Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235291/09.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
FALTA
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 193.º, N.ºS 1 E 2, 288.º, N.º 1, ALÍN. B), 494.º, ALÍN. B) E 493.º, N.ºS 1 E 2 E 495.º DO CPC
Sumário: Há falta de causa de pedir, geradora de nulidade de todo o processo, de conhecimento oficioso, com a consequente absolvição da instância, se a A. alega, em requerimento de injunção, por remissão para o conteúdo de facturas e, notificada, não procedeu à junção de tais documentos.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

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1. Relatório

A..., Lda.”, com sede em ..., apresentou no Balcão Nacional de Injunções requerimento de injunção contra “B..., Lda.”, com sede na ...a, com vista a obter desta o pagamento da importância de € 91.239,74, correspondente ao capital de € 88.394,45, a juros de mora vencidos de € 2.668,79, a “outras despesas” de € 100,00 e taxa de justiça de € 76,50, a que acrescem juros de mora vincendos.

Alegou, para tanto, no local destinado no requerimento “à exposição dos factos que fundamentam a pretensão”, que “no âmbito da sua actividade comercial a requerente forneceu à requerida mercadorias e serviços que esta encomendou no valor de € 88.394,45, conforme se encontram discriminados nas facturas emitidas entre 04-02-09 e 20-03-09. Tal valor não foi pago nas respectivas datas de vencimento nem posteriormente, pelo que se encontram em mora”.

A requerida deduziu oposição onde arguiu a nulidade da notificação e impugnou o montante peticionado da dívida, na medida em que há irregularidades e omissões na conta corrente contabilística respeitante ao fornecimento de combustíveis da requerente à requerida, quer em termos de diferenciais entre preços facturados e convencionados, quer em termos de quantidades fornecidas e facturadas.

Requereu ainda a condenação da requerente a título de litigância de má fé, em multa e indemnização a liquidar posteriormente, por alteração da verdade dos factos, omissão de factos relevantes e dedução de pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar.

Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da comarca de Figueiró dos Vinhos, foram os mesmos distribuídos como acção com forma de processo comum ordinária.

Houve lugar a réplica por parte da ora A., onde foi arguida a extemporaneidade da oposição e fundamentalmente se impugnou a matéria da oposição e se pediu, agora também, a condenação da R. por litigância de má fé, em multa e indemnização.

No exercício do contraditório a R. respondeu a esse pedido, no sentido da sua insubsistência.

Mediante despacho de 17.8.10 foi julgada procedente a nulidade de notificação e improcedente a nulidade de extemporaneidade da oposição e simultaneamente foi a A. convidada a completar, no prazo de 10 dias, a alegação do requerimento injuntivo, juntando as facturas remissivas da factualidade alegada, com vista a permitir a elaboração do saneador, bem como concretizar o valor de € 100,00 como referente a “outras quantias”.

Na sequência dessa notificação a A. pediu, em 16.9.10, a prorrogação desse prazo, por mais 10 dias, “a fim de juntar aos autos os documentos aludidos”.

No subsequente despacho de 21.9.10 e com referência às folhas desse requerimento, o tribunal a quo despachou: “Fls. 87: Defere-se o requerido por 10 dias. Notifique”.

Então, com data de 12-11-10 a Ex.ma Juíza proferiu decisão no sentido de que, sendo o requerimento inicial omisso quanto a factos integradores da causa de pedir, julga-se totalmente improcedente a acção, absolvendo-se a ré do pedido”.

Inconformada, recorreu a A., em cujas alegações formulou as seguintes úteis conclusões:

a) - A notificação feita à A., nos termos em que o foi de “Fls. 87: Defere-se o requerido por 10 dias”, viola claramente o art.º 259.º do CPC, não é legível nem claro, não lhe tendo permitido perceber o seu alcance, tanto mais que no processo electrónico a A. não tem acesso à numeração do processo, com o que foi cometida nulidade processual;

b) – A causa de pedir está bem explicitada no requerimento de injunção, como sendo um contrato de fornecimento de bens prestados pela ora recorrente à recorrida, constituindo as facturas mero meio de prova que pode ser junto até ao encerramento da audiência de julgamento;

c) – A R. deduziu oposição, remetendo para as facturas, denotando conhecimento da factualidade vertida no requerimento de injunção, confessando factos, o que nos termos do n.º 3 do art.º 193.º do CPC afasta a ineptidão desse requerimento;

d) – A falta de causa de pedir leva à absolvição da instância e não do pedido.

