Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/09.9GBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE RESISTÊNCIA
COACÇÃO DE FUNCIONÁRIO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Data do Acordão: 09/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 347º CP
Sumário: 1. No crime de resistência e coação sobre funcionário, só mediatamente se protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade individual funcional.
2. O crime em análise é um crime de perigo, para cuja consumação é tão só exigida a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário.
3. Na vertente do sujeito activo, assume-se como um crime comum, ou seja, o agente que o comete pode ser qualquer pessoa.
4. Porém, o sujeito a quem o crime se dirige é necessariamente um funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No 2.º juízo do Tribunal Judicial de C..., foi submetida a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, a arguida A..., divorciada, desempregada, residente em C..., sob imputação, na acusação pública deduzida a fls. 117/119 dos autos, da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, e de quatro crimes de injúria agravados, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do referido diploma legal.

*
2. Por sentença de 10 de Março de 2010, o tribunal a quo proferiu decisão deste teor:
a) Absolveu a arguida A... da prática, como autora material, do imputado crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal;
b) Condenou a arguida A..., em concurso real e como autora material, pela prática de quatro crimes de injúria agravados, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, nas penas parcelares, para cada um dos crimes, de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de 5€ (cinco euros);
c) Operado o cúmulo jurídico, condenou a arguida A... na pena única de 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).

3. Inconformado com a parte absolutória da sentença, relativa ao imputado crime de resistência e coacção sobre funcionário, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Pratica o crime de resistência e coação sobre funcionário quem, visando interferir coactivamente na actividade funcional do Estado, reflexamente desempenhada por funcionário ou afim, empregar contra este mera violência (ou ameaça grave), adequada a impedir ou tão-só dificultar a actuação legítima do funcionário, independentemente de ter ou não êxito nesse seu objectivo.
2. A arguida A..., ao dirigir aos militares da Guarda Nacional Republicana de C…, que lhe pretendiam efectuar uma revista, expressões como “hoje mato alguém e mato-vos… ou mato-me a mim”, enquanto esperneava e pontapeava, encontrando-se inclusivamente municiada com uma tesoura de poda, consubstancia inequivocamente a (paradigmática) situação de ameaça (grave), naturalmente idónea a constranger a liberdade funcional dos militares ali presentes e, portanto, consubstanciadora do conceito de ameaça para efeitos do n.º 1 do artigo 347.º do Código Penal.
3. Integra o conceito de violência, para efeitos do artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, a conduta da arguida A... que – com o intuito de obstar a que os militares da Guarda Nacional Republicana de C… levassem a cabo a revista e detenção, que se propunham realizar – desfere deliberada e agressivamente um pontapé, ainda que de “raspão”, num dos militares que integravam a patrulha ali presente.
4. Basta para integrar a prática do crime de resistência e coacção o grau de violência exercido pela arguida que, registando-se a nível não significativo, por não ter conduzido a lesões importantes no elemento daquela Guarda atingido, não é despiciendo para o preenchimento do crime de resistência e coacção sobre funcionário, pois o que está aqui em causa, não esqueçamos, não é a autodeterminação de um concreto agente ou elemento das forças de segurança, mas a autonomia funcional do Estado.
5. Resulta evidente que a arguida, com o aludido intuito de se opor à sua revista e detenção, praticou uma acção coactora (proferindo ameaças e usando de violência) adequada a comprimir a capacidade de actuação daqueles militares da Guarda Nacional Republicana que, no exercício das suas funções, pretendiam efectuar-lhe revista e, posteriormente detê-la e conduzi-a ao respectivo Posto, sendo por isso bastante para se dar por verificada a prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, independentemente daquela oposição não ter tido êxito.
6. Os militares da Guarda Nacional Republicana, nem por o serem têm de ter especiais ou “sobre-capacidades” físicas ou de reacção, antes se inserindo as exigências a esse nível de adequação do meio usado num critério de normalidade, ainda que com especial adestramento para o exercício da sua função – daí que baste haver oposição, desde que com violência, e ainda que sem sucesso, para se verificar o crime em exegese.
7. A sentença em apreciação, ao julgar diversamente, absolvendo a arguida A... do crime de resistência e coacção sobre funcionário, violou o artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, por erro de interpretação e aplicação.
8. Sem prescindir, e se assim não se entender, sempre se dirá, que ao dar como provados os factos em questão, e ao absolver do crime de resistência e coação sobre funcionário, na forma consumada, deveria o Mmo. Juiz ter condenado a arguida pelo mesmo crime na forma tentada, por ser a tentativa punível in casu (cfr. artigos 22.º e 23.º do Código Penal) ou então procedido à convolação para o crime de ofensa à integridade física qualificado, previsto e punível pelos artigos 143.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º do citado diploma legal e, nesse caso, cumprido o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.
9. Assim deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, na parte relativa à absolvição da arguida A... pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível pelos artigos 14.º, 26.º e 347.º, n.º 1, do Código Penal, determinando-se a sua condenação, pela sua prática na forma consumada ou, caso assim não se entenda, na forma tentada ou então determinar o reenvio do processo a fim de ser cumprido o artigo 358.º, do Código de Processo Penal, e, concomitantemente, à convolação nos termos referidos, para o crime de ofensa à integridade física qualificado previsto e punível pelos artigos 143.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
*
4. A arguida não respondeu ao recurso.
*
5. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvando-se nos fundamentos da petição recursória, emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
*
6. Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, a arguida não exerceu o seu direito de resposta.
*
7. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
***
II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão submetida à apreciação deste tribunal consiste em saber se: (i) o acervo factológico provado impõe a condenação da arguida pela prática do imputado crime de resistência e coacção sobre funcionário, na forma consumada ou, caso se entenda não existir consumação, na forma tentada; (ii) em alternativa, ou seja, na hipótese de se ter como não verificado aquele crime, numa das duas referidas formas, o processo deve ser reenviado ao tribunal de 1.ª instância para que aí, após cumprimento do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, se proceda a nova qualificação jurídica dos factos, com subsequente condenação da arguida pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

