Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/2002.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RESPONSABILIDADE PELO RISCO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
RECURSO SUBORDINADO
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ART.º 508.º DO CC NA REDACÇÃO DO DL N.º 190/85, DE 24.6
Sumário: 1. Tendo o acidente de viação ocorrido em 12.11.93 e fundando-se a responsabilidade civil dele emergente no risco, a indemnização correspondente deve ater-se ao limite máximo estabelecido pelo n.º 1 do art.º 508.º do CC na redacção do DL n.º 190/85, de 24.6, uma vez que a revogação tácita de tal preceito só ocorreu com efeitos reportados a 1.1.96, ou seja, com a redacção dada pelo DL n.º 3/96, de 25.1 ao art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12;

2. Não é pela consideração abstracta do maior peso ou dimensão de um veículo automóvel relativamente a um ciclomotor que se afere a repartição do risco, antes considerando a utilização concreta de cada um dos veículos que, no caso, se afigura adequada de 60% para o veículo automóvel e 40% para o ciclomotor;

3. Porque improcedente a apelação principal da A., inútil se torna a apreciação da apelação subordinada da Ré.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

Companhia de Seguros A..., SA”, que sucedeu, por fusão, a “B... – Companhia de Seguros, SA”, propos contra “C... – Companhia de Seguros, SA, a presente acção com forma de processo ordinário, pedindo, a título de direito de regresso, a condenação desta no pagamento da quantia de 8 611 366$00, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação, pedido esse por último actualizado para a importância de € 67.881,56, como reembolso pela importância que despendeu no âmbito de um contrato de seguro de acidentes de trabalho com “D... , Lda.”, entidade patronal da sinistrada E..., vítima de acidente simultaneamente de trabalho e viação ocorrido em 13.11.93, quando se deslocava do seu local de trabalho para casa, no velocípede com motor de matrícula ...MRT..., provocado pelo segurado nesta última, F..., quando conduzia o veículo automóvel ligeiro, de matrícula NX....

Contestou a Ré, por excepção (incompetência territorial e prescrição) e impugnação, em suma atribuindo a responsabilidade à condutora do velocípede com motor.

 Houve réplica, onde a A. pugnou pela improcedência das excepções.

Deferida a competência ao TJ da comarca de Santa Comba Dão, veio a proferir-se despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção e foi seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida, que constituiu a base instrutória, a que viriam a ser aditados artigos resultantes da ampliação do pedido.

Inconformada com a improcedência da excepção de prescrição, recorreu a Ré, recurso que foi admitido para subir, a final, nos próprios autos e efeito devolutivo e que, por falta de alegações se tem por deserto.

Após vicissitudes várias (com decurso de tempo superior a 5 anos entre a 1.ª marcação da audiência e o início desta, em causa estando um acidente ocorrido há mais de 15 anos!), teve lugar o julgamento, na sequência do que foi proferida decisão sobre a matéria de facto, que não foi objecto de reclamação.

Proferida sentença, veio a acção a ser julgada parcialmente procedente por provada e a Ré condenada a pagar à A. a quantia de € 19.951,92, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, ou seja, a quantia-limite estabelecida pelo n.º 1 do art.º 508.º do Cód. Civil, na redacção vigente à data do acidente, estribada que foi no risco a responsabilidade pela sua reparação, repartida em 60% para o veículo automóvel e 40% para o velocípede com motor, proporção, todavia, irrelevante face à quantia peticionada (€ 67.881,56), largamente excedente ao valor máximo fixado por aquele preceito legal.

Discordante do decidido, apelou a A., em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

a) – À data do acidente dispunha o n.º 1 do art.º 508.º do CC que “a indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limites máximos: no caso de morte ou lesão de uma pessoa, o montante correspondente ao dobro da alçada da relação; no caso de morte ou lesão de várias pessoas em consequência do mesmo acidente, o montante correspondente ao dobro da alçada da relação para cada uma delas, com o máximo total do sêxtuplo da alçada da relação (…)”;

b) – Os montantes mínimos de capital para o seguro obrigatório a vigorar em todos os Estados Membros da Comunidade Europeia foram impostos pela Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30.12.83, publicada no JOCE L 008 de 11.1.84, pág. 17;

