Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
648/12.0GASEI-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
SENTENÇA
PENA
Data do Acordão: 01/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 281.º DO CPP, ARTS. 69.º E 292.º, DO CP
Sumário: I - A injunção de proibição de conduzir veículos com motor determinada na suspensão provisória do processo, cumprida pelo arguido, deve ser descontada no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, decretada na sentença condenatória proferida no mesmo processo, na sequência do prosseguimento do processo determinado pela revogação daquela suspensão.

II - A pena acessória de proibição de proibição de conduzir veículos com motor imposta ao arguido na sentença condenatória proferida nos autos teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção que lhe foi imposta na anteriormente determinada suspensão provisória do processo. Os efeitos substantivos de uma e de outra, projectados na vida do arguido, seriam precisamente os mesmos, pois o respectivo cumprimento é feito da mesma forma.

III - As injunções consubstanciam comandos dados ao arguido para que cumpra determinadas obrigações, de facere ou de non facere, consistem em ‘equivalentes funcionais’ de uma sanção penal: só assim se explica que se espere delas a realização do mesmo interesse público, por via de regra e em alternativa, satisfeito através de uma pena. Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de índole especial penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa (Costa Andrade, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, 1988, pág. 353).

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

            No [já extinto] 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Seia o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A..., imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º, nº 1 e 69º, nº 1, a), do C. Penal.

Por sentença de 8 de Abril de 2014, transitada a 19 de Maio do mesmo ano, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, substituída pela prestação de 80 horas de trabalho a favor da comunidade, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 3 meses e 20 dias.

Em 29 de Abril de 2014 o arguido entregou a carta de condução em juízo e, na mesma data, requereu que à pena acessória decretada fossem descontados 3 meses e 10 dias, correspondentes à injunção de entrega em juízo da sua carta de condução por tal período, que cumpriu no âmbito dos autos, onde havia sido decretada a suspensão provisória do processo e, em consequência, se reconhecesse que tinha apenas a cumprir, 10 dias de inibição de conduzir, com referência à pena acessória.

Por despacho de 5 de Junho de 2014 foi indeferido o requerido desconto na pena acessória decretada.


*

            Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1 – O arguido foi condenado, em processo comum, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de € 5,00, substituída por 80 horas de trabalho a favor da comunidade e, bem assim, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos pelo período de 3 meses e 20 dias, decisão essa já transitada em julgado;

2 – Ora, ainda em sede de inquérito, presente ao Ministério Público, foi proposto ao arguido a suspensão provisória do processo, conforme consta de fls …, o que o arguido aceitou, ficando obrigado a proceder à entrega de € 400,00 à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Seia e, ainda, à entrega da carta de condução no processo pelo prazo de 3 meses e 10 dias;

3 – Sucede que o arguido apenas entregou a sua carta de condução, conforme termo de entrega junto aos autos a fls … e procedeu ao levantamento da mesma 3 meses e 10 dias depois, sem que tenha conduzido durante esse mesmo período, não tendo, porém, entregue a quantia que lhe foi fixada à supra referida entidade, pelo que o presente processo prosseguiu os seus termos e o arguido acabou por ser julgado em processo comum;

4 – Nessa decorrência, foi condenado, como supra se referiu, na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de 3 meses e 20 dias, tendo, após o trânsito em julgado daquela decisão condenatória e aquando da entrega da carta de condução, requerido, então, que fosse descontado ao período de 3 meses e 20 dias o tempo que já havia estado impedido de conduzir, de 3 meses e 10 dias, no âmbito da suspensão provisória do processo;

5 – Pretensão, de desconto, que foi indeferida por despacho proferido em 5 de Junho de 2014, tendo, entretanto, cumprido a sanção acessória pelo período remanescente, de 10 dias, ou seja, entregou a carta no dia 29 de Maio e procedeu ao seu levantamento no dia 8 de Junho, conforme melhor resulta dos autos a fls …;

6 – Face a tal, o arguido já cumpriu integralmente a pena acessória, pelo que não poderá ser obrigado a cumprir novamente a inibição de 3 meses e 10 dias ao abrigo do mesmo processo e pela prática do mesmo crime;

7 – Com efeito, tendo o arguido cumprido a obrigação de entregar a sua carta de condução e de se abster de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 10 dias, em sede de suspensão provisória do processo, tal período deve ser descontado naquele em que veio a ser condenado e, em consequência, a sanção deve ser considerada cumprida nessa parte;

