miranda – Rui Medeiros, Coimbra Editora, tomo I 2005 pag 356:

" … A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio "in dubio pro reo", no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o principio político-jurídico da presunção da inocência importará a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus da prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade, Se a final da produção de prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória … ".

28ª – Encontra-se incorrectamente julgado os pontos de factos considerados provados sob o nºs 3 e 8 e, consequentemente, também incorrectamente julgados os factos considerados provados sob os nºs 8.1; 8.2; 8.3; 10; 11; 12; 14 e 15, que aqui se dão por reproduzidos.

29ª – Acresce que, a prova produzida, a bem da verdade material, impõe que fossem considerados provados factos que não o foram, bem como que fossem expressamente considerados não provados outros.

30ª – Dispõem o facto provado sob o n° 3: ''Apresentando-se à data, o arguido, como sendo médico da especialidade de medicina interna, formado na Universidade de Boston, Estados Unidos da América, trabalhando em organizações humanitárias internacionais como Médicos do Mundo …", não encontra este facto provado paralelo em qualquer prova produzida em sede de audiência de julgamento.

31ª – Embora quase todos os inquiridos referiram que o arguido se lhes apresentou como médico, apenas a testemunha D..., testemunha, (sessão de 24/04/2012, das 16:30:51 às 16:33:29 e das 16:33:46 às 16:52:59) faz referência mais detalhada à forma como o arguido se apresentou, dizendo a testemunha que:

" … era uma pessoa que estaria, que se dizia, da nossa área profissional …" e depois " … era médico … ele intitulava-se como tal, tanto que lima vez foi lá ao laboratório, isto é um episódio que não tem importância nenhuma e, ele até levava uma camisa aos quadrados vermelhos e brancos … porque ele dizia-se ser medico da Cruz Vermelha".

32ª – Não foi produzida qualquer prova que demonstre que o arguido dizia ter-se formado na Universidade de Boston ou que trabalhasse para a organização Médicos do Mundo.

33ª – Por outro lado, deveriam ter sido expressamente considerados como factos não provados, e de grande relevância para a descoberta da verdade material, por total ausência de provas, os seguintes:

- O IP pelo qual foi criado o endereço electrónico K.... X....drmail.com;

- O IP pelo qual foi enviada cada uma das mensagens constantes da acusação.

34ª – E, deveriam ter sido considerados provados os factos seguintes:

- Que o arguido devolveu ao Grupo F... a quantia de € 880.000,00 e os procedimentos criminais contra si existentes foram extintos;

- Que o montante aproximado de € 1.200,000,00 em que se consubstanciou o negócio entre o arguido e o Grupo F..., bem como o nome M.... eram, à data dos factos constantes da acusação, do conhecimento de B..., C..., D..., G..., H..., I..., J..., bem como de diversos funcionários dos serviços de contabilidade e administrativos do Grupo F..., bem como de outros indivíduos (advogados, seus funcionários. entidades judiciais. entidades policiais) que tenham, por algum meio, tido conhecimento dos processos que corriam termos sobre os nºs 205/08.6JALRA e 347/09.0TALRA.

- Que, à altura dos factos constantes da acusação – Fevereiro de 2009 – o arguido se encontrava fora do país.

- Que à data dos factos havia já sido apreendido equipamento informático na casa onde habitavam o arguido e J...;

- Que o computador e a caixa de correio electrónico do assistente C... nunca foram objecto de peritagem, análise ou qualquer outra intervenção pelas autoridades ou por ordem judicial.

35ª – Tais factos resultam inequivocamente das seguintes declarações e depoimentos:

Das declarações de B... (sessão de 24.04.2012; das 14:49:38 às 15:19:18);

" …

Senhor Juiz (J) – Além de si próprio, que outras pessoas tinham conhecimento desses valores e dos contornos do negócio?

Assistente B... (AT) – Até devido à minha idade este processo foi acompanhado pelo meu genro e pela minha filha H....

J – A sua mulher e as suas filhas, sabiam disto?

AT – Sabiam do negócio, não sei se sabiam dos valores.

J – Para além dessas pessoas, da sua família, quem mais é que, na altura em que os factos aconteceram, podiam saber, ou sabiam, deste negócio, destes valores, dos pormenores?

AT – Das minhas três filhas, a H...deve ter uma ideia, é capaz de saber dos valores, a G... também creio que sim, a I... também penso que mais ou menos, também sabia.

J – Para além das pessoas da sua família, que mais pessoas podiam saber?

AT – Sabia a contabilista, sabia a senhora mais ou menos secretária deste assunto.

J – O nome M..., conhece?

AT – Eu não o conheço, mas o nome é familiar, é a pessoa que tratava dos assuntos do X....

J – A que título?

AT – Como … não sei.

J – Mais alguém conhecia este nome?

AT – Conhecia …

J – Quem mais?

AT – Eu penso que o C..., o C... conhecia de certeza, penso que a H...também conhecia, não lhe sei dizer mais.

"

36ª – Das declarações de C..., assistente (mesma sessão; das 15:20:09 às 15:47:53 e das 15:54:03 às 16:29:48);

" …

Senhor Juiz (J) – Este negócio que em tempos iniciou, a ver com essa questão da República Dominicana, o seu sogro sabia, o senhor sabia, a sua sogra sabia, a sua mulher sabia, mais alguém estava a acompanhar as conversações com vista a esse fim?

Assistente C... (AP) – Toda a família sabia.

J – E pessoas exteriores à família?

AP – Havia pessoas ligadas ao departamento financeiro e de contabilidade do Grupo que sabiam.

J – Contabilista e pessoal administrativo?

AP – Sim, sim.

J – Sabia, nesta data do envio dos e-mails, quando os recebeu, onde é que o Sr. A...se encontrava?

AP – Nesta altura o Sr. A...encontrava-se ausente. Tudo indicava que ausente do país.

J – Sabia se essa tal pessoa casada, ou não casada, ex-mulher, junta com o Sr. X..., … se tinha conhecimento dos montantes e da pessoa M...?

AP – Essa senhora também esteve envolvida, a queixa foi estendida a essa senhora, da ideia que fiquei de todo o processo a senhora saberia de algumas coisas mas não sabia dos pormenores e todos os detalhes …

J – E em relação a quantias, destes valores que temos vindo a falar, estaria a par?

AP – Ela estaria a par, porque, no fundo, de alguns valores, pelo menos aqueles …

J – Na sua perspectiva, na sua perspectiva?

AP – Algumas contas bancárias onde ela também participava, pelo que devia saber de alguns valores …

J – Já no âmbito deste processo, se (a caixa de correio electrónico do assistente) foi objecto de alguma intervenção por parte das autoridades, ou perícia pelo Ministério Público?

AP – A caixa de correio, que eu me recorde ou tenha conhecimento, não.

J – Portanto, aquilo que lhe pertence não foi mexido, não foi feita nenhuma análise?

AP – Acho que não.

J – Sabe se ao Sr. X... lhe foi apreendido o computador pessoal dele?

AP – Eu não posso responder a essa pergunta, sei que lhe foram apreendidos vários objectos …

J – Não pode porque não sabe?

AP – Entre eles computadores, mas não posso afirmar com a certeza absoluta.

J – Sabe se foi apreendido?

AP – Sei que foi apreendido diverso material informático no decorrer desse processo, na casa do arguido ou da ex-mulher do arguido, mas não posso precisar mais.

"

37ª – Do depoimento da testemunha H..., testemunha (mesma sessão; das 17:06:05 às 17:18:18 e das 17:21:33 às 17:40:02);

"

nesses e-mails ele era bastante explícito e referia-se até a uma pessoa de quem nós já tínhamos ouvido falar, um senhor M... …

"

38ª – O arguido foi condenado sem que fosse produzida qualquer prova directa, mas apenas prova indirecta, circunstancial ou indiciária.

39ª – É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva. Curso de Processo Penal. Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99. Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta – também chamada de prova "circunstancial", "de presunções", de "inferências" ou "aberta" – incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.

40ª – Da decisão, apesar de insuficientemente fundamentada, retira-se (embora com esforço) que a condenação do arguido assenta nas seguintes considerações:

A) - Que no endereço electrónico remetente das mensagens figura o nome do arguido, precedido de "dr.";

B) - Que era o arguido quem detinha exclusivo interesse na resolução do processo de burla (que seguia termos sob o nº 205/08.6JALRA);

C) - que numa mensagem anterior (datada de 07/07/2008) e proveniente do mesmo endereço electrónico, figurava um número de telefone pelo qual o assistente C... havia mantido conversações com o arguido;

D) - que aquele endereço electrónico havia anteriormente sido utilizado para conversações entre o arguido e a ofendida H....

E) - que nas mensagens de Fevereiro de 2009 figurava o nome M..., pessoa vista pelos ofendidos como alguém que tratava de assuntos do arguido;

F) - que era mencionado na mensagem de 16/02 o valor de € 1.200.000,00, exactamente o mesmo que era peticionado no processo de burla instaurado contra o arguido;

G) - que na mesma mensagem era feita referência a um automóvel de marca "Jaguar", habitualmente conduzido pelo assistente C...;

41ª – O M.m° Juiz a quo limitou-se a fazer referência a essas provas indiciárias sem, no entanto, as interrelacionar nem, tão pouco, explicitar o processo intelectual pelo qual lhe foi possível, para lá da dúvida razoável, concluir pela autoria do arguido em detrimento de qualquer outra das muitas possíveis conclusões que a conjugação daquelas provas circunstanciais permite.

42ª – Não incidindo directamente sobre o facto tema de prova exige-se um particular cuidado na sua apreciação, sendo certo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso cit., II vol., p. 100/101.

43ª – Vejamos:

A criação de um vulgar endereço electrónico (vulgo, caixa de e-mail) não está sujeita a qualquer tipo de controlo da identidade do seu criador nem dos seus utilizadores futuros. A qualquer utilizador da Internet é possível criar um endereço electrónico com referência a qualquer nome (username), fictício ou verdadeiro. O único requisito é que esse mesmo nome (ou melhor, conjunto exacto de palavras, números e/ou símbolos) não tenha sido previamente utilizado para designação de uma outra caixa e-mail. Aliás, face aos inúmeros (centenas milhares?) servidores de correio electrónico existentes (gmail.com; hotmail.com; sapos; Telepac; etc., etc.), na realidade sempre será possível criar um endereço electrónico com o nome pretendido … ou então bastará acrescentar um ponto, virgula, travessão, ou qualquer outra pequena mudança gráfica que permita criar um endereço inédito.

44ª – Quer isto dizer que, (e a título meramente exemplificativo usará o signatário deste texto o seu próprio nome), qualquer pessoa poderá criar o endereço electrónico NO...gmail.com, ou caso esse endereço já exista, bastará efectuar pequenas alterações: N.... O...mail.com; N...- O...gmail.com; então, sempre poderá procurar registar o endereço num qualquer outro servidor, N.... O...hotmail.com, N...- O...hotmail.com, … ad infinitum!

45ª – Significa isso, muito simplesmente, que o nome constante de qualquer endereço de e-mail não oferece a mínima garantia de corresponder ao nome do seu verdadeiro criador ou utilizador.

46ª – Ainda que o endereço electrónico tenha sido efectivamente criado pelo arguido, mas evidentemente sem tal conceder, não corresponde à realidade que o arguido tivesse o exclusivo interesse na desistência de queixa (ou noutra forma de extinção do processo por burla),

47ª – Nesse processo, em 05.02.2009 (factos provados nºs 4, 5, 6, e 7) o M.P. deduziu, também, acusação contra J... (já à data ex-mulher do arguido), acusada dos mesmos factos, em co-autoria com o aqui arguido. Evidente é que, também J... tinha interesse na desistência da queixa.

48ª – Aliás, quaisquer outras pessoas próximas do arguido e que lhe quisessem bem (familiares, amigos íntimos e/ou outros parceiros negociais) teriam interesse, embora em menor escala, mas ainda assim verdadeiro interesse, em evitar problemas judiciais ao arguido.

49ª – Acresce que, outra possível interpretação do conteúdo das mensagens constantes da acusação é exactamente a inversa, isto é: (partindo do pressuposto ideológico da sua autoria pertencer a outro sujeito, que não o arguido) E se as mensagens foram enviadas por alguém com a intenção de prejudicar o arguido? Alguém com interesse não na desistência de queixa mas, antes, com interesse em sujeitar o arguido a um novo processo crime? Ou, então, a oferecer ao Grupo F... (e não esquecendo que estava cm causa um valor superior a um milhão de euros) provas adicionais que suportassem aquele outro processo …

50ª – Ainda que o endereço electrónico K.... X....drgmail.com tenha sido efectivamente criado pelo arguido, mas evidentemente sem tal conceder, pelo menos dois rumos de pensamento se afiguram possíveis, para lá da tese adoptada na douta decisão recorrida;

51ª – É possível que essas anteriores mensagens (de Julho e Agosto de 2008) tenham, de facto, sido enviadas pelo arguido, mas que as mensagens de Fevereiro de 2009 tenham sido enviadas por outra pessoa;

52ª – É igualmente possível que nunca tenha existido qualquer troca de e-mails em Julho e Agosto de 2008. e/ou em Fevereiro de 2009).

53ª – Os sistemas operativos actuais (Internet Explorer; Mozilla Firefox; Safari; Google Chrome; Mac, etc …) dispõem de funções automáticas (ou semiautomáticas) de armazenamento e inserção de palavras-chave (ou passwords). Tais funções existem para comodidade dos utilizadores, evitando que, sempre que se acede a determinado local onde seja requisitada password, o utilizador tenha de inserir manualmente a palavra-chave. Logicamente, essa comodidade pode acarretar a nefasta consequência de alguém com acesso ao mesmo computador conseguir aceder a espaços privativos de um indivíduo. Para tal, nem sequer se exige a utilização totalmente despreocupada e negligente daquela função, como aconteceria no caso de ser utilizada num computador público (num cyber-café, numa escola, ou noutro computador utilizado por elevado número de pessoas). Basta que outrem (o cônjuge, o filho, o melhor amigo, a empregada doméstica, etc.) utilize o computador existente no lar do indivíduo.

54ª – Se a simplicidade desse método de acesso indevido a uma caixa postal é fácil de explicar, já as técnicas mais avançadas utilizadas por especialistas informáticos (nessa circunstância apelidados de piratas informáticos, ou hackers) o não são. Contudo, fazem já parte do léxico comum, do dia-a-dia e da compreensão do vulgar cidadão, termos como "fishing" e "vírus informáticos". Ninguém pode hoje duvidar, e para tal é desnecessária a explicação de um perito que um pirata informático (e de nível básico!) predisposto a obter acesso a qualquer tipo de local na internet, ou acesso a informação supostamente privativa, o consegue.