A R. contra-alegou em abono da decisão recorrida.

A Ex.ma Juíza rectificou, entretanto, a parte final da decisão, no sentido da absolvição da instância da R. em vez da absolvição do pedido.

Tudo visto, cumpre decidir.

Estando prejudicada a questão da natureza da absolvição da R., agora da instância, as questões suscitadas resumem-se a saber se:

a) – A notificação do despacho de prorrogação do prazo para cumprimento do despacho-convite ao aperfeiçoamento é ou não regular;

b) - Há ou não causa de pedir e se a sua falta foi objecto de sanação.


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2. Fundamentos

2.1. De facto

A factualidade relevante para a decisão é a que resulta do antecedente relatório, para onde se remete e ainda a constante da própria decisão recorrida que, entre o mais, considerou, com a rectificação, que “como bem se diz no despacho de convite ao aperfeiçoamento, à autora competia alegar e demonstrar os fornecimentos efectuados e as respectivas datas, valores e vencimento, elementos essenciais à elaboração do saneador.

Ora a autora fê-lo apenas por remissão para facturas que alegadamente emitiu, sem juntar qualquer documento de suporte.

Sendo o requerimento inicial omisso quanto a factos integradores da causa de pedir, julga-se totalmente improcedente a acção, absolvendo-se a ré da instância”.


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2. 2. De direito

a) - Quanto à 1.ª questão, da irregularidade da notificação de 21.9.10, alegadamente por violação do disposto no art.º 259.º do CPC (como os demais que se indicam) e, daí, ter-se cometido nulidade processual, é manifesta a falta de razão da recorrente.

O preceito em causa respeita ao dever de o tribunal enviar, entregar ou disponibilizar às partes cópias ou fotocópias legíveis da decisão e seus fundamentos em ordem ao direito constitucionalmente garantido de informação efectiva quanto ao conteúdo das decisões judiciais.

Mas isso é matéria que aqui não está em causa, manifestamente deslocado sendo a invocação daquele preceito legal.

O que se pretenderia dizer, supõe-se, é que o despacho em causa seria obscuro, ininteligível, passível de esclarecimento à luz dos art.ºs 669.º, n.º 1, alín. a) e 666.º, n.º 3.

Não é, contudo, e a tanto não obsta a circunstância de a A. não ter acesso à numeração do processo na versão electrónica.

Antes de mais, alguma dúvida que tivesse estava na sua mão dissipá-la, quanto mais não fosse no âmbito do princípio processual da cooperação.

Depois, a notificação em causa de “deferimento do requerido, por 10 dias” claramente se reportava ao requerimento da A., formulado dias antes, pois outro não havia pendente, a pedir a prorrogação do prazo para dar cumprimento ao convite do tribunal para juntar as facturas para onde a própria A. remetera a alegação da factualidade correspondente à causa de pedir.

Daí que a sua conduta omissiva nada tenha que ver com a falta de clareza da notificação, que de nenhuma irregularidade (muito menos nulidade) padece.

Improcede, assim, a conclusão recursiva.


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b) – Quanto à outra questão, da falta de causa de pedir, importa começar por salientar que o convite para junção das facturas não visou a instrução do processo, isto é, a elas não se ateve enquanto documentos qua tale (e que em princípio, nos termos do n.º 2 do art.º 523.º podem ser juntos até ao encerramento da discussão em 1.ª instância), mas enquanto portadores de factualidade essencial à decisão da causa, com vista fosse à fixação dos limites objectivos do caso julgado, fosse ao princípio do contraditório, como fossem os fornecimentos efectuados pela A. à R. e as respectivas datas, valores e vencimentos, tendente, antes de mais, à elaboração do despacho saneador/condensação.

