Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/14.4T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE FACTOS ESSENCIAIS
TIPO DE CRIME
Data do Acordão: 01/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO LOCAL – SECÇÃO CRIMINAL J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 32.º, DA CRP; ARTS. 283.º, 303.º E 309.º DO CPP
Sumário: Faltando factos essenciais objectivamente susceptíveis de integrarem o crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º do Código Penal e art. 30.º da Lei da Imprensa, deve ser declarada nula a acusação particular deduzida pelo assistente e, consequentemente, ser proferido despacho de não pronúncia, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, sob pena de violação dos termos dos art. 283.º, n.º 3, al. b); 303.º, n.º 3; 308.º, n.º 3, e 309.º, do CPP, e art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP.
Decisão Texto Integral:



Processo de instrução da Comarca da GUARDA - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 1.

***

Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado A... , casado, portador do Bilhete de Identidade n.º (...) , emitido em 07/05/004, pelo S.LC. da Guarda, contribuinte fiscal número (...) , residente na Rua (...) Guarda, deduziu acusação particular, pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, do Código Penal, conjugado com os art. 29.º e segts., máxime art. 30.º, da Lei da Imprensa contra os arguidos:

1. B... , residente no Largo (...) Moimenta da Beira.

2. C... , Director do Canal Televisivo (...) , com domicílio profissional na Rua (...) Lisboa;

3. D... , Jornalista, residente na Rua (...) Guarda.

*

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular do assistente.

*

O arguido B... , de fls. 328 a 331 e os arguidos C... e D... , de fls. 344 a 366, requereram a abertura de instrução, finda a qual foi proferido despacho de não pronúncia quanto ao crime que era imputado aos arguidos.

*

Despacho de não pronúncia:

«I. Relatório:

O assistente deduziu acusação particular, não acompanhada pelo Ministério Público contra:

B... ,

C... e

D...

Melhor identificados nos autos, pela suposta prática:

-em autoria material e na forma consumada, de (1) um crime de difamação, a cada um, previsto e punível pelo artigo 180º, do Código Penal.

Discordando de tal acusação vieram os arguidos requerer a abertura de instrução com os fundamentos constantes dos seus RAI de fls. 328 a 331 e 332 a 343, negando a prática dos factos pelos quais se encontram acusados uma vez que os factos não constituem crime e nem sequer existem factos contra os arguidos relatados na acusação particular.

Os actos de instrução:

Por despacho de fls. 371 a 373 foi declarada aberta a instrução.

Em instrução procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal.

II. Saneamento:

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.

Da Nulidade da acusação particular:

Da acusação particular apresentada pelo assistente a folhas 262 a 267 consta que …o terrorismo em Portugal …é alguém que deita…e depois os que cá estão…, para o assistente tirar a conclusão que o estão a apelidar de terrorista.

Assim, a acusação deduzia por assistente há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal.

Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução e ainda a acusação apresentada por um assistente “deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” - in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11.ª Edição, pág. 552.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido.

Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes.

Assim, a acusação particular apresentada por um assistente há-de conter, necessariamente, a concretização precisa e concisa quer dos factos - objectivos e subjectivos conformadores do ilícito penal em causa.

Não existindo presunções de dolo, os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente, acusador particular, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela conduta proibida.

Apreciemos, pois, a acusação particular

O assistente apresenta os motivos de discordância do despacho de arquivamento, relata os factos que levaram o assistente a apresentar a queixa, ou seja, recomeça a contar os factos ab initio, contudo não enumera os factos concretos e objectivos que considera terem sido praticados pelos denunciados e nem sequer indica quais denunciados terão praticados os factos que enumera, apresentando factos, muitos deles, conclusivos e por outro é completamento omisso quanto ao elemento subjectivo.

Sendo o processo penal enformado pelo princípio do acusatório, do qual resulta a indisponibilidade do objecto e do conteúdo do processo (princípio este que encontra acolhimento no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), constitui pressuposto processual da instrução, para além do mais e já supra referido, que haja uma imputação subjectiva dos elementos objectivos aos suspeitos da prática de qualquer facto que possa construir crime, ou tenha relevância penal, em última instância, não estando tal tarefa na disponibilidade do juiz de instrução, sob pena de incorrer na prática de uma nulidade caso se viesse a substituir à tarefe que incumbe à assistente.

