Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
321/11.7GEACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 359º CP
Sumário: Com a entrada em vigor da alteração introduzida ao artigo 359º, nº 2 CP, pela Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro, a falsidade das declarações prestadas por arguido relativamente aos seus antecedentes criminais deixou de preencher o tipo do crime em questão.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


 

I. RELATÓRIO

No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Alcobaça o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, da arguida A..., com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal, e de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art. 359º, nº 1 e 2 do mesmo código.

Por sentença de 6 de Maio de 2013 foi a arguida condenada, pela prática dos imputados crimes, na pena de cinquenta dias de multa à taxa diária de € 5 e na pena de sessenta dias de multa à mesma taxa, respectivamente, e em cúmulo, na pena única de oitenta dias de multa à taxa diária de € 5.


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            Inconformada com a decisão, recorreu a arguida, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            “ (…).

            1. A arguida foi condenada nos autos pelo crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto e punido pelo artigo 359.º, nº 1 e 2, do Código Penal.

2. Condenação que resulta, segundo a douta sentença, da prática dos seguintes factos:

«[Q]uando questionada se já alguma vez havia estado presa ou se havia sido condenada pela prática de algum crime, a arguida respondeu que nunca esteve presa, nem respondeu em Tribunal por nenhum crime. Sucede que do seu certificado de registo criminal consta que, no Processo Comum Singular n.º 88/02.0GDLRS, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loures, por decisão proferida em 21/06/2006 e transitada em julgado, foi condenada numa pena de multa. Por fim, resultou que a arguida agiu com intenção de faltar à verdade relativamente aos seus antecedentes criminais, ao responder que nunca havia sido condenada, bem sabendo que estava obrigada a responder com verdade a esse respeito, tanto mais que foi advertida nesse sentido.»

3. A douta sentença fundou-se no auto de notícia de fls. 16 e declarações da arguida em audiência de julgamento ocorrida a 2 de Maio de 2013.

4. A Lei n.º 19/2013, de 21/02 alterou o artigo 359.º do CP, retirando da parte final do seu n.º 2 a expressão «e os antecedentes criminais»,

5. Sucede assim que ocorreu a despenalização dos factos que originaram a condenação pelo crime de falsidade de depoimento ou declaração.

6. Pelo que não pode a arguida ser condenada pelo referido crime, sob pena de se violar a lei penal e a constitucional.

7. Isto porque vale o princípio da retroactividade da lei penal favorável quando o facto deixe de ser punível, vertido no art. 29.º, n.º 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa e no art. 2º, n.º 2, 1ª parte, do Código Penal.

8. Normas que foram, deste modo, salvo o devido respeito por douto entendimento, violadas na douta sentença, pelo não cumprimento da (por elas imposta) aplicação da nova redacção do art.º 359.º, nº 2 do Código Penal.

9. Requer-se, pelo exposto, a revogação da douta sentença e a substituição da mesma por decisão que absolva a arguida do crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto e punido pelo artigo 359,º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 48/95, de 15/03 e entretanto alterada pela Lei n.º 19/2013, de 21/02.

Normas Violadas: art.º 2º, n.º 2 e 359.º, nº 2 (na redacção dada pela Lei n.º 19/2013, de 21/02) do Código Penal; art. 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, e nos melhores de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se a decisão recorrida, e substituindo-se a mesma por decisão que absolva a arguida do crime de falsidade de depoimento ou declaração.

Assim será cumprido o direito e feita JUSTIÇA.

(…)”.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando que a Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, entrada em vigor em 23 de Março de 2013, deu nova redacção ao art. 359º, nº 2 do C. Penal, suprimindo o segmento «os antecedentes criminais» pelo que a conduta da arguida relativa ao crime de falsidade de depoimento ou declaração foi descriminalizada, e concluiu pela absolvição da recorrente, quanto a tal crime.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, e concluiu pela procedência do recurso.


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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir é a de saber se, em consequência da entrada em vigor da redacção dada ao art. 359º, nº 2 do C. Penal pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, foi descriminalizada a conduta que determinou a sua condenação pela prática do crime de falsidade de depoimento ou declaração, ali previsto.

 


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            Para a resolução desta questão importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim, nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

            1. No dia 9/12/2011, cerca das 17h45m, na Escola (...), situada em (...), na sequência de uma troca de palavras, a arguida aproximou-se da menor B..., colega da sua filha, e desferiu um estalo que a atingiu na face.

2. Em consequência directa e necessária desta agressão, a B... sofreu dores.

3. Ao agredir da maneira supra referida, a arguida agiu com o propósito alcançado de a molestar fisicamente.

4. Entretanto, no dia 10/01/2012, no posto territorial de (...) da Guarda Nacional Republicana, A... foi constituída e interrogada como arguido.

5. No início do interrogatório, a arguida foi advertida de que devia responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas acerca da sua identidade e antecedentes criminais e de que a falta ou a falsidade das suas respostas a fariam incorrer em responsabilidade criminal, do que ficou totalmente ciente.