*
2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
1) No dia 5 de Janeiro de 2009, ao final da tarde, depois de solicitada a sua intervenção, a GNR deslocou-se à pastelaria «FC», sita em C…, por causa do alvoroço que ali decorria envolvendo a arguida e S...;
2) S... é irmã de T..., namorado da filha da arguida, M…, à data com 16 anos de idade;
3) Tal alvoroço foi motivado pelo facto da filha da arguida, M…, querer sair de casa, para ir viver com o seu namorado;
4) A arguida temia que a união de facto da sua filha M… com o seu namorado T...trouxesse uma gravidez prematura e não desejada;
5) Cerca das 22:00h do mesmo dia 5 de Janeiro de 2009, através de uma chamada telefónica recebida no Posto de C…, a GNR foi chamada à residência de I…, mãe de T..., sita no lugar de …, em virtude da arguida ali se encontrar, com o propósito de levar para casa a sua filha M…, que ali se havia refugiado;
6) Em tal chamada telefónica foi referido que a arguida tentava forçar a entrada da casa e que empunhava um objecto que aparentava ser uma faca;
7) Nesta sequência, acorreram ao local, devidamente uniformizados, os militares da GNR, AM…, GF…, JA… e PM…;
8) Estes militares da GNR encontraram a arguida visivelmente enervada, em frente à residência de I…;
9) Ao ser interpelada pelos referidos militares, a arguida respondeu-lhes: «eu não saio daqui, tenho de levar a minha filha, nem que para isso tenha de matar alguém ou matar-me», sendo perceptível que a mesma trazia no interior do seu casaco um objecto de forma longa, que aparentava ser a faca que tinha sido referida na chamada telefónica recebida no Posto;
10) Face ao estado de exaltação em que se encontrava a arguida, os militares da GNR ordenaram-lhe que exibisse o dito objecto, o que a arguida não fez;
11) Então, os referidos militares da GNR decidiram retirar-lho, tendo, para tanto, imobilizado a arguida, segurando-a pelos braços;
12) A arguida, quando se viu agarrada pelos braços, tentou desferir vários pontapés na sua direcção, vindo a atingir, «de raspão», o militar JA… no joelho da sua perna esquerda;
13) Simultaneamente, a arguida proferia as seguintes expressões àqueles dirigidas: «filhos da puta», «cabrões», «chulos», «hoje mato alguém e mato-vos… ou mato-me a mim»;
14) E retiraram do interior do casaco da arguida uma tesoura de poda;
15) Perante tal comportamento, e uma vez que a arguida continuava a proferir, repetidamente, as expressões supra descritas, foi a mesma encaminhada para o interior da viatura policial para ser conduzida ao Posto da GNR de C…;
16) Nesse momento, a arguida tentou, de novo, infrutiferamente, desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos referidos militares;
17) Perante esta situação, e já no interior da viatura, os militares da GNR algemaram a arguida durante o tempo que durou a viagem entre O… e o Posto Territorial de C…;
18) Aí chegados, a arguida foi de imediato libertada;
19) Uma vez que a arguida se encontrava num grande estado de exaltação foi, então, chamada uma viatura do INEM para lhe prestar auxílio médico e conduzi-la ao Hospital de C... para tratamento médico;
20) Ao dirigir as expressões supra referidas aos militares da GNR, a arguida, que actuou livre, voluntária e conscientemente, ofendeu-os, como pretendia, na sua honra pessoal e profissional;
21) A arguida, ao tentar desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos militares, pretendia obstar a que os mesmos levassem a cabo a revista e posterior detenção que se dispunham realizar.
22) A arguida está desempregada, não auferindo subsídio de desemprego;
23) Até final do mês de Março de 2010, a arguida encontra-se a frequentar um curso de agricultura biológica, pelo qual, até essa data, aufere a quantia mensal de 209,00€;
24) A arguida vive em casa arrendada, pagando uma renda mensal de 3,48€;
25) A título de prestação de alimentos devida às suas filhas, a arguida recebe um montante global de 200,00€, cujo pagamento é efectuado pelo FGADM;
