Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5017/18.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACÇÃO DE INTERDIÇÃO
REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
LEGITIMIDADE
AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.12, 141 CC, LEI Nº 49/2018 DE 14/8, ART.136 CPC
Sumário: I - A autorização do acompanhando prevista no artº 141º do CC, na redação da Lei 49/2018, de 14.08, não se atém ao conteúdo da relação jurídica do acompanhamento, antes sendo requisito processual formal de legitimidade para a ação, pelo que é exigível, ou não, em função do estatuído na lei que estiver em vigor no momento da sua instauração – artºs 12º nº1, nº2, 1ª parte, do CC, 136º do CPC e 26º nºs 1 a 3 da 49/2018.

II - Assim, instaurada pelo pai da interditanda ação de interdição, tal autorização não pode ser retroativamente exigida, pois que no momento da instauração do processo não estava legalmente prevista como requisito de legitimidade.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Foi instaurada, por J (…), ação de interdição relativamente a P (…) sua filha.

 A ação foi instaurada em 20.06.2018.

O processo seguiu a sua tramitação instrutória legal.

Com a entrada em vigor, em 15.02.2019, do Regime Jurídico do Menor Acompanhado, introduzido  pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, o Mº Pº requereu que o requerente fosse notificado para juntar aos autos documento comprovativo da autorização da beneficiária para requerer o acompanhamento, ou requerer o seu suprimento – artº 141º do CC.

Antes de ser prolatada a sentença, e na sequência de tal requerimento, foi  proferido o seguinte despacho:

«Os presentes autos de interdição foram instaurados no dia 20-6-2018.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, os pressupostos processuais e condições de procedibilidade estão verificados, à luz do regime legal então vigente, anterior à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, em 10 de Fevereiro de 2019.

Efectivamente, o art. 26º da citada Lei n.º 49/2018, dispõe que:

“1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.

3 - Aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática (…)”.

Ora, a interpretação que se faz da referida disposição legal é a de que a referida lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes, devendo o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e adequação formal proceder às necessárias adaptações, em função do estado processual em que se encontrem. A referida lei não tem efeito retroactivo, sendo aplicável apenas a actos futuros em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal. Não há assim, salvo melhor opinião, efeitos retroactivos e lugar à anulação de actos praticados ou à exigência subsequente de pressupostos que vieram a ser estabelecidos pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.

Concretamente, em relação ao consentimento do beneficiário para o processo de acompanhamento, ou ao respectivo suprimento, entendo que o mesmo não é exigível, porquanto o não era, à data da instauração da presente acção. O Requerente tinha, então, legitimidade para instaurar a acção, independentemente do consentimento da Requerida – agora beneficiária.

Pelo exposto, não se dá acolhimento à referida promoção.»

2.

Inconformado recorreu a Digna Magistrada do MºPº.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª A presente acção especial de interdição por anomalia psíquica de P (...) foi instaurada, no dia 20 de Junho de 2018, pelo seu pai J (...) .

2.ª No decurso da mesma, entrou em vigor a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, a qual nos termos do disposto no artigo 26.º n.º1 é aplicável aos processos pendentes.

3.ª Face ao novo Regime Jurídico (do Maior Acompanhado), a legitimidade para requerer o acompanhamento passou a ser do maior impossibilitado ou mediante a sua autorização, do cônjuge, do unido de facto, de qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, do Ministério Público (cfr. art.º 141.º do CC).

4.ª Quando o maior impossibilitado não possa requerer o seu acompanhamento, a sua autorização pode, no entanto, ser suprida, devendo o pedido de suprimento da autorização do beneficiário ser cumulado com o pedido de acompanhamento, tal como dispõe o citado preceito nos n.ºs 2 e 3. O que, in casu, não se verificou.

5.ª Pese embora a promoção do Ministério Público, no sentido do Requerente ser convidado a aperfeiçoar o requerimento inicial apresentado, de acordo com os novos requisitos legais, visando-se, além do mais, a questão da falta de legitimidade do Requerente, a Mma. Juiz a quo, em despacho prévio à prolação da sentença, explanou que “ a referida lei não tem efeito retroactivo, sendo aplicável apenas a actos futuros em processos pendentes, de harmonia com a regra da adequação formal”. “Concretamente, em relação ao consentimento do beneficiário para o processo de acompanhamento, ou ao respectivo suprimento, entendo que o mesmo não é exigível, porquanto não o era, à data da instauração da presente acção”.

6.ª Alicerçada neste entendimento, sustentou a Mma. Juiz na decisão ora em crise que “as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas”.