c) – Não obstante o período derrogatório até 31.12.95, estabelecido no Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, foi imposto que o montante máximo nacional de seguro obrigatório sofresse uma actualização até 31.12.92;

d) – O DL n.º 18/93 de 23.1 veio dar cumprimento a essa obrigação, “tendo como objectivo a aproximação progressiva do limite acima enunciado”;

e) – Se o Supremo Tribunal de Justiça concluiu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 3/2004 de 25.3 (DR, I-A, de 13.5.04) que os limites do art.º 508.º do CC têm vindo a ser actualizados pelos diplomas que fixam o capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos do art.º 6.º do DL n.º 522/85 e para cumprimento do direito comunitário, por identidade de razões tem de concluir-se que também o DL n.º 18/93, de 23.1 veio actualizar o limite estabelecido naquele preceito;

f) – Deve concluir-se que não só com o DL n.º 3/96, de 25.6, mas desde que o capital mínimo obrigatoriamente seguro é superior ao montante máximo estabelecido para a responsabilidade pelo risco, no art.º 508.º do CC, é aquele o limite máximo aplicável e não o estabelecido neste preceito;

g) – As normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm carácter de regras de direito material da responsabilidade civil e, pelo menos nesta parte, os diplomas que estabelecem os montantes mínimos do seguro obrigatório automóvel acima dos limites máximos do art.º 508.º do CC revestem natureza de normas materiais da responsabilidade civil automóvel, sendo que aquele diploma visa respeitar a obrigação de cumprimento da Directiva n.º 84/5/CE;

h) – Foi decidido no Ac. STJ de 12.1.06 (Revista n.º 4269-04) que “os limites do risco a que se tem que atender aqui são iguais aos que o seguro automóvel obrigatório fixava à data do acidente como limites mínimos: no caso de pluralidade de lesados os de 50 000 000$00, o mesmo tendo seguido o Ac. RL de 11.9.07 (ITIJ), proferido no âmbito de um acidente também ocorrido em 1993;

i) – Os limites máximos da responsabilidade civil objectiva causada por veículos estabelecidos no art.º 508.º do CC foram actualizados pelos diplomas fixadores do capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos do art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12 e, no caso, tendo o acidente ocorrido em 1993, os limites a ponderar são os definidos pelo DL n.º 18/93, de 23.1, ou seja, de € 174.579,26 por lesado, com o máximo de € 249.398,94;

j) – Quanto à proporção da responsabilidade, considerando o tipo de veículos intervenientes no acidente, um veículo automóvel ligeiro e um velocípede com motor, é mais justa a repartição de 70% para o 1.º e 30% para o 2.º;

l) – Deve, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene a apelada a pagar à apelante a quantia devida na estrita proporção da sua responsabilidade.

Na resposta apresentada, a Ré, pugnou pela improcedência do recurso, com fundamento em que o art.º 508.º do CC apenas foi alterado pelo DL n.º 59/2004 de 19.3 e só a partir da entrada em vigor deste se operou a alteração pretendida pela A. recorrente nos limites da responsabilidade pelo risco, sendo que, até lá, as seguradoras continuaram a receber prémios de seguro automóvel tendo por base a responsabilidade que para elas advinha em face dos limites expressos na anterior redacção do preceito legal, em vigor ao tempo do sinistro dos autos, afigurando-se-lhe, por outro lado, que a repartição do risco foi adequadamente fixada na sentença.

A Ré, no recurso subordinado, impugnou a matéria de facto quanto à dinâmica do acidente, concluindo pela sua imputação exclusiva à sinistrada e consequente substituição da sentença por decisão absolutória da Ré do pedido.

A A., em resposta, pugnou pela manutenção da sentença na parte recorrida subordinadamente.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar, na apelação principal:

a) - Saber qual o limite indemnizatório na responsabilidade pelo risco. Se o decorrente do art.º 508.º do CC na redacção vigente à data do acidente (12.11.93) (DL n.º 190/85, de 24.6), isto é, o dobro da alçada do tribunal da relação (€ 19.951,92 – art.º 20.º, n.º 1 da Lei n.º 38/87, de 23.12), se o resultante do art.º 6.º do DL n.º 522/85 (seguro obrigatório) de 31.12, com a redacção vigente à data do acidente (DL n.º 18/93 de 23.1) (€ 174.579,26);

b) – Na apelação subordinada, caso a tese da A. logre vencimento, a impugnação da matéria de facto relativa às respostas dadas aos quesitos 4.º a 6.º e 8.º a 15.º.

