Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
430/20.1TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10-04
Sumário: O perdão previsto no art. 2.º da lei n.º 9/2020, de 10-04, verificados que sejam os demais requisitos legais, deve ser aplicado não só a condenados que estejam em reclusão à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), mas também a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a ficar naquela situação.
Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito dos autos n.º 430/20.1TXCBR-A do Tribunal de Execução das Penas de Coimbra, juiz 2, por despacho de 17.09.2020 foi declarada perdoada, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020, a pena de prisão aplicada ao condenado M. no processo n.º 161/18.2GAVLE.

2. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
1. O perdão previsto da lei 9/2020, de 10/04, que estabeleceu um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, não é aplicável aos condenados que ainda não eram reclusos à data da sua entrada em vigor, mesmo que a sentença condenatória tenha transitado em julgado antes dessa data – 11/09/2020.
2. Este é o entendimento sufragado no parecer 10/20 do Conselho Consultivo da PGR: “(…) O âmbito de aplicação subjetivo desta lei é muito claro. Como refere Nuno Brandão: «as circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso. As razões excecionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excecional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1 e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos – sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excecional. (…) Na verdade, o elemento gramatical é bastante claro: «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art.2.º, n.º 1); «são também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art. 2.º, n.º 2); e «o perdão (…) é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei» (art. 2.º, n.º 7). Em todos os casos, é pressuposto desta medida de graça que o beneficiário seja recluso e esteja condenado por sentença transitada em julgado, id est, que esteja em cumprimento de pena.”
3.As medidas excecionais previstas nesta lei visaram, fundamentalmente, uma célere redução, com a equidade e proporcionalidade possíveis, do número de reclusos, de molde a conseguir-se uma mais eficaz resposta do sistema prisional em situação de infeção pelo coronavírus; daí que na lei se aluda sempre, e no âmbito subjetivo de aplicação, a condenados reclusos.
4. Ao interpretar a lei, o intérprete e aplicador não pode nunca desconsiderar a correspondência verbal com o diploma; e ao fixar-lhe o seu sentido e alcance, deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - cf. artigo 9º, do código civil.
5.As normas legais excecionais – e esta lei 9/2020 é inequivocamente uma lei excecional - não comportam aplicação analógica – cf. artigo 11º, do mesmo código -, sendo que as leis de amnistia ou de perdão, como normas excecionais que são, não admitem interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas.
6. O que lei 9/2020 consagrou, entre outras medidas, foi um perdão excecional e não uma amnistia de crimes, num período de Estado de Emergência, entretanto cessado.
7. A dinâmica da lei 9/2020 deve respeitar os marcos previamente definidos e reportar-se a reclusos que o sejam no momento da sua entrada em vigor - 11 de Abril - e que no período da sua vigência adquiram as demais condições de perdão – remanescente inferior a dois anos em situação de cumprimento sucessivo de penas ou pena única inferior a dois anos atingido que seja o meio dela, posto que os crimes cometidos não estejam excluídos do seu âmbito de aplicação –, e termina nesses limites, não podendo ser extrapolada, comparando-se situações e injustiças dela decorrentes, sob pena de se poder dar o caso de o perdão assentar em “vontades” exteriores ao próprio sentido legal, como sejam, por exemplo, os casos de condenados contumazes que se apressariam a apresentar-se para prisão para que lhes fosse de seguida perdoada a pena, os casos de condenados em pena em execução em regime de permanência na habitação, que não foram visados pelo perdão e que para terminar com esse regime mais não teriam do que forçar a revogação desse regime, cortando a pulseira eletrónica, e, de seguida, serem presos para logo serem libertados por via da aplicação desse perdão.
8. Estamos perante uma lei que previu um perdão por razões sanitárias muito específicas e, por conseguinte, tem ela de ser interpretada dentro dos limites estabelecidos, com as consequências decorrentes, quer no que tem de justo, quer no que possa ter de injusto aos olhos da comunidade.