8 – E, no caso dos autos, o arguido apenas teria de cumprir o período remanescente de 10 dias, o qual já cumpriu, como melhor resulta dos autos;

9 – Veja-se que a condenação teve em vista sancionar a condução de veículo em estado de embriaguez, a injunção cumprida pelo arguido teve em vista sancionar, precisamente, o mesmo facto e a injunção é cumprida da mesma forma como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenado;

10 – Na verdade, a injunção de proibição de conduzir veículos com motor que consta no elenco das injunções aplicáveis no âmbito da suspensão provisória do processo é, exactamente, aquela que foi aplicada ao recorrente, injunção que aquele cumpriu na íntegra;

11 – A qual mais não é do que a sanção acessória de proibição de conduzir, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, pois tem a mesma finalidade, a mesma justificação e o mesmo modo de execução;

12 – Face a tal, a questão aqui colocada consiste em saber se tendo o arguido cumprido a obrigação de entregar a sua carta de condução e de se abster de conduzir veículos motorizados por 3 meses e 10 dias, deve ou não ser considerada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses e 20 dias em que foi condenado, em consequência da revogação da suspensão provisória do processo;

13 – Questão em relação à qual deverá ser dada resposta afirmativa, já que a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença proferida na sequência da revogação daquela suspensão;

14 – Pelo que a douta decisão recorrida operou uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 69º do CP, 281.º e 282.º do CPP;

15 – Pelo exposto, a decisão recorrida não pode permanecer, antes deve ser substituída por outra que considere cumprida a sanção acessória pelo período de 3 meses e 20 dias, sendo 3 meses e 10 dias pelo desconto do tempo já cumprido em sede de suspensão provisória e 10 dias pelo cumprimento após o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, decidindo como se conclui se fará a devida e costumada JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões:

            - A injunção de entrega da carta e abstenção e conduzir fixada aquando da suspensão provisória do processo, tem uma natureza diferente da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a que alude o art. 69.º do C.Penal, pois que não lhe foi imposta, antes voluntariamente aceite, não assumindo, como tal, o carácter de pena ou sequer de sanção acessória.

                - A duração de tais respostas penais é diferente, já que a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é fixada entre um mínimo de três meses e um máximo de três anos – cfr. artº 69º, nº 1, do C.Penal, ao passo que a injunção de abster-se de conduzir não poderá exceder o prazo máximo previsto para a suspensão provisória do processo, ou seja dois anos – cfr. art.º 282º, n.º 1, do C.P.Penal.

- A aplicação de pena acessória de proibição de conduzir impede, enquanto a mesma durar, que o condenado obtenha novo título de condução – cfr. art.º 18º, nº 1, al. e), do Regulamento Legal para a Habilitação para Conduzir, o que não se mostra previsto para a situação de injunções aplicadas em sede de suspensão provisória do processo.

- A aplicação da pena acessória de proibição de conduzir é comunicada e objecto de registo junto da ANSR, passando a constar do registo individual de condutor – cfr. art.º 4º do D.L. n.º 317/94, de 24/12 (com a redacção que lhe foi dada pelas subsequentes alterações) – o que não sucede com a injunção de abstenção de conduzir.

- No caso da pena acessória, e quando esteja em causa título de condução emitido em país estrangeiro com valor internacional, a apreensão pode ser substituída por anotação naquele título pelo IMT, da proibição decretada e se tal não for viável a decisão será comunicada ao organismo competente do país que tiver emitido o título art.º 69º, nº 5, do C.Penal – sendo que tal solução/procedimento não está previsto – nem podia – para quando é aplicada a injunção de abstenção de conduzir e entrega da carta de condução, pois que os seus regimes não são idênticos.

- Também são diferentes as consequências da não entrega da carta de condução numa e noutra situação, pois que caso o arguido, na decorrência da aplicação de uma pena acessória, não cumpra a obrigação de entregar a sua carta de condução, tal situação é comunicada pela secretaria ao Ministério Público – art.º 69º, nº 4, do C. Penal – sendo ordenada a apreensão da carta de condução – cfr. art.º 500º, nº 3, do C. P. Penal – podendo aquele incorrer na prática de um crime de desobediência, ao passo que se não cumprir a injunção de não entregar a sua carta de condução ou se conduzir após a ter entregue no âmbito de uma suspensão provisória do processo isso determina o prosseguimento do processo – cfr. art.º 282º, nº 4, al. a), do C.P.Penal.