Assim, e embora exista referência ao crime que supostamente os denunciados terão praticado, há uma omissão relativamente aos elementos objectivos e subjectivos que enformam o referido crime.

In casu, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal da acusação particular dado que a mesma enferma de nulidade.

Na verdade, finda a instrução fica este tribunal sem saber quem haveria de pronunciar e a que título, pois o preenchimento de um tipo legal de crime faz-se pela imputação objectiva e subjectiva dos fatos ao seu autor, e no caso concreto inexiste qualquer imputação subjectiva, e no processo não é lícita a prática de actos inúteis – art. 137.º Código de Processo Penal.

Neste sentido vd Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6/12/2010, Processo 121/09.4TAAVV: “O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir.

Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo.

Nestes termos e ao abrigo do disposto nos artigos 308.º, n.º 3, e 283.º, n.º 3, ambos do CPP, declaro nula a acusação particular deduzida pelo assistente A... e consequentemente:

- decide-se proferir DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA dos arguidos B... , C... e D... , pela suposta prática em autoria material e na forma consumada, de (1) um crime de difamação, a cada um, previsto e punível pelo artigo 180.º, do Código Penal.

(…)».

*

Deste despacho interpôs recurso o assistente, formulando as seguintes conclusões:

«A. A Acusação Particular, deduzida pelo assistente, não contém a nulidade que a decisão recorrida lhe imputou, uma vez que localiza, no espaço e no tempo, os factos imputados aos arguidos, os factos ocorreram no dia, hora e local referidos na queixa, para onde expressamente remeteu.

B. Descreve-se, de forma rigorosa, precisa e concreta, a conduta dos arguidos, quer ao nível das condutas por si praticadas ou omitidas, quer das consequências exactas dos seus comportamentos para a produção do resultado que as normas proíbem.

C. A acusação particular obedece a todos os princípios e requisitos legais exigidos pelo artigo 283.º do C. P. Penal.

D. São conhecidos os arguidos, são conhecidos os factos, são conhecidas todas as demais circunstâncias.

E. No caso concreto e atendendo ao modo como se mostram narrados os factos, os elementos subjectivos em causa são de fácil apreensão, e encontram-se descritos.

F. Da mesma forma, os factos que integram os elementos objectivos do tipo legal também se encontram narrados.

G. As considerações expendidas no despacho recorrido contêm um estudo valido e apreciável em termos teoréticos, mas inaplicável ao caso em análise, no qual não se verificam tais pressupostos.

H. A sentença recorrida viola as normas constantes do artigo 283.º n.º 2 e 3 e 285.º do C. Processo Penal.

Nestes termos e mais de direito, revogando a douta decisão, e substituindo-a por outra que pronuncie os arguidos pelo crime de difamação, na pessoa do assistente, p. p. no artigo 180.º do C. Penal, conjugado com os artigos 29.º e segs., máxime artigo 30.º da Lei de Imprensa».

*

Notificado o Ministério Público e arguidos, nos termos do art. 411.º, n.º 6, para efeitos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, apresentaram reposta, que sufragando os trilhos do Ex.mo Juiz de Instrução, concluindo que o recurso deve improceder mantendo-se o despacho de não pronúncia.

*

Nesta instância de recurso, os autos tiveram vista da Ex.ma Senhora Procuradora-geral Adjunta, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, a qual acompanhando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, emitiu douto parecer no sentido de que a acusação sofre de nulidade por omissão de factos objectivos e completamente omissa quanto aos elementos subjectivos do tipo de crime imputado aos arguidos, pelo que conclui que deve ser negado provimento ao recurso.

*

Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve respostas.

*

Colhidos os vistos legais, indo os autos á conferência, cumpre-nos decidir.

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:

Apreciar se a acusação contem os elementos bastantes para pronunciar os arguidos pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, do Código Penal, conjugado com o art. 30.º, da Lei da Imprensa.

Apreciando:

O assistente A... , deduziu acusação particular, contra os arguidos B... , C... (Director do Canal Televisivo (...) ) e D... (Jornalista) imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, do Código Penal, conjugado com o art. 30.º, da Lei da Imprensa, libelo que não foi acompanhado pelo Ministério Público.

Os arguidos C... e D... , requereram a abertura de instrução e o senhor juiz de instrução não pronunciou os arguidos com o fundamento de ser nula a acusação particular deduzida pelo assistente, nos termos dos art. 308.º, n.º 3, e 283.º, n.º 3, do CPP, por a mesma carecer de elementos objectivos e subjectivos, susceptíveis de integrarem o crime imputado aos arguidos.

