Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/15.0T8SPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
CONCEITO JURÍDICO
ATRAVESSADOURO
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU – S. P. SUL – JUÍZO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: D.L. 477/80 DE 15/10 – ARTº 4, E)
Jurisprudência Nacional: ASSENTO DO STJ DE 19/04/1989
Sumário: I – O Assento do S.T.J. de 19/04/89, publicado no DR I-A de 2 de Junho de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, considerou revogado o art.º 380º do C.C. de 1867, e considerando que determinadas vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos, que não fazem parte do domínio público do Estado (D.L. 477/80 de 15/10 – artº 4, e)), entendeu que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”.

II - Ou seja, o uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, assim se salvaguardando a prevalência de interesse público sobre o interesse privado.

III - O que não pode é interpretar-se o Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente (portanto estando ausente o requisito da imemorialidade) por pessoa colectiva de direito público (por ex. pelo Município ou Junta de Freguesia), foi por ela afectado ao uso público, servindo o interesse colectivo que lhe é inerente.

IV - Um atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado.

V - Não há que confundir atravessadouro, tal como acima ficou definido, com caminho público. Na caracterização do caminho público pesam interesses colectivos de particular relevância bem superiores aos que definem os atravessadouros, como a ligação entre povoações ou lugares, além de que também os seus leitos são públicos.

VI - O STJ vem defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cfr. Acórdão do STJ de 28 de Maio de 2009, processo n.º 08 B 2450).

Decisão Texto Integral:

  Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo n.º 20/15.0T8SPS.C1

1.-RELATÓRIO

1.1. - Os AA. A... e mulher, M..., residentes em ..., intentaram a presente acção contra os Réus M... e mulher, E..., residentes no ..., pedindo a condenação destes em reconhecerem que o caminho identificado nos artigos 7 e 8 da PI e visível a fls. 4 do documento 6 junto à PI é público, afecto ao uso direto e imediato do comum dos moradores de L... e forasteiros, e a retirarem, no prazo máximo de 10 dias seguidos a contar da sentença, o postalete ou  poste metálico e respectiva base de suporte e muro referidos nos artigos 24 e 27 da PI, que implantaram nesse caminho e que impedem/dificultam o trânsito pelo mesmo da generalidade das pessoas, nomeadamente com veículos, e impedem em absoluto os AA. de aceder ao seu prédio, seja porque forma for, através do portal referido nos art.ºs 8 e 9 da PI, por forma a permitir que qualquer outra pessoa e os AA. transitem livremente por esse caminho, a pé ou com veículos e que os AA. acedam livremente ao seu prédio id. no art.º 1 da PI, através do portal referido no art.º 9 da PI, mais se condenando os RR. a reconhecer o direito dos AA. sobre o dito prédio (id. no art.º 1 da PI.), pagarem a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação em que os RR. forem condenados ou por cada ato de turbação ou impedimento do exercício dos direitos de trânsito dos AA. ou quaisquer outras pessoas, o montante diário nunca inferior a 100,00€ e/ou 2.500,00€ por cada ato perturbador desses direitos.

 Para tanto alegam em síntese:

Serem donos de um prédio urbano que identificam, afecto a estacionamento e logradouro, o qual confinaria com dois caminhos públicos. Um, que se depreende ser a rua principal, pelo qual os AA. não teriam acesso ao seu prédio (em função da diferença de cotas), e outro conhecido pela travessa da rua R...

Que desde tempos imemoriais as pessoas da localidade de L... e dos lugares vizinhos utilizariam tal travessa para acesso a vários prédios, rústicos e urbanos. Que tal arruamento sempre foi limpo pela Junta de Freguesia de ..., que o pavimentou e infra-estruturou, sendo que no respectivo subsolo passariam várias redes de distribuição de águas, além de que para o respectivo leito deitariam várias portas e janelas, e para ele propenderiam beirados.

Neste circunstancialismo qualificam tal arruamento como público, motivo pelo qual instauraram, para defesa do domínio público, a presente acção popular.

1.2. - A fls. 83 a 106 os RR contestaram por impugnação e formulam pedido reconvencional.

Na contestação, por impugnação, pedem que a pretensão dos AA. seja julgada improcedente.