9. E não valerá o argumento de que a situação de pandemia ainda acontece, porque, por essa via, e parece que a pandemia veio para ficar, nunca mais um condenado cumprirá pena inferior a dois anos, ainda que os tribunais de condenação os continuem a julgar, a condenar e a prender, num trabalho inglório, porque logo o tribunal de execução das penas os irá libertar, fazendo uma interpretação da lei que acaba por transformar um perdão excecional numa amnistia de crimes.
10. Não podemos perder de vista o carácter excecional desta lei e as específicas circunstâncias que motivaram a sua publicação, sendo que a diferenciação de tratamento assente em motivações objetivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade.
11.Decidiu mal a senhora juíza ao declarar perdoada a pena e ordenar a libertação do condenado.
12. O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1º e 2º da lei 9/2020, de 10/04.
13. Deve ser revogado e substituído por outro que declare não perdoada a pena, emitindo-se o necessário e novo mandado de detenção.
Vossas Excelências decidirão.

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. O arguido não respondeu ao recurso.

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso merecer provimento.

6. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP não houve reação.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
Tende presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, importa decidir se, como defende o recorrente, do perdão a que se reporta a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril só podem beneficiar os condenados que à data da sua entrada em vigor já se encontravam recluídos em meio prisional.

2. A decisão recorrida
Ficou a constar da decisão em crise [transcrição parcial]:
Da aplicabilidade da Lei n.º 9/2020 de 10 de Abril.
O condenado M. encontra-se em cumprimento de uma pena única de 1 ano, 8 meses e 29 dias de prisão, pelo cometimento de um crime de condução sem habilitação legal por decisão proferida no proc. 161/18.2GAVLF.
Tal decisão transitou em julgado no dia 11/12/2019.
O condenado encontra-se em cumprimento da referida pena desde o dia 14/9/2020, como resulta de fls. 1.
*
A pena aplicada não é de duração superior a 2 anos de prisão – art. 2º nº 1.
O crime pelo qual foi condenado não se integra no elenco de crimes a que aludem as várias alíneas do nº 6 do art. 2º, relativamente aos quais o perdão não é aplicável e não foram praticados contra nenhuma das pessoas indicadas no art. 1º nº 2 da referida Lei.
*
A Lei 9/2020 de 10 de Abril ainda hoje se encontra em vigor, posto que não foi até à data aprovado o diploma legal a que se refere o art. 10º da referida Lei.
*
Não se conhecem quaisquer outras penas de prisão a cumprir.
*
De acordo com o disposto no art. 2º nº 1 da citada Lei “são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”.
*
No presente caso, temos como inteiramente aplicável a Lei 9/2020 de 10 de Abril ao condenado, pela seguinte ordem de razões.
Analisando desde logo a Exposição de Motivos da proposta de lei que lhe deu origem, constata-se que a referida lei se insere no contexto da “adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão” e que por isso, prevê “medidas extraordinárias” e entre elas o “perdão das penas de prisão aplicadas por decisão transitada em julgado, cuja duração não exceda os dois anos ou, no caso de penas aplicadas de duração superior, se o tempo remanescente até cumprimento integral da pena for também igual ou inferior a dois anos.
Tal lei, de resto, institui o “Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”.
O perdão nela previsto é uma medida absolutamente excecional, que tem como único objetivo retirar das prisões reclusos condenados que estejam a dois ou menos anos do termo da pena ou das respetivas penas. Por tal razão, e ao contrário, por exemplo, da Lei 29/99, de 12/5, o perdão (bem como o regime especial de indulto, o regime extraordinário de licença de saída administrativa e a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional), só tem como destinatários reclusos condenados, por decisão transitada em julgado.