O requerimento de abertura de instrução de fls. 344 a 365, suscita como questões:

- A nulidade da acusação.

- O não conhecimento da reportagem pelo Director.

- O facto de não ser referido o nome do assistente.

- Impossibilidade de responsabilizar os arguidos requerentes pelas declarações de terceiros.

- Inexistência do crime de difamação.

Comecemos por apreciar a acusação.

Pratica o crime de difamação p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP:

«1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo…».

Nos termos do art. 30.º, da Lei 2/99, de 13/1, na redacção dada pela Lei 78/2015, de 29/7, a publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais e sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. 

A acusação é omissa quanto à descrição de factos essenciais constitutivos dos elementos objectivos do crime imputado imputados aos arguidos, nas diversas qualidades em que cada um deles assume a condição de arguido e não é rigorosa na descrição quanto aos elementos subjectivos do mesmo crime.

Relativamente à omissão dos factos específicos e concretos, não descreve, especificando para cada um deles a omissão ou acção que lhe é censurável.

A instrução, nos termos do art. 286.º, n.º 1, do CPP, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Em conformidade com o disposto no art. 308.º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. 

Porém, a simples apresentação de requerimento para abertura de instrução não determina de forma automática que esta fase processual tenha lugar.

No caso dos autos o senhor juiz de instrução, nos termos dos artigos 308.º, n.º 3, e 283.º, n.º 3, ambos do CPP, declarou nula a acusação particular deduzida pelo assistente A... e consequentemente proferir despacho de não pronúncia.

Designadamente a acusação deve ser escorreita, clara e precisa na descrição da factualidade típica e na imputação concreta a cada um dos arguidos, fazendo constar da mesma os elementos estritamente necessários e que fazem parte da estrutura do crime participado e relevantes para a aplicação da pena.   

De acordo com o disposto no art. 283.º, n.º 1, aplicável ex vi art. 69.º, n.º 2, al. b), ambos do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime, e de quem foi o seu agente, independentemente da do Ministério Público, o assistente pode deduzir acusação contra aquele.

 Segundo dispõe o n.º 2, daquele mesmo artigo, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

 Porém, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, os requisitos constantes do n.º 3, sendo de referir, no segmento do recurso que nos cumpre apreciar, quanto aos elementos objectivos e subjectivos do crime imputado aos arguidos:

 (…)

 b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

A descrição e imputação dos factos a cada um dos arguidos deve ser tomada em conta, pois o art. 303.º, do mesmo CPP, vincula o juiz de instrução aos factos descritos na acusação, estipulando o n.º 3 desse que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Da conjugação destes citados artigos conclui-se que da acusação deve constar, entre outros requisitos, designadamente de forma suficiente a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP).

Logo, a falta de narração, por parte do assistente, dos factos integradores do crime de difamação p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP e art. 30.º, da Lei 2/99, de 13/1, na redacção dada pela Lei 78/2015, de 29/7, e razões concretas e diversas por que imputa o crime aos responsáveis, cada qual na sua qualidade em que intervém (elementos objectivos e subjectivos), constituiu uma nulidade (art. 283.º, n.º 3), o que é facilmente compreensível, uma vez que a acusação deduzida apenas pelo assistente, deve fixar o âmbito ou objecto do processo (art. 303.º e 309.º), o que equivale a dizer, que o juiz de instrução não pode ir além dela.

Tal mais não é do que uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no art. 32.º, n.º 5 da CRP, um dos princípios estruturantes da constituição processual penal, como garantia do próprio arguido, em que a acusação (ou requerimento de abertura de instrução, como reacção ao despacho de arquivamento do Ministério Público) é condição e limite do julgamento.

Quando os factos descritos na acusação não integram, só por si, qualquer tipo de ilícito, a inclusão de outros no despacho de pronúncia que integram um tipo de ilícito não pode deixar de ser vista como uma alteração substancial dos factos (art. 1.º, al. f)).

Aliás, esta é a posição da jurisprudência dos tribunais superiores e a qual vimos sufragando, como aquela que vem vertida, a propósito de questão paralela, dos requisitos do requerimento de abertura de instrução criminal pelo assistente, quando o Ministério se pronunciou pelo arquivamento dos autos, no Ac. do TRC de 15/4/2015 – Proc. 2393/12.8TACBR.C1, do qual fomos relator e que se encontra publicado in www.dgsi.pt.