                - Também são diferentes as consequências da violação dessas duas respostas penais, caso o agente conduza no período em que vigora a pena acessória ou a injunção, já que no primeiro caso incorre na prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo art.º 353º do C. Penal (podendo, em abstracto, o arguido sofrer uma outra condenação), sendo que caso conduza durante o período em vigore a injunção de se abster de conduzir, o inquérito deixa de estar suspenso provisoriamente, prosseguindo o processo os seus termos, sendo que o arguido apenas verá apreciada a sua responsabilidade criminal relativamente ao crime cujo inquérito foi suspenso provisoriamente.

- De acordo com o nº 4, alínea a), do art. 282º do Cód. Proc. Penal, se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas, devendo estar ser entendidas não apenas as dádivas ou doações pecuniárias mas também outras prestações, como as de abster-se de certas actividades (como a de conduzir) ou mesmo as de efectuar serviço de interesse público.

- Caso tivesse sido fixada uma injunção de entregar 500 € a favor do Estado ou a prestação de 100 horas de trabalho de interesse comunitário, que o arguido tivesse cumprido, mas o processo tivesse de prosseguir por qualquer outra razão (ex: prática de crime durante o período de suspensão provisória) e fosse o arguido condenado numa qualquer pena, haveria lugar a algum desconto e, em caso afirmativo como se procederia se o quantitativo fixado fosse inferior ao já prestado? Ficaria o condenado com um crédito? E qual seria, então, o sentido útil do art.º 282º, nº 4, do C.P. Penal?

TERMOS EM QUE, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

ASSIM, farão V. Ex.as., como sempre, JUSTIÇA.


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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público e realçando que a suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento o que afasta a possibilidade de o arguido ter sido julgado duas vezes pelo mesmo facto, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, o período em que o arguido não conduziu por ter entregue a respectiva carta de condução, no âmbito de injunção fixada na suspensão provisória do processo decretada em fase anterior do mesmo processo crime.


*

            Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

            “ (…).

            Fls. 127 e 128: Veio o arguido requerer o desconto do período de 3 meses e 10 dias (correspondente ao tempo durante o qual entregou a sua carta de condução aos presentes autos, para cumprimento de injunção em sede de suspensão provisória do processo) à sanção acessória de inibição de conduzir que veio a ser aplicada em sede de sentença de 3 meses e 20 dias.

Acompanhamos na íntegra a promoção do Ministério Público que antecede. Com efeito, o período em que o arguido teve a sua carta junta aos presentes autos no domínio da suspensão provisória determinada não tem o carácter de pena acessória, sendo que, o art.º 282º, nº 4, do C.P.Penal é claro ao estabelecer que as prestações feitas não podem ser repetidas em caso de prosseguimento do processo, como, ocorreu e terá de ocorrer no presente caso. Não há, assim, lugar a qualquer desconto numa pena acessória de uma injunção aplicada (dado que a natureza de ambas é distinta).

Importa salientar que o não desconto do período em que o arguido entregou a carta de condução nestes autos, no âmbito de injunção aplicada em sede de suspensão provisória do processo, não representa qualquer surpresa para o arguido. Na verdade, conforme resulta de fls. 46 e 47, antes de se ter declarado o incumprimento de injunção aplicada em sede de suspensão provisória do processo, e se ter determinado o prosseguimento do processo, o Tribunal notificou novamente o arguido para proceder ao cumprimento da injunção em falta, alertando-o expressamente que, prosseguindo o processo e sendo condenado, teria de cumprir sanção acessória de proibição de conduzir, não se tendo em conta o período em que o arguido entregou a carta no âmbito da suspensão provisória do processo.

Nestes termos, indefere-se o requerido desconto de 3 meses e 10 dias no cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir veículos aplicada em sede de sentença devendo o arguido cumprir todo o período de sanção acessória aplicada (3 meses e 20 dias).

Conforme promovido, e considerando que poderá haver entendimentos contrários ao presente despacho, e de modo a não prejudicar o condenado, determina-se que decorridos 10 dias desde a entrega pelo arguido da sua carta de condução (lapso de tempo a cumprir caso o pretendido desconto fosse admissível) seja a carta de condução restituída ao condenado.

