Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2140/06.3TAAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PROCESSO PENAL
INSOLVÊNCIA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
GERENTE
ADMINISTRADOR
SOCIEDADE
ARGUIDA
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE AVEIRO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 81.º, N.º 4, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE)
Sumário: I - Por força do disposto no artigo 81.º, n.º 4, do CIRE, os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência.

II - Daí que, nas demais vertentes, designadamente as relacionadas com a responsabilidade criminal da sociedade, a representação desta continue a pertencer aos seus gerentes (tratando-se de sociedade anónima, aos seus administradores).

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Ministério Público, veio interpor recurso do despacho proferido em 3-12-2013, que considerou caber ao Administrador de Insolvência a representação, em sede de instrução, da sociedade arguida “A... , SA”.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

1- O administrador de insolvência não representa a arguida insolvente, para efeitos de intervenção em processo penal, concretamente, em sede de instrução, cabendo tal função, no caso de sociedade anónima, aos respectivos administradores.

2- Foi, pois, violado o disposto, nomeadamente, nos artigos 81.°, n.º 1, do CIRE e 7.°, do RGIT.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, com o douto suprimento de V.as Ex.as, deve o presente Recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido, determinando-se, em consequência, que a arguida " A..., SA, seja representada nos presentes autos pelos respectivos administradores.

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Os arguidos não responderam ao recurso.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, acompanhando os termos da motivação do Magistrado do Ministério Público, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, os arguidos não responderam.

Os autos tiveram os vistos legais.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido:

Compulsados os autos verifica-se que a A... S.A., se encontra efectivamente insolvente e é neste momento representada pelo respectivo administrador de insolvência Ex.º Sr. Dr. B...; a quem foi dado conhecimento regular do despacho de arquivamento e da acusação.

Assim inexiste qualquer omissão ou preterição de formalidade legal que a Lei impõe no que à notificação da acusação respeita.

Compulsados ainda novamente os autos, para o que o decurso dos trabalhos de instrução importa, verifica-se que efectivamente o actual representante da arguida A... não foi regularmente notificado, como deveria ter sido da abertura da instrução e, outrossim da realização da presente diligência. Mostra-se assim, como é bom de ver, obstaculizada a realização da inquirição para hoje designada, dado que no mais nenhuma nulidade se nos afigura existir.

Nestes termos, indeferindo a arguição das nulidades invocadas, e reconhecendo a existência da irregularidade no que à arguida concerne, decide-se dar sem efeito a tomada de declarações para hoje designada, designado a tomada das declarações aos arguidos no próximo dia 29 de Janeiro de 2014, pelas 10:00 horas.

Notifique, sendo o Sr. Administrador da Insolvência do despacho que admitiu a instrução.

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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se, em processo penal, a representação da sociedade arguida que foi declarada insolvente cabe aos seus gerentes/administradores, ou ao administrador da insolvência.

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“ A..., SA” apresentou-se à insolvência, vindo a ser declarada em tal estado, por sentença transitada em julgado, em 2-9-2009, proferida nos autos de insolvência de pessoa colectiva – apresentação n.º 630/09.5TYLSB do 4º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa – cfr. fls. 8.

Com interesse para os autos há a considerar o seguinte desenvolvimento processual:

- em 15-7-2013, o Ministério Público deduziu acusação contra, para além de outros arguidos, “ A..., SA”, pela prática de quatro crimes de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos artigos 103º, n.º 1, al. c) e n.º 2, e 104º, n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) – fls. 15/32;

- os arguidos C..., D.... e E.... requereram a abertura da instrução – fls. 33/46 e 48/58;

- foi designado o dia 3-12-2013 para audição dos arguidos;

- no dia 3/12/2013, no início de tal diligência, pelo defensor dos arguidos D... e E...foi arguida, além do mais, a falta de notificação do despacho que determinou a abertura de instrução, bem como da data designada para prestação de declarações ao representante da arguida " A..., SA.", notificações essas que deveriam ter sido efectuadas na pessoa do Administrador da Insolvência, Dr. B..., requerimento que não mereceu oposição dos demais arguidos;

- assim, e na sequência de tal requerimento, a Mmª Juiz julgou verificado que o actual representante da arguida A... (o Administrador de Insolvência) não fora regularmente notificado, como deveria ter sido da abertura da instrução e, outrossim da realização daquela diligência, razão pela qual, reconhecendo a existência da irregularidade no que à arguida concerne, decidiu dar sem efeito a tomada de declarações agendada - fls. 61/64;

- tendo sido proferido o despacho recorrido.

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Considera o recorrente que “a sociedade arguida " A..., SA" tratando-se de sociedade anónima onde é o conselho de administração quem tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade, deverá ser representada, nos presentes autos, pelos dois administradores (artigos 405°, n.º 2 e 390°, n.º 1 do CSC), respectivamente, os arguidos D... e C... (qualidade de representantes que, também, assumem enquanto gerentes no período em que a A... assumia a forma de sociedade por quotas)”.

Entendemos que lhe assiste razão.

Nos termos do artigo 252º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) «1- A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena».

Para além do artigo 11º do Código Penal, também o artigo 7º do RGIT prevê a responsabilidade penal (e contra-ordenacional) das pessoas colectivas e equiparadas, dispondo os n.ºs 1 e 2 que são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.

In casu havia a sociedade arguida sido declarada insolvente.

A declaração de insolvência da sociedade é um dos casos de dissolução da sociedade (art. 141º, n.º 1, al. e) do CSC).

A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mantendo a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (n.ºs 1 e 2 do art. 146º do CSC) e, a sociedade só se extingue com o culminar da fase de liquidação e partilha, concretamente, com o registo do encerramento da liquidação (n.º 2 do art. 160º).

Como estabelece o artigo 1º, n.º 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Ainda nos termos do n.º 1 do artigo 81º do CIRE a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

Acrescentando o n.º 4 que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Sublinhado nosso.

Na verdade, como resulta do artigo 55º do CIRE as funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se, essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.

Portanto, após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.

“Quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência - relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência -, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos”.

Tem sido unânime a jurisprudência a este propósito. Assim, neste sentido, entre outros:

- Ac. RC de 28-9-2011 no proc. 123/09.0IDSTR.C1,

- Ac. RL de 12-10-2011 no proc. 674/08.4IDLSB-A.L1-3

- Ac. RG de 9-9-2013 no proc 131/08.9TAFLG-A.G1

- Ac. RE de 15-10-2013 no proc. 33/10.9IDEVR.E1

- Ac. RP de 4-6-2014 no proc. 16285/09.4IDPRT.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Deste modo, dado que a representação do administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos demais aspectos, designadamente os que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta) a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (tratando-se de sociedade anónima, aos seus administradores) – n.º 2 do art. 82º do CIRE.

Por conseguinte, não tinha o administrador da insolvência de ser notificado nos termos ordenados no despacho recorrido, dado que, nos presentes autos, a representação da sociedade arguida pertence aos dois administradores, respectivamente, os arguidos D... e C....

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III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e, determinando que a sociedade arguida “ A...” seja representada nos presentes autos pelos respectivos administradores.

Sem tributação.

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Coimbra, 25 de Junho de 2014

 (Elisa Sales - relatora)

 (Paulo Valério - adjunto)