De todo o explanado temos de concluir que quando a acusação do assistente, por crime particular, que o Ministério Público não acompanhou, não narra os factos que integram um crime, ou narra-os de forma insuficiente, não pode haver pronuncia, sob pena de violação dos artigos 303.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3, al. b), do CPP e 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

De facto, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam da acusação e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no art. 309.º, n.º 1.

Quanto aos elementos subjectivos, embora o assistente não seja rigoroso, mas ao contrário do que diz o senhor juiz de instrução no despacho recorrido, estão minimamente descritos, como decorre dos artigos 24, 29, 30 e 31, donde consta concretamente:

« (...)

24.º - Os aqui arguidos pretenderam, dado o conteúdo injurioso e difamatório, ofender a honra, bom nome e consideração pessoal do ofendido.

(…)

29.º - Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que esta conduta não lhes era permitida,

30.º - Conscientes da ilicitude dos seus actos,

31.º - Com a intenção, inequívoca e clara, de ofender a honra do ofendido/assistente».

Está claro que o assistente na descrição imputa os factos os arguidos (independentemente da insuficiência ou não de factos) por terem agido de forma voluntária e consciente, com intenção de o atingirem na sua honra e consideração, apesar de saberem que a sua conduta era proibida por lei.

 A questão situa-se de forma séria e irremediável ao nível da descrição dos factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos do tipo legal de crime.

Se não vejamos.

O assistente, ao deduzir acusação deve cingir-se à descrição sintética da factualidade objectivamente imputada aos arguidos, que em seu entender leva enquadramento legal, em conformidade com o disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP e não para nela verter as suas lamentações ou factos irrelevantes.

E nesta conformidade deve descrever factos concretos e precisos que levam à incriminação de cada um dos arguidos, sendo que cada um deles, intervém de forma diferente.

Na acusação, desacompanhada pelo Ministério Público, o assistente no artigo 1.º limita-se a fazer referência a uma reportagem emitida em 21/7/2014, através do canal televisivo (...) , a qual foi intitulada «Família de bombeiro morto sem direito a indemnização».

A começar pelo título, de acordo com as regras da experiência, outra conclusão não podemos tirar, bem como o cidadão médio comum de que a intenção da reportagem é chamar à atenção para a injustiça da família que perdeu um bombeiro ter ficado sem qualquer indemnização.

Outra coisa é depois imputar factos difamatórios ao assistente, designadamente, imputar-lhe a autoria do incêndio que deflagrou e no combate ao mesmo ter perdido a vida o referido bombeiro, que se presume concluir uma vez que a peça processual não é explícita neste sentido, mas que é um facto notório na região, o incêndio ocorrido em Famalicão da Serra.

Depois no artigo 2.º diz que a reportagem se encontra disponível em site que identifica, cujo conteúdo se mostra transcrito a fls. 236 e segts.

Estar ou não disponível a reportagem e remeter para a sua transcrição não importa para a descrição dos factos da acusação, antes importa como prova e saber que factos dela extrai o assistente para imputar o crime de difamação aos arguidos.

No artigo 3.º, o assistente diz que o arguido B... levanta dúvidas quanto á existência de queimadas e que as mesma estariam na origem do incêndio ocorrido no dia 9/7/2006. Ora dúvidas não se circunscrevem a factos objectivos concretos imputados ao assistente susceptíveis de integrarem os elementos objectivos do crime.

Dos artigos 4.º a 21.º da acusação não podemos tirar as conclusões do assistente.

É certo que no processo de inquérito 15/06.5GEGRD, não se provou que o assistente tenha actuado de alguma forma a título de dolo ou negligência e no processo 872/11.3TBGRD, o assistente no dia do incêndio tenha levado a efeito qualquer queimada ou fogo.

Porém, como é normal, quando um incêndio daquelas dimensões deflagra questiona-se a sua origem.

Foi o que aconteceu.

Também se sabe que o crime de incêndio é de difícil investigação, mas que preocupa e deve preocupar toda a comunidade, uma vez que não estão só em causa os bens patrimoniais destruídos, como ainda todo um património, que é comum de todos nós – o ambiente.