Quer face ao âmbito de aplicação da lei, quer pelos destinatários por ela visados, a competência para a sua aplicação foi naturalmente atribuída aos tribunais de execução de penas, ao contrário da tradição jurídica anterior em tal matéria. Na verdade, só estes tribunais, por se supor estarem ou virem a ficar na posse dos dados referentes a todo o elenco de penas que porventura um condenado tenha a cumprir, que se mostrem já em execução, é que se encontram em condições de determinar se o mesmo está ou poderá vir a ficar em condições de beneficiar da aplicação da lei do perdão. A atribuição da competência aos tribunais de execução de penas, conjugada com o que se acabou de referir, implica que a concessão do perdão só possa ocorrer depois de a reclusão se ter iniciado, pois que só a partir de tal momento se torna materialmente possível concluir qual o “tempo total de reclusão” que o condenado tem a cumprir, seja por referência a uma única pena ou a diversas penas em que tenha sido condenado.
A lei em presença não é, consequentemente, uma “normal” lei que institua um “perdão genérico e amnistia de pequenas infrações”, como o foi a Lei 29/99, de 12/5, a aplicar pena a pena e processo a processo, tanto mais que o perdão só pode ser aplicado uma única vez (nº 9 do art. 2º).
Realce-se que a Lei em apreciação continua a vigorar e a produzir todos os seus efeitos, pois que como já acima se referiu, ainda não foi publicado o diploma legal a que se refere o seu art. 10º.
A questão que se coloca é apenas a de saber se, perante as especificidades da referida lei, do contexto em que foi aprovada, e dos fins por ela visados, a sua aplicabilidade depende da circunstância de o condenado deter a condição de recluso à data da sua entrada em vigor.
E a resposta, cremos, é claramente negativa.
De um lado, porque a lei do perdão encontra-se plenamente vigente, o que encontra evidente explicação no contexto da pandemia que ainda assola o país e que continua claramente a justificar e a legitimar a manutenção de medidas de exceção direcionadas à atenuação dos efeitos que a mesma pode provocar nas prisões, designadamente por se continuarem a mostrar válidas as razões para não submeter autores de crimes de baixa densidade a um espaço público sanitariamente inseguro, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.
Depois, porque a manutenção da vigência de tal lei em período temporal alargado, como está a acontecer, implica, e face ao âmbito do perdão nela instituído, uma constante verificação sobre a sua aplicabilidade a reclusos que entretanto se encontrem em condições de dela poder beneficiar, bastando que, com o decurso do tempo, se venham a encontrar a dois ou menos anos do termo da pena ou das penas, e não estejam condenados pelos denominados crimes imperdoáveis, elencados no nº 6 do art. 2º.
Tal significa, assim, que mesmo depois da sua entrada em vigor, continuam a ser colocados em liberdade reclusos pela circunstância de o perdão, entretanto, lhes passar a ser aplicável, o que sem dúvida remete para um contexto de aplicação dinâmica da lei, em que sobressai claramente a ideia, segundo a qual, a aplicação do perdão não se esgotou no momento da sua entrada em vigor, antes se mantendo e renovando, como medida penitenciária, enquanto durar a situação de pandemia.
Ora se é assim, não se descortinam razões que permitam diferenciar, sem macular uma interpretação constitucionalmente conforme, os condenados que entram em reclusão após o início da vigência da lei, daqueles outros que já lá se encontravam quando a lei entrou em vigor, mais a mais quando, como se viu já, a referida lei, por continuar a vigorar, produz necessariamente todos os efeitos nela previstos.
Aliás, para que entendimento contrário se pudesse defender, necessário seria que o mesmo não potenciasse tratamento diverso entre pessoas colocadas perante situações materialmente idênticas, o que sem dúvida aconteceria caso se defendesse que o perdão instituído pelo Lei 9/2020 de 10 de Abril dependeria da não dominável circunstância de a reclusão se ter iniciado antes ou no dia imediatamente subsequente ao do início da sua vigência, o que claramente se traduziria numa interpretação restritiva dos seus termos literais, interpretação essa tão inadmissível quanto qualquer interpretação extensiva que se realizasse quando em causa estão providências de exceção, como aquelas que são instituídas por uma lei com estes contornos.