55ª – Ora, nos presentes autos não foi efectuada qualquer perícia informática. Não se procedeu, nem ao menos, à determinação do "IP" (Internet protocol) de envio das mensagens, ou seja, do exacto ponto de acesso à internet e número de identificação do computador utilizado para as enviar (o que, embora não permitisse concluir pela identidade do seu autor, sempre seria uma prova indiciária mais forte do que qualquer outra das levadas em consideração para a condenação do arguido. Tanto mais que o arguido, em Fevereiro de 2009 se encontrava no estrangeiro). Ou seja, as mensagens podem ter sido enviadas não só por qualquer pessoa com acesso a um computador previamente utilizado pelo arguido, como por qualquer outra pessoa (embora com conhecimentos especial sobre a relação entre o arguido e o Grupo F...) e de qualquer outro computador.

56ª – Acresce que, o computador pessoal do arguido havia sido apreendido pela Polícia Judiciária, em data anterior a Fevereiro de 2009, aliás como refere o assistente C..., pelo que também membros desse órgão policial (mesmo sem especiais conhecimentos informáticos) tinham acesso às informações e acessibilidades que o aparelho possibilitasse.

57ª – Em suma, não é de todo impossível, antes pelo contrário, que alguém obtenha acesso ao correio electrónico de um indivíduo e envie mensagens fazendo-se passar por ele. Porque existem os meios técnicos necessários para averiguar de que computador foram enviados determinados e-mails; em que local exacto se encontrava esse computador conectado à Internet; quem o titular do contrato de fornecimento desse serviço: se o computador apresenta sinais de vírus informáticos que permitissem obter, remotamente, palavras chave nele inseridas; etc … existindo esses meios técnicos, não os utilizar e ainda decidir desfavoravelmente ao arguido constitui uma violação das garantias do arguido, um atropelo injustificado ao princípio in dubio pro reo.

58ª – Mas, é igualmente possível que nunca tenha existido qualquer envio de mensagens provenientes do endereço K.... X....drgmail.com para um qualquer endereço electrónico do assistente C... (concreto endereço esse que. aliás nunca é mencionado, nem na queixa, nem durante o inquérito, e tão pouco na audiência de julgamento) e/ou para outro qualquer endereço da ofendida H....

59ª – É que, nem os computadores nem sequer os endereços electrónicos desses ofendidos foram alvo de peritagem ou exame. Em momento algum foi carreada para os autos informação segura que tais mensagens efectivamente existem! A acusação e a sentença não têm por base ficheiros electrónicos, ou sequer printscreens (na prática, fotografias digitais do ecrã de determinado computador), nem qualquer outro suporte que ofereça garantias mínimas da existência real daquelas mensagens … existem apenas os documentos de fls. 5 e 7, bem como os de fls. 320 a 327, todos eles possíveis de ser "fabricados" por qualquer pessoa.

60ª – Acolhe a d. sentença recorrida, na íntegra, a tese elaborada pelo assistente C... nas declarações que prestou em audiência, lendo-se na motivação que: "esclareceu (o assistente C...), após instado, que as referidas mensagens em causa só podem ter sido enviadas pelo arguido, uma vez que figurava o seu nome no remetente; era referenciado M... que sabia ser uma pessoa da confiança do arguido; era proposto o valor de € 1.200.000,00, que era o valor peticionado no referido processo de burla instaurado contra o arguido, no remetente das mensagens electrónicas o endereço compreendia a abreviatura "dr" que era como antes o arguido se apresentava – como médico … – era referenciado um "Jaguar" que era um automóvel usado por si e seus familiares na sua vida … confirmou que no âmbito do processo de burla despoletado pela queixa contra o arguido, este veio a restituir € 880.000,00; instado a esclarecer, referiu que apenas o arguido tinha interesse, e não qualquer outra pessoa, na retirada da queixa no processo de burla … "

61ª – Mais uma vez, fica sobremaneira patente a falta de razoabilidade lógica do processo intelectual que preside à decisão recorrida. Das declarações dos assistentes e dos depoimentos das testemunhas retira-se que o nome M... era, ainda antes de Fevereiro de 2009, do conhecimento de todos eles e ainda de várias outras pessoas (da ex-mulher do arguido, de funcionários do Grupo F..., de advogados e seus colaboradores, de funcionários judiciais, de agentes policiais), bem como o era o montante de um milhão e duzentos mil euros (até porque, a acusação no processo por burla havia já sido proferida). Inferir que tais factos apontam para que tenha sido o arguido o autor das mensagens em causa, como se esses factos fossem do seu conhecimento exclusivo e, por isso, aptos a afastar qualquer outra das hipóteses atrás explanadas para a autoria das mensagens, é perfeitamente injustificado e desprovido de lógica.

62ª – Inferência ainda mais desprovida de lógica é a que se retira da menção ao automóvel Jaguar, conduzido habitualmente e à vista de todos pelo assistente C... (e também por sua mulher), como se apenas o arguido fosse conhecedor da existência daquele veículo.

63ª – Da análise da sentença não se compreende, nem mesmo com grande esforço, quais os critérios subordinados às regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos que permitem objectivamente concluir pela tese nela expressa.

64ª – Uma certeza se pode ter: o autor das mensagens tinha conhecimento sobre factos específicos do relacionamento entre o arguido e o Grupo F....

65ª – Mas, no entanto, esses factos específicos eram do conhecimento não só do arguido como de uma multiplicidade de outras pessoas.

66ª – Não é explicado o raciocínio que afasta como igualmente possível e provável que o autor daqueles escritos tenha sido outra dessas pessoas.

67ª – Não existe motivação lógica e racional que aponte o arguido como única pessoa interessada em elaborar aqueles textos (porque, como já referido. existiam outras pessoas com interesse quer em "ajudar" o arguido, quer em ajudar-se a si próprias, quer em prejudicar o arguido).

68ª – Não existe, sequer, demonstração que os escritos que servem de base aos autos correspondam a mensagens enviadas electronicamente, ou seja, em verdadeiros e-mails.

69ª – Não existe, igualmente, demonstração que o endereço de e-mail K.... X....drgmail.com não tenha sido criado por pessoa que não o arguido; ou (mesmo que tivesse sido criado pelo arguido) que não tenha sido utilizado por outra pessoa para enviar aquelas mensagens;

70ª – Por todo o exposto, o facto considerado provado sob o nº 8, e consequentemente os factos provados sob os nºs seguintes, encontram-se incorrectamente julgados.

71ª – Aliás, ao não aflorar minimamente essas hipóteses alternativas, a d. sentença deixa demonstrado que tais hipóteses nem sequer foram equacionadas pelo julgador, o que acarreta a inevitável conclusão pela sua ilegalidade e nulidade.

72ª – "Não incidindo directamente sobre o facto tema de prova exige-se um particular cuidado na sua apreciação, sendo certo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis" – cfr. Germano Marques da Silva, Curso cit., II vol., p. 100/101.

73ª – Para que a prova indirecta, circunstancial ou indiciária possa ser valorada autonomamente deve exigir-se: uma pluralidade e factos-base ou indícios: que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com o mesmo; a racionalidade da inferência e expressão, na motivação da decisão, de como se chegou à inferência.

74ª – Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) "a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionaridade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo'' … ''não a pura convicção subjectiva … se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão … a convicção do juiz há-de ser … em todo o caso uma convicção objectivável c motivável, portanto capaz de se impor aos outros … em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável".

75ª – Ler-se na d. sentença, que "da prova produzida convenceu-se o tribunal, com segurança, consistência e certeza que foi efectivamente o arguido a remeter os mails em causa …", apenas pode significar uma de duas coisas: ou o julgador confrontado com as provas meramente circunstanciais a que faz referência as considerou como se de provas directas se tratassem e nem sequer equacionou as hipóteses alternativas possíveis; ou, apesar de ter equacionado essas hipóteses (mas sem conseguir motivar as razões pelas quais as desconsidera) não admite (com falta de honestidade intelectual – salvo o muito devido respeito) a existência de dúvidas sérias que implicariam a absolvição do arguido.

76ª – Num caso e no outro, não podendo o tribunal deixar de se pronunciar sobre essas questões, é manifesto o desacerto da decisão condenatória, que deverá ser declarada nula.

77ª – O crime de ameaça encontra-se inserido no Capítulo IV, do Título I da parte especial, do Código Penal (CP), sob a epígrafe de Crimes Contra a Liberdade Pessoal, sendo certo que tutela a liberdade individual de decisão e de acção. Pretende-se evitar os comportamentos geradores de sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo, isto é, que afectam a paz individual e, consequentemente, a liberdade de autodeterminação.

78ª – É elemento material deste tipo de crime a promessa ou anúncio de um mal futuro que configure um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, em ordem a provocar medo ou inquietação

79ª – O crime de ameaça reveste natureza autónoma, isto é, verifica-se independentemente da vontade do ameaçado/coagido, bastando que se encontre preenchido o tipo objectivo do ilícito, ou seja, a ameaça de um mal futuro, abstractamente adequada a provocar medo ou inquietação.

80ª – É necessário que esse mal futuro seja adequado a perturbar a paz de espírito de um indivíduo de capacidade média, do comum cidadão, do bom pai de família. A especial susceptibilidade sensitiva/cognitiva do recipiente dessa acção é irrelevante, assim como é irrelevante para o preenchimento do tipo legal que o ameaçado(s) tenha de facto sentido medo, inquietação ou ficado prejudicado na sua liberdade de determinação. Obviamente, não pode o legislador impor (a contrario) aos sujeitos uma conduta lícita, tipificando como ilícita uma determinada acção, exigindo que o comportamento dos sujeitos tenha em consideração a especial susceptibilidade (não cognoscível, na maioria das ocasiões) dos receptores de uma declaração ou comportamento.

81ª – São actos de execução, nos termos do art. 22°, nº2 do CP, os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; ou os que forem idóneos a produzir o resultado típico; …

82ª – Sem conceder que o autor das mensagens reproduzidas na acusação seja o arguido, analise-se, ainda assim, o teor das mesmas.

83ª – Desde logo, salvo o devido respeito por outra opinião, não se vislumbra o preenchimento do tipo objectivo desse crime na mensagem datada de 16.02.2009. Não se encontra expressa a ameaça com a prática de qualquer crime contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade sexual ou contra bens patrimoniais de considerável valor.

84ª – O que transparece dessa mensagem é o ensejo de obter um acordo extrajudicial, mediante a devolução imediata de uma determinada quantia e promessa de pagamento do restante em prestações, fazendo o autor da mensagem um apelo sentimental ao recipiente com referencia às possíveis consequências danosas que a continuação do processo criminal poderia ter para os três filhos do arguido (também filhos de J..., igualmente arguida nesse procedimento).

85ª – Igualmente, não se vislumbra a existência das circunstâncias agravantes previstas no art.155° CP. Desde logo, porque não é possível considerar que esteja expressa ou implícita no texto a ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos. Igualmente, porque não é possível considerar a existência de ameaça contra pessoa caracterizada na al. b) daquele artigo.

86ª – Acresce que, vem o arguido condenado pela prática de cinco crimes de ameaça agravada. Com todo o respeito por opinião contrária, sempre se trataria de um crime único, em que um único e inicial desígnio criminoso preside a uma única (ou sucessivas) actuação tipicamente ilícita. Não se verifica a existência de várias acções tipicamente ilícitas, subordinadas a outras tantas resoluções criminosas, mas em que a culpa por tal renovação se encontra consideravelmente diminuída, caso em que se sempre se estaria perante um crime continuado, sendo necessário, pois, que a cada conduta presidisse uma resolução autónoma. Se todas as condutas são levadas a cabo no âmbito de uma só (e mesma) resolução, está-se perante um crime único.

87ª – Quanto à medida da pena, entre outras circunstâncias de facto, considera a d. sentença recorrida a seguinte: "o grau elevado da ilicitude dos factos – a imagem global dos factos – atenta a sua forma de execução, ao contexto em que as mensagens surgiram e ao teor cru, violento e intimidativo das próprias expressões utilizadas nas mensagens acima mencionadas".

88ª – Ora, pelo já exposto, não se compreende a que teor cru, violento e intimidativo se refere o M.mo Juiz a quo, sendo manifesto que a pena de sete meses de prisão por cada um dos cinco crimes é manifestamente excessiva.

89ª – Pelos motivos expostos, a decisão recorrida viola o disposto nos art.ºs 40º; 70°; 71°; 153°; 154° e 155°, nº 1 do Código Penal, os art.ºs 127º; 363º; 364º; 374º, nº2 e 379°, todos do C. P. P e viola o disposto nos art.ºs 32º, nºs 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicável, que V. Exc.ªs Venerandos Desembargadores muito doutamente suprirão, deve a decisão recorrida ser decretada nula, e/ou substituída por decisão absolutória ou ser o julgamento anulado e reenviado o processo para novo julgamento, ou repetida a inquirição das testemunhas, a efectuar pelo Tribunal que for o competente.

Com o que farão, V. Exc.ªs, a costumada JUSTIÇA!

(…)”.


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            “ (…).

            1° A prova pessoal produzida em audiência foi gravado na aplicação informática "Habilus Media Studio" e verifica-se que as declarações prestadas por B..., C..., D..., G...e I... se encontram registadas em excelentes condições.

2° É certo que o registo da voz do defensor do arguido não beneficia da elevada qualidade sonora dos registos dos restantes sujeitos processuais e das demais pessoas ouvidas. Porém, todas as questões por ele colocadas são razoavelmente perceptíveis e, em grande parte delas, o próprio tribunal reformulou/recolocou essas questões às pessoas a quem elas se dirigiam.

3° O recorrente não identifica qualquer situação em que a menor qualidade da gravação das questões que apresentou tenha prejudicado o entendimento cabal das respostas das pessoas a quem elas se dirigiram.

                4° Assim, pese embora a deficiência técnica apontada, afigura-se-nos que a nulidade arguida pelo recorrente não se verifica.

5° No que contende com a matéria de facto, o arguido pugna para que o Tribunal ad quem analise os elementos de prova que indica e que os valore de acordo com a perspectiva da defesa acabando, na sequência dessa perspectiva, por pedir ao Tribunal ad quem para que proferira decisão que declare nula a sentença ou, se assim se não entender, que ela seja substituída por decisão absolutória ou, se assim também não se entender, que seja reenviado o processo para novo julgamento/repetição e inquirição de testemunhas.

6° Na motivação do recurso o recorrente não assaca à sentença recorrida quaisquer um dos vícios elencados nos nºs 2 e 3 do art. 410°, do CPP.