Por isso, a importância que todo o cidadão comum e os órgãos de comunicação social, devem dar á ocorrência dos crimes desta natureza tão nefastos para a sociedade.

Também temos de ver a reportagem e o interesse por tal questão nesta perspectiva.

Diz o assistente que apesar do resultado do processo de inquérito 15/06.5GEGRD e do processo 872/11.3TBGRD, o assistente não ficou em descansado, pelo surgimento de novas suspeitas infundadas, lançadas nesta reportagem em apreço.

Ora, o facto do arguido B... ter dito na entrevista que um parapentista terá visto o fogo desde as 11h da manhã e que achou estranho que só mais tarde tenham chegado os meios de combate ao incêndio, demonstra o interesse pela descoberta da verdade, numa causa que nos é comum a todos, bem como o dever de cidadania de denunciar os criminosos e contribuir para a sua descoberta e até criticar a justiça, mas não a suspeita sobre o assistente.

Aliás, o próprio assistente não concretiza na acusação em que termos é feita a suspeita.

A afirmação do assistente no artigo 13.º dizer que a entrevista “apenas contribuiu para manter acordada a suspeição sobre o aqui denunciante”, é despida de factos concretos que traduzam tal afirmação.

O facto de se insistir que o incêndio teve origem criminosa é uma coisa, atribuir concretamente a autoria a uma pessoa concreta, como seja o assistente, é outra.

Porém, o arguido B... , nunca disse que o assistente A... foi o autor ou que por qualquer forma deu origem ao incêndio.

O facto do proprietário do terreno ser do assistente, apesar do incêndio ter eventualmente mão criminosa, não que dizer que lhe tivesse de ser atribuída a autoria necessariamente.

Alguém foi o autor. É o que diz ou quer dizer o arguido B... .

Mas o assistente refere no artigo 14.º que o arguido B... diz o seguinte:

«O que é que é o terrorismo em Portugal?

É alguém que diz que põe uma bomba ou alguém que deita um incêndio florestal ao lado de uma aldeia ou ao lado de uma cidade.

Nós andamos aqui com estes termos terroristas para os gajos que estão lá no Meio Oriente e depois os de cá é que cometem estas infracções não são acusados de nada.

Eu para mim o terrorismo é isso é o único terrorismo que conheço em Portugal».

E no artigo 15.º refere que disse o seguinte:

«O tribunal da Guarda acabou por não atribuir qualquer responsabilidade aos donos do terreno onde a tragédia aconteceu.

Não conseguiram provar, apesar de termos tido no mínimo 4 testemunhas que viram as fogueiras a arder na manhã do dia do incêndio...».

Destas afirmações do arguido B... , o assistente tira a conclusão de que de uma forma clara, o arguido apelida o assistente de Terrorista, insultando-o, injuriando-o, difamando-o e enxovalhando-o (artigos 16.º e 17.º).

Por outro lado diz que a dita entrevista enumera pretensos factos como a existência de pessoas que sabem da existência do incêndio, falando-se de negligência, quando o arguido não ignora que, no âmbito do processo crime, o comportamento do assistente não revelou qualquer negligência (artigos 18.º a 19.º).

Depois conclui que do conteúdo da entrevista/reportagem é perfeitamente perceptível, que o proprietário do terreno onde a tragédia aconteceu é o assistente e que o mesmo é um terrorista (artigos 20.º e 21.º).

Na entrevista, o arguido B... compara o delinquente que lança uma bomba no Médio Oriente ao delinquente que deita um incêndio florestal em Portugal, que apelida ambos de terroristas.

Depois limita-se a dizer o tribunal da Guarda acabou por não atribuir qualquer responsabilidade aos proprietários do terreno onde a tragédia aconteceu, não conseguindo apurar a autoria, apesar de haver quatro testemunhas que viram a fogueira a arder na manhã do dia do incêndio.

O arguido B... na sua entrevista, emite a opinião de que considera tão terrorista aquela que lança um incêndio como aquele que lança uma bomba matando seres humanos.

Em lado algum chama de terrorista ao assistente ou diz que foi o assistente o autor do incêndio para se poder concluir que lhe chamou terrorista.

O arguido não apelida o assistente de terrorista.

É uma conclusão do assistente que não se extrai objectivamente de quem ouve ou lê a descrição feita, na acusação e que deve resultar de forma inequívoca, sob pena de se pôr em causa, injustificadamente o direito de liberdade de expressão.