Tratou-se de alegação dos factos integradores da causa de pedir por remissão para o conteúdo dos próprios documentos (facturas), técnica expressamente assumida pela recorrente no requerimento de injunção e que vem sendo acolhida por alguma jurisprudência, precisamente considerando que os documentos, nesse caso, são parte integrante do articulado.[1]

Ora, não tendo a A. junto os documentos, na sequência das notificações adrede efectuadas, outra conclusão não podia extrair-se senão a da falta, pura e simples, da causa de pedir.

Esgrime a recorrente que a causa de pedir está bem explicitada no requerimento de injunção, que se trata de um contrato de fornecimento de bens prestados, não se confundindo com as facturas, que são meros meios de prova.

Compulsado esse requerimento, dele resulta que a discriminação das mercadorias e serviços fornecidos foi remetida para as facturas “emitidas entre 4.2.09 e 20.3.09”, bem como (infere-se) o respectivo valor e datas de vencimento.

Como salienta A. dos Reis[2], a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar.

Exemplificando, “a doação, a venda, o testamento, considerados em abstracto, são simples nomes, classes ou categorias legais, que nenhum efeito jurídico podem produzir; para que o direito surja, é indispensável um certo acto de doação, um determinado contrato de venda, uma especial disposição testamentária”, a que poderia acrescentar-se o contrato de fornecimento, que se traduz, aliás, em sucessivos contratos de compra e venda.[3]

E é assim porque o nosso direito processual (art.º 498.º) se funda no princípio da substanciação, de acordo com o qual a causa de pedir é enformada, além do mais, pelas características da facticidade e da concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos subsumíveis às normas legais substantivas.[4]

Face ao exposto, o requerimento de injunção não é suficiente quanto à causa de pedir já que, omitindo-se o teor das facturas para que remeteu e a junção destas, equivale esse comportamento processual à falta de indicação do contrato de fornecimento em toda a sua amplitude, necessária ao julgamento da causa.

Sustenta também a recorrente que a R. se defendeu em termos de ter sanado a falta da causa de pedir face ao reconhecimento de que interpretou convenientemente a petição em que se traduziu o requerimento de injunção.

Assim não foi.

A R. impugnou não só os valores devidos como os próprios fornecimentos no respeitante aos quantitativos de combustíveis, mas fê-lo em abstracto, sem se saber se de acordo com os fornecimentos efectuados na perspectiva da A. que, de todo ausentes da petição (e da posterior réplica), não permitem, desde logo, ser objecto de selecção em base instrutória para serem submetidos ao pertinente julgamento de facto.

E era à A. a quem competia o respectivo ónus de alegação (art.º 264.º, n.º 1).

Soçobram, assim, as alegações recursivas, havendo que manter a decisão recorrida, rectificada, de absolvição da R. da instância, por falta de concreta causa de pedir, o que constitui excepção dilatória de nulidade de todo o processo, de conhecimento oficioso (art.ºs 193.º, n.ºs 1 e 2, 288.º, n.º 1, alín. b), 494.º, alín. b) e 493.º, n.ºs 1 e 2 e 495.º).


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3. Sumariando

- Há falta de causa de pedir, geradora de nulidade de todo o processo, de conhecimento oficioso, com a consequente absolvição da instância, se a A. alega, em requerimento de injunção, por remissão para o conteúdo de facturas e, notificada, não procedeu à junção de tais documentos.


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            4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Freitas Neto


[1] V. a resenha jurisprudencial em Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I, 2.ª ed., pág. 201.
[2] “Comentário ao Código de Processo Civil”, 2.º, pág. 375.
[3] V. a apreciação de situação similar e a conclusão de indefinição (e ineptidão) da causa de pedir em A. dos Reis, ob. cit., pág. 372.
[4] V. Castro Mendes, “Conceito de Prova”, pág. 138, A. dos Reis, “CPC, Anot.”, II, pág. 353, Ac. STJ de 3.2.05, Proc. 04B4773, em www.dgsi.pt.