Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
239/11.3TBCDR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVORESTANTE
FIDUCIÁRIO
REMUNERAÇÃO
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 60, 240, 241 CIRE, 13, 59 CRP
Sumário: 1.- O art. 59º CRP, no quadro do sistema constitucional português, não pode deixar de ser lido em conjugação com o artigo 13.º da Constituição. Por isso, à luz do princípio constitucional da igualdade, o essencial reside na proibição de diferenciações injustificadas, sendo a enumeração do corpo desse artigo 59.º meramente exemplificativa.

2.- A Constituição não veda, naturalmente, diferenciações. A própria alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, ao consagrar "o princípio de que para trabalho igual salário igual", reconhece a legitimidade de diferenciações em matéria de retribuição do trabalho, designadamente em função da sua natureza e qualidade. Todavia, não havendo fundamento material para distinguir, a diferenciação será constitucionalmente interdita, sendo, para o efeito, irrelevante que o factor de distinção esteja ou não expressamente autonomizado no corpo do n.º 1 do artigo 59.º.

3. - É o devedor quem paga, anualmente, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário. Essas despesas e remuneração são destacadas dos montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, para serem pagas ao fiduciário, antes de serem pagos os credores, conforme decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 241º.

4.- O facto da remuneração do fiduciário dever corresponder a 10% do valor das quantias cedidas e dever ser assegurado pela afectação dos rendimentos cedidos pelo devedor, não pode determinar que, caso tais quantias não existam, o fiduciário não seja remunerado.

5.- Do regime do art.º 241.º CIRE, que manda afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, à remuneração ao fiduciário, retira-se que a remuneração deverá ocorrer no fim de cada ano, quando do envio da informação ao juiz, nos termos previstos no art.º 240.º n.º 2 parte final.

6.- Concluindo-se pela possibilidade do fiduciário nomeado pelo tribunal ver a sua remuneração e despesas suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, que corresponde actualmente ao Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, no valor devido pelo trabalho realizado, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que o permitam.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

E (…), ADMINISTRADORA DA INSOLVÊNCIA/FUDUC E (…)nos autos em epígrafe, em que são insolventes V (…) e P (…)  inconformada com o despacho judicial de 24-04-2017, dele veio interpor recurso de apelação, alegando e concluindo que:

(…)

*

O MP, a fls. 34-35, fez consignar o seu Parecer, a considerar que:

«A fls. 501 verso, veio a Senhora Fiduciária requerer a fixação da sua remuneração anual num valor não inferior a 300€ anuais, aqui se presumindo que não existiu rendimento cedido pelos devedores.

Caso se aplicasse estritamente o disposto no art. 28.° do EAJ, a remuneração do fiduciário apenas existiria nos casos em que existissem quantias cedidas. Todavia, afigura-se-nos que tal situação não seria de todo justa, dado que o trabalho não se encontrava a ser remunerado.

Face ao disposto no artigo 28.° da Lei n.º 22/2013 de 26-02, coloca-se a questão de saber qual o montante a fixar.

Neste aspecto, consideramos que é de acolher o critério seguido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 93/11.5TBSCD-F, desta Secção, J2, no âmbito do qual foi considerado, por um lado, que o fiduciário tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, mesmo que no período da cessão ou nalguns anos desse período não haja lugar a cessão de rendimentos do devedor ao fiduciário e, por outro lado, que, em tais casos, a remuneração do fiduciário deve ser regulada segundo o n.º 1, do artigo 23.º e o n.º 4, do artigo 30.° ambos do Estatuto do Administrador Judicial.

Com efeito, é de aplicar analogicamente, o disposto no artigo 30.°, n.º 4, do Estatuto do Administrador Judicial, relativo às situações de insuficiência da massa insolvente previstas no artigo 39.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, prevendo-se, nestes casos, que a remuneração do administrador da insolvência é reduzida a um quarto do valor fixado pela portaria referida no n.º 1 do artigo 23.°, ou seja, €500,00 (art.º 1.° da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro € 2.000,00:4), remuneração esta que "vale para o período de cessão, ou seja, vale para os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o que significa que o fiduciário tem direito a receber em cada ano em que não houver cessão de rendimentos a quantia de €100,00 (cem euros) pelo exercício das suas funções".