O que se extrai sem ambiguidade é que o arguido considera terrorista quem ateia incêndios florestais, independentemente de quem seja, mas não atribui concretamente a autoria do incêndio ao assistente, condição para se poder imputar ao arguido o crime de difamação, apesar de saber que tal não corresponde à verdade.

Por outro lado, a sua entrevista comporta uma indignação e uma crítica à justiça que não conseguiu atribuir a autoria do incêndio.

E persistir em apurar a responsabilidade e criticar a investigação e o tribunal que julgou os factos foi o fim da entrevista intitulada «Família de bombeiro morto sem direito a indemnização» e não atacar ou atribuir a responsabilidade criminal ao assistente sem equívocos, com o fim de o difamar, ofender a sua honra, o bom nome e a sua consideração pessoal.

Num Estado de Direito, fazendo uso do direito amplo de liberdade de expressão, todo o cidadão tem o direito á indignação e à crítica, desde que o direito com que se exerce esse direito não colida com o direito à honra e consideração de outrem.

O arguido B... , não apelida o assistente de terrorista e não lhe atribui a autoria do incêndio, bem com as suas afirmações não foram proferidas com o intuito de o ofender na sua honra e consideração, mas pela indignação do tribunal não ter apurado o culpado pelo incêndio e consequentemente ter ficado a família do bombeiro morto sem direito a indemnização.

Se a acusação carece de factos objectivos susceptíveis de integrarem o crime de difamação quanto ao arguido B... , quanto ao teor da entrevista, relativamente aos arguidos C... , Director do Canal Televisivo (...) e D... , Jornalista, carece de factos que descrevam a qualidade e em que termos são demandados, respectivamente enquanto director do canal televisivo que emitiu a reportagem e o jornalista que procedeu à mesma.

A deficiência da acusação acima apontada não pode ser colmatada com despacho de aperfeiçoamento, uma vez que definindo esta peça processual o âmbito da responsabilidade imputada ao arguido, um convite por parte do juiz de instrução, à sua reformulação, no sentido de descrever os factos que consubstanciam o crime imputado, para além de exorbitar a finalidade e âmbito da instrução constante do art. 286.º, do CPP e os poderes do juiz, iria por em causa os poderes e independência do Ministério Público e seria enveredar por trilhos próprios de um procedimento de tipo inquisitório, contrário ao princípio do acusatório, que consagrado no art. 32.º, n.º 5 da CRP

Neste sentido, se pronunciou também o Ac. da RL de 11 de Outubro de 2001, in CJ, T. IV, pág. 141, a propósito da não admissibilidade de despacho de aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução, a requerimento do assistente quando o Ministério Público se abstêm de acusar, proferindo despacho de arquivamento.

Esclarecendo divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a tal respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12/05/2005 (Assento do STJ n.º 7/2005, in DR 1.ª Série A, de 4/11/2005), que decidiu no seguinte sentido:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o entendimento dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 4.ª ed., pág. 522, em anotação ao art. 32.º, n.º 5, da CRP, sustentando:

«…a estrutura acusatória do processo penal implica:

a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação;

b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador…».

Daqui resulta, no caso sub judice, que o juiz de instrução não pode intrometer-¬se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite de aperfeiçoamento dirigido ao assistente.

E não se discuta que a não formulação de tal convite viola os direitos de garantias de processo criminal, consignados no art. 32.º, da CRP, pois o Ac. do TC n.º 175/2013, decidiu não ser inconstitucional a norma do art. 287.º, n.º 2, com referência ao art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução.

Em conclusão:

Faltando factos essenciais objectivamente susceptíveis de integrarem o crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, do Código Penal e, art. 30.º, da Lei da Imprensa, deve ser declarada nula a acusação particular deduzida pelo assistente A... e consequentemente ser proferido despacho de não pronúncia, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, sob pena de violação dos termos dos art. 283.º, n.º 3, al. b); 303.º, n.º 3; 308.º, n.º 3 e 309.º, do CPP e art. 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

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III - Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso interposto pelo assistente A... , e, em consequência se confirma o despacho recorrido de não pronúncia.

Custas pelo assistente, cuja taxa de justiça se fixa em 3UCs.

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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.

        Coimbra, 18 de Janeiro de 2017

(Inácio Monteiro - relator)

(Alice Santos - adjunta)