Vejamos, então.


*

            II. Fundamentação

            1. De facto

            Foi a seguinte a factualidade dada como provada pela 1.ª instância:

a) – A A. no exercício da sua actividade seguradora celebrou, em 28.11.92, com “D..., Lda.” um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, através do qual esta transferiu para a A. a sua responsabilidade por acidentes de trabalho que se verificassem com os seus trabalhadores, titulado pela apólice n.º 91 690;

b) – E..., em 12.11.93, era trabalhadora da “ D...”, estando abrangida por esse contrato de seguro;

c) – No dia 12.12.93, cerca das 13H15, houve um embate que envolveu o velocípede com motor, de matrícula ...MRT..., conduzido por E... e o veículo automóvel de matrícula NX..., conduzido por F...;

d) – Na altura E... deslocava-se do seu local de trabalho para sua casa, nesse velocípede com motor;

e) – O veículo NX circulava na EN n.º 228, que liga a povoação de Freixo à povoação de Barril, nesse sentido;

f) – As instalações da “ D...” situam-se à direita da EN n.º 228 considerando o sentido Freixo-Barril;

g) – Por sentença proferida em 25.5.98, nos autos de acção emergente de acidente de trabalho n.º 275/94, do 1.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Viseu, a ali então Ré companhia de seguros “B..., SA” foi condenada a pagar a E... a pensão anual e vitalícia de 644 928$00, com início em 13.5.95, em duodécimos e acrescida, em Dezembro de cada ano, de uma 13.ª prestação de igual valor, a indemnização por ITA de 776 771$00, a quantia de 48 550$00 de despesas em transportes, a quantia de 73 204$00 a título de despesas com medicamentos e taxas moderadoras e juros de mora à taxa legal sobre as prestações vencidas da pensão e indemnização por ITA, desde as respectivas datas de vencimento até pagamento e sobre essas últimas quantias desde 5.2.96 até pagamento;

h) – O proprietário do veículo NX... tinha transferido a responsabilidade civil por danos emergentes de acidentes de viação para a Ré companhia de seguros por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 5 600 611;

i) – Entre as instalações da “ D..., SA” e a EN n.º 228 existe um caminho público;

j) – E... circulava nesse caminho e pretendia entrar na EN n.º 228;

l) – Após ter entrado na EN n.º 228 em direcção ao Freixo deu-se o embate;

m) – O condutor do veículo NX deixou marcado no pavimento um rasto de travagem numa extensão de 23.5 m;

n) – Do acidente resultaram para E... múltiplas fracturas na perna direita, ossos da bacia e outras, de que resultou uma incapacidade permanente absoluta desde 13.5.95, tendo sido sujeita a diversas intervenções cirúrgicas nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde esteve internada durante vários meses;

o) – Na sequência da sentença referida a A. pagou a E... a quantia de 8 611 366$00, sendo 3 977 362$00 de despesas hospitalares, 3 000$00 de honorários médicos, 258 861$00 de despesas de farmácia, 63 063$00 de aquisição de próteses, 2 159$00 de incapacidade temporária absoluta, 774 612$00 de incapacidade temporária absoluta (2/3), 494 435$00 de custos de transporte e 3 040 870$00 de pensão entre 14.5.95 e 30.6.99;

p) – Desde 30.6.99 e até 21.2.07 a A. liquidou a E... a quantia de € 21.966,49;

q) – Esse montante foi liquidado a título da pensão anual e vitalícia;

r) – Desde 21.2.07, a esse mesmo título, a A. continuou a liquidar outros montantes;

s) – Desde 21.2.07 e até 19.9.08 a A. liquidou a E... a quantia de € 5.414,55, a título  da mesma pensão.


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            2. De direito

            Como é sabido, nos termos do disposto dos art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do CPC, o âmbito do recurso é fixado pelas conclusões das alegações da recorrente, a partir das quais já acima elencámos as questões submetidas à nossa apreciação.