26) A arguida é divorciada e tem duas filhas, M… e B..., actualmente com 17 e 10 anos de idade, respectivamente;
27) A arguida, divorciada há cerca de 7 anos, assumiu desde então sozinha a responsabilidade pelo sustento das suas duas filhas, sem qualquer contribuição por parte do pai destas;
28) A arguida tem um motociclo;
29) A arguida tem o 9.º ano de escolaridade;
30) A arguida, por factos ocorridos no dia 19.09.2007, foi condenada por sentença de 28/01/2009, já transitada em julgado, por um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, em concurso efectivo, com um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, na pena única de 95, à taxa diária de 6,00€;
31) A arguida encontra-se inserida no meio social em que vive;
32) É reputada socialmente como uma pessoa respeitada, respeitadora, humilde, honesta e como boa mãe.
*
3. E como factos não provados:
1. Que, na chamada telefónica referida em 3), se tivesse dito que a arguida, ao mesmo tempo que tentava forçar a entrada, dizia para quem ali residia que viessem para a rua que os queria furar e que os matava a todos;
2. Que a arguida, dirigindo-se aos referidos militares da GNR, tenha proferido as seguintes expressões: «bandidos», «tirai as patas de cima de mim» e «porcos do caralho»;
3. Que a arguida, no interior da viatura policial, batia com os pés, tentando, dessa forma, atingir o furriel PM…;
4. Que a arguida causou ao furriel da GNR, JA…, dores e lesões que não necessitaram de tratamento médico.
*
4. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
A convicção do Tribunal quanto à matéria factual que considerou provada alicerçou-se na apreciação crítica e articulada de toda a prova produzida em julgamento, à luz das elementares regras da experiência e do senso comum.
Dos factos provados:
Demonstrou-se, desde logo, fundamental o depoimento dos quatro militares da GNR com participação nos factos, os quais foram seguros, objectivos e circunstanciados no relato que dos mesmos fizeram.
A testemunha I…, mãe de T..., namorado da filha da arguida, foi igualmente relevante, uma vez que os factos ocorreram em frente a sua casa, tendo-os presenciado. De forma coincidente depôs a testemunha C..., irmã de T..., a qual, porque também a residir naquele local, presenciou os factos.
As testemunhas T... e M…, esta filha da arguida, pouca luz trouxeram aos autos sobre os factos ocorridos, dizendo que não os presenciaram na totalidade, tendo apenas relevado no que disseram a respeito dos motivos que levaram a arguida a ter tal comportamento.
P..., residente perto do local onde os factos ocorreram, e AR…, que passava no local, presenciaram parte dos mesmos. Todavia, porque os seus depoimentos foram titubeantes e notoriamente parciais, não suscitaram credibilidade ao Tribunal.
As testemunhas FP… e MM…, vizinhos da arguida, depuseram sobre a sua personalidade, realçando as suas qualidades enquanto mãe.
Quanto à intenção da arguida em ofender os queixosos na sua honra e consideração, resulta a prova da mesma da análise do seu modo de actuação à luz das regras da experiência comum.
Relevaram ainda as declarações da arguida quanto aos motivos que a levaram a agir da forma que se provou e quanto às suas condições pessoais, porque credíveis nestes aspectos. Relativamente, porém, ao demais circunstancialismo fáctico provado, o Tribunal não se apoiou na sua argumentação, uma vez que a mesma negou a sua prática em total contradição com a demais prova produzida.
Foi ainda valorado o certificado do registo criminal da arguida junto aos autos.
Dos factos não provados:
No que concerne aos factos não provados, não foi produzida prova no sentido dos mesmos, designadamente através das testemunhas inquiridas que nada disseram sobre os mesmos, sendo que, relativamente às lesões e dores alegadamente causadas ao furriel da GNR JA… , foi o próprio que referiu não se ter ferido, tendo a arguida atingido a sua perna de «raspão».
*

5. O julgador do tribunal de 1.ª instância fundamentou, no plano do direito, a decisão de absolvição quanto ao imputado crime de resistência e coacção sobre funcionário nos termos infra transcritos:

«No que tange ao crime de resistência e coação sobre funcionário, dispõe o artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal que quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até cinco anos.
Como refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, 1999, pág. 339, o bem jurídico aqui tutelado é a autonomia funcional do Estado, protegida de ataques vindos do exterior da Adminstração Pública. Pretende evitar-se que não-funcionários ponham entraves à livre execução das “intenções” estaduais, tornando-as ineficazes. Se simultaneamente se protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade individual, essa protecção é tão só funcional ou reflexa. A liberdade do funcionário importa na estrita medida em que representa a liberdade do Estado. Na outra dimensão - na privada, na que possui como pessoa e como cidadão - não encontra resguardo neste tipo legal. Por outras palavras: acautela-se a liberdade de acção pública do funcionário, não a sua liberdade de acção privada – no mesmo sentido cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04/01/2007, relatado pelo colendo Conselheiro Soreto de Barros.
Constituem elementos integradores do tipo de ilícito de resistência e coacção sobre funcionário:
- o impedimento da prática de acto relativo ao exercício de funções;
- o constrangimento à prática de acto relativo ao exercício de funções, mas contrários aos deveres do cargo;
- o emprego de violência ou ameaça grave.
Trata-se de um crime comum no que ao sujeito activo – ao agente – diz respeito. Diferentemente, o sujeito passivo há-de ser funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.
Do tipo objectivo fazem parte quer o fim da acção (opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções), quer o meio utilizado (violência ou ameaça grave). CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, in ob cit, refere que a proibição objectiva inclui o finis operis, isto é, a finalidade de interferir pertence ao tipo objectivo, constituindo-o o fim da acção e não uma intenção específica que, para além do dolo, integraria o tipo subjectivo.
Os meios utilizados - violência ou ameaça grave - devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coacção previsto no artigo 154.º do Código Penal. Por violência entende-se todo o acto de força ou hostilidade idóneo a coagir o funcionário, levando-o a actuar de determinada maneira. E há ameaça grave sempre que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido. Mais nenhum meio, a não ser a violência ou a ameaça grave, leva ao preenchimento do tipo, pelo que estamos perante um crime de execução vinculada.
Porém, o presente tipo legal de crime apresenta uma especificidade. Há-de tomar-se em consideração que os destinatários da coacção possuem especiais qualidades no que concerne à capacidade para suportar pressões e que estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Como salienta CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, in ob cit, o grau de violência ou ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se pela capacidade de afectar a liberdade física ou moral de acção de um homem comum. A utilização do critério objectivo-individual há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário. Assim, será natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas “sobre-capacidades”.
Sendo consabido que a jurisprudência diverge face ao que considera bastante para a consumação do crime de coacção sobre funcionário, acompanhamos a posição defendida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 7/10/2004, in CJ, XII, III, pág. 183, segundo o qual o tipo legal de crime em análise é um crime material e unitário, uma vez que se exige, para a sua consumação, um resultado intermédio, ou seja, que a acção violenta ou ameaçadora tenha atingido de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que os impeçam de concretizar a actividade por estes prosseguida.
No tocante ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se uma perfeita congruência entre este e o tipo objectivo. A estrutura do crime em análise não é a de um delito de tendência ou de intenção, bastando para o seu preenchimento o dolo eventual (Cristina Líbano Monteiro in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, p. 339 e seguintes, Coimbra Editora, 2001).