7.ª Todavia, constituindo, actualmente, a autorização do acompanhando um dos requisitos da legitimidade do Requerente (art.º 141º nº1 do CC), a sua falta, desacompanhada do pedido de suprimento da autorização da beneficiária, leva à ilegitimidade do Requerente, configurando a excepção dilatória a que alude o art.º 577º, al. e) do CPC, pelo que, não tendo havido um aperfeiçoamento do requerimento inicial, a sentença proferida viola o disposto nos citados preceitos, ao considerar o Requerente parte legítima.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Necessidade de autorização da acompanhanda para a ação já instaurada antes da entrada em vigor da lei 49/2018, de 14 de Agosto.

4.

Apreciando.

4.1.

Estatui o artº 12º do CC:

Aplicação das leis no tempo. Princípio Geral.

1 . A lei só dispôs para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

2 . Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de duvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

O nº1 fixa a regra genérica da não retroatividade da lei.

O nº2 pretende precisar este princípio plasmado no nº1 e não tem qualquer precedente legislativo, assumindo como fonte inspiradora a doutrina de Enneccerus-Nipperday, a qual distingue entre «regulamentações de factos» e «regulamentações de direitos».

 Devendo presumir-se, quanto a estas últimas leis, que elas abrangem também as próprias situações jurídicas já existentes, podendo modificar-lhes o conteúdo ou até suprimi-lo.

Por outras palavras, quando uma lei nova vem dispor sobre um tipo de situação jurídica já regulado, há que distinguir conforme tenha em vista: i) atingir o conteúdo ou efeitos da mesma; ou apenas ii) regular o modo ou meio de chegar a essa situação.

Na primeira hipótese tem de entender-se que se aplica imediatamente às situações pré-existentes daquele tipo ainda vigentes.

É que, neste caso - considerando, vg. a relevante índole e magnitude dos direitos regulados, máxime se de interesse geral - são as próprias conceções do legislador, a ratio e teleologia da lei nova, que se pretendem ver imediatamente implementadas e  substitutivas do regime jurídico anterior.

Pelo que os direitos e deveres que constituem o conteúdo típico deste regime jurídico devem ceder e serem substituídos por aqueloutros dimanantes da lei nova.

Efetivamente, nestes casos, ao interesse dos indivíduos na estabilidade da ordem jurídica, deve sobrepor-se o interesse público na transformação desta ordem com vista à sua adaptação às novas necessidades e conceções sociaiscfr. Parecer da PGR de 21.12.1977, DR, II de 30.03.1978, p.1804, apud Abilio Neto, CC Anotado, 13ª ed. p.29.

 No segundo caso, porque não abarca tal conteúdo, e visa apenas disciplinar a forma do iter para o atingir, entende-se que rege só para as novas situações ocorridas após a sua entrada em vigor.

4.2.

Na sua anterior redação estatuía o artº 141º do CC:

«Legitimidade

1. A interdição pode ser requerida pelo cônjuge do interditando, pelo tutor ou curador deste, por qualquer parente sucessível ou pelo Ministério Público.

2. Se o interditando estiver sob o poder paternal, só têm legitimidade para requerer a interdição os progenitores que exercerem aquele poder e o Ministério Público.»

Com a entrada em vigor da Lei 49/2018, de 14 de Agosto tal preceito passou a ter a seguinte redacção:

«Legitimidade

1 - O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.

2 - O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.

3 - O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.»

Quanto à sua aplicação no tempo, estatui aquela lei:

Artigo 26.º

«Aplicação no tempo.

1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.

3 - Aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática.

4 - Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.

5 - O juiz pode autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente, mediante requerimento justificado.

6 - Às inabilitações decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, cabendo ao acompanhante autorizar os atos antes submetidos à aprovação do curador.

7 - Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adotado por esta lei.

8 - Os acompanhamentos resultantes dos n.os 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime atual.»

Acresce que os atos processuais são regulados pela lei que estiver em vigor na data da sua prática.

É o que dimana do disposto no artº 131º do CPC:

«Lei reguladora da forma dos atos e do processo.

1 - A forma dos diversos atos processuais é regulada pela lei que vigore no momento em que são praticados.

2 - A forma de processo aplicável determina-se pela lei vigente à data em que a ação é proposta.»

4.3.

No caso vertente.

Perscrutado o teor do citado artº 26º da Lei em causa, dele se retira que rege, nos seus nºs 1 a 3, para atos processuais, para os quais fixa o princípio geral da aplicação imediata, mas não retroativa, da lei.