            Comecemos, então, pela apelação principal, sendo que a sua improcedência e a manutenção do decidido em 1.ª instância prejudicará o conhecimento do recurso subordinado.

Quanto à 1.ª questão, antecipando a conclusão, carece de razão a recorrente na sua pretensão de ver aplicado ao acidente dos autos, ocorrido em 12.11.93, não o limite máximo indemnizatório por lesado de € 19.951,92, correspondente ao dobro da alçada da relação, nos termos do n.º 1 do art.º 508.º do CC, mas o valor de € 174. 579,26, ou seja, o capital mínimo obrigatoriamente seguro, decorrente do art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12 actualizado pelo DL n.º 18/93, de 23.1.

Vejamos, porquê:

- À data do acidente (12.11.93) o art.º 508.º, n.º 1 do CC (na redacção do DL n.º 190/85, de 24.6, entrado em vigor em 1.1.86) dispunha o seguinte:

- “ A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limites máximos: no caso de morte ou lesão de uma pessoa, o montante correspondente ao dobro da alçada da relação; no caso de morte ou lesão de várias pessoas em consequência do mesmo acidente, o montante correspondente ao dobro da alçada da relação para cada uma delas, com o máximo total do sêxtuplo da alçada da relação; no caso de danos causados em coisas, ainda que pertencentes a diferentes proprietários, o montante correspondente à alçada da relação”.[1]

O DL n.º 59/04, de 19.3, veio, contudo, dar-lhe a seguinte redacção:

- “ A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”.

Entre uma e outra redacção e mercê da Directiva n.º 84/5/CEE, do Conselho, de 30.12.83[2] e em especial após o Acórdão do TJCE de 14.9.00, que pôs em causa a compatibilidade do regime previsto na lei portuguesa com valores indemnizatórios com máximo inferior ao mínimo garantido para o espaço comum europeu, gerou-se abundante e contraditória jurisprudência, entendendo uns que os limites do n.º 1 do art.º 508.º do CC deveriam considerar-se ultrapassados pelos limites (superiores) estabelecidos pela Directiva para o seguro obrigatório, defendendo outros a vigência dos limites estabelecidos naquele preceito.[3]

Perante a controvérsia veio a ser fixada jurisprudência por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 2/2004, de 25 de Março (DR, I Série – A de 13.5.04) no seguinte sentido:

-“ O segmento do art.º 508.º, n.º 1, do CC, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos caos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12, na redacção dada pelo DL n.º 3/96, de 52.1[4]

Entende a recorrente, contudo, que o n.º 1 do art.º 508.º do CC está tacitamente revogado não só desde o DL n.º 3/96 (1.1.96), mas desde antes, ou seja, desde que o capital mínimo obrigatoriamente seguro é superior ao montante garantido, indistintamente de a responsabilidade civil assentar em facto ilícito ou no risco, no caso, os limites de 35 000 contos por lesado e 50 000 contos por sinistro, introduzidos pelo DL n.º 18/93, de 23.1, que vigorou entre 25.1.93 e 1.1.96.

Será?

- O dispositivo da jurisprudência fixada no AUJ n.º 3/2004 foi antecedido do parecer do M.º P.º a apontar no seguinte sentido: “ O art.º 508.º, n.º 1, do CC foi revogado tacitamente pelo DL n.º 522/85, de 31.12, no segmento em que fixa os montantes dos limites máximos de responsabilidade, ao quais, como consequência, passaram a coincidir com o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”.

Com um alcance maior que o fixado no AUJ, será legítimo concluir ter sido avisadamente que tal jurisprudência limitou a revogação tácita do n.º 1 do art.º 508.º aos efeitos a produzir após 1.1.96, ou seja, entendeu revogado o preceito pelo art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12, não na redacção, v. g., do DL n.º 18/93, mas na redacção dada pelo DL n.º 3/96.

E tanto que foi avisadamente que considerou, no seu texto, que foi com tal diploma que o legislador transpos a Directiva acima referida n.º 84/5/CEE, cujo prazo findava precisamente em 31.12.95, revogando, em consequência, embora não expressamente, os limites do n.º 1 do cit. art.º 508.º.