Termos em que, em relação ao período em que não houve lugar a cessão de rendimentos dos devedores, promovo que se fixe a remuneração anual da fiduciário na quantia de cem Euros (e não nos 300€ por esta peticionados).

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Não foram proferidas outras contra-alegações.

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II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa a materialidade invocada e que consta do elemento redactorial dos Autos, revelando-se, em tal contexto, que:

- Em 14-02-2012 o Tribunal recorrido decidiu admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante feito pelos insolventes e nomear a Recorrente como Fiduciária, passando esta a exercer essas funções.

- Em 22-02-2017 a Recorrente solicitou ao Tribunal que lhe fixasse os honorários enquanto Fiduciária.

- O Tribunal recorrido despachou no sentido de que a remuneração iria corresponder a 10% das quantias objecto da cessão, até ao limite de 5 000, 00 € - art. 240.º do CIRE.

- Os insolventes procederam à entrega de 585, 00 € ao longo dos 5 anos.

- E tendo-lhes sido alargado por mais 2 anos o período de cessão, não se prevê que venham a aumentar a sua média de depósitos, porque não possuem rendimentos acima do montante fixado como indisponível.

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- o despacho proferido a fls.22 (20.06.2016)  assumiu o seguinte teor:

«Em face do alegado pelos insolventes e a posição assumida nos autos pelos credores e pela ilustre fiduciária, decide-se alterar os montantes nos termos requeridos pelos insolventes para dois salários mínimos nacionais, acrescidos de metade enquanto a insolvente estiver desempregada e três salários mínimos nacionais caso esta consiga emprego com vencimento igualou superior ao salário mínimo nacional.

Defere-se ainda a prorrogação do período de cessão por mais 24 meses com o pagamento mensal de uma prestação de €60,80.

Notifique, sendo ainda os insolventes para entregarem a documentação referida pela A.I. no requerimento que antecede e nos seus precisos termos»;

- Por sua vez, no despacho proferido a fls.17 (24.04.2017), consagra-se:

« Fls. 501 v.º - ref.ª 24984308 e fls. 507 a 517 - ref.ª 25177879:

 Tendo havido cessão de rendimentos a única remuneração a que a Sr.ª Fiduciária tem direito é a fixada na lei (10% das quantias objeto da cessão, com o limite máximo de €5.000,00 por ano - artigo 240.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e 28.º da Lei n.º 22/2013, de 26-02), pelo que indefiro ao requerido a fls. 501v.º.

 Notifique e aguardem os autos a apresentação de novo relatório ou que os credores requeiram o que tiverem por conveniente (art.º 61.º, n.º 1, 240.º, n.º 2, 243.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)».

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Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608º do mesmo Código.

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As questões suscitadas, na sua própria matriz constitutiva e redactorial, consistem em apreciar:

I.

XXIV. O Tribunal recorrido interpretou erradamente os normativos dos art. 60.º, 240.º e 241.º do CIRE e art. 25.º do EAI, quanto à questão da remuneração do Fiduciário.

XXV. A par disto, entende-se que o Tribunal recorrido não respeitou o art. art. 59º CRP, não cuidando de garantir à Recorrente uma remuneração justa e equitativa pelo seu trabalho.

XXVI. A entender-se que a interpretação vertida no despacho recorrido é a mais correcta, então o art. 25.º do EAI é inconstitucional, na medida em que não garante remuneração para alguém que presta o seu trabalho ao próprio Estado e a pedido deste.

Apreciando, a referir, pressuponentemente, configurar-se como incontroverso e incontrovertível que, “depois de consagrar em geral um conjunto de direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores e das organizações deles representativas e de proclamar o direito fundamental ao trabalho, a Constituição enuncia, no artigo 59.º, um leque alargado de direitos económicos, sociais e culturais dos trabalhadores. A Constituição nesta sede não cura (Cf. artigo 53.º CRP), dos direitos fundamentais dos trabalhadores enquanto pessoas ou cidadãos. O artigo 59.º da Constituição só se ocupa dos direitos dos trabalhadores enquanto tais.

Destinatários do artigo 59.º são todos os trabalhadores subordinados, abrangendo também, obviamente, e utilizando a fórmula do artigo 269.º da Lei Fundamental, os trabalhadores da Administração Pública (Ac. n.º 474/02 - consultar os artigos 53.º e 269.º CRP). Ainda assim, alguns dos direitos enunciados são relevantes para todos aqueles que vivem do trabalho, ainda que exerçam a sua actividade sem vínculo de subordinação jurídica. Basta pensar, por exemplo, no direito a assistência e a justa reparação em caso de acidente de trabalho ou de doença profissional (JORGE MIRANDA, Os juízes têm direito à greve, págs. 293-294).