Na reconvenção pedem que os AA. sejam condenados a reconhecer que: a) o seu prédio antes das obras de edificação e urbanização que nele levaram a cabo se situava a uma cota superior de mais de um metro da rua principal, mas que, contudo, com esta comunicava através de uma pequena escadaria, situada no lado norte desse prédio, com início na rua daquele lado; b) com as referidas obras de edificação e/ou urbanização que lavaram a cabo no seu prédio, o mesmo ficou ao mesmo nível da referida rua, a poente, por esta se entretanto ou comunicando directamente para toda a edificação e prédio; c) o muro separador da edificação ou garagem e a tardoz desta, do seu lado sul, deixaram desde logo uma rampa e, depois, escadaria de fácil transposição, onde até transitam já com tractores, mas que vieram depois a banir, encimando o muro então com esteiros e rede; d) existia um portal, no limite norte do seu prédio, que era fechado, no caminho em causa, com a largura de apenas 98 cm, por onde não era possível o trânsito de qualquer veículo

motorizado ou carral e que há já mais de 15 ou 20 anos não era usado pelos donos de tal prédio e que nunca foi usado pelo público em geral; e) tal acesso, quer pelo não uso anterior, quer, agora, por desnecessidade (que não conseguiram senão avivar com as obras realizadas, ora estrategicamente só em parte disfarçada) deve ter-se por extinto, como tal se declarando; f) finalmente, antes, como agora, o troço do terreno em questão, principalmente o referido como “caminho particular” constituía terreno adjacente e frontal do prédio dos reconvintes e que estes alargaram com o dobro do primitivo, na altura da reposição do seu pavimento, devido ao rebentamento da tubagem que estes e vizinha custearam para que ficasse em paralelos.

1.3. – A fls. 119 a 123 os AA. apresentam réplica onde referem ser a reconvenção inadmissível, ou então deve ser julgada improcedente.

1.4. – A fls. 140 a 141 foi proferido despacho a não admitir pedido reconvencional.

1.5. – A fls. 143 foi proferido despacho a dispensar a realização da audiência prévia, a fixar o objecto do litígio e os temas de prova.

1.6. - Teve lugar a audiência final, tendo sido proferido sentença onde se decidiu julgar a acção manifestamente improcedente, em consequência do que se absolveram os Réus dos respectivos pedidos.

            1.7. - Inconformados com tal decisão dela recorreram os AA. terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

            1.8. - Os recorridos contra alegaram terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

                                                  2.Fundamentação                                                                                                              2.1. Factos provados                                                                         

...

3. Decisão

É, em princípio, pelo teor das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

Questões a resolver:

a)- Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

b)- Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que dê provimento à pretensão dos recorrentes.

Tendo presente que são duas as questões a apreciar, por uma questão de método iremos em 1.º lugar analisar a questão da matéria de facto, após a questão de direito.

I - Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

Operando à leitura da motivação e respectivas conclusões vemos que os recorrentes cumpriram o preceituado no art.º 640 do C.P.C., pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso sobre a matéria de facto.

...

Visto o recurso de facto, cabe apreciar o recurso de direito.

Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a pretensão dos recorrentes.

Quanto à caracterização de um caminho como público desde há muito se dividiu a jurisprudência.

Segundo uns, seria sempre necessário demonstrar que o caminho foi construído ou apropriado por uma pessoa colectiva de direito público, fundamentando tal opinião no disposto no art.º 380º do C.C. de 1867, segundo o qual “são públicas as coisas naturais ou artificiais, apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos, individualmente ou colectivamente utilizar-se”, preceito que se manteria em vigor, uma vez que o actual C.C., no seu art.º 202º, não define o que deva entender-se por coisa pública.

Para outros, bastaria provar-se o uso directo e imediato pelo público em geral, desde que imemorial.

Finalmente, para uma terceira corrente seria de aceitar o critério da construção ou apropriação do caminho pela entidade pública, mas o uso imemorial (directo e imediato) pelo público em geral constituiria presunção (ilidível) da dominialidade, prescindindo-se, assim, nestes casos, da prova directa da construção ou apropriação pela corporação pública.

É, de resto, neste último sentido que se pronunciou o Prof. Marcello Caetano, o qual, embora entendesse ser indispensável para o reconhecimento da dominialidade de um caminho a prova de que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público, por ela passando a ser administrado, admitia, todavia, que o uso público directo e imediato, quando imemorial, constitui presunção dessa dominialidade, ilidível por prova em contrário, (cfr. Manual de Direito Administrativo - 9ª ed., págs. 923/924).

No sentido de pôr cobro à referida divergência jurisprudencial surgiu, entretanto, o Assento do S.T.J. de 19/04/89, publicado no DR I-A de 2 de Junho de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que, considerando revogado o art.º 380º do C.C. de 1867 e que determinadas vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos não fazem parte do domínio público do Estado (D.L. 477/80 de 15/10 – artº 4, e)), entendeu que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”.

O acórdão optou pela terceira orientação, supra citada, por ser a que melhor se adapta à realidade da vida “visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com a sobreposição do interesse público por interesses privados”.

Segundo o assento citado “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

Ou seja, o uso imemorial faz presumir a dominialidade do caminho, assim se salvaguardando a prevalência de interesse público sobre o interesse privado.