O cumprimento da sanção acessória aplicada apenas será retomado após trânsito em julgado do presente despacho, devendo o arguido, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado do presente despacho, entregar a sua carta de condução neste Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de a mesma lhe ser apreendida e praticar um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, b), do Código Penal.

Poderá também o condenado, caso assim o entenda, declarar que abdica desse desconto, prosseguindo, nessa eventualidade, o cumprimento da execução da pena acessória.

(…)”.

A promoção nele referida tem o seguinte teor, na parte relevante:

“ (…).

Fls. 127/8: Em nosso entender, o período em que o arguido teve a sua carta junta aos presentes autos no domínio da suspensão provisória determinada, não tem o carácter de pena acessória, sendo que, o art.º 282º, nº 4, do C.P.Penal é claro ao estabelecer que as prestações feitas não podem ser repetidas em caso de prosseguimento do processo, como, ocorreu e terá de ocorrer no presente caso.

Deste modo, consideramos que não há lugar a qualquer desconto numa pena acessória de uma injunção aplicada (dado que a natureza de ambas é distinta).

Todavia, e considerando que poderá haver entendimentos contrários, e de modo a não prejudicar o condenado, julgamos prudente que a carta de condução do condenado esteja apreendida durante 10 dias (1apso de tempo a cumprir caso o pretendido desconto fosse admissível), após o que deverá ser restituída ao condenado – caso esta nossa posição tenha acolhimento – aguardando-se o eventual trânsito em julgado de uma decisão que determine essa impossibilidade de desconto ou a manifestação por parte do condenado que abdica desse desconto, circunstâncias após as quais seria retomado o cumprimento da execução da pena acessória.

(…)”.


*

            Com relevo para a questão proposta, colhem-se ainda dos autos os seguintes elementos:

                        i) Por despacho de 2 de Janeiro de 2013, proferido quando os autos seguiam os termos do processo especial sumário, a Digna Magistrada do Ministério Público determinou a suspensão do processo, pelo período de quatro meses, condicionada às seguintes injunções e regras de conduta:

            - Entrega pelo arguido da quantia de € 400 à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Seia, fazendo a prova do pagamento nos autos;

            - Entrega pelo arguido da carta de condução no tribunal ou no posto policial da área da sua residência, no prazo de dez dias após a notificação da suspensão provisória dos autos, ficando apensa aos mesmos durante o período de 3 meses e 10 dias;

            - Abstenção pelo arguido de conduzir veículos automóveis de qualquer categoria, durante o período de 3 meses e 10 dias em que a carta de condução se encontrar junta aos autos.   

            ii) Por despacho de 2 de Janeiro de 2013, a Mma. Juíza manifestou a sua concordância com a suspensão provisória do processo, pelo período indicado e com as injunções enunciadas.    

            iii) Em 11 de Janeiro de 2013 o arguido entregou a carta de condução no tribunal, título que lhe foi restituído em 22 de Abril de 2013.

            iv) Não tendo sido tempestivamente satisfeita a injunção de entrega de € 400 à supra identificada associação, por despacho de 12 de Julho de 2013 foi ordenada a notificação do arguido para, em dez dias, comprovar, documentalmente, o seu cumprimento;

            v) Por despacho de 24 de Setembro de 2013 foi decidido, face à não satisfação da injunção de entrega de € 400 no prazo fixado, declarar o incumprimento do arguido e determinar o prosseguimento do processo, com a consequente remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos do art. 384º, nº 4 do C. Processo Penal. 

            vi) Em 25 de Novembro de 2013 o Ministério Público requereu o julgamento do arguido, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º, nº 1 e 69º, nº 1, a), do C. Penal.

vii) Em 8 de Abril de 2014 foi proferida sentença que condenou o arguido, pela prática do imputado crime, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, substituída pela prestação de 80 horas de trabalho a favor da comunidade, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 3 meses e 20 dias.