Acresce que as razões que estiveram subjacentes à aprovação da Lei 9/2020 de 10 de Abril mantêm-se ainda hoje intocadas, e fazem sentido tanto para aqueles que se encontravam em cumprimento de pena em contexto prisional antes da sua aprovação, como para todos os outros que entretanto passem a estar, não se vislumbrando ser possível considerar que os seus destinatários sejam unicamente os primeiros, já que todo o universo de reclusos no presente momento continua identicamente em situação de poder ser afetado ou potencialmente poderá sê-lo pela situação de pandemia que ainda legitima a manutenção da vigência da referida lei. Mais breve ainda: se é a situação de reclusão e tudo quanto ela co-envolve o indisputável único motivo que determinou o legislador a aprovar o regime excecional agora em apreciação, jamais se poderá considerar que a posterior aquisição dessa qualidade, se torne, afinal, o requisito impeditivo da sua aplicação.
Sendo este o sentido uniforme em que se vem decidindo em todos os juízos do TEP de Coimbra em situações como a presente, julgamos, em conclusão, que também ao agora recluso condenado, igualmente destinatário da Lei 9/2020 de 10 de Abril, o perdão deverá ser aplicado.
*
Nestas circunstâncias, e ao abrigo do disposto no art. 2º nº 1 da referida Lei 9/2020, julgo perdoada a pena aplicada ao condenado M. no supra citado processo 161/18.2GAVLF.
*
O perdão é sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que, à pena aplicada a tal infração, acrescerá à agora perdoada, nos termos do disposto no nº 7 do art. 2º.
(…)

3. Apreciação
A questão que cabe decidir traduz-se em saber se ao declarar perdoada, ao abrigo da Lei n.º 9/2020, de 10.04.2020, a pena de 1 ano, 8 meses e 29 dias de prisão em que o arguido M. foi condenado, por sentença transitada em julgado em 11.12.2019, proferida no âmbito do processo n.º 161/18.2GAVLF, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, cujo cumprimento iniciou no dia 14.09.2020, violou o tribunal a quo os artigos 1º e 2º do citado diploma legal.
Em virtude de o condenado ainda não se mostrar recluído à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 - o que só veio a suceder a 14.09.2020 - e dado a natureza excecional das respetivas normas, defende o Ministério Público que, sem violação dos sobreditos preceitos, não poderia o mesmo beneficiar da medida de graça (perdão), entendimento afastado no despacho recorrido, o qual, não deixou de antecipar e ponderar a argumentação sustentada pelo recorrente.
Resultando pacífica a verificação, no caso concreto, dos demais pressupostos (positivos e negativos) de que o legislador faz depender da aplicação do perdão, enfrentemos a problemática, não sem que antes se refira não ser a primeira vez que este Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre semelhante questão, a qual tem vindo a ser objeto de apreciação, no essencial, convergente – [cf., entre outros, os acórdãos de 09.09.2020 (proc. n.º 178/20.7TXCBR-B.C1), 30.09.2020 (proc. n.º 744/13.7TXCBR-P.C1), 28.10.2020 (proc. n.º 10/18.1TXCBR-C.C1)].
No acórdão de 30.09.2020, proferido no âmbito do processo n.º 47/20.0TXCBR-B.C1, deixámos exarado: “A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, veio estabelecer um Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo um leque de medidas, entre as quais o perdão parcial das penas de prisão. Excluindo a aplicação de tais medidas a condenados por crimes cometidos contra elementos das forças e serviço de segurança, bem assim das forças armadas, no exercício das respetivas funções (artigo 1.º, n.º 2), colocando igualmente fora do âmbito do perdão os condenados pela prática dos ilícitos típicos referidos nas diferentes alíneas do n.º 6, do seu artigo 2.º e ainda os casos em que o sujeito ativo revista alguma das qualidades aí previstas, no que à decisão a proferir importa, sob a epígrafe “Perdão”, dispõe o artigo 2.º:
“1 – São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
(…)
7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
8 – Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.