7° O recurso da matéria de facto perante o tribunal superior visa apenas a realização de uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados com base na avaliação das provas que se considera determinarem uma convicção diversa.

8° Esta limitação à apreciação da matéria de facto pelo tribunal ad quem tem a sua justificação na circunstância da valoração da prova pessoal efectuada perante o tribunal de 1ª instância ter uma enorme diferença qualitativa em relação às restantes apreciações cuja percepção da prova se confina à visualização e/ou audição das passagens que forem indicadas, não beneficiando em qualquer caso, mesmo quando sejam visualizados ou auditadas na íntegra, do contacto directo e próximo com as pessoas que prestam os depoimentos, o que é garantido pelos princípios da oralidade e da imediação na produção da prova que vigoram na 1ª instância.

9° Daí que o recurso da matéria de facto não tenha por objecto a reapreciação pelo tribunal ad quem dos elementos de prova que serviram de fundamento à decisão do tribunal a quo com vista a efectuar um novo julgamento e, consequentemente, uma nova convicção que, no fundo, é o que o recorrente pretende.

                10° Assim, não se vislumbra qualquer fundada razão para que o Tribunal ad quem dê acolhimento à convicção do arguido (avançada no presente recurso) em detrimento daquela que foi formulada pelo tribunal a quo.

11º O teor da conclusão 86º da motivação do recurso, ao afirmar que o arguido actuou sob uma única resolução, tem um teor confessório que aponta no sentido de foi ele quem praticou os factos sobre que versa o presente processo.

12° Fazendo vencimento essa sua tese, afigura-se-nos que o pedido por ele formulado, deveria ter sido no sentido de ser julgada procedente a acusação (embora em termos diferentes dos da sentença impugnada).

13° Face à gravidade objectiva dos factos, à moldura abstracta dos crimes de ameaça, ao facto do arguido ter antecedentes criminais (incluindo condenações em penas de prisão suspensas – cfr. fls. 337) e atendendo aos critérios de prevenção geral e especial aplicáveis na determinação da pena e da sua concreta medida, afigura-se-nos que a pena de 7 meses de prisão por cada um dos crimes de ameaça é ajustada às situações em apreço.

14° O Tribunal não violou os art.s 40º, 70º, 71º, 153º, 154º e 155º, nº 1, do Código Penal; os art.s 127º, 363º, 364º, 374º, nº 2, e 379º do Código Processo Penal e os art.s 32º nºs 1,2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

Pelo exposto, com os fundamentos indicados e com os demais que V. Ex.as, por forma sábia suprirão, afigura-se-nos que o recurso deve ser julgado improcedente. Porém, como sempre, V. Ex.a decidirão como for de JUSTIÇA.

(…)”.


*


Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando a motivação do Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância e concluiu pelo não provimento do recurso.


*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

           

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

            Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente – que de tão extensas, dificilmente cumprirão o fim assinalado naquela norma processual – as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

            - A nulidade decorrente da deficiente documentação de parte das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento;

            - A nulidade da sentença por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e a violação do in dubio pro reo;

            - A falta de tipicidade da conduta e a unidade de resolução criminosa;

- A excessiva medida das penas.

 


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o teor da sentença recorrida, na parte relevante. Assim:

            A) Dela constam os seguintes factos provados:

            “ (…).

            1. Nos autos de Inquérito registados sob o n.º 205/08.6JALRA a 19.09.2008, B... apresentou queixa no Departamento de Leiria da Polícia Judiciária contra o arguido.

                2. Segundo B... o arguido propôs a compra de uma farmácia e a montagem de um laboratório junto de uma clínica situada na República Dominicana, onde, supostamente era médico.

                3. Apresentando-se, à data, o arguido como sendo médico da especialidade de medicina interna, formado na Universidade de Boston, Estados Unidos da América, trabalhando em organizações humanitárias internacionais, como Médicos do Mundo e Cruz Vermelha Internacional.

4. Por requerimento junto aos autos a 22.09.2008, a participação foi também estendida, entre outros, a J....

5. Uma vez que B... anuiu ao negócio proposto pelo arguido, entregou-lhe determinados valores para efeitos da sua concretização, vindo a saber mais tarde que, afinal, o arguido não era médico.

6. Com data de 05.02.2009, o Ministério Público deduziu acusação imputando a J..., em co-autoria com o arguido, factos que integram a prática de um crime de burla qualificada e de um crime de falsificação.

7. Dos autos acima assinalados foi extraída, a 05.02.2009, uma certidão que deu lugar ao Inquérito n.º 347/09.0TALRA, no âmbito do qual o Ministério Público deduziu acusação, com data de 06.10.2009, imputando ao arguido factos que integram a prática um crime de burla qualificada e de um crime de falsificação, em co-autoria material com J....

8. Na sequência dos factos supra descritos, nas datas de 16.02, 19.02 e 27.02.2009, através do endereço electrónico K.... X....drgmail.com, com tons de seriedade, o arguido remeteu a C... as seguintes três mensagens:

8.l. mensagem enviada em 16.02.2009, às 00.21 horas: "dr. C...: em breve vocês vão saber também o que sentem 3 crianças sem pai e sem mãe, lembro que você e seu sogro também teem filhas. Estou a trabalhar no meu projecto, quero fazer um acordo, eu dei mais 400 mil euros ao M... para pagar o que o srs bem sabem. Fiquem com os 800 mil que eu depositei na conta da minha ex mulher, o restante eu pago 50 mil por ano + juros ate completar um milhão e duzentos mil euros. retirem a queixa para o bem de todos dentro de 15 dias, caso isso não acontecer mando as 4 pessoas que eu mandei ai executarem o trabalho que lhes paguei para fazer, e vocês vão lamentar profundamente, já tenho fotos da sua filha no jaguar e também de toda a família do B... bem como as moradas, basta eu dar a ordem que nessa altura vocês vão implorar. responda a este mail, so espero 15 dias para vocês retirarem a queixa, pelos meus filhos que não estou a brincar".

                8.2. mensagem enviada cm 19.02.2009, às 00.04 horas: reenvia a mensagem anterior e acrescenta a seguinte frase: "estou a agurdar sua resposta".

8.3. mensagem enviada cm 27/02/2009, às 03.01 horas: "lembro que o vosso prazo esta a acabar".

9. Mensagens estas cujo conteúdo C... deu a conhecer ao referido queixoso B... e seus familiares, a mulher D... e suas filhas, G..., H... e I....

10. O teor daquelas mensagens criou no espírito de B... e dos seus familiares acima mencionados intranquilidade, temor e receio de que o arguido, por si ou por terceiros a seu mando, executasse efectivamente as ameaças que proferiu, com as inerentes consequências para a sua vida e integridade física.

11. Os mesmos, levando a sério tais ameaças, e convictos da possibilidade de o arguido as poder vir a concretizar, passaram a condicionar a sua conduta às mesmas, evitando saídas a sós e durante a noite, furtando-se a contactos com terceiros desconhecidos e, relativamente à menor L... (filha de C... e de I...), evitando sua saída de casa, ainda que acompanhada pela ama, com prejuízo para a liberdade de todos.

12. Com aquelas mensagens o arguido pretendia, além do mais, obrigar o queixoso no supra mencionado Inquérito n.º 205/08.6JALRA, B... a retirar a queixa que havia apresentado contra si, e que deu origem aos referidos inquéritos e subsequentes acusações deduzidas pelo Ministério Público.

13. Contudo. B... não desistiu do seu desejo de procedimento criminal contra o arguido.

14. O arguido agiu consciente, livre e deliberadamente, com o propósito de obrigar B... a adoptar o comportamento por si desejado, isto é, a desistência da queixa por si apresentada e que deu origem aos Inquéritos n.º 205/08.6JALRA e n.º 347/09.0TALRA, através da prolação de ameaças com mal importante a concretizar relativamente ao então queixoso e aos membros do seu agregado familiar.

15. O arguido agiu também com o propósito de criar receio, temor e inquietação no espírito de B... bem como no espírito dos seus referidos familiares, D..., G..., H..., I... e C....

16. Contudo, B... não desistiu do seu desejo de procedimento criminal contra o arguido, tendo os referidos processos prosseguido os seus trâmites legais. 

17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei.

Apurou-se, ainda, que;

18. O arguido encontra-se actualmente desempregado e recebe ajuda de familiares; a sua mulher é advogada.

19. Foi anteriormente condenado:

19.1. No PCC n.º 35/96.6PELRA do TJ de Leiria, por tráfico e consumo de estupefacientes, praticado em 1996, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 3 anos, já declarada extinta;

11.2. No PCS n.º 168/97.1PBLRA deste Tribunal e J.º, por falsificação de documento, praticado em 1996, na pena de 150 dias de multa, já extinta pelo cumprimento;

11.3. No PCC n.º 520/06.3JALRA deste Tribunal e J.º, por extorsão tentada, roubo e sequestro, praticados em 2006, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova.

(…)”.

B) Nela não existem factos não provados.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

O arguido foi ouvido em declarações apenas quanto a sua actual situação de vida, exercendo validamente o seu direito ao silêncio quanto aos factos imputados.

B..., assistente nos autos, administrador do grupo de empresas F..., Laboratórios de Análises c marido desta, referiu em audiência, com credibilidade, sinceridade e isenção que foi informado pelo seu genro, C... (casado com a sua filha, I...) que o arguido havia enviado umas mensagens a ameaçar a sua família que lhes poderia "fazer mal", na sequência de um negócio que envolvia aquele grupo e o arguido (negócio esse que o seu genro tinha acompanhado que se reportava a um investimento envolvendo as quantias de € 800.000,00 e € 1.200.000,00 para uma clínica e uma farmácia na República Dominicana, no pressuposto – falso. como depois veio a apurar – de que o arguido era, como então se intitulava, médico) e que depois veio a constatar tratar-se de "uma burla"; esta informação que lhe foi dada criou no seu espírito que estaria, bem como a sua família, em perigo de sofrer represálias, nomeadamente sequestro, por já ter "ouvido falar" que o arguido tinha sido antes condenado por sequestro, ficando muito preocupado; percebeu que o que o arguido pretendia era que fosse retirada uma queixa por burla que antes havia apresentado em 2007 contra o arguido, o que, mesmo assim, não retirou; na sequência destes factos, a sua vida quotidiana passou a ficar condicionada, dormia mal, temendo por si e pela sua família, que também tomou conhecimento do teor das referidas mensagens, passando a controlar os movimentos à volta da sua casa; esclareceu que no âmbito do processo iniciado com a referida queixa, o arguido veio a devolver-lhe parte do dinheiro que antes lhe fora entregue nos termos do negócio havido e, nessa parte, o processo terminou em parte, por extinção da responsabilidade criminal do arguido; com respeito a um tal M... referido numa mensagem (fls. 5) referiu não conhecer mas saber que era uma pessoa que tratava de assuntos do arguido.

C..., assistente nos autos, genro do anterior, gestor de empresas do "Grupo F...", para além ele corroborar as declarações anteriores nas suas linhas gerais, com credibilidade e espontaneidade, esclareceu que este foi burlado pelo arguido, o que deu causa a uma queixa-crime contra o arguido; esclareceu que recebeu os três "mails" dos autos em Fevereiro de 2009 (fls. 5 a 7) na sua caixa postal electrónica que logo concluiu, atento o seu conteúdo, tratar-se provindos do arguido, onde leu que este o instava para que o seu sogro desistisse do processo judicial de burla que corria termos, com ameaças de algo "de mal" (raptar, sequestrar, matar) suceder contra a sua família; esclareceu, após instado, que as referidas mensagens em causa só podem ter sido enviadas pelo arguido, uma vez que figurava o seu nome no remetente; era referenciado M... que sabia ser uma pessoa da confiança do arguido; era proposto o valor de € 1.200.000,00 que era o valor peticionado no referido processo de burla instaurado contra o arguido; no remetente das mensagens electrónicas o endereço compreendia a abreviatura "dr" (vd. fls. 5) que era como antes – nos preliminares do negócio acima indicado – o arguido se apresentava – como médico – e que então acreditava sê-lo até descobrir ter sido por este "enganado" (num momento em que, no âmbito do dito negócio para compra de terreno e de uma farmácia, já o Grupo havia entregue ao arguido cerca de € 1.300.000,00); era referenciado um "jaguar" que era um automóvel usado por si e seus familiares na sua vida; deu conhecimento do teor das mensagens ao seu sogro e à sua mulher e filha, tendo a sua sogra e cunhadas tomado igualmente conhecimento, levando todos as ameaças "muito a sério" (dando conhecimento a todos para se precaverem), tanto mais que entretanto ficaram a saber que o arguido tinha estava envolvido num sequestro de uma pessoa, passando a condicionar, com os pormenores que em audiência, descreveu, a condicionar a sua vida quotidiana; confirmou que no âmbito do processo de burla despoletado pela queixa contra o arguido, este veio a restituir € 880.000,00; instado a esclarecer, referiu que apenas o arguido tinha interesse, e não qualquer outra pessoa, na retirada ela queixa no processo ele burla; precisou que os "mails" de 07 e 14.07.2008 (fls. 310-1) são anteriores à queixa apresentada por burla contra o arguido, referindo que no "mail" de 07.07.2008 (fls. 320) é indicado pelo arguido um número de telefone internacional que o mesmo usava para falar com o assistente, sendo que nas conversações telefónicas que manteve então com o arguido eram abordados o teor dos "mail’s", pelo que concluiu que as mensagens dos autos (fls. 5 a 7) só puderam ter sido enviadas pelo arguido e não por qualquer outra pessoa; instado, esclareceu que à altura das negociações que manteve com o arguido, "tem ideia" que a mulher ou ex-mulher do arguido conhecia "alguma coisa" (i.é, podia saber que o arguido estava a tratar de um negócio referente a uma clínica e uma farmácia), mas não "pormenores".

D..., farmacêutica, mulher de B... e sogra de C..., referiu conhecer o arguido por em tempos lhe ter "aparecido" no laboratório intitulando-se de "médico" – tomando-o e então nessa qualidade – e proposto um negócio, uma associação com o seu marido para abertura de uma farmácia e laboratório na República Dominicana, sendo que já conhecia a mulher do arguido ( J...) por ter sido professora e levar em tempos os alunos em visita ao seu laboratório; confirmou as declarações anteriores com credibilidade e explicou a quantia que desembolsou para o arguido e a posterior restituição por este no âmbito do processo judicial de burla; referiu ter tomado conhecimento pelo seu genro do teor das mensagens electrónicas recebidas para desistência do indicado processo, com ameaças à segurança ela sua família, como sendo emitidas pelo arguido; receou por si e pela sua família e ficou muito preocupada, alterando a sua rotina e passando a andar "mais atenta", só ficando um pouco mais apaziguada depois de ter sido ressarcida pelo arguido, embora ainda hoje sinta receio do arguido por vê-lo por vezes a rondar o seu laboratório e a "tirar notas", na Avenida Marquês de Pombal, em Leiria, facto que, pela incerteza que acarreta, a preocupa.

G..., farmacêutica, filha da anterior, referiu com isenção conhecer o arguido de apenas urna reunião que em tempos participou para tratar de um negócio de investimento (acima referido), tendo tomado conhecimento pelo cunhado C... do teor das mensagens dos autos recebidas por este, entendendo compreenderem ameaças do arguido à sua família, de que este contratava pessoas para os matar, tudo para "deixarem" o processo de burla e para os assustar, o que o arguido, de resto, conseguiu, uma vez que chegou a ausentar-se de Leiria com medo que alguma coisa de mal lhe acontecesse, alterando a sua rotina durante meses.

H..., economista, irmã da anterior, corroborou de forma espontânea as declarações e depoimentos anteriores, esclarecendo que um dos "mails", que leu, se referia a um sr. Azevedo de quem já havia ouvido falar e que se relacionava com a pessoa do arguido; referiu que já havia contactado (uma "meia dúzia de vezes") com o arguido via "mail" sendo o endereço electrónico o mesmo nas mensagens das ameaças (vd. fls. 324 a 327), precisando que apenas acedia à sua caixa de correio digital no seu local de trabalho, cujo acesso dependia de uma "password"; sustentou que inicialmente, no âmbito do negócio acima referido, tinha o arguido para si como sendo médico, sendo que o mesmo sempre se apresentava com essa qualidade; na sequência do conhecimento que teve das mensagens dos autos, deixou de sair a noite ou quando saia fazia-o acompanhada; precisou que apenas viu o arguido como o único interessado na desistência do processo de burla e não qualquer outra pessoa; instada a esclarecer a diferença nos dizeres dos "mail's" de fls. 321 c 322 entre " C..." e " C...", referiu que "tanto faz", porque é a mesma pessoa, devendo-se a diferença à mera mudança do "user", embora não entenda de informática.

I..., farmacêutica, irmã da anterior, mulher de C..., ouvida por último, corroborou as declarações e depoimentos anteriores nas suas linhas gerais, referindo com credibilidade ter tomado conhecimento do conteúdo das mensagens acima indicadas, esclarecendo o receio com que ficou, por si e pela sua família, do que o arguido lhes poderia fazer, o que a fez alterar as rotinas da sua vida diária, medo esse que ainda hoje sente por já ter visto o arguido a "rondar" o laboratório da sua mãe.

Levou-se ainda em consideração, conjugadamente com as declarações dos assistentes e das testemunhas ouvidas, acima sintetizadas, o teor dos elementos documentais constantes dos autos; o teor das mensagens de fls. 5 a 7; o teor das mensagens de fls. 320 a 327; o teor da acusação proferida contra o arguido no Proc. n.º 347/09.0TALRA de fls. 45 a 92; o teor do CRC do arguido de fls. 303 a 306 quanto aos indicados antecedentes criminais.

Importa apurar nos presentes autos se o autor das mensagens por via e-mail constantes dos autos (fls. 5 a 7) foi ou não o arguido; da prova produzida, convenceu-se o tribunal, com segurança, consistência e certeza que foi efectivamente o arguido a remeter os "mail’s'' em causa a C..., genro do ofendido B... (uma vez que este não lidava com este tipo de comunicação), visando-o bem como à sua família; com efeito, resultou de toda a produção de prova em audiência de julgamento, com meridiana clareza, que o B... havia deduzido uma queixa-crime contra o arguido (que veio a dar origem à acusação no Processo n.º 347/09.0TALRA pelos crimes de burla qualificada e falsificação de documento: vd. fls. 45 a 92) e que este, já com esse processo a correr termos, pretendia levá-lo a desistir do mesmo, como decorre da mensagem de 16.02.2009 ("retirem a queixa …": fls. 5); os assistentes e as testemunhas, todos familiares pertencentes ao "Grupo F... Laboratório de Análises", foram concordes, coerentes e credíveis ao relatar os antecedentes dos factos relacionados com um negócio acima indicado que o arguido lhes propôs, sendo que o mesmo se fez passar por médico levando o B... a desembolsar avultadas quantias em dinheiro para a sua concretização, explicando os seus pormenores, o que depois veio a apurar-se tratar-se de um estratagema do arguido, vindo a dar origem à dita participação criminal contra o arguido; foi explicado de forma isenta e credível por B... que foi informado pelo seu genro, C... (casado com a sua filha, I...) que o arguido havia enviado umas mensagens a ameaçar a sua família que lhes poderia "fazer mal", criando no seu espírito que estaria, bem como a sua família, em perigo de sofrer represálias acaso não "retirasse a queixa", sendo bem patente das mensagens de 16.02.2009, de 19.02.2009 e 27.02.2009 essa intimidação e anúncio com um mal futuro (" … retirem a queixa para o bem ele todos dentro de 15 dias, caso isso não acontecer mando as 4 pessoas que eu mandei ai executarem o trabalho que lhes paguei para fazer, e vocês vão lamentar profundamente, já tenho fotos da sua filha no jaguar e também de toda a família do B... bem como as moradas, basta eu dar a ordem e juro que nessa altura vocês vão implorar. responda a este mail, so espero l5 dias para vocês retirarem a queixa. pelos meus filhos que não estou a brincar", "estou a agendar sua resposta" e "lembro que o vosso prazo esta a acabar"); todas as pessoas ouvidas que tomaram conhecimento do teor das mensagens, por via do genro do visado, C..., ficaram muito preocupados e receosos, com a vida condicionada, como explicitaram em audiência de julgamento; os elementos de prova recolhidos (por declarações dos assistentes, corroborados pelas testemunhas e pelos documentos acima destacados), confirmam o teor dos factos descritos na acusação e na pronúncia como tendo sido praticados pelo arguido.

Com efeito, o arguido era quem havia recebido as avultadas quantias por parte dos queixosos e era quem tinha interesse na resolução do processo de burla a seu favor (pese embora a sua ex-mulher também estivesse nele acusada, circunstância que não invalida esta conclusão, já que era o arguido quem, desde o início, nos assuntos relacionados com o referido negócio na República Dominicana, contactava com o C... e com a filha do queixoso, H...); nas referidas mensagens em causa (fls. 5 a 7) figurava o nome do arguido no remetente com a indicação de "dr" (o arguido apresentou-se, de pretérito, na altura da proposta do dito negócio. perante os ofendidos, como médico, e estes viam-no como tal), sendo certo que era esse o endereço utilizado pelo arguido em comunicações via "e-mail" trocadas com a ofendida H... (vd. fls 324 a 327); surgia um tal M... numa mensagem (fls. 5) pessoa vista pelos ofendidos corno alguém que tratava de assuntos do arguido; na mensagem de 16.02.2009 era proposto o valor de € 1.200.000,00 que era o valor peticionado no referido processo de burla instaurado contra o arguido, como sendo a quantia que o arguido se dispunha a devolver em troca do "acordo" para desistência do processo; na mesma mensagem era referenciado um "jaguar", automóvel usado por C... e sua família na sua vida quotidiana, como pelo mesmo foi referido em audiência; também foi explicitado em audiência que no "mail" de 07.07.2008 (fls. 320) é indicado pelo arguido um número de telefone internacional que o mesmo usava para falar com o assistente C..., sendo que nas conversações telefónicas que manteve então com o arguido eram abordados o teor dos "mail’s'', tudo elementos de facto objectivos, lógicos e credíveis que convenceram o tribunal que foi o arguido quem enviou as mensagens ajuizadas nos autos, tentando forçar o B... a desistir do processo que prejudicava o arguido, mediante ameaças claras de atentar contra a vida de familiares do mesmo como, sem esforço, se alcança da leitura de tais mensagens, nomeadamente a de 16.02.2009 (vd. fls. 5), razões por que o tribunal julgou como provados os factos descritos na acusação.

(…)”.

D) E a seguinte fundamentação de direito quanto à medida das penas:

“ (…).

 O crime de ameaça agravada é punido com pena de prisão de um mês até dois anos ou com pena de multa de 10 até 240 dias (art.ºs 41º-1. 47º-1, 153°-1 e 155°-1-a) do CP).

O crime de coacção agravada, na forma tentada, é punido com pena de prisão de um até cinco, sendo certo que opera uma atenuação especial na moldura penal abstracta, de modo que o limite máximo da pena – 5 anos – é reduzido de 1/3, ou seja, passa a ser de 3 anos e 3 meses e o limite mínimo passa a ser de um mês (art.ºs 154º-1 e 155º-1-a), 23º-1-2 e 73º-1-a)-b) do CP).

Na determinação da medida concreta da pena importa desenvolver três operações: primeira, atenta-se na moldura penal abstracta que ao caso é aplicável; segunda, determina-se concretamente a pena, o quantum de pena dentro daquela moldura; terceira, escolhe-se a pena (cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime (…), p. 198 e s.).

Por seu turno, refere o art.º 70º do CP que "se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente os finalidades da punição", sendo estas como decorre do art.º 40º do mesmo diploma, "a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente sociedade". 

São, pois, exigências de prevenção especial – positiva ou de socialização – e de prevenção geral – positiva ou de integração enquanto estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na vigência da norma violada – que a lei tem em vista.

O arguido tem já averbado ao seu CRC três condenações anteriores por tráfico e consumo de estupefacientes, falsificação de documento, extorsão, roubo e sequestro, praticados em 1996 e 2006, tendo sido condenado em penas de multa e de prisão suspensa, pelo que se nos afigura que a pena de multa, ou outra que não a de prisão, se mostra desadequada, em face da gravidade dos factos em apreciação nestes autos e em face dos antecedentes criminais, pese embora a lei mande dar preferência à aplicação de pena não detentiva (art.º 70º do CP), de acordo com as finalidades da punição: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art.º 40° do CP).  

Quanto à determinação do quantum concreto da pena, há que lançar mão dos critérios fornecidos pelo legislador no art.º 71º-1 do CP, a qual "(…) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção".

Importa considerar então, as seguintes circunstâncias de facto para determinar o quantum de pena, acima referido:

- os indicados antecedentes criminais; 

- o dolo directo e intenso aquando da prática dos factos que animou a actuação do arguido (art.º 14º-1 do CP);

- o grau elevado da ilicitude dos factos – a imagem global dos factos –, atenta a sua forma de execução, ao contexto em que as mensagens surgiram e ao teor cru, violento e intimidativo das próprias expressões utilizadas nas mensagens, acima mencionados;

- à circunstância de, entretanto, o arguido ter restituído parte das quantias em causa no processo de burla qualificada e de falsificação de documento n.º 347/09.0TALRA, gerando, em parte, extinção do procedimento criminal e algum apaziguamento no espírito dos ofendidos, o que reduz e mitiga, a um grau mais moderado o desvalor do resultado da conduta;

- a actual situação de vida do arguido casado recentemente, integrado na comunidade loca1;  

- as necessidades de prevenção geral positiva de reafirmação contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, quanto a este tipo de crimes, por um lado;

- as necessidades de prevenção especial, ligadas à reinserção social do arguido.

Nesta medida, entende-se adequado condenar o arguido nas seguintes penas concretas:

- na pena de 1 ano e 2 meses de prisão com respeito ao imputado crime de coacção agravada;

- na pena de 7 meses por cada um dos cinco crimes de ameaça agravada.

Importa agora encontrar a pena do concurso, aplicando o sistema da pena única conjunta, na modalidade do cúmulo jurídico.

Com efeito, há que considerar, em conjunto, na medida da pena, os factos e a personalidade do arguido, tendo a pena como limite máximo a soma das penas parcelares, com o limite máximo de 25 anos, e como limite mínimo a pena concreta mais elevada (art.ºs 30º-1 e 77º-1-2 do CP).

Será, pois, dentro da moldura abstracta que se encontra, isto é, entre 1 ano e 2 meses e 4 anos e 1 mês de prisão, que terá de encontrar-se a pena concreta do concurso.

Assim, tendo em conta os factores enunciados, afigura-se adequado e equilibrado condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

(…)”.


*

*


Da nulidade decorrente da deficiente documentação de parte das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento

1. Alega o arguido que o registo das instâncias efectuadas pelo seu Ilustre Defensor, a partir das declarações do assistente C... são praticamente inaudíveis, particularmente no que respeita ao depoimento, mais extenso, da testemunha H..., no qual a imperceptibilidade, total ou parcial, da pergunta afecta o entendimento global da questão colocada, não se tendo, por isso, procedido à exigível documentação das declarações, o que impede a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto com violação do seu direito de defesa, constitucionalmente garantido no art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser reconhecida a nulidade cometida e, mostrando-se excedido o prazo previsto no art. 328º do C. Processo Penal, deve ordenar-se a realização de novo julgamento.   

Vejamos se lhe assiste razão.

Dispõe o art. 363º do C. Processo Penal que, as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade. Em regra, esta documentação é feita através da gravação magnetofónica ou audiovisual das declarações prestadas (art. 364º, nº 1 do C. Processo Penal).

No âmbito dos recursos, a documentação de declarações orais prestadas na audiência de julgamento assume um papel fundamental na impugnação ampla da matéria de facto regulada, essencialmente, no artigo 412º do C. Processo Penal. Com efeito, não só o recorrente está onerado, além do mais, com a especificação das concretas provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, especificação que, no caso de provas gravadas – como é o caso da prova por declarações prestadas na audiência – é feita pela indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nºs 3, b) e 4, do C. Processo Penal), como é também através da documentação das declarações orais, designadamente, das concretas passagens indicadas pelo recorrente, que o tribunal ad quem afere a bondade da decisão de facto recorrida (art. 412º, nºs 4 e 6 do C. Processo Penal).

            Quando a audiência de julgamento decorre com omissão da documentação das declarações nela prestadas ocorre nulidade, já que é este o vício expressamente cominado pela lei. Trata-se de nulidade dependente de arguição ou sanável, pois não consta do elenco do art. 119º do C. Processo Penal e a lei não a comina como insanável.

            Situações há, no entanto, e que são de longe as mais frequentes, em que, tendo sido efectuada a documentação – isto é, tendo-se realizado as operações materiais de registo das declarações –, foi-o em termos tão deficientes – seja em relação a todas as declarações, seja em relação a alguma das declarações ou mesmo, a parte delas – designadamente, por mau funcionamento do equipamento de gravação ou incorrecta utilização do mesmo, que não é possível entender o sentido das declarações prestadas. Estes casos devem ser equiparados à situação de omissão de documentação pois também aqui pode ficar prejudicada a impugnação ampla da matéria de facto e o seu conhecimento pelo tribunal ad quem, devendo ter-se por verificada a nulidade referida (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2007, pág. 906 e Ac. do STJ de 24 de Fevereiro de 2010, proc. nº 628/07.8S5LSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt).