*

*


            1. A questão submetida à apreciação da Relação consiste, como já se disse, em saber se o período em que a carta de condução do arguido esteve retida à ordem do tribunal, como objecto de injunção fixada na determinação da suspensão provisória do processo, deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, decretada ao arguido em sentença condenatória proferida na sequência do prosseguimento do processo pelo incumprimento de outras injunções fixadas. E certo é que, quanto a ela, a jurisprudência das Relações não tem sido uniforme (no sentido das inadmissibilidade da dedução, o Ac. R. de Lisboa de 6 de Março de 2012, processo nº 282/09.2SILSB.L1, e no sentido inverso, os Acs. da R. de Coimbra de 10 de Dezembro de 2014, processo nº 23/13.0GCPBL.C1, da R. de Évora de 11 de Julho de 2013, processo nº 108/11.7PTSTB.E1 e da R. de Guimarães de 6 de Janeiro de 2014, processo nº 99/12.7GAVNC.G1, todos in www.dgsi.pt).

            Para nós, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária que é muito, a razão está com os que entendem haver lugar ao desconto.

            2. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto pelo art. 292º, nº 1 do C. Penal é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, e ainda com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do art. 69º, nº 1, a) do mesmo código. O recorrente foi condenado pela prática deste crime de perigo abstracto e, consequentemente, foi-lhe decretada a pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, substituída pela prestação de 80 horas de trabalho a favor da comunidade, e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 3 meses e 20 dias.

Dizem-se acessórias as penas cuja aplicação na sentença condenatória é feita conjuntamente com uma pena principal [no nosso ordenamento, são penas principais a prisão e a multa]. No entanto, as penas acessórias são, verdadeiras penas, ligadas que estão à culpa do agente e justificando-se a sua aplicação por razões de prevenção, obedecendo a sua determinação concreta ao critério legal fixado no art. 71º do C. Penal para a determinação da medida concreta das penas principais.

Estamos pois no âmbito de uma solução de conflito prevista no C. Processo Penal, no âmbito do julgamento e consequente aplicação da pena, principal e acessória.

            Diferentemente se passam as coisas com a suspensão provisória do processo, uma das soluções de consenso para a resolução de questões penais, previstas no C. Processo Penal. Aplicável à ‘pequena criminalidade’, o instituto visa, além do mais, a celeridade na resolução da conflitualidade, o descongestionamento do sistema de aplicação da justiça penal, a diminuição da estigmatização do arguido e a sua reintegração social e ainda a melhor satisfação dos interesses da vítima (cfr. Rui do Carmo, A Suspensão Provisória do Processo no Código de Processo Penal Revisto, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Nº 9 (Especial), Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal, Estudos, pág. 322).   

            Aqui, sendo o crime objecto do procedimento punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, havendo concordância do arguido e do assistente, não existindo condenação anterior nem aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza, não havendo lugar a medida de segurança de internamento, não sendo o grau de culpa elevado e sendo de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta dão resposta suficiente às exigências de prevenção requeridas pelo caso concreto, o Ministério Público determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão provisória do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta (art. 281º, nº 1 do C. Processo Penal) que não ofendam a dignidade deste (nº 4 do mesmo artigo).

            As injunções, que consubstanciam comandos dados ao arguido para que cumpra determinadas obrigações, de facere ou de non facere, consistem em ‘equivalentes funcionais’ de uma sanção penal: só assim se explica que se espere delas a realização do mesmo interesse público, por via de regra e em alternativa, satisfeito através de uma pena. Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de índole especial penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa (Costa Andrade, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, 1988, pág. 353).

            Elas encontram-se exemplificativamente enunciadas no nº 2 do art. 281º do C. Processo Penal. Porém, tratando-se de crime punível com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor (nº 3 do mesmo artigo).

            Em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta ou se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, o processo prossegue – cessando portanto, a suspensão em curso – e as prestações feitas não podem ser repetidas (art. 282º, nº 4 do C. Processo Penal). 

           

            De tudo isto resulta a distinta natureza da pena prevista no art. 69º, nº 1 do C. Penal, e da injunção prevista no art. 281º, nº 3 do C. Processo Penal. A primeira é uma pena criminal, embora acessória, enquanto a segunda, como se deixou dito, é apenas uma sanção de índole especial penal. Aliás, quanto a esta distinta natureza, todos estão de acordo.

            3. Mas a distinta natureza jurídica da pena acessória e da injunção não pode, por si só, fundamentar o indeferimento do pretendido desconto. Vejamos.

            A pena acessória de proibição de proibição de conduzir veículos com motor imposta ao arguido na sentença condenatória proferida nos autos teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção que lhe foi imposta na anteriormente determinada suspensão provisória do processo. Os efeitos substantivos de uma e de outra, projectados na vida do arguido, seriam precisamente os mesmos, pois o respectivo cumprimento é feito da mesma forma.