A inserção sistemática revela, outrossim, que, na perspectiva do legislador constitucional, os direitos consagrados no artigo 59.º são configurados como direitos económicos, sociais e culturais. Isto não significa, porém, que as normas integradas na nossa Constituição laboral não tenham grande conteúdo vinculativo (cfr., diferentemente, Luís MENEZES LEITÃO, A Conformidade da Proposta de Lei 29/IX (Código do Trabalho) com a Constituição, págs. 130 e 131). Aliás, como se vai sublinhar, algumas das dimensões dos direitos fundamentais dos trabalhadores enunciados no artigo 59.º têm inclusivamente uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias, aplicando-se por isso, nos termos do artigo 17.º, o regime dos direitos, liberdades e garantias.

O corpo do n.º 1 do artigo 59.º - na esteira do artigo 58.º, n.º 2, alínea b) - começa por reafirmar, no contexto dos direitos dos trabalhadores, o princípio fundamental da igualdade, repudiando discriminações entre trabalhadores em função da "idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas".

O preceito, no quadro do sistema constitucional português, não pode deixar de ser lido em conjugação com o artigo 13.º da Constituição. Por isso, à luz do princípio constitucional da igualdade, o essencial reside na proibição de diferenciações injustificadas, sendo a enumeração do corpo do artigo 59.º meramente exemplificativa. O legislador constitucional limita-se a indicar alguns dos principais factores de discriminação ilegítima dos trabalhadores. Outros poderão existir, incluindo, em face da nova redacção do artigo 13.º, n.º 2, introduzida na revisão de 2004, por motivos que se prendem com a orientação sexual. A Constituição não veda, naturalmente, diferenciações. A própria alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, como se confirmará de seguida, ao consagrar "o princípio de que para trabalho igual salário igual", reconhece a legitimidade de diferenciações em matéria de retribuição do trabalho, designadamente em função da sua natureza e qualidade. Todavia, não havendo fundamento material para distinguir, a diferenciação será constitucionalmente interdita, sendo, para o efeito, irrelevante que o factor de distinção esteja ou não expressamente autonomizado no corpo do n.º 1 do artigo 59.º” (JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, TOMO I, 2.ª edição, revista, actualizada e ampliada, 2010, pp. 1147-1149).

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De acordo com tal emissão conceitual, se sufraga, com o mesmo alcance e abrangência -, o que se apreciou no Ac. RP com o nº 419.12.4TB0AZ.F.P1, Relator: Soares de Oliveira, ao consignar que:

“O fiduciário é nomeado nos termos do artigo 239º, 2, do CIRE.

Do disposto no artigo 241º, 1, b), do CIRE resulta que é admissível o pagamento de remunerações ao fiduciário por adiantamentos do Cofre Geral dos Tribunais (hoje, Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça).

A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor – artigo 240º, 1, do CIRE.

Este último dispositivo em nada impede ou altera o disposto no mencionado artigo 241º, 1, b), do CIRE.

Todo o trabalhador tem direito a remuneração, que é um princípio constitucionalmente consagrado – artigo 59º, 1, a), da CRP.

De acordo com o disposto no artigo 240º, 1, do CIRE, a remuneração do fiduciário obedece às regras fixadas para o administrador da insolvência, com as necessárias adaptações e com os limites fixados no artigo 25º da Lei n.º 32/2004, de 22-7.

Deveria, pois, ter sido fixada a remuneração a adiantar pelo Cofre Geral dos Tribunais (Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça) (…)”.

Assim, também, se consagrando, aqui - com esteio em tais razões -, ser admissível a fixação de remuneração ao fiduciário a adiantar pelo Cofre Geral dos Tribunais.

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Com este alcance firmado, mais se diga - como elemento de confluência apreciativa, expresso no Ac. RP, de 10.09.2013, Relator: Henrique Araújo -, entender de perfeita adequação expressar que

“O artigo 240º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) determina o seguinte:

1. A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor.

2. São aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, os nºs 2 e 4 do artigo 38º, os artigos 56º, 57º, 58º, 59º e 62º a 64º; é também aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 60º e no n.º 1 do artigo 61º, devendo a informação revestir periodicidade anual e ser enviada a cada credor e ao juiz.