E que, nos seus nºs  seguintes, rectius 4 e 6, já  estatui para o conteúdo da relação jurídica,  impondo a aplicação retroativa do regime atual do acompanhamento a interdições e inabilitações decretadas anteriormente à sua entrada em vigor.

 Ora a autorização ou consentimento do acompanhando para instaurar a acção (quando não seja ele a propô-la)  é, como  dimana do proémio do artº 141º do CC, um requisito de legitimidade.

Tal consentimento, ou falta dele, atém-se, pois, a um requisito ou pressuposto necessário para a ação, em si mesma, e assim, não tendo a ver, se relacionando ou influindo, na sua sorte ou na definição do conteúdo ou dos efeitos da decisão que nela venha a ser proferida.

Ou seja, tal autorização  mais se reporta à prática de um ato de cariz adjetivo atinente a um requisito  processual formal, do que à questão de mérito ou de fundo.

Efetivamente, a instauração da ação e a introdução em juízo da petição/requerimento inicial, é o primeiro e genético ato processual nela praticado.

Por conseguinte, tal ato deve ser regulado pela lei adjetiva em vigor à data da sua prática -  artº 12º nº1 e nº2, 1ª parte, do CC, 136º do CPC e 26ºº nºs 1 a 3 da Lei 49/2018.

Poder-se-á  argumentar que sem ação não há decisão, pelo que uma ação não consentida pode levar a resultado não pretendido e, assim, influir na substância da questão.

Pode contrapropor-se: tal seria apenas um efeito indireto e, acima de tudo, incerto e putativo, pois que nada nos garantia que a autorização não seria prestada, ou, em última análise, não  seria concedido o seu suprimento, como permite a lei.

Assim sendo, urge respeitar o princípio geral da não retroatividade da lei adjetiva e, inerentemente, proteger os valores, outrossim, relevantes, da certeza, segurança e proteção das expetativas dos  interessados, que tal princípio visa tutelar. – cfr. neste sentido, o Ac. RC de 10.12.2019, p. 7779/18.1T8CBR.C1 in dgsi.pt.

Na verdade, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, estes valores que a ordem jurídica prossegue, assumem uma relevância e magnitude, senão superior, pelo menos igual ao outro fito pretendido, qual seja a realização da justiça material que cada caso concreto reclama.

E ainda que a justiça represente um valor de hierarquia superior, ele apresenta-se, muitas vezes e acima de tudo, como um valor ideal a atingir, pelo que casos há em que, por motivos atinentes à estabilidade das relações entre os membros da comunidade e a razões de garantia e de confiança, necessárias ao desenvolvimento, progresso económico e paz social, se impõe a prevalência da segurança.

Sendo certo que, se por um lado, o favorecimento tendencialmente absoluto da segurança  pode acarretar uma ordem  eventualmente propícia à abertura de caminho a formas de opressão ou repressão, por outro, o fito da obtenção da justiça - numa concetualização puramente ideal deste valor -, pode acarretar uma ordem jurídica instável e ineficaz e que anularia as vantagens aqui teoricamente obtidas.

Havendo, assim, por vezes, e em caso de conflito entre tais valores, que sacrificar a justiça perante a segurança, exceto nos casos em que a injustiça do direito positivo atinja um tão alto grau, que a segurança deixe de representar algo de positivo em confronto com esse grau de violação da justiça – cfr. Batista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.55 e sgs (citando Radbruch); Oliveira Ascensão, in O Direito, ed. Gulbenkian, 2ª ed., p.165 e sgs  e  Ac. da RP de 12.02.2008, p.0726212, in  dgsi.pt.

A iníqua consecução desta  injustiça não se vislumbra no caso sub judice, pelo que esta exceção não colhe respaldo no seu seio.

Improcede o recurso.

5.

Sumariando - artº 663º nº7 do CPC.

I - A autorização do acompanhando  prevista no artº 141º do CC,  na redação da Lei 49/2018, de 14.08, não se atém ao conteúdo da relação jurídica do acompanhamento, antes sendo requisito processual formal de legitimidade para a ação, pelo que é exigível, ou não, em função do estatuído na lei que estiver em vigor no momento da  sua instauração – artºs 12º nº1, nº2, 1ª parte, do cc, 136º do  CPC  e 26º nºs 1 a 3 da cit. Lei.

II - Assim, instaurada pelo pai da interditanda ação de interdição, tal autorização não pode ser retroativamente exigida, pois que no momento da instauração do processo não estava legalmente prevista como requisito de legitimidade.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão.

Sem custas, por isenção subjetiva do recorrente.

Coimbra, 2020.02.04.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos