Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
886/11.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: COMODATO PARA USO DETERMINADO
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU - TRIBUNAL JUDICIAL - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 1137, Nº 1, DO C. CIVIL
Sumário: Só integra o conceito de comodato para uso determinado aludido no art.º 1137, nº 1, do C. Civil, aquele em que a coisa entregue ao comodatário é por este objecto de uma utilização que se esgota num acto ou numa série de actos de execução temporalmente delimitada ou delimitável logo no momento da celebração do contrato.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A FUNDAÇÃO A... instaurou no 1º Juízo Cível de Viseu uma acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B.... e C... pedindo a condenação dos Réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre determinado prédio urbano, e, bem assim, a entregá-lo devoluto de pessoas e bens, abstendo-se de qualquer acto perturbador da respectiva posse.
Alega para tanto que é dona de determinado imóvel composto de casa de habitação, de rés-do-chão e 3 assoalhadas, cozinha e WC, sita em (...), Viseu, por o ter adquirido por usucapião, uma vez que há mais de 30 anos, o administra e utiliza – designadamente pagando as respectivas contribuições – à vista de todos, e sem oposição de quem quer que seja, na convicção de exercer um direito próprio; nessa qualidade, face à escassez de meios de subsistência dos Réus, e enquanto durasse tal situação, autorizou que estes instalassem a sua habitação tal imóvel, sem prejuízo de tal ocupação poder cessar a qualquer momento, por iniciativa da A. ou dos próprios RR.; acontece que, embora já não necessitem da casa, os Réus vêm-se recusando a restitui-la, o que forçou a A. a lançar mão da presente acção.

Contestaram os Réus aduzindo, por sua vez, que tendo-lhe sido cedido o gozo do imóvel em questão há mais de 50 anos, por esse título o vêm fruindo, nele habitando e fazendo a sua vida; que sendo o imóvel composto apenas de 2 quartos, cozinha e WC, e valendo somente € 2.230,00, nele fizeram avultadas obras que custearam à vista de toda a gente, com o que lhe elevaram o valor para € 22.360,00; que de todo o modo adquiriram o respectivo direito de propriedade por usucapião dada a sua qualidade de “enfiteutas”. Terminam, assim, com a improcedência da acção e, deduzindo reconvenção, pedem o reconhecimento da aquisição do seu direito de propriedade sobre o prédio em questão.

 A A. respondeu, negando o direito de propriedade invocado pelos Réus – que já se acharia infirmado por decisões transitadas proferidas em duas acções judiciais que com esse pedido os mesmos instauraram – e invocando a não autorização das obras referidas na contestação. Rematou como na petição e pugnou pela improcedência da reconvenção.

Fixado o valor da causa em € 10.350,00, foi organizada a base instrutória.

A final foi prolatada sentença a julgar improcedente a reconvenção, com a absolvição da A. do pedido respectivo; e a acção totalmente procedente, reconhecendo-se a A. como exclusiva proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), como casa de habitação composta de rés-do-chão com 3 assoalhadas, cozinha e wc, sita no lugar e freguesia de (...), concelho de Viseu, condenando-se os Réus a proceder à sua entrega à A., livre e devoluto de pessoas e bens.

Inconformados, deste veredicto interpuseram os Réus recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                                  *

A apelação.

Nas conclusões que formulam e que objectivamente delimitam o objecto do recurso, os apelantes levantam as seguintes questões:

1. A alteração da decisão de facto.
2. A atinente a saber se a A. celebrou com os RR. um contrato de comodato do prédio em questão, com “uso determinado” e “por prazo incerto”, o que obstaria à restituição por simples vontade da A..

Contra-alegou a A., batendo-se pela confirmação do sentenciado.

 

Sobre a alteração da decisão de facto.

Batem-se os apelantes para que se exclua do acervo fáctico o respectivo nº 5 cujo teor é o seguinte:
“De acordo com o regulamento das moradias vicentinas aprovado em 13 de Maio de 1978, a habitação poderá cessar a qualquer momento por iniciativa de qualquer das partes”.
Para tanto aduzem que nem o aludido Regulamento de 13 de Maio de 1978, cuja cópia se encontra a fls. 10-14, nem os Estatutos da A., de 30 de Janeiro de 1992, cuja cópia se encontra a fls. 42-48, consignam tal clausulado, e que sempre a prova desse facto estaria em contradição com os factos dados como provados em 4 e 17.
Vejamos.

É a própria decisão recorrida que considera que a fls. 10-14 se encontra o texto do Regulamento das Moradias Vicentinas (cfr. fls. 240), texto junto pela A. com a p.i., sem qualquer impugnação dos Réus.
Na realidade, compulsado o Regulamento constante dos autos, verifica-se que ele não contém a dita alusão à possibilidade de a habitação cedida “cessar a qualquer momento por iniciativa de qualquer das partes”.
Tratando-se do conteúdo de documento particular cuja autoria se tem de haver por reconhecida, por não impugnada, o regime de força probatória plena do art.º 376, nºs 1 e 2, do CC obsta a que se possa dar como provado um objecto diverso ou adicional do que ali se evidencia.
Assim, por não se encontrar plasmado no documento junto aos autos, o facto em causa tem de ser excluído do acervo fáctico, nele permanecendo apenas a alusão ao teor do mencionado Regulamento.
Daí que, na procedência desta questão, a matéria de facto se tenha por definitivamente organizada nos seguintes moldes:

1. A Autora é uma pessoa colectiva, sem fins lucrativos, cuja actividade se desenvolve exclusivamente no âmbito das suas atribuições, designadamente apoio à infância e terceira idade, em especial às pessoas mais desfavorecidas e carenciadas económica e socialmente.
2. Encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (...), a casa de habitação composta de rés-do-chão com 3 assoalhadas, cozinha e wc, sita no lugar e freguesia de (...), concelho de Viseu, a favor da Autora Fundação A....
3. A Autora, por si e por seus antecessores, desde há mais de 30 ou 40 anos, que vem possuindo o prédio referido em 2., consecutivamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de exercer um verdadeiro e próprio direito de propriedade, nomeadamente administrando-o, cedendo o seu uso, e recebendo quotas mensais dos moradores da casa de habitação.
4. Desde há vários anos, que os Réus vêm habitando o prédio, por a Autora ter autorizado, a título gratuito, tal habitação face à escassez de meios de subsistência, e enquanto durasse aquela situação.
5. A habitação concedida aos Réus foi-o ao abrigo do Regulamento das Moradias Vicentinas da Fundação A., aprovado em 13 de Maio de 1978 e junto a fls. 10-14.
6. Os réus são ambos reformados, ele era funcionário da CP, ela era doméstica.
7. Os filhos dos réus são maiores, encontram-se empregados, com meios próprios de subsistência.
8. Os Réus recusam proceder à entrega livre e devoluta da casa de habitação à Autora.
9. Os Réus instauraram contra a Autora duas acções cíveis nas quais reclamam o direito de propriedade sobre o prédio urbano, que foram julgadas improcedentes na mais alta instância jurisdicional (Cfr. Certidões constantes de fls. 84-132 e 137-173, cujo teor se dá por reproduzido).

» Da contestação/reconvenção
10. Na acção que correu termos sob o n.º 329/99, do 1º. Juízo Cível de Viseu, a Autora pediu em reconvenção o reconhecimento do direito de propriedade do prédio referido em 2., pedido este que veio a ser julgado improcedente em todas as instâncias.
11. Há mais de 50 anos que os Réus têm ocupado a casa referida em 2., aí fazendo as suas refeições, dormindo, e pagando, durante determinado tempo à Autora as respectivas quotas.
12. A casa foi construída pela Autora.
13. Os Réus fizeram obras no prédio referido em 2., passando a ter a seguinte composição – casa de habitação térrea e logradouro, composta por 3 assoalhadas, uma cozinha, 2 casas de banho, um corredor e uma varanda.

» Da resposta
14. A Autora procedeu à construção das casas de (...), em resultado de donativos e apoios provenientes de beneméritos e outras instituições, com o objectivo de acudir e resolver o problema de habitação de famílias mais carenciadas do concelho de Viseu.
15. O artigo 3.º, n.º 2 aliena a) dos Estatutos refere que compete à Autora conceder habitação, a título precário, em boas condições higiénicas e morais, àqueles que não as possuam ou não possam pelos seus fracos rendimentos ou saúde, consegui-los.
16. Para o exercício daqueles objectivos, a Autora dispõe entre outros de 40 casa do Bairro de (...).
17. As casas destinavam-se exclusivamente às famílias mais necessitadas e enquanto durar o estado de carenciadas.
18. Em termos regulamentares, a Autora estabeleceu o pagamento de uma quota anual destinada a ajudar a custear eventuais obras de conservação.
19. Quota que relativamente aos réus foi fixada em 24.000$00, a qual deveria ser paga em duodécimos mensais no valor de 2.000$00.
20. Os réus pagaram a quota que lhe foi fixada à Autora, tendo deixado de proceder ao seu pagamento.
21. A Autora nunca consentiu ou autorizou a realização de obras no prédio.
22. A habitação referida em 2. Encontra-se implantada e faz parte integrante do prédio rústico com a área de 55.860 m2 registada na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 291 a favor da Autora.

                                                                       *

Sobre a intempestividade da obrigação de restituição do imóvel pelos RR.

Após afirmar que a acção é de reivindicação e que a restituição do imóvel reivindicado “só não ocorrerá se o reivindicado provar que detém a coisa por um justo título (Artigo 1311, nºs 1 e 2 do Código Civil)”, a sentença ora censurada caracterizou a relação estabelecida entre A. e Réus, aqui apelantes, como subsumível a um contrato de comodato, sem prazo e sem uso determinado.
Escreveu-se ali:
“ (…) No caso dos autos, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, a ocupação por parte dos Réus do imóvel propriedade da Autora foi a título de comodato (art.º 1129 do Código Civil), sem prazo certo (art.º 1137 do Código Civil).
(…) No caso em apreço não foi convencionado prazo certo. (…) Sendo assim, a ocupação do imóvel enquanto os Réus mantenham uma situação de carência económica não configura o conceito de”uso determinado” a que alude o nº 1 do artigo 1137 do Código Civil”.
É essencialmente contra este entendimento que se insurgem os recorrentes.
Sustentam que, porque facultada enquanto subsistissem as carências económicas dos Réus, a entrega do imóvel pela A. foi uma cedência para um uso determinado e por um período que, embora incerto na sua duração, se mostra balizado temporalmente (pela morte do último membro do casal dos Réus).
Mas sem razão, como se verá.

Nenhuma objecção se levanta aqui à qualificação da relação jurídica que envolveu a cedência do gozo do imóvel aos Réus, ora apelantes, como de comodato sem prazo, à luz do disposto nos art.ºs 1129 e 1137 do CC. Qualificação, aliás, já perfilhada em precedente Acórdão desta Relação de 9/03/2010 (cfr. fls. 108-121), e de seguida sufragada pelo Ac. do STJ de 14/10/2010 (fls. 122-132).
O problema cinge-se a saber se houve ou não a fixação pelas partes de um “uso determinado”.
E porque nessa hipótese o comodante pode exigir a coisa a todo o tempo, é que há quem considere que o negócio realizado nesses termos não chega a integrar um verdadeiro comodato, correspondendo antes ao assim denominado “precário ou comodato precário”. [1]
Vejamos.

Estabelece o art.º 1137 do CC:
“1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, nem esta foi emprestada para um uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi condicionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
3. (…).”
Tal como se expende na sentença recorrida, o “uso determinado” previsto na norma não se confunde com o fim do comodato. A este se reporta específicamente o art.º 1131 do CC, conexionando-o com o fim da coisa objecto do contrato. Este artigo permite a aplicação da coisa comodatada a qualquer fim lícito dentro da função normal das coisas de igual natureza.
A afectação do imóvel à habitação dos Réus, enquanto para eles perdurassem as insuficiências económicas para angariação desse bem, não tem que ver com a função do imóvel. Respeita à causa ou à motivação que presidiu à celebração do comodato. Diversamente, o uso determinado é aquele que é possível prever e antecipar no tempo em que se esgota. Por conseguinte, o uso determinado de que fala o art.º 1137 diz necessariamente respeito a um acto ou uma série de actos de execução temporalmente delimitada ou delimitável logo no momento da celebração do contrato[2].
Ora a cedência ou autorização dada pela A. para a habitação dos Réus no prédio enquanto durasse a escassez dos respectivos meios de subsistência não permitia às partes antecipar o termo da utilização do aludido prédio. Aquela causa ou motivo podia, na verdade, durar toda a vida dos Réus, sem que as partes pudessem estimar uma data para a sua cessação.
A simples alusão à autorização da A. e a circunstância de os Réus não ignorarem que existia um Regulamento que previa a ocupação precária dos imóveis (cfr. o respectivo art.º 2º, a fls, 11), em atenção ao escopo de beneficência que presidiu à sua criação, só acentua que a interpretação de que foi vontade das partes aceitar que a referida ocupação poderia cessar em qualquer momento, consoante a avaliação que a A., como benfeitora, em qualquer altura decidisse efectuar do cumprimento dos fins regulamentares (incluindo a eventual desnecessidade dos RR.).
Aliás, a obrigação de restituição da coisa pelos comodatários logo que lhes fosse exigida decorreria já do regime legalmente previsto no nº 2 do art.º 1137 do CC.
E, se não se provou nem alegou que anteriormente tivesse existido já por banda da A. uma exigência de restituição, nada obstava a que ela se consumasse por via da citação dos Réus para a presente acção, atenta a inerente perda de eficácia do título (o comodato) de que até esse momento estes se serviram.
Desaparecido o principal efeito do comodato, extinguiu-se o título que os Réus podiam opor à A..
Donde que a reivindicação não pudesse deixar de proceder.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a sentença.
Custas pelos apelantes.

                                   Coimbra, 11 de Março de 2014  

Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins

[1] P. de Lima e A. Varela, C.C. Anotado, Coimbra Ed., 1968, V. II, p. 440, em anotação ao art.º 1137.
[2][2] P. de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. citadas, dão como exemplos de determinação de uso os casos de se emprestar um livro para figurar numa exposição ou um automóvel para certa viagem. Em qualquer dessas situações é patente a previsíbilidade do tempo razoável para a satisfação do uso concretamente tido em vista pelo comodatário.