Com efeito, esse prazo fora consagrado como período derrogatório para a obrigatoriedade da fixação pelo Estado Português de um capital mínimo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, então de 600 000 ECU.[5]

 Só com a transposição uma directiva comunitária passa a constituir fonte de direito interno na esfera jurídico - privada. Daí que, sem a transposição, não pode um qualquer particular socorrer-se do teor de uma directiva.[6]

Cumprindo o legislador o prazo limite para a adaptação da legislação comunitária à legislação nacional, com os efeitos retroactivos a 1.1.96 do DL n.º 3/96, não tem razão de ser que a transposição se considere operada por diploma anterior, v. g., pelo DL n.º 18/93.

Uma última razão para a consideração da não revogação tácita do art.º 508.º já pelo DL n.º 18/93 pode buscar-se não só na falta de efeitos retroactivos fixados pelo DL n.º 59/2004, mas, sobretudo, pela falta de indicação da sua natureza interpretativa a diploma ou diplomas anteriores ao DL n.º 3/96, circunstância em que, como é sabido, nos termos do art.º 13.º do CC, porque a lei interpretativa se integra na lei interpretada, retroagiria os seus efeitos à data de entrada em vigor da lei antiga[7], tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada.[8]

A posição que estamos sustentando e pese embora o Ac. do STJ de 12.1.06 indicado pela recorrente em abono da sua tese, tirado com 2 votos de vencido[9] é a que tem seguimento maioritário no STJ.[10]

            Quanto à 2.ª questão, da proporção do risco, a factualidade apurada e vertida na sentença quanto à dinâmica do acidente, limitada à colisão entre um veículo automóvel e um velocípede com motor (rectius, hoje, face à definição legal dos art.ºs 107.º, n.º 2 e 112, n.º 2, do Cód. Estrada, ciclomotor), sem apuramento de culpa de qualquer dos respectivos condutores, levou à imputação do evento danoso no risco de ambos os veículos, na proporção de 60% para o 1.º e 40% para o 2.º.

            Sustenta a recorrente que as características dos veículos (dimensão e peso) impõem diversa proporção, respectivamente 70 e 30%.

            Com refere A. Varela[11]à repartição de responsabilidade prescrita na lei não interessa o risco abstractamente considerado, da utilização de cada um dos veículos.

            Em tese geral, pode com efeito dizer-se que os veículos ligeiros, como as bicicletas, as bicicletas motorizadas, os motociclos, são especialmente perigosos, pelas velocidades excessivas que atingem, pela pouca estabilidade que oferecem, etc., ou que o risco das viaturas pesadas se torna particularmente grave, devido à largura, à altura, ao peso e, em certo aspecto, à pouca velocidade do veículo.

            O que interessa, porém, à aplicação prática do art.º 506.º não são essas considerações abstractas, mas a proporção em que o risco de cada um dos veículos haja contribuído, em cada caso concreto, para a produção dos danos registados.

É, por consequência, na análise das condições em que a colisão se verificou, e no exame das circunstâncias em que os danos se produziram, que o julgador encontrará os principais elementos capazes de o auxiliarem a fixar conscienciosamente a tal proporção a que a lei se refere”.

Embora em tese seja indiscutivelmente maior o risco para o veículo automóvel, a respectiva proporção não poderia deixar de ter em conta o concreto risco criado pelo ciclomotor no atravessamento da via e corte de intersecção da linha de trânsito daquele veículo, pese embora em circunstâncias não apuradas, a reclamar maior proximidade na repartição do risco que a proposta pela recorrente.

Mantém-se, pois, por adequada, a proporção de 60 e 40%, respectivamente, para o veículo automóvel e para o ciclomotor.[12]

Aliás, tal matéria é irrelevante para fixação da indemnização, já que o limite máximo legalmente fixado e atribuído em rub-rogação à recorrente é inferior à resultante do cálculo da percentagem proposta e obviamente da fixada sobre o valor global do pedido.

Improcede também a conclusão recursiva em apreciação.

Quanto ao recurso subordinado da Ré, porque mantida a sentença da 1.ª instância, resulta inútil a sua apreciação.


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3. Resumindo e concluindo:

a) – Tendo o acidente de viação ocorrido em 12.11.93 e fundando-se a responsabilidade civil dele emergente no risco, a indemnização correspondente deve ater-se ao limite máximo estabelecido pelo n.º 1 do art.º 508.º do CC na redacção do DL n.º 190/85, de 24.6, uma vez que a revogação tácita de tal preceito só ocorreu com efeitos reportados a 1.1.96, ou seja, com a redacção dada pelo DL n.º 3/96, de 25.1 ao art.º 6.º do DL n.º 522/85, de 31.12;

b) – Não é pela consideração abstracta do maior peso ou dimensão de um veículo automóvel relativamente a um ciclomotor que se afere a repartição do risco, antes considerando a utilização concreta de cada um dos veículos que, no caso, se afigura adequada de 60% para o veículo automóvel e 40% para o ciclomotor;

c) – Porque improcedente a apelação principal da A., inútil se torna a apreciação da apelação subordinada da Ré.


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            III. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida, em consequência ficando prejudicado o julgamento do recurso subordinado.

            Custas pela apelante.


***
Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Freitas Neto


[1] A alçada dos Tribunais da Relação era, à data da alteração legislativa, de 400 000$00 – DL n.º 264-C/81, de 3.9 – à data do acidente, de 2 000 000$00 – Lei n.º 38/87, de 23.12 – e passou depois para 3 000 000$00 e € 30.000,00 – Lei n.º 3/99, de 23.12, antes e após a redacção dada pelo DL n.º 303707, de 24.8 e que, depois, a Lei n.º 52/2008, de 28.8 manteve.
[2] Segunda Directiva, publicada no JOCE n.º L 8/77 de 11.1.84, com texto publicado em “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, de Garção Soares e Maia dos Santos, Almedina, 1987, pág. 131.
[3] V. Garção Soares e Maria José Mesquita, “Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, Almedina, 2008, pág. 60 e ss
[4] O art.º 6.º do DL n.º 3/96, entrado em vigor em 1.1.96, estabeleceu como capital mínimo obrigatoriamente seguro o de 120 000 000$00 por sinistro, para danos corporais e materiais, independentemente do número de vítimas e da natureza dos danos.
[5] V. preâmbulo tanto do DL n.º 18/93, como do DL n.º 3/96.
[6] É o denominado efeito directo horizontal vs. efeito directo vertical que, independentemente da transposição obriga, contudo, as autoridades públicas. V. Mota Campos, “Manual de Direito Comunitário”, II, 3.ª ed., 261.
[7] P. Lima e A. Varela, “CC, Anot.”, I, 4.ª ed., pág. 62.
V. a minoria das declarações de voto do AUJ a propósito da natureza interpretativa do DL n.º 59/2004.
[8] Impressivamente o preâmbulo do DL n.º 59/2004, como exposição de motivos para a alteração legislativa, apenas se refere a esse diploma, concretamente que “o art.º 6.º do DL n.º 522/85 de 31.12, alterado pelos DLs n.ºs 3/96, de 31.12 e 301/01, de 23.11 procede à transposição do art.º 1.º da Directiva 84/5/CEE, estabelecendo no n.º 1 o montante do capital mínimo obrigatoriamente seguro. Contudo, nos termos do n.º 1 do art.º 508.º do CC o montante máximo de indemnização fixada é inferior ao montante mínimo do capital obrigatoriamente seguro nos casos de responsabilidade civil automóvel…”
[9] Segundo informação colhida no Ac. STJ de 14.4.08, Proc. 08A479, consultado na base de dados do ITIJ, uma vez que o não vimos publicado.
[10] V., para lá do indicado na antecedente nota, que se reporta a acidente de viação ocorrido em 12.4.93, os Acs. do STJ aí indicados e os Acs. do mesmo Alto Tribunal de 15.4.04, Proc. 04B970, 2.12.04, Proc. 04B375, 4.10.05, Proc. 05A2284, 24.5.07, 07A1199 e 17.12.09, Proc. 129/2000.S1, todos no ITIJ.
[11] RLJ, 101.º-281.
[12] Igual proporção vimos fixada no Ac. RE de 30.3.00, BMJ, 495.º-378