            Tendo o processo prosseguido, na sequência do incumprimento de outra injunção imposta [a de entrega da quantia de € 400 à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Seia], vedada ficou, nos termos do art. 282º, nº 4 do C. Processo Penal, a repetição das prestações feitas. A proibição da repetição das prestações feitas só é aplicável àquelas cujo objecto possa ser repetido isto é, possa ser reavido pelo autor respectivo. Sucede que o objecto da injunção em causa não é, obviamente, repetível e, por outro lado, a questão sub judice não se coloca sequer ao nível da repetição da prestação.

A Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro [entrada em vigor a 23 de Março de 2013], deu nova redacção ao nº 3 do art. 281º do C. Processo Penal, que passou a ser a seguinte: Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.

Assim, o arguido que hoje pretenda beneficiar da suspensão provisória do processo por, entre outros, crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tem obrigatoriamente que se sujeitar a esta injunção, o que revela o propósito do legislador em estabelecer uma certa ‘equivalência’ entre a injunção e aquela pena acessória.

Com efeito, e como dá conta o supra citado Ac. da R. de Évora de 11 de Julho de 2013, a norma em questão resulta de uma inversão da posição do legislador que, partindo da impossibilidade de suspender provisoriamente o processo quando estivesse em causa crime doloso para o qual estivesse legalmente prevista pena acessória de conduzir veículos com motor [por entender que «a possibilidade legal de suspensão provisória do processo relativamente a este tipo de ilícitos tem esvaziado de conteúdo útil a função da pena acessória de inibição de conduzir e determina disfuncionalidades em face do regime legal aplicável aos casos em que a condução sob o efeito do álcool é sancionada como contra-ordenação»] veio a consagrar a posição oposta, no seguimento de críticas, quer de operadores judiciários, quer da doutrina. Cita-se, a propósito, o Parecer dos docentes da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Maria Fernanda Palma, Paulo Sousa Mendes, João Gouveia de Caíres, João Matos Viana e Vânia Costa Ramos) mencionado no mesmo Ac. da R. de Évora, segundo o qual «(…) a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento. O que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta. Em tese, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, também pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, aliás tornada efectiva mais prontamente do que se fosse aplicada como resultado de uma condenação transitada em julgado».

O arguido cumpriu a injunção de proibição de conduzir veículos com motor. E cumpriu-a da mesma forma como seria cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, em que foi condenado ou seja, através da efectiva entrega do título de condução e, suposta, abstenção de condução.

Ora, se a injunção não é mais do que a pena acessória proibição de conduzir veículos com motor aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, seria desrazoável sujeitar o arguido a cumprir duas vezes a mesma ‘pena’, quando aquelas, não obstante a sua diferente natureza jurídica, comungam o fim e o modo de execução.

Aliás, para uma situação paralela, a diferente natureza jurídica da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, por um lado, e da pena de prisão, por outro, não constitui obstáculo a que aquelas sejam descontadas nesta, e mesmo, em certos casos, que aplicadas as primeiras em processo distinto daquele em que foi decretada a segunda (art. 80º, nº 1 do C. Penal). Reconhece-se que para a questão em apreço, não existe norma a prever o desconto, circunstância que, pelas razões expostas, não deve constituir impedimento à sua realização.

4. Em síntese conclusiva, a injunção de proibição de conduzir veículos com motor determinada na suspensão provisória do processo, cumprida pelo arguido, deve ser descontada no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, decretada na sentença condenatória proferida no mesmo processo, na sequência do prosseguimento do processo determinado pela revogação daquela suspensão.

Deste modo, tendo o arguido sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses e 20 dias, tendo cumprido desta pena, o período de 10 dias [uma vez que entregou a carta de condução em juízo em 29 de Abril de 2014, data em que requereu o indeferido desconto, e o despacho recorrido determinou, por cautela, a sua restituição, decorridos que fossem dez dias], e tendo cumprido a injunção de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de3 meses e 10 dias, procedendo ao desconto, há que considerar extinta, pelo cumprimento, a pena acessória.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam o despacho recorrido e declaram extinta, pelo cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, decretada na sentença condenatória proferida nos autos.


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            Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

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Coimbra, 14 de Janeiro de 2015


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves - adjunto)