O que não pode é interpretar-se o Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente (portanto estando ausente o requisito da imemorialidade) por pessoa colectiva de direito público (por ex. pelo Município ou Junta de Freguesia), foi por ela afectado ao uso público, servindo o interesse colectivo que lhe é inerente.

Como ensina Marcello Caetano (obra citada – pág. 920 e seg.) a respeito da aquisição do carácter dominial, existem bens que nascem “da actividade da Administração e por vontade dela ingressam no domínio público; ou são adquiridos por uma pessoa colectiva de direito público e só depois tornadas dominiais”.

A atribuição de carácter dominial depende de vários requisitos, designadamente (e é o que nos interessa) da afectação da coisa à utilidade pública, traduzida esta na aptidão da coisa para satisfazer necessidades colectivas.

Tal afectação “pode resultar de um acto administrativo (decreto ou ordem que determina a abertura, utilização ou inauguração) ou traduzir-se num mero facto (a inauguração) ou mesmo numa prática consentida pela Administração em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público. Quer dizer que não há afectação, propriamente dita, mesmo táctica, senão onde se exerça a jurisdição administrativa e portanto se possa provar o destino ao uso público com o consentimento do poder”.

Portanto, “A afectação é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”.

Vê-se, assim, que não pode interpretar-se o Assento de 1989 no sentido de que apenas consente, como única via para caracterizar um caminho como público, o seu uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais.

A suficiência de uso imemorial a que se refere o Assento de modo algum exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei directamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa colectiva de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afecta à utilidade pública.

O uso directo e imediato pelo público é apenas um índice que evidência a publicidade da coisa, no caso do caminho, e quando imemorial, faz presumir (presunção ilidível) a sua dominialidade, e por isso, a sua pertença a uma pessoa de direito público, uma vez que não se concebe sequer, a dominialidade em relação a coisas pertencentes a particulares.

Mas, noutra perspectiva, convém notar que o aludido Assento deverá ser restritivamente interpretado de modo a evitar atribuir-se a qualificação de caminho público a simples atravessadouros, como aconteceria com a sua aplicação em termos estritamente literais (confr. voto de vencido do Cons.º Baltazar Coelho).

Na verdade o atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado.

Constitui, assim, uma serventia pública, usada por uma pluralidade de pessoas, sem discriminação, de modo que quando haja posse imemorial teria ou poderia ser qualificado como caminho público, numa interpretação literal do Assento, o que, além de confundir realidades distintas, violaria o artº 1383º do C.C., que aboliu os atravessadouros por mais antigos que sejam.

Não há, de facto, que confundir atravessadouro, tal como acima ficou definido, com caminho público.

É que na caracterização do caminho público pesam interesses colectivos de particular relevância bem superiores aos que definem os atravessadouros, como a ligação entre povoações ou lugares, além de que também os seus leitos são públicos.

O uso comum do caminho público destina-se à satisfação da utilidade pública e não é apenas a uma soma de utilidades individuais de vizinhos como acontece com os atravessadouros.

Resumindo, dir-se-á que o uso directo e imediato do público em geral, quando imemorial, bastará para caracterizar um caminho como público, mas é ainda necessário acrescentar que esse uso público deve refletir a sua afectação à utilidade pública, ou seja à satisfação de interesses colectivos de significativo grau ou relevância.

O STJ vem defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cfr. Acórdão do STJ de 28 de Maio de 2009, processo n.º 08 B 2450, relatado pela Exm.ª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt.).

E nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais” (cfr. Ac. STJ de 13 de Janeiro de 2004, citado no aresto de 14 de Outubro de 2004, proc. 04B2576, acessível em www.dgsi.pt.; no mesmo sentido parecem  ir os Ac.s da Rel. de Coimbra de 7/10/2014, Proc. n.º 36/11.6TBOFR.C1, relatado por  Maria Domingas Simões, e de 30/06/2015, relatado por Alexandre Reis).

A relevância do interesse colectivo do terreno deve ser apreciada casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o “modus vivendi” da localidade onde ele se situa. Assim, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas (v.g. uma percentagem elevada dos membros de uma povoação) e, por outro lado a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições, e não de opiniões externas. Distinguindo-se tal utilização daqueloutra que se consubstancia como uma mera soma de utilidades individuais e que não tem força bastante para fazer emergir tal natureza pública vide” Ac do STJ de 13-03-2008, processo n.º 08A542, em www.dgsi.pt., entendimento reiterado no aresto do mesmo STJ de 18/9/2014, processo n.º 44/1999.E2.S1, acessível no mesmo site. 

