Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316879/11.9YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO PROVOCADA
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
PROPRIEDADE
FARMÁCIA
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 39º E 316º, Nº 2 DO CPC; LEI Nº 2125, DE 20/03/1965; DECRETO-LEI Nº 307/2007, DE 31.08, EM VIGOR DESDE 30.10.2007.
Sumário: I – Confrontado com uma contestação em que o Réu alega não ser o sujeito da relação controvertida, e existindo uma “dúvida fundamentada”, assiste ao Autor a possibilidade de acionar a outra pessoa, mediante incidente de intervenção principal provocada, deduzindo contra ela o mesmo pedido, a título subsidiário, em conformidade com os art. 39º e 316º, nº 2 do CPC.

II - A diretora técnica de uma farmácia que “outorga em seu nome”, mas por conta de outrem, como adquirente num contrato de trespasse de um estabelecimento de farmácia, atua por interposição real de pessoa, agindo sob um mandato sem representação.

III - O regime da Lei n.º 2125, de 20.03.1965 e do Decreto-Lei n.º 48547, de 27.08.1968 restringia a propriedade de farmácias a quem tivesse a qualidade profissional de farmacêutico e fazia depender a possibilidade de funcionamento da farmácia da obtenção de um alvará (pessoal e só concedido ao proprietário) pelo Infarmed.

IV - Por seu turno, para poder efetuar a encomenda de medicamentos e produtos farmacêuticos, a farmácia tinha de exibir o alvará junto do fornecedor e este só podia fornecer os produtos à pessoa/entidade mencionada no alvará.

V - Num tal regime, demonstrando-se que quem solicitava os medicamentos e produtos farmacêuticos era a “Farmácia”, que era na sua morada que os mesmos eram entregues e que era à «Farmácia, na pessoa da diretora técnica» que eram faturados os respetivos preços, deve entender-se que a diretora técnica continuou a atuar perante os fornecedores como proprietária, em mandato sem representação.

VI - No regime atual, Decreto-Lei nº 307/2007, de 31.08, em vigor desde 30.10.2007, passou a prever-se expressamente a possibilidade de a propriedade, exploração ou gestão das farmácias ser efetuada por interposta pessoa (art. 17º), remetendo para os institutos da gestão de negócios e o do mandato, com e sem representação.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 316879/11.9YIPRT.C1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            Em requerimento de injunção, pretendeu a U..., CRL (de futuro, apenas Autora e/ou Recorrente) que M... e L... (de futuro, apenas Réus) lhe pagassem € 23.579,94, mais € 6.809,11 de juros moratórios, como preço devido por medicamentos e produtos farmacêuticos que lhe forneceu. O Réu M... foi acionado com fundamento no proveito comum, em virtude da ser casado com a Ré L.

                Os Réus deduziram oposição; em jeito de exceção de ilegitimidade e impugnação, referiram que a L... foi sempre, e só, diretora técnica e não proprietária da farmácia, pelo que não adquiriu os referidos bens nem existiu proveito comum do casal; para além disso, excecionaram com o pagamento.

                A Autora ainda replicou.

                Em despacho saneador a Sr.ª Juíza julgou improcedente a exceção de ilegitimidade dos Réus, selecionou a matéria de facto assente e a base instrutória.

                Instruídos os autos e realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

2.            Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões [[1]]: ...

3.            Os Réus recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.            OS FACTOS

Foram os seguintes os factos considerados em 1ª instância:

«A) Factos Provados

...

B) Factos Não Provados

Com relevo para a decisão da causa, não resultou demonstrado que:

...

                5.            O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Reapreciar a matéria de facto
· Se os factos apurados permitem a condenação dos Réus
· Se existiu abuso de direito por parte da Ré mulher

5.1.         REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Abandonado o sistema da prova legal, mostra-se consagrado entre nós o princípio da livre apreciação da prova —— “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.” —— (art. 607º nº 5 do CPC).

O juiz haverá de apreciar e valorar a prova de acordo com as regras da lógica, bem como da experiência que a vida proporciona.

Significa isto que, à partida e como regra, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração.

                Só assim não será __ e daí a ressalva da 2ª parte do nº 5 do art. 607º do CPC __, nos casos da dita prova vinculada, em que a lei vincula o julgador a determinados aspetos ou resultados dos meios de prova. [[2]]

                Portanto, nesse âmbito o tribunal de recurso apenas pode sindicar:

  • a razoabilidade das respostas dadas a determinados pontos de facto (quer em função das provas que o tribunal de julgamento teve em conta, quer de outras eventualmente não consideradas e invocadas pelo Recorrente),
  • o respeito pelos princípios atinentes à prova vinculada
  • se a valoração das provas foi efetuada, e se mostra consentânea, com as regras da lógica e da experiência, bem como com os conhecimentos científicos.

Vejamos então os vícios apontados à matéria de facto

...

Concluindo, nada há que alterar à matéria de facto.

5.2.         DA POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS RÉUS PELO PAGAMENTO

Pese embora não tenha vingado a alteração da matéria de facto, vejamos se a solução jurídica encontrada —— a ação soçobrou por se ter considerado tratar-se de contratos obrigacionais e que a Autora não provou que os contratos de fornecimento/compra e venda foram celebrados com a Ré —— se mostra consentânea com os ditames legais.

Um breve parênteses, porém, que se nos suscita face à alegação da Recorrente de que só com a oposição apresentada na presente ação teve conhecimento da situação de “falsa propriedade”.

Tal não teria sido impeditivo de que se acionasse o “verdadeiro proprietário”, por via do incidente de intervenção principal provocada, ao abrigo dos artigos 39º e 316º nº 2 do CPC (artigos 31º-B e 325º nº 2 na anterior redação).

Na verdade, perante a alegação da Ré na oposição, ficou a Autora a saber que a Ré imputava a responsabilidade pelas compras e vendas operadas na farmácia ao F..., que dizia ser o verdadeiro dono da mesma e quem fazia as encomendas.

Nessa medida, ficou instalada uma “dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida” (art. 39º do CPC), a legitimar a intervenção do F... e dirigindo contra ele o pedido que havia dirigido contra os Réus, agora a título subsidiário, assim ficando precavido contra a hipótese de os Réus virem a lograr provar a sua versão. [[3]]

(i) Especificidades da atividade comercial de farmácia

Considerada uma atividade de interesse público [[4]], o licenciamento e a atividade farmacêutica desde há muito foram objeto de regras próprias e específicas face a uma qualquer outra atividade comercial.

À data a que se reportam os autos (Outubro/2006 a Outubro/2008) vigoravam para o efeito a Lei nº 2125, de 20.03.1965, e o Decreto-Lei nº 48547, de 27.08.1968.

Com relevo para o que aqui importa decidir, estabeleciam esses diplomas que as farmácias só poderiam funcionar mediante alvará, passado pela Direcção–Geral de Saúde [[5]], alvará esse que era concedido a título pessoal (caducando, por isso, em caso de transmissão da farmácia) e apenas a quem fosse permitido ser proprietário de farmácia (ou seja, quem tivesse a qualidade profissional de farmacêutico); todos os negócios jurídicos de que resultasse a transmissão da farmácia celebrados contra essas normas seriam nulos: Base II e Base IX da Lei e art. 76º do Decreto-Lei.

Estes diplomas foram revogados pelo Decreto-Lei nº 307/2007, de 31.08, em vigor desde 30.10.2007 (art. 61º), o qual veio “liberalizar” o regime de propriedade da farmácia, dispensando a necessidade de o proprietário ser farmacêutico (art. 14º) e, reconhecendo o legislador ter consciência «(…) que a legislação anterior fomentou, ao longo do tempo, a criação de situações fictícias em relação à propriedade, por força de um regime extraordinariamente restritivo da transmissão da propriedade entre farmacêuticos», considerou que o novo regime permitiria «(…) a regularização dessas situações, desde que observem os requisitos e os limites de titularidade e respeitem as incompatibilidades em relação à propriedade, exploração e gestão de farmácias.». [[6]]

(ii) A propriedade da farmácia em concreto

Resulta da matéria de facto que o trespasse do estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia L...” [[7]] foi efetuado à Ré (fls. 66/67), que era farmacêutica, tendo sido também a seu favor que o INFARMED concedeu o alvará nº ... (fls. 59º v.º).

Porém, mais se provou (factos nº 15 a 19) que a Ré outorgou na escritura pública de trespasse em seu nome, mas por conta de F..., em virtude de o mesmo não ser farmacêutico e, consequentemente, não poder ter em seu nome a farmácia; a partir do trespasse, a Ré iniciou lá as funções de Directora Técnica; quanto ao F..., foi sempre ele quem sempre suportou todas e quaisquer despesas, bem como retirou da Farmácia todas as vantagens e lucros proporcionados pela sua exploração.

Ou seja, estamos perante uma denominada propriedade fictícia, pois apesar de “de direito” estar titulada em nome da Ré, “de facto” a propriedade pertencia a F...

Com o trespasse a favor da Ré visou-se portanto, contornar a proibição legal que limitava a propriedade de farmácias a quem fosse farmacêutico: os números 1 e 2 da Base II da Lei nº 2125, e em conformidade com os números 1 e 2 da Base IX da Lei e nº 2 do art. 76º do Decreto-Lei nº 48547.

Este trespasse integrará uma simulação?

Como é sabido, o negócio diz-se simulado quando ocorrem três requisitos: a) - um acordo/conluio entre o declarante e o declaratário; b) - no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real (divergência entre a vontade real e a declarada) e c) - no intuito de enganar terceiros: art. 240º nº 1 do CC.

Desde logo, os factos apurados são totalmente omissos quanto à existência de acordo simulatório entre os trespassantes e a Ré trespassária (o acordo simulatório teria de verificar-se entre os outorgantes no negócio de trespasse).

E, quanto à vontade da Ré mulher (trespassária), o que os factos provados permitem concluir é pela inexistência de divergência entre a vontade real e a declarada; na verdade, o que dos factos se extrai é a coincidência entre a vontade real e a declarada da Ré: ainda que não para si, a Ré pretendeu e quis outorgar o trespasse em seu nome, declarando-se adquirente (cf. facto 15 – “A primeira requerida outorgou em seu nome, mas por conta de F..., a escritura de trespasse datada de 09.11.1979”).

Um caso típico de interposição de pessoas.

Ora, como bem alerta Mota Pinto, há que distinguir entre a interposição fictícia e a interposição real de pessoas

«Na interposição fictícia há um conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto. Este é um simples testa de ferro, um homem de palha.

Na interposição real, o interposto actua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos sujeitos. (…). Nesta hipótese há uma interposição real, não existindo conluio entre os três sujeitos. Não se nos apresenta uma simulação, mas antes um mandato sem representação (art. 1180º e segs.).». [[8]]

O contrato de trespasse é nulo, não em função de simulação (art. 240º nº 2 do CC), mas por vício de violação de lei: art. 280º nº 1 do CC e nº 1 e 2 da Base II, 1 e 2 da Base IX da Lei nº 2125 e nº 2 do art. 76º do Decreto-Lei nº 48547.

Porém, dado que o que está em causa não é o contrato de trespasse mas o de fornecimento de produtos, há que prosseguir.

(iii) A compra e venda dos produtos em causa

Não tendo a Autora provocado a intervenção processual do F..., prossigamos para apurar se os Réus podem ser responsabilizados pelo pagamento.

Dado que a relação obrigacional se estabelece por iniciativa privada e entre duas ou mais pessoas (sempre individualizadas ou individualizáveis), é regra elementar no domínio do direito das obrigações a relatividade dos direitos de crédito, ou seja, os direitos e as obrigações estipuladas no contrato vinculam apenas os contraentes: art. 406º nº 2 do Código Civil (de futuro, apenas CC).

O fornecimento de medicamentos e produtos farmacêuticos que a Autora efetuou, mediante o pagamento de um preço, integra um contrato de compra e venda: 874º do CC.

Este contrato de compra e venda é autónomo e independente do contrato de trespasse por via do qual a farmácia foi adquirida.

Por isso, sendo contratos distintos, não se pode estender, pelo menos de forma automática, o exercício do mandato sem representação ocorrido no trespasse aos diversos contratos de compra e venda ocorridos durante a exploração da farmácia.

Na verdade, se os produtos aqui em causa tivessem sido adquiridos sob a alçada dum mandato sem representação por parte da Ré, seria ela quem “adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra” (art. 1180º do CC), mesmo no caso de o outro contraente saber da existência desse mandato.

«No mandato sem representação o mandatário age por conta, mas não em nome, do mandante, o qual permanece formalmente estranho de todo à relação que se estabelece entre o mandatário e o terceiro contraente, no que respeita ao negócio nascido da execução do mandato. Agindo realmente o mandatário em nome próprio, as consequências jurídicas dos actos por ele praticados produzem-se exclusivamente na sua esfera jurídica, e assim ele próprio se torna titular das relações decorrentes de tais actos, adquirindo os direitos e assumindo as obrigações. Os terceiros permanecem estranhos à relação de gestão que ocorre entre o mandante e o mandatário e que, sob esse aspecto, é uma mera relação interna;». [[9]]

Aliás, porque se tratou de atos comerciais, ao caso seria aplicável o regime da comissão (uma forma de mandato sem representação), regulado nos arts. 266º a 277º do Código Comercial.

Expostos os traços do regime geral, vejamos os factos do caso concreto, para dilucidar se ocorrem aqui as regras do mandato sem representação.

Já vimos que, aquando do trespasse do estabelecimento da farmácia, a Ré atuou em nome próprio, mas por conta do F... (facto 15).

Ficou provado que era o F... quem procedia à exploração da farmácia e, nessa medida, quem procedia à aquisição de medicamentos e serviços, bem como à realização de pagamentos a fornecedores (factos 18, 21 e 22).

O mesmo aconteceu depois de 2005, agora relativamente ao ..., após “comprarem” a farmácia àquele (factos 31, 36, 40 e 41).

Mas, se isto era assim na orgânica interna da exploração da farmácia —— nesta, como em qualquer empresa, nada impede que seja um qualquer funcionário a efetuar (por carta, telefone, mail…) a encomenda dos produtos ——, o que aqui deve relevar são os factos atinentes à relação com o terceiro, no caso a Autora.

A declaração negocial pode ser tácita, entendendo-se por tal aquela que “se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”: art. 217º nº 1 do CC.

Ora, resulta da factualidade apurada que quem solicitava os medicamentos e produtos farmacêuticos era a “Farmácia L...”, que era na sua morada que os mesmos eram entregues e que era à “Farmácia L... na pessoa da primeira requerida” que eram faturados os respetivos preços (facto 6 a 8).

Os produtos aqui em causa “foram enviados à farmácia (…) na pessoa da primeira requerida” e foram por ela (farmácia) recebidos (factos 12 e 13).

Foi o alvará emitido em seu nome que foi apresentado à Autora, legitimando que esta pudesse proceder ao fornecimento dos medicamentos.

Não obstante as suas funções de diretora técnica da farmácia, à Ré mulher incumbia a prática da “subscrição da prestação de contas em cada um dos exercícios económicos, formalização de contratos de pessoal e articulação de assunção de responsabilidades do estabelecimento perante o Infarmed, os quais eram indissociáveis da titularidade do alvará” (factos 27 e 28).

A Ré mulher não podia ignorar que tudo isto se estava a processar em seu nome (porque outorgante no trespasse e porque, enquanto farmacêutica sabia dos contornos legais do exercício da atividade e que, para todos os efeitos, nos contatos/contratos com as entidades oficiais e com os fornecedores ela seria sempre tida como proprietária). [[10]]

Atenta a sua qualidade profissional (farmacêutica, profissão regulamentada), incumbiam sobre a Ré mulher especiais deveres de verdade, informação e transparência (art. 5º nº 1 e seguintes do Decreto–Lei nº 48547), que não só não cumpriu, como deixou que se perpetuassem ao longo de vários anos, designadamente quando o regime jurídico das farmácias deixou de impor a restrição antes existente relativamente à propriedade de farmácias.

Ou seja, na relação com os terceiros, designadamente os fornecedores, tudo se passava como se a Ré mulher fosse a verdadeira dona da farmácia; ao permitir que as encomendas e os pagamentos fossem feitos em seu nome, continuou a atuar em mandato sem representação.

 Para além disso, o fornecimento dos produtos cujo pagamento se pretende obter com a presente ação foi efetuado entre 31 de Outubro de 2006 e 15 de Outubro de 2008 (factos 6,9 e 10).

Nessa altura, os “proprietários” da farmácia eram já ..., que a teriam “comprado” ao F... em 2005 (factos 31, 36, 40 e 41), sendo que no mais toda a situação se manteve idêntica.

Assim, relativamente a parte dos fornecimentos aqui em causa já se encontrava em vigor o Decreto-Lei nº 307/2007, de 31.08, em vigor desde 30.10.2007 (art. 61º).

Este diploma passou a prever expressamente, no seu art. 17º, a propriedade, exploração ou gestão indirectas nos seguintes termos: Considera-se que uma pessoa detém a propriedade, a exploração ou a gestão indirecta de uma farmácia quando a mesma seja detida, explorada ou gerida: a) Por outras pessoas ou entidades, em nome próprio ou alheio, mas por conta daquela, designadamente através de gestão de negócios ou contrato de mandato; b) Por sociedades que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo.

Ou seja, mais uma vez a interposição real de pessoas, a remeter-nos para o instituto do mandato sem representação.

Concluindo, a Ré mulher é responsável pelo pagamento dos produtos fornecidos pela Autora à Farmácia L..., na pessoa da Ré, por imposição do art. 266º e art. 268º do Código Comercial (em tudo equivalentes ao art. 1180º do CC) [[11]], podendo depois exercer o direito de regresso contra os mandantes/comitentes ...

5.3.         RESPONSABILIDADE DO RÉU MARIDO

A ação foi dirigida contra o marido da Ré exclusivamente com fundamento no proveito comum do casal, decorrente de serem eles casados em comunhão de adquiridos, tendo a dívida sido contraída pela Ré mulher na constância do matrimónio e no exercício do comércio a retalho de produtos farmacêuticos.

Como resulta da factualidade atrás apurada, inexistem factos provados quanto à ocorrência e manutenção do invocado casamento.

Por outro lado, como pensamos ter deixado explícito, a responsabilidade da Ré mulher decorre do exercício de um mandato sem representação e não dum qualquer exercício do comércio da farmácia que, como vimos, não ocorria.

Consequentemente, impõe-se a manutenção de absolvição do pedido quanto ao Réu marido.

5.4.         ABUSO DE DIREITO por parte da Ré mulher

                Face ao que acabou de se concluir quanto à responsabilidade da Ré mulher, fica prejudicado o conhecimento do invocado abuso de direito, enquanto forma de imputação à Ré da responsabilidade pelo pagamento.

                6.            SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Confrontado com uma contestação em que o Réu alega não ser o sujeito da relação controvertida, e existindo uma “dúvida fundamentada”, assiste ao Autor a possibilidade de acionar a outra pessoa, mediante incidente de intervenção principal provocada, deduzindo contra ela o mesmo pedido, a título subsidiário, em conformidade com o art. 39º e 316º nº 2 do CPC.
b) A diretora técnica de uma farmácia que “outorga em seu nome”, mas por conta de outrem, como adquirente num contrato de trespasse de um estabelecimento de farmácia, atua por interposição real de pessoa, agindo sob um mandato sem representação
c) O regime da Lei n.º 2125, de 20.03.1965, e do Decreto-Lei n.º 48 547, de 27.08.1968, restringia a propriedade de farmácias a quem tivesse a qualidade profissional de farmacêutico e fazia depender a possibilidade de funcionamento da farmácia da obtenção de um alvará (pessoal e só concedido ao proprietário) pelo Infarmed.
d) Por seu turno, para poder efetuar a encomenda de medicamentos e produtos farmacêuticos, a farmácia tinha de exibir o alvará junto do fornecedor e este só podia fornecer os produtos à pessoa/entidade mencionada no alvará.
e) Num tal regime, demonstrando-se que quem solicitava os medicamentos e produtos farmacêuticos era a “Farmácia”, que era na sua morada que os mesmos eram entregues e que era à «Farmácia, na pessoa da diretora técnica» que eram faturados os respetivos preços, deve entender-se que a diretora técnica continuou a atuar perante os fornecedores como proprietária, em mandato sem representação.
f) No regime atual, Decreto-Lei nº 307/2007, de 31.08, em vigor desde 30.10.2007, passou a prever-se expressamente a possibilidade de a propriedade, exploração ou gestão das farmácias ser efetuada por interposta pessoa (art. 17º), remetendo para os institutos da gestão de negócios e o do mandato, com e sem representação.

                III.           DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso e, consequentemente:

a) – Condena-se a Ré mulher a pagar à Autora a quantia de vinte e três mil quinhentos e setenta e nove euros e noventa e quatro euros (a título de capital em dívida), acrescidos de seis mil oitocentos e nove euros (a título de juros moratórios vencidos até 30/12/2011) e, bem assim, os juros de mora vencidos e vincendos desde 01/01/2012, calculados sobre o capital, à taxa legal que sucessivamente vigorar para os créditos comerciais e até integral e efetivo cumprimento.

b) – Absolve-se o Réu marido do pedido formulado.

c) – Custas a cargo da Ré mulher.

                                                                                                              Coimbra, 08.09.2015

Relatora, Isabel Silva

1º Adjunto, Alexandre Reis

2º Adjunto, Jaime Carlos Ferreira

***

      [[1]] Como é sabido, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso ou “thema decidendum”; as alegações servirão para explanar os argumentos na defesa da tese do recorrente quanto à demonstração das questões suscitadas; já as conclusões devem referir, de forma sucinta, os pontos em que se considera ter havido erro de julgamento (seja quanto à matéria de facto, seja quanto à de direito), em conformidade com o nº 1 e 2 do art. 639º do CPC.
      Constatando-se que sob a epígrafe "conclusões", a Recorrente reproduz entendimentos jurisprudenciais e doutrinais, dispensamo-nos de aqui os reproduzir por não integrarem conclusões.

[[2]] É o caso, por exemplo, do valor probatório dos documentos autênticos (art. 371º do CC) ou o da confissão (art. 358º CC)).
[[3]] Cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 3ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 90-91 e pág. 618-619.
[[4]] Cf. nº 1 da Base I da Lei nº 2125, de 20.03.1965, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 48 547, de 27.08.1968, bem como o art. 2º do Decreto-Lei nº 307/2007, de 31.08, hoje em vigor.
[[5]] Hoje, INFARMED.
[[6]] Cf. o seu preâmbulo.
[[7]] Também ele um contrato de compra e venda, oneroso, mediante o qual se transfere para outrem a propriedade de um estabelecimento comercial, na sua universalidade: todos os elementos corpóreos e incorpóreos (aviamento, clientela) caraterizadores e essenciais ao seu funcionamento.
[[8]] Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 1976, Coimbra Editora, pág. 361.
No mesmo sentido, Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, 6ª reimpressão, 1983, Almedina, pág. 186-187 e, de forma mais desenvolvida, Heinrich Ewald Hörster, “A Parte Geral do Código Civil Português”, 2ª reimpressão, 2003, Almedina, pág. 540-542.
[[9]] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, vol. IV, 1995, Rei dos Livros, pág. 287 (nota ao art. 1181º).
[[10]] De acordo com o acórdão do STJ, de 09.07.2014 (processo 299709/11.0YIPRT.L1S1): «6. Constitui jurisprudência corrente que é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.».

[[11]] Cf. acórdãos do STJ, de 08.06.1999 (processo 98A444, nº do Documento: SJ199906080004441) e de 15.05.2003 (processo 03B1162, nº do Documento: SJ200305150011622).