Portanto, em função do citado artigo, é o devedor quem paga, anualmente, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário. Essas despesas e remuneração são destacadas dos montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, para serem pagas ao fiduciário, antes de serem pagos os credores, conforme decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 241º.

Mas o que sucederá se o devedor, por razões de insuficiência de meios, não entregar qualquer montante ao fiduciário durante o período de cessão?

Será que, nesse caso, o fiduciário não recebe qualquer quantia pelo exercício das suas funções, como se decidiu na 1ª instância?

Afigura-se-nos que a resposta a esta última questão tem de ser negativa.

Por força da remissão feita pelo n.º 1 do artigo 240º para o n.º 1 do artigo 60º [esta norma refere-se à remuneração do administrador da insolvência], o fiduciário nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.

Segundo o artigo 25º do Estatuto do Administrador da Insolvência (Lei 32/2004, de 22 de Julho [sendo que, em 26.02.2013, foi publicado o novo Estatuto do Administrador Judicial – Lei 22/2013, que não transmuda apreciação] a remuneração do fiduciário corresponde a 10% das quantias objecto de cessão, com o limite máximo de 5.000 € por ano.

Esta disposição não dá uma resposta directa à questão, na medida em que apenas estabelece uma percentagem das quantias cedidas, até um determinado tecto.

Por outro lado, embora no Estatuto se preveja que, no caso de o processo ser encerrado por insuficiência da massa insolvente, a remuneração do administrador da insolvência e o reembolso das despesas são suportados pelo Cofre Geral dos Tribunais (artigo 27º), não existe norma expressa que contemple a possibilidade de o fiduciário também ser remunerado por essa entidade quando nenhuma quantia haja sido cedida pelo insolvente.

A solução tem de buscar-se, segundo cremos, na norma do n.º 1, alínea b) do artigo 241º do CIRE, na qual se prevê que o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão ao “reembolso ao Cofre Geral de Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas”.

Daqui se retira a possibilidade de o fiduciário ser remunerado pelo Cofre Geral dos Tribunais (actual Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça), que deverá proceder ao adiantamento da verba devida pelo trabalho realizado.

 

Não é, de facto, aceitável que o fiduciário nomeado pelo juiz não seja remunerado das funções que exerceu só porque nenhum valor foi entregue pelo devedor insolvente ao longo do período de cessão. Isso contrariaria o disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República, segundo o qual todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade deste”.

Evidentemente que a remuneração devida à fiduciária nomeada pelo tribunal deverá ter em linha de conta o volume de trabalho realizado, devendo essa mesma remuneração ser fixada, de acordo com os elementos de que disponha ou que se julgue necessário obter.

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Como elemento de reforço do sentido de decisão que se esboça, convoque-se, ainda, orientação similar, onde - convergentemente -, mais se faz relevar que:

“a figura do fiduciário surge no CIRE associada ao instituto da exoneração do passivo restante e à cessão do rendimento disponível.

Ao regular a cessão do rendimento disponível, estabelece o art.º 239.º n.º 2 do CIRE: “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal, de entre as inscritas na lista oficial dos administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.”

A respeito da remuneração do fiduciário, regula o art.º 240.º do CIRE que, no seu n.º 1, vem estabelecer que a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor. Por seu turno, o n.º 2 deste artigo, dispõe: “São aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, os n.º 2 e 4 do artigo 38.º, os artigos 56.º, 57.º, 58.º, 59.º e 62.º a 64.º; é também aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 60.º e o n.º 1 do art.º 61.º, devendo a informação revestir periodicidade anual e ser enviada a cada credor e ao juiz.”

Entre as normas aplicáveis ao fiduciário, com as devidas adaptações, por remissão do art.º 240.º n.º 2, está o art.º 60.º n.º 1 que se refere à remuneração do Administrador da insolvência nomeado pelo juiz, dispondo que este tem direito às remunerações previstas no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.

Temos assim um regime legal que consagra o direito do fiduciário às remunerações previstas no Estatuto do Administrador Judicial e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis realizar, sendo que, o Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, contempla expressamente a remuneração do fiduciário, no seu art.º 28.º, estabelecendo que esta corresponde a 10% das quantias objecto da cessão, com o limite máximo de € 5.000 por ano.