Em regresso à factualidade dada por provada, verificamos que os quatro sobreditos militares da GNR, chegados ao local, encontraram a arguida visivelmente enervada e que, ao ser interpelada por estes, respondeu-lhes: «eu não saio daqui, tenho de levar a minha filha, nem que para isso tenha de matar alguém ou matar-me», sendo perceptível que trazia no interior do seu casaco um objecto de forma longa, aparentando ser a faca que tinha sido referida na chamada telefónica recebida no Posto. Em face disso, os militares da GNR ordenaram-lhe que exibisse o dito objecto, sendo que, perante a recusa daquela, decidiram aqueles retirar-lho, para o que a imobilizaram, segurando-a pelos braços. Quando a arguida se viu imobilizada, tentou desferir vários pontapés na sua direcção, vindo a atingir, «de raspão», o militar José Canha, no joelho da sua perna esquerda, ao mesmo tempo que vociferava: «hoje mato alguém e mato-vos… ou mato-me a mim». Pese embora tal comportamento, os quatro militares lograram retirar do interior do casaco da arguida uma tesoura de poda.
No entanto, porque a arguida continuava a assumir o comportamento acima descrito, sem atender aos pedidos dos militares da GNR no sentido de se acalmar, foi encaminhada para o interior da viatura policial para ser conduzida ao Posto da GNR de C..., sendo que, com o intuito de a isso se eximir, a arguida tentou desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos referidos militares, pelo que foi algemada durante o tempo que durou a viagem entre O… e o Posto Territorial de C....
Analisada esta factualidade, verificamos que a arguida procurou evitar ou dificultar a actuação dos militares da GNR no que à revista e à posterior detenção diz respeito, num contexto de latente (e acidental) desequilíbrio emocional, atenta a situação familiar que, então, vivia. Não se olvide que a arguida, a final, o que verdadeiramente pretendia era evitar que uma das suas filhas, com apenas 16 anos de idade, fosse viver para casa do seu namorado, temendo que dessa união resultasse uma gravidez prematura e não desejada. As ameaças proferidas e toda a agitação verificada foram, também elas, uma forma de exteriorizar esse sentimento perante a sua filha, que se encontrava no interior da casa do seu namorado, e a demais família deste.
Nesse contexto, a arguida efectivamente esperneou, pontapeou e proferiu as expressões que se provaram, mas fê-lo perante quatro militares da GNR que têm capacidades e competências especiais para não se deixarem abalar por meras tentativas de obstar ao exercício das suas funções, e que levaram a cabo os actos a que se propuseram (revista e detenção).
Por outro lado, o facto da arguida trazer consigo uma tesoura de poda, que não utilizou para qualquer fim, designadamente para ameaçar os militares, não nos permite, por si só, enquadrar a conduta da arguida num patamar superior de violência. O que resultou provado foi que os quatro militares da GNR conseguiram apossar-se do objecto que a arguida detinha, sem que a conduta desta tivesse sido idónea a intimidar e impedir que aqueles cumprissem a sua missão, como, aliás, lograram fazer.
O comportamento adoptado pela arguida não assumiu, em nosso entendimento, contornos de violência ou de ameaça grave que possam, pois, preencher o elemento objectivo deste tipo de crime. Ou seja, não cremos que o comportamento da arguida tenha sido adequado a anular ou a dificultar de forma significativa a capacidade de actuação dos quatro militares na ocasião em causa, tanto mais que estes, como já se referiu, possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum.
À semelhança do defendido nos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 7/10/2004, in CJ, XII, III, pág. 183 e o do Tribunal da Relação do Porto, datado de 05/07/2006, in www.dgsi.pt, concluímos também aqui que o comportamento da arguida não preencheu os elementos objectivos do crime de resistência e coação sobre funcionário, por não integrar os contornos de violência e de ameaça grave que a norma incriminadora exige. Naqueles se lê que «se não houver o emprego de violência ou de ameaça limitando-se o agente da inacção, à fuga ou tentativa de fuga, à imprecação verbal contra acto de que está a ser alvo, à gesticulação mais ou menos efusiva, sempre presente em tais situações, ou quaisquer outras atitudes e comportamentos que não sejam adequados a anular ou dificultar significativamente a capacidade de actuação do funcionário ou afim, não há resistência e, como tal, não há crime» (sublinhado nosso).
Pelo exposto, por não se encontrarem preenchidos os elementos objectivos do tipo de ilícito em análise, concluímos que a arguida deverá ser absolvida do crime de resistência e coação de funcionário por que vem acusada».