Situação diversa é já aquela em que, existindo deficiências na gravação, elas não são, contudo, impeditivas da apreensão do sentido das declarações gravadas. Aqui, existe apenas uma irregularidade processual, a ser apreciada nos termos do art. 123º do C. Processo Penal.

A questão suscitada pelo arguido apresenta a particularidade de não referir a deficiência da gravação a declarações prestadas por si, por assistente, ou por testemunha, mas antes, às instâncias feitas pelo seu Ilustre Defensor a uma testemunha e que afectaria o entendimento global da questão que a instância encerrava.

Para apreciar o estado da documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, procedemos à audição do CD que acompanha os autos relativamente a arguido, assistentes e testemunhas, e concluímos que não existe qualquer deficiência na gravação que impossibilite o entendimento das instâncias feitas e das respostas dadas e isto, no que respeita a todos os intervenientes processuais referidos.

Concretamente, quanto ao depoimento da testemunha H..., que o arguido particulariza, são perfeitamente audíveis as declarações da testemunha, e são também entendíveis, sem dificuldade de maior e portanto, sem necessidade de recurso a equipamento mais ou menos sofisticado, as instâncias efectuadas pelo Ilustre Defensor, embora se reconheça quanto a elas, uma menor qualidade de gravação [em síntese, e para que dúvidas não subsistam, instou a testemunha, sobre as suas funções e as do cunhado no grupo empresarial onde trabalham, sobre a eventual existência de outras pessoas que, apenas para ajudarem o arguido, pudessem ter enviado os mail´s em questão, sobre se os mail´s foram ou não juntos, como meio de prova, noutros processos, sobre o cabeçalho dos mail´s que a testemunha apresentou em audiência e foram juntos aos autos, e sobre a divergência existente quanto ao nome – C... e C... – nos mail´s que o assistente C... apresentou em audiência e foram juntos aos autos].  

Em conclusão, não existindo falta de documentação de declarações orais prestadas na audiência de julgamento, nem tendo ocorrido deficiência na respectiva gravação que àquela deva ser equiparada, não se verifica, in casu, a nulidade prevista no art. 363º do C. Processo Penal – pelo que, também se não verifica, por via dela, a violação do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa –, nem se mostra por isso, viável, a possibilidade de ser excedido o prazo previsto no art. 328º, nº 6 daquele mesmo código.

Improcede pois, a invocada nulidade.


*

            Da nulidade da sentença [falta de fundamentação e omissão de pronúncia]

            2. Alega o arguido que a fundamentação da sentença quanto à matéria de facto é vaga, arbitrária e subjectiva quando, dada a ausência de prova directa da prática dos factos, se impunha uma acrescida necessidade de justificação da «verdade» encontrada pelo julgador, não tendo, no entanto, sido lançada mão de exame ou perícia informática, nem tendo o Mmo. Juiz a quo explicado o processo intelectual seguido para, ultrapassada qualquer dúvida razoável, concluir pela sua autoria, e conclui, face à insuficiência de fundamentação, pela nulidade da sentença.

            Vejamos se assim é.

            2.1. O dever de fundamentação das decisões judiciais encontra-se previsto no art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

Este dever reflecte-se no processo penal, nos arts. 97º, 194º e 374º, do C. Processo Penal. O princípio geral encontra-se no nº 5 do art. 97º, que dispõe que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. O art. 194º, nº 5 rege especificamente para o despacho que aplica medida de coacção ou de garantia patrimonial, e visando a sentença dispõe o art. 374º, nº 2: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.

É este último preceito que releva para a questão de que cuidamos pelo que, nele vamos atentar de forma mais demorada.

A fundamentação da sentença integra dois segmentos:

- A enumeração dos factos provados e não provados; e,

- A exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, que inclui a indicação e o exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.

A enumeração dos factos provados e dos factos não provados consiste simplesmente na narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base, os que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda os factos provados que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa. É ela que permite verificar se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.

A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve, de modo completo e conciso, conter a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, entendendo-se por esta, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros. A exposição dos motivos de direito consiste, brevitatis causa, na determinação do direito aplicável aos factos e na sua aplicação ao caso concreto. 

A fundamentação é uma exigência de transparência da sentença que proporciona o auto-controlo de quem a proferiu, permite aos destinatários directos e à comunidade, compreender os juízos de valor e de apreciação nela levados a cabo, e abre caminho ao controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, quanto à validade da prova e à impugnação da matéria de facto.

Para terminar, uma referência breve ao regime especial de nulidades da sentença, previsto no art. 379º, do C. Processo Penal.

Nos termos deste preceito, a sentença é nula quando não contenha as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art. 374º, o que vale dizer que é nula, além do mais, quando falte a fundamentação.

A sentença é também nula quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358º e 359º, e quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar – omissão de pronúncia – ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – excesso de pronúncia.

Posto isto.

2.2. A sentença em crise contém a enumeração dos factos provados. Por outro lado, não contém a dos factos não provados, apenas porque foi entendido que estes não existiam.

Na supra transcrita motivação de facto, o Mmo. Juiz a quo indicou a prova por declarações – arguido [apenas quanto às condições económicas e familiares], assistentes B... e C... e testemunhas D..., G..., H... e I... – e a prova documental – as mensagens de fls. 5 a 7 e 320 a 327, a acusação proferida no processo nº 347/09.0TALRA de fls. 45 a 92 e o CRC de fls. 303 a 306 –, que serviram para fundar a sua convicção.

Também da referida motivação de facto consta a análise crítica destas provas pois aí o Mmo. Juiz a quo explicou, com clareza, o raciocínio que seguiu para concluir que as mensagens por via e-mail de fls. 5 a 7 dos autos eram da autoria e provenientes do arguido. Em primeiro lugar, com base nas declarações dos assistentes B... e C... e nos depoimentos das testemunhas D..., G..., H... e I..., todos familiares próximos e detentores de um grupo empresarial tendo por objecto laboratórios de análises clínicas, que considerou concordantes, coerentes e credíveis, deu como assente o negócio de investimento proposto pelo arguido, que se fazia passar por médico, e que determinou o primeiro assistente a entregar-lhe avultadas somas monetárias, a queixa depois apresentada pelo mesmo assistente contra o arguido que deu origem a processo criminal onde, agora conjugados com o documento de fls. 45 a 92, foi deduzida acusação contra o arguido. Em segundo lugar, com base nas mesmas declarações e depoimentos, e pelas mesmas razões, conjugados com os documentos de fls. 5 a 7, deu como assente que o assistente C... recebeu na sua caixa de correio electrónico as três mensagens, cujos textos considerou conterem, o primeiro, directamente, e os demais, por remissão, a ameaça de mal para toda a família, caso o primeiro assistente não retirasse a queixa que havia apresentado contra o arguido. Em terceiro lugar, tendo considerado que a mensagem via e-mail de fls. 5 continha referências a particulares aspectos do negócio que veio a estar na origem da participação crime feita pelo primeiro assistente, tendo considerado que havia sido o arguido o interveniente nas negociações com o assistente C... e a testemunha H... e por isso era o interessado, mas não o único, na resolução do processo crime por burla a seu favor, tendo considerado que as mensagens via e-mail de fls. 5 a 7 têm como remetente o nome pelo qual conheciam o arguido e como endereço electrónico do remetente, precisamente o mesmo endereço das mensagens via e-mail de fls. 323 enviadas, cerca de meio ano antes daquelas, para o assistente C..., tendo considerado que as mensagens via e-mail de 324 a 327 foram enviadas pela testemunha H... – também cerca de meio ano antes das de fls. 5 a 7 – para o endereço electrónico do remetente das mensagens e-mail de fls. 5 a 7, e tendo conjugado estes elementos extraídos dos documentos referidos, com as declarações do assistente C... quanto a ter contactado o arguido através do telemóvel referido na mensagem via e-mail de fls. 320 e de nas conversas mantidas fazerem referência ao teor dos e-mail´s trocados, concluiu que as mensagens de fls. 5 a 7, visando a desistência da queixa do processo de burla através da formulação de ameaças aos membros da família, tinham sido enviadas pelo arguido.

Mostra-se pois feita na motivação de facto a correlação entre os factos e os meios de prova que os sustentam e a demonstração, em função da valoração feita destes meios de prova, da razoabilidade da decisão de facto isto é, da razoabilidade de terem sido considerados provados os factos que o foram, e não quaisquer outros. E que o arguido entendeu perfeitamente o raciocínio exposto pelo Mmo. Juiz a quo com base no qual foi alcançada a sua convicção quanto à decisão de facto proferida resulta, de forma evidente, do teor da conclusão 40ª do recurso.

Na verdade, invocando a nulidade da sentença mas sem que nada tenha a ver com a falta ou insuficiência da fundamentação, o que o arguido faz é divergir do modo como o tribunal a quo apreciou e valorou os meios de prova e das conclusões que extraiu dessa valoração quanto à decisão da matéria de facto designadamente, por inobservância do princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º, do C. Processo Penal, questão que conheceremos mais adiante.

Em conclusão do que antecede, a sentença recorrida não enferma da nulidade por falta de fundamentação, prevista no art. 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal.

3. Alega o arguido, nas conclusões 75ª e 76ª que o julgador, confrontado com as provas circunstanciais a que faz referência, não considerou as hipóteses alternativas possíveis – a possibilidade de ter sido outra pessoa, igualmente com interesse na desistência da queixa do outro processo, ou apenas um familiar, amigo íntimo ou parceiro de negócios que o quisesse ajudar, a enviar as mensagens, a possibilidade de as mensagens terem sido enviadas por alguém interessado em prejudicar o arguido através da criação de um novo processo, ou de fornecer aos assistentes provas adicionais para o processo crime já existente, e a possibilidade de nunca ter existido troca de e-mail´s e mensagens, quer em Julho e Agosto de 2008 [as juntas em audiência] quer Fevereiro de 2009 – ou, tendo-o feito, não admitiu, com falta de honestidade intelectual, a existência de dúvidas sérias determinantes da sua absolvição, tendo por isso deixado de se pronunciar sobre estas questões, com manifesto desacerto da decisão condenatória que, por isso, deverá ser declarada nula.

Nesta alegação, parece ser pretensão do arguido a existência de omissão de pronúncia na sentença, mas desde já se adianta que a sindicada decisão não enferma desta nulidade. Explicando

A sentença é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal, quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar – omissão de pronúncia – ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – excesso de pronúncia.

Portanto, e na parte em que agora releva, se a sentença não conheceu, portanto, ignorou, um aspecto sobre o qual se deveria ter pronunciado, há omissão de pronúncia. Mas o aspecto omitido terá sempre que ter por objecto uma concreta questão, de facto ou de direito, que integre o objecto do processo, suscitada por qualquer interveniente processual ou de conhecimento oficioso, não tendo o tribunal, por conseguinte, que se pronunciar sobre meros argumentos, razões ou hipóteses sustentadas com vista à sua demonstração. Ora, o que o arguido critica ao Mmo. Juiz a quo, e de uma forma desnecessariamente deselegante, para outra coisa não dizer, é ter sido omitida pronúncia sobre uma possibilidade, uma hipótese de raciocínio, criada por si, arguido, para demonstrar a dúvida que deveria ter determinado a decisão de facto. Sucede que, no campo das possibilidades, muitas outras, para além das alinhadas por si, poderiam ter sido equacionadas, neste processo, como em qualquer outro processo, não se podendo esquecer nunca que a prova, numa das acepções possíveis, consiste precisamente na passagem do estado de provável ou possível, ao estado de provado.    

Aliás, apesar a invocada omissão de pronúncia, o que também aqui o arguido verdadeiramente faz é dissentir da forma de valoração da prova feita pelo tribunal recorrido e da decisão da matéria de facto que, com base nela, proferiu.

Em conclusão do que antecede, a sentença recorrida não enferma da nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 379º, nº 1, c), do C. Processo Penal.


*

            Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e da violação do in dubio pro reo

            4. Alega o arguido se encontram incorrectamente julgados os factos 3 [conclusões 28ª e 30ª a 32ª], 8, 8.1 a 8.3., 10 a 12, 14 e 15 [conclusões 28ª, 38ª, 40ª, 43ª a 61ª, 64ª, 65ª, 67ª, 68ª, 69ª e 70ª] dos factos provados da sentença, que deveriam ter sido considerados provados, em síntese [conclusões 34ª a 37ª] a) que o arguido devolveu € 880.000 ao Grupo F..., b) que o montante do negócio que envolveu o arguido e o Grupo F..., de cerca de € 1.200.000, bem como o nome M..., eram em Fevereiro de 2009, conhecidos dos assistentes, das testemunhas, de J..., de contabilistas e administrativos do Grupo, de advogados, funcionários destes, entidades judiciais e entidades policiais que, por qualquer meio, tiveram conhecimento dos processos nº 205/08.6JALRA e nº 347/09.0TALRA, c) que em Fevereiro de 2009 o arguido se encontrava fora do país, d) que em Fevereiro de 2009 havia já sido apreendido equipamento informático na casa onde o arguido e J... habitavam, d) que o computador e a caixa de correio electrónico do assistente C... não foram objecto de peritagem, análise ou outra intervenção por autoridades judiciárias, e que deveriam ter sido considerados como não provados [conclusão 33ª] i) o IP pelo qual foi criado o endereço electrónico K.... X....drgmail.com, ii) o IP pelo qual foi enviada cada uma das mensagens constantes da acusação.

            Como concretas provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo, indica o arguido as declarações dos assistentes B... e C... e os depoimentos das testemunhas D..., H..., tendo feito a especificação das concretas passagens em que funda a impugnação, embora tenha começado por requerer a audição integral, pelo tribunal ad quem, de tais declarações e depoimentos.

            Cumpridos que estão os ónus de especificação exigidos pelo art. 412º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal, nada impede o conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo arguido, com os limites decorrentes da forma como foram tais ónus observados, como adiante melhor se explicará.

            4.1. O arguido impugna o facto provado 3, alegando que se quase todos os inquiridos referiram que se lhes apresentou como médico, apenas a testemunha D..., para além disso, afirmou que também dizia ser médico da Cruz Vermelha, razão pela qual não foi produzida prova de que se tivesse formado na Universidade de Boston e trabalhasse para a organização Médicos do Mundo.

            O ponto 3 dos factos provados tem o seguinte teor, «Apresentando-se, à data, o arguido como sendo médico da especialidade de medicina interna, formado na Universidade de Boston, Estados Unidos da América, trabalhando em organizações humanitárias internacionais como Médicos do Mundo e Cruz Vermelha Internacional», que corresponde, com muito ligeiras diferenças de redacção, ao artigo 3º da acusação, e como tal integralmente recebido no despacho de pronúncia de fls. 253 a 271.

            Apesar de a impugnação ampla da matéria de facto não constituir um novo julgamento feito pela 2ª instância, pois apenas visa remediar os eventuais erros de procedimento ou de julgamento ocorridos, não pressupondo, por isso, a audição pelo tribunal de recurso da integralidade do registo da prova por declarações, certo é que, in casu, e face à arguição da nulidade decorrente da falta de documentação, supra conhecida, este tribunal de recurso ouviu o registo integral das declarações do arguido [apenas relativas à situação económica e familiar] e dos assistentes e dos depoimentos das testemunhas. 

            E razão assiste, nesta parte, ao arguido, independentemente do relevo que se possa atribuir aos segmentos impugnados.

Com efeito, o assistente B... afirmou que o arguido dizia trabalhar como médico na República Dominicana, o assistente C... afirmou que o arguido se apresentava como médico e era por todos tratado como Dr. X..., a testemunha D... afirmou que o arguido dizia ser da área da depoente [análises clínicas], intitulava-se médico e para a depoente era-o, e disse ser médico da Cruz Vermelha, a testemunha H... afirmou estar convencida de que o arguido era médico e a testemunha I... afirmou que o arguido dizia ser médico. Por outro lado, não existe nos autos qualquer outro tipo de prova, designadamente, prova documental, que demonstre ter o arguido invocado a qualidade de colaborador dos Médicos do Mundo ou de ser diplomado por uma universidade de Boston. A tudo isto acresce que também não se mostra provado que o arguido invocasse a especialidade de medicina interna.     

Assim, o ponto 3 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

- Apresentando-se, à data, o arguido como sendo médico, trabalhando para a Cruz Vermelha Internacional.

E é aditado o ponto que segue aos factos não provados:

- O arguido invocava a especialidade de medicina interna e dizia trabalhar para a organização humanitária internacional Médicos do Mundo.

4.2. O arguido impugna os pontos 8, 8.1., 8.2., e 8.3., dos factos provados, cujo teor é:

- [8] Na sequência dos factos supra descritos, nas datas de 16.02, 19.02 e 27.02.2009, através do endereço electrónico K.... X....drgmail.com, com tons de seriedade, o arguido remeteu a C... as seguintes três mensagens;

- [8.l] mensagem enviada em 16.02.2009, às 00.21 horas: "dr. C...: em breve vocês vão saber também o que sentem 3 crianças sem pai e sem mãe, lembro que você e seu sogro também teem filhas. Estou a trabalhar no meu projecto, quero fazer um acordo, eu dei mais 400 mil euros ao M... para pagar o que o srs bem sabem. Fiquem com os 800 mil que eu depositei na conta da minha ex mulher, o restante eu pago 50 mil por ano + juros ate completar um milhão e duzentos mil euros. retirem a queixa para o bem de todos dentro de 15 dias, caso isso não acontecer mando as 4 pessoas que eu mandei ai executarem o trabalho que lhes paguei para fazer, e vocês vão lamentar profundamente, já tenho fotos da sua filha no jaguar e também de toda a família do B... bem como as moradas, basta eu dar a ordem que nessa altura vocês vão implorar. responda a este mail, so espero 15 dias para vocês retirarem a queixa, pelos meus filhos que não estou a brincar";

            - [8.2] mensagem enviada cm 19.02.2009, às 00.04 horas: reenvia a mensagem anterior e acrescenta a seguinte frase: "estou a agurdar sua resposta";

- [8.3] mensagem enviada cm 27/02/2009, às 03.01 horas: "lembro que o vosso prazo esta a acabar".

Apesar de impugnar estes pontos de facto, o arguido não indicou as concretas provas que, relativamente aos mesmos, imporiam decisão diversa da recorrida. Pelo contrário, deduziu vasta argumentação, discordando da forma como o tribunal a quo analisou e valorou a prova à luz do princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º, do C. Processo Penal. Desta forma, inviabilizou nesta parte, o conhecimento do recurso da matéria de facto. Ainda assim, algumas considerações se impõem.

4.2.1. O princípio da livre apreciação da prova – assim concretizado no art. 127º, do C. processo penal, «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» – deve nortear o tribunal na busca da verdade material, onde a livre convicção não pode, como bem diz o recorrente, significar arbítrio ou decisão irracional. O julgador não pode valorar a prova de acordo com o humor do momento, determinado por um convencimento exclusivamente subjectivo. Bem pelo contrário, na valoração da prova exige-se-lhe uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, na percepção da personalidade dos depoentes, e na dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo, tudo para que dela resulte uma convicção objectivável e motivável, únicas características que permitem à decisão impor-se dentro e fora do processo.

A questão fundamental do objecto do processo é a autoria das três mensagens de correio electrónico constantes dos factos impugnados e a autoria do respectivo envio para o assistente C..., autoria que, nestes factos, é atribuída ao arguido.  

Este critica a decisão proferida sobre a matéria de facto nesta parte, alegando que assenta exclusivamente em prova indirecta ou circunstancial e presunções, tendo-se o Mmo Juiz a quo limitado a referir tais provas, sem as relacionar e sem explicitar o processo intelectual seguido para chegar à sua autoria [já vimos que não existe razão para esta última crítica pois mostra-se feito o exame crítico das provas].

É verdade que alguns meios de prova de que se socorreu o Mmo. Juiz a quo para fundar a sua convicção e, consequentemente, para justificar a decisão, se traduzem em provas indirectas. Com efeito, o arguido exerceu o direito ao silêncio e portanto, nada confessou. Por outro lado, nenhum dos assistentes e nenhuma das testemunhas prestou declarações no sentido de o ter visto a elaborar e enviar as mensagens em questão.

Porém, nada obsta a que a prova indirecta – a que se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, 3ª Edição, pág. 100) – possa fundar a convicção do julgador, bastando para tanto que, feita a prova do indício, seja adequadamente formulado o juízo dedutivo entre este, já provado, e o facto probando.

Aqui chegados, atentemos então, com a brevidade que se impõe, nos argumentos avançados pelo recorrente.

4.2.2. Relativamente ao endereço electrónico K.... X....drgmail.com que, nos termos da acusação e decisão instrutória, remeteu as mensagens, é exacta a afirmação do arguido de que na criação de um endereço electrónico não é controlada a identidade do respectivo criador pelo que este pode dar-lhe o username que bem entender, desde que não exista já outro igual no mesmo serviço. Por isso, a circunstância de o endereço remetente das mensagens ser composto pelos dois apelidos – K... e X... – que o arguido então tinha [actualmente, tem ainda o apelido A..., por via do casamento, como explicou em audiência] e de dele fazer parte a sigla dr, quando o arguido – de acordo com as declarações concordantes de assistentes e testemunhas, se intitulava médico – não constitui, por si só, prova de ter sido ele a criá-lo. E é também verdade que basta uma modificação mínima, v.g. acrescentamento de um ponto ou transformação de uma maiúscula numa minúscula, num endereço electrónico, para que passem a existir dois endereços quase idênticos. Mas o que nenhum serviço de e-mail admite é a criação de dois endereços exactamente iguais.

Acontece que não foi apenas com base na existência do endereço K.... X....drgmail.com e da sua semelhança com o nome do arguido que o tribunal recorrido considerou provada a autoria deste. Com efeito, o tribunal credibilizou as declarações do assistente C..., que descreveu o negócio proposto pelo arguido ao grupo empresarial da sua família, a efectivar na República Dominicana, afirmou ter recebido na caixa do seu correio electrónico, meses antes, quando ainda decorriam as negociações tendentes à concretização do investimento e portanto, quando ainda não existia qualquer conflito e muito menos, queixa no Ministério Público, mensagens provenientes daquele mesmo endereço electrónico – juntas aos autos em audiência – que se referiam a questões a resolver no âmbito do referido investimento e constando de uma delas um número de telefone, e afirmou ter contactado com o arguido através desse telefone, sendo pressupostos nas conversas mantidas entre ambos os conteúdos de tais mensagens, e credibilizou o depoimento da testemunha H... que afirmou ter enviado, também meses antes, para o endereço electrónico K.... X....drgmail.com mensagens – também juntas em audiência – e que nos contactos presenciais que teve com o arguido eram referidos os conteúdos das mensagens electrónicas trocadas entre aquele endereço e o endereço da testemunha.

É certo que não foi feito nos autos exame pericial ou de outra natureza, a qualquer computador tido por pertencente ao arguido, nem aos computadores do assistente C... e da testemunha H.... Tal diligência de prova não foi considerada necessária para a descoberta da verdade pelo Mmo. Juiz a quo uma vez que a não determinou, mas também o arguido assim o entendeu, pois nada requereu quanto a ela. No entanto, a prova da existência das mensagens e da sua origem pode ser feita por qualquer meio e não, necessariamente, através de prova pericial. Concedendo, por hipótese de raciocínio, e no seguimento do alegado pelo arguido, que o computador que era por si utilizado, nas datas que constam das mensagens de fls. 5 a 7, se encontrava apreendido à ordem de outro processo, é evidente que qualquer exame ao mesmo feito só poderia revelar que as mensagens não foram enviadas através dele, mas já não poderia concluir-se que não tinha sido o arguido o autor e o remetente das mensagens, pois que elas poderiam ter sido enviadas por meio de qualquer outro computador, usando para o efeito o referido endereço electrónico como remetente, sendo para tanto apenas necessário o conhecimento do endereço e da respectiva palavra-passe. E o que é normal acontecer, reconheça-se, é que o endereço e, sobretudo, a palavra-passe, sejam de conhecimento reservado do respectivo utilizador, e não de terceiros.

Em todo o caso, o Mmo. Juiz a quo credibilizou, como dissemos, as declarações do assistente C... e o depoimento da testemunha H..., de cuja conjugação resulta que o arguido os contactava e era por eles contactado através do endereço electrónico K.... X....drgmail.com, e que o referido assistente recebeu na sua caixa de correio electrónico as mensagens de fls. 5 a 7, remetidas por aquele endereço [assim sendo afastadas as equacionadas possibilidades de não terem sido enviadas/trocadas quaisquer mensagens ou de não terem sido enviadas pelo arguido as mensagens de fls. 5 a 7].

Acresce que mensagem de fls. 5 referia pormenores relativos ao negócio proposto pelo arguido aos assistentes designadamente, valores e pessoas envolvidas. Tais pormenores eram, necessariamente, conhecidos do arguido, dos assistentes e, pelo menos, de algumas das testemunhas, bem como, a contabilista e a secretária do grupo empresarial dos assistentes, como o afirmou o assistente B.... Mas solicitando-se na mensagem a retirada da queixa [do processo crime pendente, como é óbvio] evidente se torna que os únicos beneficiários e principais interessados na extinção do procedimento seriam os ali indiciados e portanto, o arguido e o seu ex-cônjuge, J.... Assim, não é razoável nem verosímil pretender que qualquer familiar, amigo íntimo ou parceiro negocial do arguido teria interesse em, em seu nome, criar e enviar a mensagem, como também não é razoável pretender que a mensagem tenha sido criada e enviada com o propósito de o prejudicar através da instauração de um novo processo crime, teses estas aliás, que o arguido, nem na contestação [ofereceu o merecimento dos autos], nem na audiência sustentou [exerceu o direito ao silêncio].

Em síntese conclusiva, tendo a 1ª instância, que beneficiou da imediação da prova e portanto, das vantagens que ela confere na valoração dos meios de prova, credibilizado as declarações do assistente C... e o depoimento da testemunha H... e por via dessa credibilização, tendo entendido que aqueles contactavam o arguido através do endereço electrónico K.... X....drgmail.com, tendo as mensagens de fls. 5 a 7 como remetente precisamente aquele endereço electrónico, composto por dois dos apelidos do arguido, e sendo este um dos dois beneficiários da pretendida desistência da queixa crime mencionada na mensagem de fls. 5, revela-se razoável e plenamente suportada pela prova produzida, não se descortinando, por outro lado, que tenha sido desrespeitada qualquer regra da experiência comum, a decisão de considerar provada a autoria do arguido quanto ao envio das mensagens.

Não merece portanto, censura a decisão da matéria de facto relativa aos pontos 8., 8.1., 8.2. e 8.3, dos factos provados, que por isso, se mantêm.

4.3. O arguido impugna também os pontos 10 a 12, 14 e 15 dos factos provados, que têm a seguinte redacção:

- [10] O teor daquelas mensagens criou no espírito de B... e dos seus familiares acima mencionados intranquilidade, temor e receio de que o arguido, por si ou por terceiros a seu mando, executasse efectivamente as ameaças que proferiu, com as inerentes consequências para a sua vida e integridade física;

  - [11] Os mesmos, levando a sério tais ameaças, e convictos da possibilidade de o arguido as poder vir a concretizar, passaram a condicionar a sua conduta às mesmas, evitando saídas a sós e durante a noite, furtando-se a contactos com terceiros desconhecidos e, relativamente à menor L... (filha de C... e de I...), evitando sua saída de casa, ainda que acompanhada pela ama, com prejuízo para a liberdade de todos;

- [12] Com aquelas mensagens o arguido pretendia, além do mais, obrigar o queixoso no supra mencionado Inquérito n.º 205/08.6JALRA, B... a retirar a queixa que havia apresentado contra si, e que deu origem aos referidos inquéritos e subsequentes acusações deduzidas pelo Ministério Público;

 - [14] O arguido agiu consciente, livre e deliberadamente, com o propósito de obrigar B... a adoptar o comportamento por si desejado, isto é, a desistência da queixa por si apresentada e que deu origem aos Inquéritos n.º 205/08.6JALRA e n.º 347/09.0TALRA, através da prolação de ameaças com mal importante a concretizar relativamente ao então queixoso e aos membros do seu agregado familiar;

- [15] O arguido agiu também com o propósito de criar receio, temor e inquietação no espírito de B... bem como no espírito dos seus referidos familiares, D..., G..., H..., I... e C....

Também quanto a estes pontos de facto o arguido não indicou as concretas provas que, em seu entender, imporiam decisão diversa da recorrida, até porque a sua impugnação é feita no seguimento ou como consequência da impugnação dos pontos 8, 8.1., 8.2., e 8.3. dos factos provados pelo que, inviabilizado ficou, nesta parte, o conhecimento do recurso da matéria de facto.

Assim, remetendo para as considerações feitas no ponto que antecede a propósito da valoração da prova, resta apenas concluir que se mantêm, nos exactos termos em que foram fixados pela 1ª instância, os pontos de facto impugnados.

4.4. Alega o arguido que deveriam ter sido considerados provados os seguintes factos:

- [A] O arguido devolveu ao Grupo F... a quantia de € 880.000 e os procedimentos criminais contra si existentes foram extintos;

- [B] O montante de € 1.200.000 em que se consubstanciou o negócio entre o arguido e o Grupo F..., bem como o nome M... eram, à data dos factos constantes da acusação, do conhecimento de B..., C..., D..., G..., H..., I... e J..., bem como de diversos funcionários dos serviços de contabilidade e administrativos do Grupo F..., bem como de outros indivíduos (advogados, seus funcionários, entidades judiciais, entidades policiais) que tenham, por qualquer meio, tido conhecimento dos processos que corriam termos sobre o nº 205/08.6JALRA e nº 347/09.0TALRA;

- [C] À altura dos factos constantes da acusação – Fevereiro de 2009 – o arguido encontrava-se fora do país;

- [D] À data dos factos havia já sido apreendido equipamento informático na casa onde habitavam o arguido e J...;

- [E] O computador e a caixa de correio electrónico do assistente C... nunca foram objecto de peritagem, análise ou qualquer outra intervenção pelas autoridades ou por ordem judicial.

E indica como meios de prova que impõem a sua consideração como provados as declarações dos assistentes B... e C... e o depoimento da testemunha H..., tendo transcrito as concretas passagens que considerou relevantes para o efeito.

A discussão da causa, sem prejuízo do regime legal aplicável à alteração dos factos, tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e ainda os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, tendo em vista decidir a questão da culpabilidade do arguido e a questão da determinação da respectiva sanção (art. 339º, nº 4, do C. Processo Penal).

Nenhum dos factos elencados pelo arguido consta da acusação e, consequentemente, do despacho de pronúncia, ou da contestação por si apresentada. São portanto factos que o arguido entende terem resultado da prova produzida em audiência. Não obstante, nem todos os factos que possam, eventualmente, resultar da prova produzida em audiência, têm que ser considerados, mas apenas os factos relevantes para decidir a culpabilidade do arguido isto é, e na parte que ora releva, os factos relativos ao preenchimento do tipo de crime pelo arguido, à culpa, à verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou de qualquer outro pressuposto de que a lei faça depender a punibilidade da conduta.

Posto isto.

Relativamente ao facto A, o assistente B... admitiu efectivamente [em segmento não transcrito pelo recorrente] que o arguido devolveu a maior parte do dinheiro que lhe havia sido entregue por causa do negócio, tendo mencionado a quantia de € 880.000. Também o assistente C... [em segmento não transcrito pelo recorrente] afirmou ter o arguido devolvido a quantia de € 880.000 dos cerca de € 1.300.000 que lhe haviam sido entregues. Já quanto à extinção do procedimento criminal, o assistente B... disse que os processos terminaram, pensando que o arguido teria sido condenado, mas sem certezas, e o assistente C... disse que o processo de burla terminou e desconhecer o sucedido com a falsificação do diploma. Porém, provado que está que no processo nº 347/09.0TALR ao arguido era imputada a prática, em co-autoria material [com J...] e concurso efectivo, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, a), do C. Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), do mesmo código (cfr. certidão de fls. 44 a 92), é evidente que a restituição daquela quantia e o acordo para o pagamento do restante apenas podia ter reflexo na sorte do procedimento pelo crime de burla (arts. 206º, nº 1, e 218º, nº 4, do C. Penal).

Por outro lado, a restituição da quantia de € 880.000 pelo arguido não tem, em nosso entender, qualquer relevo, seja para a questão da sua culpabilidade, seja para a questão da determinação da respectiva sanção, relativamente aos imputados crimes de coacção agravada na forma tentada e de ameaça agravada [contudo, na determinação da medida das penas, a 1ª instância relevou a restituição parcial das quantias recebidas como algum apaziguamento no espírito dos ofendidos].

Em conclusão, não há lugar ao aditamento, como provado, do facto A.   

Relativamente ao facto B, o assistente B... afirmou estar em causa, relativamente ao negócio, a quantia de € 1.200.000, conhecer o nome M..., e terem conhecimento do negócio e de alguns dos valores envolvidos a sua mulher, as suas três filhas, o seu genro, a contabilista e a secretária. Por sua vez, o assistente C... referiu a quantia de € 1.300.000 como entregue, o conhecimento daquele nome pela troca de e-mail´s, o conhecimento das negociações por todos os membros da família, e o conhecimento de alguns valores envolvidos pelo ex-cônjuge do arguido. Já a testemunha H... fez apenas uma referência pouco precisa às negociações, mas referiu que já ouvira falar naquele nome.

Assim, ainda que se admita a prova de que os assistentes, as testemunhas, J..., a contabilista e a secretária tinham conhecimento, aproximado, do valor global envolvido, e que os assistentes e a testemunha H... conheciam o nome M..., nenhum destes factos releva para a questão da culpabilidade ou para a questão da determinação da sanção, relativamente aos imputados crimes [como decorre da motivação do recurso, a sua invocação pelo arguido visou apenas sustentar uma das hipóteses que criou, a de qualquer outra pessoa, conhecedora dos factos, ter enviado a mensagem de fls. 5].

Em conclusão, não há lugar ao aditamento, como provado, do facto B.  

Relativamente ao facto C, apenas o assistente C... afirmou que o arguido se encontrava ausente, tudo indicava que ausente do país, pois era procurado pelas autoridades e não o encontravam. Como é evidente, não só o assistente não tem razão de ciência como, a circunstância de não ser encontrado pelas autoridades não significa, necessariamente, que o arguido estava no estrangeiro, nessa data [consta dos autos que veio a ser extraditado, da República Federativa do Brasil]. Não existe, pois, prova do facto, mas ainda que assim não fosse, tão-pouco o mesmo relevaria para a questão da culpabilidade ou para a questão da determinação da sanção, relativamente aos imputados crimes [as mensagens, como se disse já, podiam ser enviadas de um qualquer computador, e de qualquer parte do mundo].

Em conclusão, não há lugar ao aditamento, como provado, do facto C.

Relativamente ao facto D, apenas o assistente C... afirmou saber que havia sido apreendido material informático na casa do ex-cônjuge do arguido, J.... Também aqui falha a razão de ciência do declarante, mas mesmo que se admita o facto como provado, de novo estamos perante um facto irrelevante para a questão da culpabilidade ou para a questão da determinação da sanção, relativamente aos crimes imputados.

Em conclusão, não há lugar ao aditamento, como provado, do facto D.

Relativamente ao facto E, foi o mesmo afirmado pelo assistente C.... Ainda que assim não fosse, basta a consulta dos autos para concluir que não foi feito qualquer exame ou perícia, ao equipamento informático usado pelo assistente, onde foram recebidas as mensagens de fls. 5 a 7.

Assim, mesmo que se considere provado este facto negativo, com ele visa o recorrente concluir que não foi feita prova bastante, precisamente pela ausência do exame ou perícia, de que o equipamento informático do assistente recebeu, efectivamente, as ditas mensagens. Ou seja, o facto vale apenas como argumento, e como tal pode ser usado, como foi, na motivação do recurso, mas não tem qualquer reflexo na questão da culpabilidade ou na questão da determinação da sanção, relativamente aos crimes imputados.

Por isso, também não há lugar ao aditamento, como provado, do facto E.

4.5. Alega o arguido que deveriam ter sido considerados não provados os seguintes factos:

- [i] O IP pelo qual foi criado o endereço electrónico K.... X....drgmail.com;

- [ii] O IP pelo qual foi enviada cada uma das mensagens constantes da acusação.

Cremos que a pretensão do arguido é consequência do entendimento por si expresso de que se não provou que tenha sido da sua autoria, quer a criação do indicado endereço electrónico, quer o envio, através dele, das mensagens de fls. 5 a 7. Na verdade, apesar dos termos algo equívocos dos factos indicados, o que estará aqui em causa é o não apuramento do IP ou seja, em termos mais simples, o não apuramento do concreto computador onde foi criado aquele endereço e do concreto computador através do qual foram as mensagens enviadas.

Porém, independentemente de terem sido mantidos como provados os também sindicados factos constantes dos pontos 8., 8.1., 8.2., 8.3., 10 a 12, 14 e 15 dos factos provados, pelas razões supra expostas, não devem ser levados aos factos não provados, ainda que com as precisões referidas, os agora indicados pelo recorrente, na medida em que, não constando da acusação e despacho de pronúncia, nem da contestação, não são, obviamente, factos que tenham resultado provados da discussão da causa, sendo irrelevantes, enquanto factos não provados.   

Em conclusão, não há lugar ao aditamento, como não provados, dos factos i e ii.

5. Finalmente, alega o arguido que a análise ponderada e atenta da escassa prova circunstancial produzida conjugada com a não utilização dos meios técnicos disponíveis, não podia ter deixado de criar no julgador uma dúvida séria sobre a sua culpabilidade, não sendo portanto admissível a decisão desfavorável tomada, por atropelo ao princípio in dubio pro reo.

Vejamos se lhe assiste razão.

O in dubio pro reo, decorrência do princípio da presunção de inocência com assento constitucional no art. 32º, nº 2 da Lei Fundamental, dá resposta ao problema processual da dúvida sobre o facto – mas já não, da dúvida sobre a aplicação do direito – impondo ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.

A dúvida pressupõe que, produzida a prova, subsista no espírito do julgador – e apenas neste – a incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Escreve, a propósito, Cristina Líbano Monteiro, “O universo fáctico – de acordo com o «pro reo» – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.” (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53).   
O in dubio pro reo é assim um princípio de direito processual penal que, impondo-se directamente ao julgador, só pode ser actuado quando, produzidas as provas, na tarefa de alcançar a verdade material de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, tenha ficado na dúvida, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual. Portanto, quando a dúvida não existe no espírito do julgador, quando a sua convicção foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à sua aplicação.
Em sede de recurso, a detecção da violação do in dubio pro reo passa pela sua notoriedade em função dos termos da decisão isto é, a violação do princípio tem que resultar do texto da decisão, dela devendo extrair-se que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o deu como provado.

Não é nesta perspectiva que o arguido coloca a questão mas antes, na da insuficiência da prova produzida para a concreta decisão de facto proferida, que é coisa diversa.

Por outro lado, percorrida a sentença recorrida, não se detecta qualquer dúvida que tenha existido no espírito do Mmo. Juiz a quo quanto a qualquer dos factos que considerou provados, sendo certo que, face à motivação de facto que dela consta, também não vislumbramos qualquer situação determinativa de que nesse estado de dúvida devesse ter ficado.

Não se mostra pois violado o princípio in dubio pro reo, nem o art. 32º, nºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

*

            Da atipicidade da conduta e da unidade de resolução criminosa

            6. Alega o arguido que a mensagem de 16 de Fevereiro de 2009 não contém qualquer ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, mas antes o desejo de chegar a entendimento extrajudicial quanto à devolução de importâncias recebidas e um apelo sentimental ao destinatário para as consequências que a continuação do processo crime poderia ter para os seus três filhos, e que nela, mensagem, não se mostram preenchidas as circunstâncias agravantes previstas nas alíneas a) e b) do nº 1, do art. 155º do C. Penal.
            Vejamos se assim é.



            6.1. O crime de ameaça – integrado no Livro II, Título I, Dos crimes contra as pessoas, Capítulo IV, Dos crimes contra a liberdade pessoal, do C. Penal – tutela a liberdade pessoal, a liberdade de decisão e de acção, e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:
[objectivo]
- Que o agente ameace outra pessoa com a prática de crime do catálogo [crime contra a vida, a integridade física, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor];
- Que a ameaça seja adequada a provocar ao ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação;
[subjectivo]      

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto.

            Trata-se de um crime comum – pode ser cometido por qualquer pessoa – de mera actividade – o preenchimento do tipo basta-se com a mera susceptibilidade de a ameaça afectar a liberdade pessoal do ameaçado, não sendo necessária a verificação do resultado isto é, que o ameaçado sinta medo ou inquietação ou fique prejudicado na sua liberdade de determinação – e de perigo abstracto – o perigo não é elemento do tipo, presumindo-se inelidivelmente a sua verificação.  

            A ameaça é um mal futuro – de natureza pessoal ou patrimonial, que tem que constituir crime do catálogo – cuja verificação depende da vontade do agente, e que deve chegar ao conhecimento do sujeito passivo, por qualquer forma [pessoalmente, por meio de comunicação oral ou escrito, ou por interposta pessoa].

            Sujeito passivo do crime é o ameaçado, o destinatário da ameaça. O sujeito passivo do crime de ameaça não deve ser confundido com o sujeito passivo do crime ameaçado, nos casos em que não são a mesma pessoa [com efeito, A pode ameaçar B de que lhe há-de bater, como pode ameaçar B de que há-de bater em C, filho deste]. Nestes casos, tendo em conta o bem jurídico tutelado, para que se preencha o tipo, o sujeito passivo do crime ameaçado deve estar numa relação de proximidade existencial para com o sujeito passivo do crime de ameaça portanto, entre ambos devem existir vínculos legais ou afectivos (cfr. Prof. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, pág. 561).

            Aqui chegados, atentemos no teor da mensagem electrónica de fls. 5 [e apenas nesta, uma vez que a de fls. 6, depois da frase, «estou a agurdar sua resposta», se limita a repetir a anterior, e a de fls. 7 apenas tem a frase, «lembro que o vosso prazo esta a acabar»].

            6.2. A mensagem, datada de 16 de Fevereiro de 2009, foi enviada pelo arguido para a caixa de correio electrónico do assistente C....

            No seu primeiro parágrafo lê-se, «dr C...: em breve voces vao saber tambem o que sentem 3 crianças sem pai e sem mae, lembro que voce e seu sogro tambem teem filhas.» [sublinhados nossos].  

            No parágrafo quarto lê-se, «retirem a queixa para o bem de todos dentro de 15 dias, caso isso não acontecer mando as 4 pessoas que eu mandei ai executarem o trabalho que lhes paguei para fazer, e voces vao lamentar profundamente, já tenho fotos da sua filha no jaguar e também de toda a familia do B... bem como as moradas, basta eu dar a ordem e juro que nessa altura voces vao implorar.» [sublinhados nossos].      

            No parágrafo quinto lê-se, «responda a este mail, so espero 15 dias para voces retirarem a queixa, pelos meus filhos que não estou a brincar.» [sublinhados nossos].