De considerar ainda, com interesse para esta questão, o que dispõe o art.º 241.º do CIRE, que se reporta às funções do fiduciário. De acordo com a previsão do n.º 1: “O fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão:

a) ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida;

b) ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas;

c) ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas;

d) à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência.”

A responsabilidade pelo pagamento da remuneração e das despesas do fiduciário é assim, em primeira linha, do devedor, uma vez que deve ser suportado pelas quantias objecto da cessão, atento o disposto no art.º 241.º n.º 1 do CIRE e art.º 28.º do Estatuto do Administrador Judicial.

Tal como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/09/2013, no proc. n.º 1714/09.5TBVNG-J.P1, in. www.dgsi.pt : “…é o devedor quem paga, anualmente, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário. Essas despesas e remuneração são destacadas dos montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, para serem pagas ao fiduciário, antes de serem pagos os credores, conforme decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 241º.”

O problema põe-se então, quando as quantias objecto da cessão não existam ou sejam insuficientes para o pagamento da remuneração e despesas do fiduciário, o que pode não ser raro, considerando até as prioridades para a afectação das quantias cedidas, estabelecidas no art.º 241 n.º 1 do CIRE. É precisamente isso o que se passa no caso em presença.

(…)

Por outro lado, o facto da remuneração do fiduciário dever corresponder a 10% do valor das quantias cedidas e dever ser assegurado pela afectação dos rendimentos cedidos pelo devedor, não pode determinar que, caso tais quantias não existam, o fiduciário não seja remunerado. Em última análise poderia chegar-se ao ponto do fiduciário não ser remunerado pelas suas funções, para as quais é nomeado pelo tribunal, nem ser reembolsada das despesas que teve no exercício das mesmas, o que não é concebível e vai até contra o direito constitucional contemplado no art.º 59.º n.º 1 al. a) da CRP que prevê que todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho.

O art.º 30.º do Estatuto do Administrador Judicial prevê a possibilidade do pagamento da remuneração do administrador da insolvência ser suportada pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça, quando a massa insolvente for insuficiente para o efeito. Embora aí não seja contemplada norma equivalente para o fiduciário, quando não existam quantias cedidas pelo devedor, não pode deixar de equiparar-se as duas situações, sob pena, como se referiu, de poder chegar-se a uma situação em que o fiduciário está a exercer as funções para as quais foi nomeado pelo tribunal, sem auferir qualquer rendimento, o que pode ocorrer, caso aquelas quantias não existam.

Em abono desta interpretação, temos também o art.º 241.º n.º 1 al. b) do CIRE, que prevê expressamente o reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do próprio fiduciário que por ele tenham sido suportadas, revelando que tal pagamento pode ser suportado pelo cofre.

O fiduciário nomeado pelo tribunal tem assim a possibilidade de ver a sua remuneração e despesas suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, que corresponde actualmente ao Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, no valor devido pelo trabalho realizado, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que permitam o seu pagamento.

Conclui-se por isso, tal como já decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2013, no proc. n.º 419/12.TBOAZ-F.P1, in. www.dgsi.pt, bem como o acórdão já anteriormente citado, no sentido de que a remuneração e despesas do fiduciário nomeado pelo tribunal, podem ser suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, quando os valores recebidos a título de cessão de rendimentos não existirem ou não forem suficientes para suportar aquele pagamento.

(…)

Do regime do art.º 241.º, que manda afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, à remuneração ao fiduciário, retira-se que a remuneração deverá ocorrer no fim de cada ano, quando do envio da informação ao juiz, nos termos previstos no art.º 240.º n.º 2 parte final. É que, só nesse momento será possível saber se foram entregues valores pelo devedor que permitam o pagamento em causa, bem como avaliar o trabalho desenvolvido pelo fiduciário, o que não pode deixar de ser relevante para efeitos da determinação da remuneração, nos casos em que a mesma tem de ser fixada pelo tribunal».

Desta arte, se impondo inferir, como corolário do que antecedentemente se referiu, na senda dos precedentes judiciários aludidos, por se revelarem, de forma convergente, ao formulado:

«Concluindo-se pela possibilidade do fiduciário nomeado pelo tribunal ver a sua remuneração e despesas suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, que corresponde actualmente ao Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, no valor devido pelo trabalho realizado, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que o permitam» (Ac. RP, nº 347.13.6TJPRT.P1, de 28.10.2015, Relatora: Inês Moura).