(…)”.
Prevê, por seu turno, o artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, na redação introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29.05, cuja entrada em vigor ocorreu em 03.06.2020, que a cessação da sua vigência acontecerá «na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».
A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, aprovada em Conselho de Ministros de 02 de abril de 2020 não deixa margem para dúvidas sobre as preocupações que conduziram à aprovação pela Assembleia da República da Lei n.º 9/2020. Assim é quando, depois de fazer referência à realidade prisional (população/estabelecimentos) no país, refere: “As Nações Unidas, através de mensagem da Alta Comissária para os Direitos Humanos de 25 de março, exortaram o Estados membros a adotar medidas urgentes para evitar a devastação nas prisões, estudando formas tendentes a libertar os reclusos particularmente vulneráveis à COVID 19, designadamente os mais idosos, os doentes e os infratores de baixo risco.
As especificidades do meio prisional quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento.
O reconhecimento desta realidade levou a Provedora de Justiça a emitir a Recomendação n.º 4/B/2020, de 26 de março, apontando para a adoção de um regime de flexibilização das licenças de saída - instituto já hoje previsto, de resto, no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (…).
Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade (…)”.
Como, neste domínio, destaca Nuno Brandão, “A libertação de reclusos em tempos de COVID-19. Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de 10/4, in JULGAR Online, abril de 2020, também “No âmbito do Conselho da Europa, o Comissário para os Direitos Humanos lançou um forte apelo, dirigido a todos os Estados Membros, para que, sempre que possível, façam uso de meios alternativos à privação da liberdade, incluindo libertações temporárias ou antecipadas, amnistias, prisão domiciliária ou atenuações de penas”, medidas que “vêm sendo postas em prática em diversos países europeus”, preocupação que naturalmente domina a Organização Mundial da Saúde ao enfatizar o “estado de elevada vulnerabilidade em relação a surtos da doença COVID-19” em que se encontram as pessoas privadas da liberdade em estabelecimentos prisionais ou afins (…) em virtude das condições de confinamento prolongado com outros reclusos em que vivem.”
Visando o mesmo desiderato - diminuir o risco de introdução do coronavírus SARS-CoV-2 no sistema prisional – também a DGRSP adotou medidas de prevenção em estabelecimentos prisionais, v.g. práticas de higiene e etiqueta respiratória, distanciamento social, áreas de isolamento, salvo casos excecionais, ditados por questões de saúde ou segurança, de suspensão de transferências – cf. https://justica.gov.pt/COVID-19-Medidas-adotadas-naJustica#ServiosdeReinseroePrisionaisDGRSP.
É, pois, evidente o elevado nível de empenho dos organismos internacionais e nacionais no sentido de diminuir o risco de contágio por coronavírus SARS-CoV-2 no sistema prisional.
Feita esta singela introdução, importa reconhecer com relevância para a decisão a proferir - como desde logo resulta das posições em confronto no âmbito dos presentes autos de recurso, concretamente quanto ao perdão parcial das penas, previsto no artigo 2.º, da Lei n.º 9/020 - que existem divergências de entendimento no seio da doutrina, reconduzindo-se a primeira a saber se é, ou não, exigível à sua aplicação a condição de recluso do respetivo beneficiário; dito de outro modo se o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas. Da resposta que for dada a esta questão depende no caso em apreço (o condenado, conforme decorre da decisão em crise, não se encontrava nem se encontra recluso) a relevância, ou não, daquela outra que por surgir a jusante pode resultar prejudicada (…), qual seja: se se mostram excluídos da aplicação do perdão “aqueles que, em 10 de abril de 2020, ainda não tivessem ingressado fisicamente no estabelecimento prisional” – [cf. Parecer n.º 10/2020 do Conselho Consultivo da PGR], ou se também pode do mesmo beneficiar quem, não revestindo então essa condição (recluso), venha a adquiri-la até à cessação de vigência da Lei n.º 9/2020, a qual, conforme já referido, ocorrerá “na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”
Tomámos então posição sobre a primeira questão, perfilhando o entendimento no sentido de que imprescindível à aplicação do perdão era/é a condição de recluso, aspeto que no presente caso se mostra ultrapassado pois à data em que a pena foi declarada perdoada o condenado já havia iniciado, em reclusão (no estabelecimento prisional), o seu cumprimento.