Exigindo-se assim que a aludida afectação à utilidade pública se revele na “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”, não satisfazem tal requisito quando “se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, [hipótese em que] os caminhos devem classificar-se de atravessadouros” - Do mesmo acórdão de 28 de Maio de 2009, com recenseamento de abundante jurisprudência sobre a questão enunciada.

Por outro lado a qualificação de um caminho como público pode, igualmente, resultar do facto de ele ter sido construído ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público, que o afectou à satisfação do interesse colectivo nos termos acima expostos, independentemente de essa afectação ser ou não imemorial.

É que, como se deixou explanado, para além do requisito de uso imemorial, nas condições referidas, o caminho pode também ser caracterizado como público desde que tenha sido construído ou produzido pela pessoa colectiva de direito público (no caso, pela Câmara Municipal ou Junta de Freguesia), ou tenha por ele sido apropriado legitimamente, conservado e administrado e afectado à satisfação do interesse colectivo que lhe é inerente, independentemente de essa afectação ser imemorial ou recente.

Feitos estes considerandos a respeito da matéria em causa, vejamos o caso em apreço.

Refere a sentença recorrida « que a factualidade apurada, e para além de não se vislumbrar preenchida a condição da afectação do tracto de terreno em questão à utilidade pública (pelos motivos acima mencionados), outrossim não se alcança o preenchimento das primeiras das mencionadas condições, isto é, a pertença da coisa, no caso o referido trato, a uma pessoa colectiva de direito público, designadamente à Freguesia de S... Não se apurou – nem sequer tendo sido alegado – que aquele trato foi rasgado pela referida entidade ou qualquer sua antecessora, e tal dificilmente se poderia verificar ante a imemorialidade da sua existência (dito ponto 18, agora 2.1.18.). E também não se alcança, ou de todo o modo não se pode sem mais inferir que os actos que a Junta de Freguesia de S... tem exercitado no tracto de terreno em questão conformem uma qualquer intenção de apropriação do mesmo, nem de tais actos se pode concluir tal apropriação – ainda que intencionada – tenha sido validamente concluída (vg. por integração no domínio privado da Freguesia, para posterior eventual afectação ao uso público».

Dos factos provados resulta que tem sido a Junta de Freguesia de S... quem, desde data não apurada, tem procedido à limpeza do caminho; que em 2010 a Junta de Freguesia de S... substituiu o piso existente por empedrado (cubos) de granito e empedrou do mesmo modo o segmento norte – sul o caminho, obras essas que foram custeadas, em parte, pela referida Junta, tendo para o efeito das mesmas o Réu entregue a quantia de 150 euros, que em 2010, no apontado caminho a Junta de Freguesia, efectuou obras de canalização de águas de rega que anteriormente corriam por rego a céu aberto; que já em 1970 a Junta de Freguesia de S... havia feito obras no caminho, no sentido de levar água canalizada à casa dos Réus confinante com o prédio dos AA.; que desde 1968 o Réu tem vindo a solicitar à Junta de Freguesia de S... a colocação de postes de iluminação no tracto de terreno e que pelo mesmo passam tubos de condução de água ao domicílio, bem como de rega para diversos prédios e proprietários.

Tendo por base estes factos, temos para nós que não se pode afirmar que a sua afectação se possa considerar como de utilidade pública, por faltar o interesse colectivo de relevância, pois não são casos pontuais, como os aludidos, que levam ao interesse colectivo de relevância, necessário, a tal utilidade, como supra referido.

Por outro lado, não resultou provado que desde que há memória dos vivos o segmento norte – sul do tracto de terreno, caminho, face à alteração da matéria de facto, referido em 2.1.5. seja utilizado para acesso a outros prédios que não aquele dos AA. descrito em 2.1.1. e o prédio dos Réus que lhe fica a norte, bem como, até data não apurada, a um compartimento sito no r/c da casa de I..., bem como não se provou que desde que há memória dos vivos que o dito segmento seja utilizado, por todas e quaisquer pessoas, seja da localidade de L..., seja de povoações vizinhas ou longínquas, para nele transitarem a pé, com carro de vacas, tractores, veículos automóveis e animais soltos ou presos.

Assim, face ao exposto, não vemos razão para alterar a sentença recorrida, nem vislumbramos que a mesma tenha violado qualquer norma legal.

4. Decisão

Nos termos expostos decide-se:

I- Julgar parcialmente procedente o recurso da matéria de facto como supra aludido.

II – Julgar improcedente a pretensão dos recorrentes em ver revogada a sentença recorrida e substituída por outra, antes manter a sentença recorrida nos seus termos.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 7/3/2017

 (Pires Robalo – Relator)

 (Sílvia Pires – adjunta)

 (Jorge Loureiro – adjunto)