6. Quando questionada se já alguma vez havia estado presa ou se havia sido condenada pela prática de algum crime, a arguida respondeu que nunca esteve presa, nem respondeu em Tribunal por nenhum crime.

7. Sucede que do seu certificado de registo criminal consta que, no Processo Comum Singular n.º 88/02.0GDLRS, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loures, por decisão proferida em 21/06/2006 e transitada em julgado, foi condenada numa pena de multa.

8. A arguida agiu com intenção de faltar à verdade relativamente aos seus antecedentes criminais, ao responder que nunca havia sido condenada, bem sabendo que estava obrigada a responder com verdade a esse respeito, tanto mais que foi advertida nesse sentido.

9. A arguida agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

[Mais se provou que:]

10. Antes do facto referido em 1. a menor apelidou a arguida de filha da puta.

11. Mostrou arrependimento pelo cometimento dos factos.

12. A arguida está desempregada.

13. A arguida em união de facto, tem 5 filhos, companheiro aufere 600,00 € mensais.

14. Vive em casa arrendada, pela qual paga a título de renda 500,00 €/mensais.

15. Tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.

16. A arguida foi condenada:

- por sentença datada 21/06/2006, transitada em julgado em 06/07/2006, no âmbito do proc. nº 88/02.0GDLRS, do Tribunal Judicial de Loures, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 55 dias de multa à razão diária de 3,00             €.

(…)”.


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Da descriminalização da conduta relativa ao crime de falsidade de depoimento ou declaração

A recorrente foi condenada, além do mais, pela prática de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art. 359º, nº1 e 2 do C. Penal, por no dia 10 de Janeiro de 2012, no posto da GNR de (...), depois de constituída arguida e de advertida de que devia responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas acerca da sua identidade e antecedentes criminais e de que a falta ou a falsidade das suas respostas a fariam incorrer em responsabilidade criminal, questionada se já alguma vez havia estado presa ou se havia sido condenada pela prática de algum crime, respondeu nunca ter respondido em tribunal, quando havia já sido condenada, no processo comum singular n.º 88/02.0GDLRS, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loures, por sentença transitada em julgado, em pena de multa, agindo com intenção de faltar à verdade relativamente aos seus antecedentes criminais, sabendo que estava obrigada a responder com verdade a esse respeito, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal [pontos 4 a 9 dos factos provados].

Na data da prática dos factos, o art. 359º do C. Penal tinha a seguinte redacção:

1 – Quem prestar depoimento de parte, fazendo falsa declarações relativamente a factos sobre os quais deve depor, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe com a prestação de depoimento falso, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 – Na mesma pena incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a identidade e os antecedentes criminais.

Sendo visados no nº 1, meios de prova em processo civil, e o nº 2, meios de prova em processo penal, tutela este crime, essencialmente, a realização da justiça enquanto função do Estado (cfr. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, págs. 453 e 460 e seguintes). Acrescentamos apenas que, no segmento relativo às declarações do arguido sobre a sua identidade e antecedentes criminais, é conhecida a polémica doutrinária sobre a compatibilidade da incriminação, quer em face do bem jurídico tutelado, quer quanto à sua conformidade constitucional.    

A Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro [que entrou em vigor, nos termos do seu art. 6º, trinta dias após a sua publicação portanto, a 23 de Março de 2013], alterou a redacção do nº 2 que passou a ser a seguinte:

 2 – Na mesma pena incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a identidade.

Desta forma, com a eliminação do texto do nº 2 do segmento «(…) e os antecedentes criminais.», a partir de 23 de Março de 2013, a falsidade das declarações prestadas por arguido relativamente aos seus antecedentes criminais deixou de preencher o tipo do crime em questão.

Tendo os factos ocorrido 10 de Janeiro de 2012, resulta que na data da sua prática, preenchiam o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art. 359º, nº1 e 2 do C. Penal, na redacção então em vigor.

Porém, deixaram de constituir uma conduta típica, a partir de 23 de Março de 2013, data da entrada em vigor da redacção dada àquele nº 2 pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro.

A sentença em crise foi proferida em 6 de Maio de 2013, portanto, quando o facto praticado pela recorrente já havia sido eliminado do número das infracções, para usarmos a expressão que consta do art. 2º, nº 2 do C. Penal, sendo por isso evidente, nos termos desta disposição legal, que não pode subsistir a sua condenação como autora de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, face à descriminalização da conduta operada pela Lei Nova.

Deve pois proceder a pretensão recursiva da arguida.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência:

A) Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou a arguida pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art. 359º, nº 1 e 2 do C. Penal, na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de € 5, e absolvem-na de  tal prática por descriminalização da conduta.

B) Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou a arguida na pena única de oitenta dias de multa à taxa diária de € 5.


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            B) Confirmam quanto ao mais, a sentença recorrida.


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            Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal).

 


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Coimbra, 9 de Abril de 2014

 (Heitor Vasques Osório – relator)

 (Fernando Chaves)