Por tais razões se impõe a substituição da decisão recorrida por outra, que fixe a remuneração do fiduciário, em função do trabalho prestado, a suportar pelo Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça (substituto do Cofre Geral dos Tribunais).

O que determina responder afirmativamente, na dimensão que se consigna, às questões em I.

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Podendo, assim, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7 NCPC), que:

1.

O art. 59º CRP, no quadro do sistema constitucional português, não pode deixar de ser lido em conjugação com o artigo 13.º da Constituição. Por isso, à luz do princípio constitucional da igualdade, o essencial reside na proibição de diferenciações injustificadas, sendo a enumeração do corpo desse artigo 59.º meramente exemplificativa.

2.

A Constituição não veda, naturalmente, diferenciações. A própria alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, ao consagrar "o princípio de que para trabalho igual salário igual", reconhece a legitimidade de diferenciações em matéria de retribuição do trabalho, designadamente em função da sua natureza e qualidade. Todavia, não havendo fundamento material para distinguir, a diferenciação será constitucionalmente interdita, sendo, para o efeito, irrelevante que o factor de distinção esteja ou não expressamente autonomizado no corpo do n.º 1 do artigo 59.º.

-

3.

É o devedor quem paga, anualmente, através do rendimento cedido aos credores, a remuneração e as despesas do fiduciário. Essas despesas e remuneração são destacadas dos montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, para serem pagas ao fiduciário, antes de serem pagos os credores, conforme decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 241º.

4.

O problema põe-se então, quando as quantias objecto da cessão não existam ou sejam insuficientes para o pagamento da remuneração e despesas do fiduciário, o que pode não ser raro, considerando até as prioridades para a afectação das quantias cedidas, estabelecidas no art.º 241 n.º 1 do CIRE. É precisamente isso o que se passa no caso em presença.

5.

O facto da remuneração do fiduciário dever corresponder a 10% do valor das quantias cedidas e dever ser assegurado pela afectação dos rendimentos cedidos pelo devedor, não pode determinar que, caso tais quantias não existam, o fiduciário não seja remunerado. Em última análise poderia chegar-se ao ponto do fiduciário não ser remunerado pelas suas funções, para as quais é nomeado pelo tribunal, nem ser reembolsada das despesas que teve no exercício das mesmas, o que não é concebível e vai até contra o direito constitucional contemplado no art.º 59.º n.º 1 al. a) da CRP que prevê que todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho.

6.

Do regime do art.º 241.º CIRE, que manda afectar os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, à remuneração ao fiduciário, retira-se que a remuneração deverá ocorrer no fim de cada ano, quando do envio da informação ao juiz, nos termos previstos no art.º 240.º n.º 2 parte final. É que, só nesse momento será possível saber se foram entregues valores pelo devedor que permitam o pagamento em causa, bem como avaliar o trabalho desenvolvido pelo fiduciário, o que não pode deixar de ser relevante para efeitos da determinação da remuneração, nos casos em que a mesma tem de ser fixada pelo tribunal.

6.1.

Concluindo-se pela possibilidade do fiduciário nomeado pelo tribunal ver a sua remuneração e despesas suportadas pelo Cofre Geral dos Tribunais, que corresponde actualmente ao Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça, no valor devido pelo trabalho realizado, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que o permitam.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao recurso interposto, ordenando em substituição do consagrado, no despacho recorrido, outro, a proferir no Tribunal a quo, determinando uma remuneração, mínima e justa, para a Recorrente, calculada em, nunca menos, de 300, 00 € anuais (correspondente a um valor hora entre € 12,00 e € 15,00, no pressuposto de que tal exercício de funções, consome à signatária, no mínimo, 20 a 25 horas anuais), por se revelar notório, razoável e de perfeita compatibilidade ao invocado, a ser adiantada, no final de cada ano de cessão, pelo Cofre Geral dos Tribunais, quando não existam quantias cedidas pelo devedor que o permitam.

Sem Custas.

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Coimbra,     ,                        ,  de 2017.

António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Moreira do Carmo

        

                                                                                                                                                                                      António Carvalho Martins – Relator

                                                             Carlos Moreira - 1º Adjunto

                                                            João Moreira do Carmo - 2º  Adjunto