*
6. Genericamente, estamos de acordo com a solução vertida na sentença sob recurso, traduzida na absolvição da arguida pela prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário.
Dispõe o art. 347.º do CP:
«Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até 5 anos».

Como bem está referido na decisão recorrida, o bem jurídico protegido com tal incriminação é a autonomia intencional do Estado, pretendendo evitar-se que não funcionários ponham entraves à livre execução das intenções estaduais, tornando-as ineficazes.

«Da própria inserção sistemática do art. 347.º do CP, conjugada com o seu teor, resulta que o bem jurídico que a lei especialmente quis proteger com a incriminação que contém, é...o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade, manifestada na liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, punindo, para o efeito, quem empregue violência ou ameaça grave contra este, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo a esse exercício, mas contrário aos seus deveres» Ac. do STJ de 28-04-99, proferido no proc. n.º 1426/98, publicado na CJ/STJ, Ano VII, Tomo II - 1999, pág. 196..

Só mediatamente se protege a pessoa do funcionário incumbido de desempenhar determinada tarefa, a sua liberdade individual funcional.

O crime em análise é um crime de perigo, para cuja consumação é tão só exigida a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário.

Na vertente do sujeito activo, assume-se como um crime comum, ou seja, o agente que o comete pode ser qualquer pessoa.

Porém, o sujeito a quem o crime se dirige é necessariamente um funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança.

Reportando-nos ainda aos elementos do tipo objectivo de ilícito, dele fazem parte quer o fim da acção - traduzida na oposição pelo agente a que a autoridade pública exerça as suas funções -, quer o meio utilizado, consubstanciado na violência/ameaça grave.

Não existindo a finalidade de interferir por parte do agente, o crime cometido pode ser só contra a liberdade pessoal, mas não o do art. 347.º do CP; sem o meio coactivo, nalguns casos ocorrerá o crime de desobediência, noutros uma acção irrelevante no plano jurídico-criminal, mas nunca o crime de resistência e coacção sobre funcionário Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 340..

Os meios utilizados – violência/ameaça grave - devem ser, no essencial, definidos nos mesmos termos em que o são no âmbito do crime de coacção.

Em termos genéricos, podemos dizer que se entende por violência todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, e existe ameaça grave em todos os casos em que a acção afecte a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige e seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido.

A violência tanto pode ser física como psicológica, importando apenas que tenha a virtualidade suficiente para intimidar o visado e limitá-lo no exercício da sua liberdade pessoal.

Por isso, para que a violência se tenha por verificada, não é necessário que exista lesão ou contacto físico com o ofendido. O que importa é que ela se revele de tal forma que se possa dizer que atingiu a liberdade de determinação do visado.

De todo o modo, a violência terá de ser exercida de modo sério e com a intensidade necessária para intimidar.

Neste contexto, o critério de avaliação do grau de violência/ameaça relevante para se considerar preenchido o tipo em causa há-de assentar na idoneidade dessa violência/ ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário, sendo natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando o visado é, por exemplo, um militar. Nas palavras impressivas de Cristina Líbano Monteiro «nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas “sobre-capacidades” Ob. cit., pág. 341..

Em suma, a violência ou ameaça devem surgir como pré-ordenadas e idóneas, nos termos supra expostos, como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade, devendo a adequação do meio ser aferida por um critério objectivo, tendo sempre em conta as específicas circunstâncias de cada caso.

Não obstante o que ficou dito, e como adverte expressamente Cristina Líbano Monteiro, «diferentemente do que acontece no crime de coacção do artigo 154.º, não se torna necessário que à adequação do meio, no sentido atrás considerado, se siga um comportamento coagido. Tanto a resistência eficaz como a ineficaz estão compreendidas na ofensa típica. Trata-se, contudo, de um crime material, uma vez que deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio: que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, de facto, o seu destinatário» Idem, pág. 342.. Dito por outras palavras, o tipo de crime em causa não exige que o agente impeça, de facto, o exercício do acto de função pública que estiver em causa; basta que o agente se oponha com violência/ameaça a esse exercício.

Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer uma das suas modalidades (directo, necessário ou eventual).

O agente, tendo conhecimento de todos os elementos (descritivos e normativos) que constituem o crime de resistência e coacção sobre funcionário, supra indicados - ou seja, de que o acto praticado, comportando violência/ameaça grave, é dirigido contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para que este aja ou deixe de agir, nos termos acima descritos -, e sabendo que a sua conduta é proibida por lei, mesmo assim actua com intenção de realizar o facto que preenche o tipo de crime em evidência ou simplesmente o representa como consequência necessária ou possível daquela conduta, conformando-se, neste último caso, com a realização do facto típico.

No vertente caso, numa síntese factual, suficientemente compreensiva:

- Após as ocorrências descritas nos pontos 1) a 8) da matéria de facto, ao ser interpelada pelos agentes da GNR, a arguida respondeu-lhes: «eu não saio daqui, tenho de levar a minha filha, nem que para isso tenha de matar alguém ou matar-me», sendo perceptível que a mesma trazia no interior do seu casaco um objecto de forma longa, que aparentava ser a faca que tinha sido referida na chamada telefónica recebida no Posto;

- Face ao estado de exaltação em que se encontrava a arguida, os militares da Guarda Nacional Republicana ordenaram-lhe que exibisse o dito objecto, o que a arguida não fez;

- Então, os referidos militares da Guarda Nacional Republicana decidiram retirar-lho, tendo, para tanto, imobilizado a arguida, segurando-a pelos braços;

- A arguida, quando se viu agarrada pelos braços, tentou desferir vários pontapés na direcção dos elementos da GNR, vindo a atingir, “de raspão”, o militar José Canha no joelho da sua perna esquerda;

- Simultaneamente, a arguida proferiu as seguintes expressões, dirigidas aos Agentes: «filhos da puta»; «cabrões»; «chulos»; «hoje mato alguém e mato-vos…ou mato-me a mim»;

- Logo após, os membros da força de segurança retiraram do interior do casado da arguida uma tesoura de poda;

- Perante tal comportamento, e uma vez que a arguida continuava a proferir, repetidamente, aquelas expressões, a mesma foi encaminhada para o interior da viatura policial para ser conduzida ao Posto da GNR de C...;

- Nesse momento, a arguida tentou, de novo, infrutiferamente, desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos referidos militares.

Partindo do critério objectivo-individual acima referenciado, temos por certo que no caso em análise inexiste(m) acto(s) de violência idóneo(s) a intimidar, perturbar e, no fundo, dificultar ou impedir a liberdade de acção dos agentes da GNR, traduzida, numa primeira fase, na revista da arguida e, depois, na detenção desta.

Perante o circunstancialismo de facto relevante, não olvidando também, como se diz na sentença recorrida, as especiais qualidades dos agentes de autoridade intervenientes no caso em apreço no que diz respeito à capacidade de cada um deles suportar/gerir pressões e determinadas situações de confronto, a actuação da arguida, traduzida na “tentativa” de desferir pontapés, quando já imobilizada, contra os quatro militares da GNR, sucedendo que um pontapé atingiu, ao de leve (“de raspão”, como está dito na matéria de facto provada), o joelho do militar José Canha, não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar os actos funcionais acima concretizados.

Igual conclusão é de extrair, afigura-se-nos, em relação à ameaça que os factos provados evidenciam («…eu mato-vos…»), porquanto a expressão utilizada, no específico quadro em que foi proferida - perante quatro agentes da GNR e, como está dito na sentença, num contexto de “latente e acidental desequilíbrio emocional” da arguida, determinado pelas vicissitudes de ordem familiar bem descritas na factualidade provada -, não apresenta, objectivamente, adequação bastante para anular ou dificultar de forma significativa a actuação funcional dos ditos Agentes, traduzida, como se disse, na revista e posterior detenção da arguida.

Aliás, se visto com rigor o acervo factológico provado, sempre faltaria, no estrito domínio de relevância jurídico-penal da “ameaça”, a concordância necessária entre o elemento objectivo e o subjectivo do tipo de crime em referência, uma vez que, conforme se extrai do facto 21), a intenção de a arguida obstar à prática, pelos militares da GNR dos actos supra descritos, relativos ao exercício das suas funções, está circunscrita aos meios concretos que se descrevem («a arguida, ao tentar desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos militares…»).

Nestes termos, o comportamento da arguida não configura o crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 347.º do Código Penal.


*

Não existindo a prática de acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação dos agentes de autoridade, é destituída de sentido a pretensão, alternativa, do recorrente, no sentido da condenação da arguida pela prática do referido crime na forma tentada.

*

Residualmente, apela ainda a recorrente ao reenvio do processo ao tribunal da 1.ª instância para que, sendo aí cumprido o disposto no 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, possa/deva a arguida ser condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência à al. l) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal.

Concluindo-se, como se concluiu, pela inexistência do imputado crime de resistência e coacção sobre funcionário, deixa de se poder falar em concurso aparente entre o crime de resistência e coacção e o crime de ofensa à integridade física e emerge, em abstracto, a possibilidade de condenação da arguida pela prática do último dos referidos crimes, na medida em que ficou objectivamente provado que a arguida atingiu, de “raspão”, com um pontapé, o joelho do Agente da GNR José Canha.

Em jeito de esclarecimento, dir-se-á que, a verificar-se um caso de alteração da qualificação jurídica, o (eventual) cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 3578.º do CPP caberia a este tribunal de recurso, por força do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do mesmo Código.

No entanto, em concreto, é dado ver que o acervo factológico provado não contém factos alusivos ao tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física; apenas consagra, no ponto 21), referência alusiva ao tipo subjectivo do crime de resistência e coacção sobre funcionário, nestes precisos termos: «A arguida, ao tentar desferir diversos golpes com os pés e com as mãos na direcção dos militares, pretendia obstar a que os mesmos levassem a cabo a revista e posterior detenção que se dispunham realizar».

Desde modo, a pretensão da recorrente, de cumprimento do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, é de todo inviável, pois que os factos erigidos à condição de provados pelo tribunal a quo (insindicáveis por este Tribunal da Relação, por não ter sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto e não se vislumbrar qualquer um dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP), não têm aptidão para o preenchimento do tipo de crime de ofensa à integridade física (qualificada), por falta do elemento subjectivo [como é sabido, exige-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades (directo, necessário ou eventual); o agente, tendo conhecimento de todos os elementos (descritivos e normativos) que constituem o crime de ofensa à integridade física - de que o seu acto ofende o corpo ou a saúde de outra pessoa -, e sabendo que a sua conduta é proibida por lei, mesmo assim actua com intenção de realizar o facto tipicamente ilícito ou simplesmente aceitando o resultado como consequência necessária da sua conduta ou conformando-se com a eventualidade desse resultado].

Por todo o exposto, o recurso é improcedente.

*

III – Dispositivo:

Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida.
Sem custas.


*

Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).
Coimbra, 8 de Setembro de 2010

……………………………………...
(Alberto Mira)

……………………………………...

(Elisa Sales)