            Para qualquer leitor comum, portanto para um cidadão médio, o teor da mensagem evidencia que ela tem como primeiro ou imediato destinatário, « C...», o «dr C...» do primeiro parágrafo ou seja, o assistente C....

Mas também é facilmente perceptível, atentas as expressões, «voces vão saber», «voce e seu sogro», «retirem a queixa», «tenho fotos da sua filha (…) e tambem de toda a familia do B...» e, «voces vao implorar», conjugadas com todo o circunstancialismo que está na origem da mensagem designadamente, a circunstância de nas negociações do pretenso investimento na República Dominicana entre o arguido e o grupo empresarial – a que pertencem assistentes e testemunhas – ter tido maior intervenção o assistente C... [como decorre do registo das declarações dos assistentes B... e C...], e a circunstância de o capital entregue ao arguido pertencer ao assistente B... e por isso, ter sido este a apresentar a queixa crime contra o arguido, a mensagem tem um segundo destinatário, o assistente B..., tendo o arguido plena certeza de que o assistente C...a faria chegar ao seu conhecimento [decorre também do registo das declarações dos assistentes que o assistente B... não estava familiarizado com as novas tecnologias, não trabalhava com computadores nem tinha caixa de correio electrónico, pelo que a mensagem nunca lhe poderia ser enviada directamente].     

Assentemos pois, em que a mensagem de correio electrónico teve dois destinatários, um imediato, o assistente C..., outro, mediato, o assistente B....

É verdade que na mensagem são feitas duas referências aos filhos do arguido com o seu ex-cônjuge, J.... A primeira, no primeiro parágrafo da mensagem e a segunda, no quinto parágrafo da mensagem. Mas, e ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, contrariamente ao pretendido pelo arguido, nenhuma dessas referências é um apelo sentimental ao recipiente com referência às possíveis consequências danosas que a continuação do processo criminal poderia ter para os três filhos. Bem pelo contrário, no primeiro parágrafo, ameaça fazer sentir aos assistentes o afastamento dos seus filhos, tal como os filhos do arguido sentem o afastamento dos pais [as autoridades policiais não conseguiam detectar o arguido] e no quinto, reforça o firme propósito de tudo o que até aí tinha escrito, jurando, pelos filhos, que não estava a brincar ou seja, a referência aos filhos começa por se integrar na estrutura da ameaça pretendida e acaba a credibilizar o respectivo discurso.

É também verdade que nos parágrafos segundo e terceiro da mensagem se lê, «estou a trabalhar no meu projecto, quero fazer um acordo, eu dei mais de 400 mil euros ao M... para pagar o que os srs bem sabem. fiquem com os 800 mil que eu depositei na conta da minha ex-mulher, o restante eu pago 50 mil por ano + juros ate completar um milhao e duzentos mil euros.». Portanto, o arguido propõe-se resolver a questão, dizendo aos assistentes para ficarem com uma importância depositada numa conta que não é sua, e pretendendo fazer entregas iguais e anuais, até ser atingido certo montante.

   Mas o que é inquestionável é que o arguido fixou um prazo aos assistentes para retirarem a queixa, dizendo-lhes que, se não o fizessem, iriam lamentar profundamente e implorar, pois daria ordem às quatro pessoas que já enviara [para Leiria, como é suposto] para executar o trabalho que já tinha pago, e que já tinha fotografias da filha do assistente C... no carro e de toda a família do assistentes B..., bem como as respectivas moradas. Assim, por esta via, o arguido cominou um mal futuro aos assistentes, cuja verificação dependia da sua vontade.

A mensagem apenas define, expressamente, as vítimas do mal cominado, a filha do assistente C..., menor de tenra idade, pois ainda tem ama, e a família do assistente B... portanto, as testemunhas D..., G..., H... e I..., seu cônjuge e filhas, não sendo directamente referido qualquer acto subsumível à previsão de qualquer dos crimes do catálogo. Mas conjugando o primeiro parágrafo, onde o arguido realça o afastamento dos seus filhos, e que os assistentes também os têm, com o parágrafo quarto, onde o arguido diz que vai enviar o grupo já contratado para fazer o trabalho, caso não fosse retirada a queixa, com referência à filha do primeiro e à família do segundo assistente, está implícita, a ameaça, pelo menos, de crime de sequestro qualificado (art. 158º, nº 1 e 2, a) e e), do C. Penal) e/ou de crime de rapto (art. 161º, nº 1, c), do C. Penal), ambos crimes do catálogo, porque crimes contra a liberdade, puníveis com pena de prisão superior a três anos.

6.3. Assim, a mensagem de 16 de Fevereiro de 2009, a fls. 5, enviada por correio electrónico, pelo arguido ao assistente C... e também dirigida ao assistente B..., contém uma ameaça de prática de crimes contra a liberdade, nas pessoas da filha do primeiro e nas pessoas que constituem a família do segundo – mulher e filhas [sendo certo que uma é o cônjuge do assistente C..., e mãe da filha deste] pelo que, sendo tal conduta dolosa, preenchido se mostra o tipo do crime de ameaça previsto no art. 153º, nº 1, do C. Penal.

Também se mostra preenchida a agravação prevista no art. 155º, nº1, a) e b), do mesmo código, uma vez que os crimes ameaçados são puníveis com penas superiores a três anos de prisão e a filha do assistente C... não pode deixar de ser considerada pessoa particularmente indefesa em razão da idade. 

7. Alega o arguido que apenas teria praticado um crime de ameaça agravado, e não os cinco pelos quais foi condenado, pois que o mesmo e único desígnio criminoso teria presidido às sucessivas condutas típicas.

Cremos que, e ressalvado sempre o devido respeito, o arguido se equivocou na argumentação expendida. Com efeito, a pluralidade de crimes de ameaça por cuja prática foi condenado, nada tem a ver com a pluralidade de condutas – o envio das três mensagens – mas com a pluralidade de sujeitos passivos ou ofendidos do referido crime. Explicando.

O crime de ameaça, como vimos, tutela bens jurídicos pessoais o que significa que, ainda que exista uma só conduta ameaçadora, o agente pratica tantos crimes quantos os titulares do bem violado, com o consequente concurso efectivo de crimes. Por isso, tendo-se entendido na sentença recorrida que, através da mensagem de fls. 5 em conjugação com as mensagens de fls. 6 e 7, o arguido ameaçou o assistente C... e as testemunhas D..., G..., H... e I..., foi condenado pela prática de cinco crimes de ameaça.

Já sabemos que o crime de ameaça tem como ofendido, como sujeito passivo, o ameaçado, o destinatário da ameaça. O ameaçado pode ou não ser a mesma pessoa que é sujeito passivo do crime que corporiza a ameaça, mas nos casos em que não há tal coincidência, não podem nem devem ser confundidos.

Também vimos que as mensagens de fls. 5 a 7 tiveram dois destinatários, um, imediato, o assistente C..., a quem foi remetida, outro, mediato, o assistente B..., pelas razões supra expostas. É verdade que o assistente C... deu delas conhecimento às testemunhas referidas, mas apenas era expectável que o tivesse feito relativamente ao assistente B..., já que este era o único que poderia assumir no processo crime, comportamento que conduzisse à extinção do procedimento criminal [como veio, aliás, a suceder, quanto ao crime de burla]. Não é por isso razoável, ressalvado sempre o devido respeito por opinião diversa, que é muito, deixar o preenchimento repetido do crime de ameaça, pelo arguido, na disponibilidade do comportamento do assistente C....

Por outro lado, ainda que as testemunhas D..., G..., H... e I... tenham tido conhecimento do teor das mensagens, elas, juntamente com a filha do assistente [também filha da última testemunha], são as vítimas, os sujeitos passivos, não do crime de ameaça, mas do crime ameaçado.

A questão fica mais clara se atentarmos na circunstância de o assistente B... ser sujeito passivo de um crime de ameaça, pelo qual o arguido não foi sequer acusado, crime que se mostra consumido pelo crime de coacção agravada, na forma tentada, por este praticado, e do qual aquele assistente foi também sujeito passivo, o mesmo não se tendo passado com o assistente C..., que apenas é sujeito passivo do crime de ameaça, porque não dependendo de si o efeito jurídico pretendido pelo arguido, não podia ser nunca constrangido por este a praticar a acção devida.

Em síntese conclusiva:

- Sujeito passivo e, portanto, ofendido do crime de ameaça, é o destinatário da mesma, o ameaçado;

- O ameaçado pode ou não ser a mesma pessoa que é sujeito passivo do crime que integra a ameaça, mas nos casos em que não há tal coincidência, não podem nem devem ser confundidos;

- Sendo destinatários das mensagens de correio electrónico enviadas pelo arguido contendo a ameaça, os dois assistentes, e sendo sujeitos passivos do crime ou dos crimes ameaçados, a filha do primeiro assistente, e a mulher e as três filhas do segundo assistente, o arguido cometeu dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1, e 155º, nº1, a) e b), do C. Penal;

- Um destes dois crimes de ameaça está consumido pelo crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 154º, nºs 1 e 2, e 155º, nº 1, a) e b), do C. Penal, praticado pelo arguido, tendo por ofendido o assistente B....

Em suma, praticou o arguido um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1, e 155º, nº1, a) e b), do C. Penal, em concurso efectivo com um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 154º, nºs 1 e 2, e 155º, nº 1, a) e b), do mesmo código.


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            Da excessiva medida das penas

8. Por último, o arguido alega ter sido considerada como circunstância agravativa das penas o grau elevado da ilicitude dos factos – a imagem global dos factos – atenta a sua forma de execução, ao contexto em que as mensagens surgiram e ao teor cru, violento e intimidativo das próprias expressões utilizadas, não se compreendendo a que teor cru, violento e intimidativo se refere o Mmo. Juiz a quo, pelo que é manifesto que a pena de sete meses de prisão é excessiva.

Como se vê, o arguido sindica apenas a pena aplicada pela prática dos crimes de ameaça, sendo que, face ao decidido no ponto que antecede, a questão se reduz agora a um único crime, tendo por ofendido o assistente C....

Posto isto.

8.1. Prevenção e culpa são os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal). A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. A culpa, dirigida à pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 214 e ss.).

A pena concreta resulta da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos em cada caso – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização], sempre com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa, podendo dizer-se, com o Prof. Figueiredo Dias, que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, pág. 81). 

O C. Penal dá preferência à pena de multa, em detrimento da pena de prisão, relativamente ao tratamento da pequena e da média criminalidade, como claramente resulta do critério de escolha da pena principal – prisão ou multa – previsto no art. 70º do C. Penal. Na verdade, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, manda a lei que o tribunal dê preferência a esta última, sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

           

Escolhida a pena, há que passar à determinação da sua medida concreta. A moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena.

Com estes limites, a determinação da medida concreta da pena é feita em função das necessidades de prevenção e da culpa do agente, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras circunstâncias, haverá que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

8.2. Estando em causa um crime de ameaça, é evidente que o mal futuro que lhe dá corpo não pode deixar de ser intimidativo e violento. É pois mediano o grau de ilicitude do facto e relevantes foram as suas consequências, determinantes de mudanças nas rotinas diárias dos assistentes e respectivas famílias. Acresce que o arguido agiu com dolo intenso e persistente, bem revelado na pluralidade de mensagens enviadas.

Tratando-se, como se trata, de crime contra as pessoas, a prática do crime de ameaça causa relativo mas compreensível alarme social, sendo moderadas expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada, cada vez que é cometido o crime. Por outro lado, os antecedentes criminais do arguido – onde se evidenciam uma condenação por tráfico e consumo de estupefacientes em pena de prisão suspensa, já extinta e, uma condenação crime de extorsão tentado, roubo e sequestro, praticados em 2006, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova – conjugados com uma personalidade avessa ao direito, sem qualquer manifestação de capacidade de interiorização do desvalor da conduta praticada elevam, e muito, as necessidades de prevenção especial.

Em abono do arguido, considerou a 1ª instância a restituição parcial das quantias recebidas com algum apaziguamento no espírito dos ofendidos, e a sua integração familiar.

Perante tudo isto, não merece censura a opção por pena privativa da liberdade, feita pela 1ª instância, que o arguido, aliás, não contesta.

Por outro lado, sobrelevando as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, fazendo-se sentir as necessidades de prevenção geral e sendo elevadas as necessidades de prevenção especial, a pena de 7 meses de prisão, situada pouco acima do primeiro quarto da moldura abstracta aplicável, é perfeitamente suportada pela culpa do arguido pelo que, se crítica merece, será pela sua benevolência.

9. Em todo o caso, face ao decidido no ponto 7 que antecede, importa refazer o cúmulo das penas parcelares.

Atento o disposto no art. 77º, nº 2, do C. Penal, a moldura abstracta aplicável ao concurso é a de um ano e dois meses a um ano e nove meses de prisão.

            O elemento aglutinador dos crimes em concurso que vai determinar a pena única é, como resulta do nº 1 do mesmo artigo, a personalidade do agente. Impõe-se, então, a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de se determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, estamos apenas perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente. Aqui, nota o Prof. Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo de perto (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)

É claro que as condutas criminosas do arguido estão geneticamente relacionadas e visaram o mesmo objectivo. O arguido não revelou sinais de interiorização da culpa, e tem significativos antecedentes criminais.

Porém, o quadro geral que se desenha não permite, para já, concluir pela existência de uma verdadeira carreira criminosa, embora alerte seguramente para o perigo eminente do seu começo. Por isso, a acumulação de crimes não deve funcionar como elemento agravante da pena conjunta, mas também não pode funcionar como elemento atenuante.

Assim, fixa-se a pena conjunta em um ano e seis meses de prisão.

Mantém-se a suspensão da execução da pena conjunta, tal como vem decidido pela 1ª instância, mas agora, e nos termos do art. 50º, nº 5, do C. Penal, pelo período de um ano e seis meses.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso. Consequentemente, decidem:

A) 1. Absolver o arguido A... da prática de quatro crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do C. Penal.

2. Revogar a condenação do arguido A..., em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período.


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B) Condenar o arguido A..., em cúmulo jurídico – das penas parcelares de sete meses de prisão e de um ano e dois meses de prisão, em que foi condenado, pela prática, respectivamente, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do mesmo código, e de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nº 2, 73º, 154º, nºs 1 e 2 e 155º, nº 1, a), do mesmo código – na pena única de um ano e seis meses de prisão.

Suspender a execução da pena única de prisão pelo período de um ano e seis meses a contar do trânsito do presente acórdão.


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            C) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.


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            Recurso sem tributação, atenta a sua parcial procedência (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, na redacção do Dec. Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).


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 (Heitor Vasques Osório - Relator)

 (Fernando Chaves)