Fica-nos, por conseguinte, aqueloutra de saber se, como defende o recorrente, só o condenado já recluso à data da entrada em vigor do diploma (Lei n.º 9/2020) pode beneficiar do perdão. E neste particular, como já decidimos no acórdão do TRC de 30.09.2020 (proc. n.º 744/13,7TXCBR-P.C1) - no qual a a ora relatora interveio como adjunta - não acompanhamos semelhante entendimento. Com efeito, sem negar o óbvio, ou seja a natureza excecional das normas que enformam o regime das medidas de graça, com as consequências que daí advém em matéria de interpretação (insusceptibilidade de interpretação extensiva ou restritiva), excluído o recurso à analogia, e após a análise, à luz dos diferentes elementos interpretativos das normas (artigo 9.º do C.C.), concretamente do n.º 1, do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, reportando-nos à redação, na versão final da dita Lei, do artigo 10.º considerou-se ser a mesma dificilmente compatível com a posição defendida no recurso, pensamento que ainda hoje não vemos motivo válido para abandonar.
Na verdade, embora nem na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, de 2 de abril, nem na Proposta de Lei, propriamente dita, que o Governo apresentou à Assembleia da República se faça referência ao período de vigência do regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça que vieram a ser contempladas na Lei n.º 9/2020, o legislador na citada norma - com a epígrafe Cessação de vigência -, dispôs: “A presente lei cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”. Por seu turno, a Lei n.º 1-A/2020, que procedeu à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 (agente causador da doença COVID-19), estabeleceu no n.º 2 do seu artigo 7.º: “O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional”. Posteriormente, a redação do artigo 10.º da Lei n.º 9/2020 veio a ser alterada pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, passando do mesmo a contar: “A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.” – [negrito nosso].
Perante o quadro legal descrito, com o devido respeito, não se vê como se possa defender que o perdão parcial, prevenido na Lei n.º 9/2020, verificados os demais pressupostos, não seja aplicável a penas de prisão cominadas a reclusos que não revistam essa condição à data da entrada em vigor do dito regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça mas que, até à cessação do mesmo, a venham a revestir quando é a própria lei a reportar-se, a par das medidas de flexibilização da execução das penas, às “medidas de graça” - [cf. a atual redação do artigo 10.º da Lei n.º 9/2020], onde se inclui o perdão.
De facto, o regime assim instituído, ao prever a cessação da sua vigência “na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional…”, foge à lógica seguida nas sucessivas leis de amnistia, circunstância que, tendo presente o fim ou objetivo visado, não nos surpreende. Com efeito, o perigo real de contaminação decorrente da reclusão em meio prisional mantém-se enquanto perdurar a pandemia.
Concluindo, ponderando a dimensão lógica, racional, teleológica e sistemática de interpretação do sentido das normas [artigo 9.º do C.C.] - os quais tão pouco resultam contrariados pelo elemento literal [concretamente pelo teor dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 9/2020] – entende-se não assistir razão ao recorrente, mantendo-se, assim, a decisão em crise.

III. Dispositivo
Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.
Sem tributação.
Coimbra, 16 de dezembro de 2020
[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)