Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/19.3TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: PENA DE PRISÃO SUBSIDIÁRIA
DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TEP)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 49.º DO CP; ARTS. 335.º A 337.º DO CPP; ART. 97.º, N.º 2 DO CEPMPL
Sumário: I – Estando em causa a prisão substitutiva da multa a cujo cumprimento o arguido se tem eximido, salvaguardado que fica o regime substantivo previsto no artigo 49.º do CP, constituindo o escopo ou finalidade da contumácia a salvaguarda do curso normal do processo até ao seu termo, não faria sentido que não pudesse ser declarada no caso.

II - Não sendo afastado pela letra da lei, que não distingue, e sendo aquele que melhor se adequa ao escopo ou teleologia da contumácia, adota-se o entendimento de que o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade não consente, para efeitos de contumácia, a diferenciação entre prisão principal ou prisão subsidiária.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na 4ª Secção, com competência criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

O arguido foi condenado, no juízo de competência genérica da Nazaré, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples, numa pena de 150 dias de multa, no montante total de 750,00€.

Deferido que foi o pedido de pagamento faseado da multa, o arguido deixou vencer todas as prestações sem qualquer pagamento.

Não foi conseguida a cobrança coerciva da multa por não conhecido património penhorável.

Daí que, sob promoção do Ministério Público, foi proferida decisão que converteu a multa não paga em prisão subsidiária.

Não sendo conhecido o paradeiro do arguido, foram publicados editais e, findo o prazo fixado, o condenado não se apresentou. Pelo que foi promovida a declaração de contumácia junto do tribunal de execução de penas, com indicação de urgência perante a iminência da prescrição da pena.

Foi então proferida decisão (ora recorrida) na qual, considerando que “a prisão subsidiária resultante da conversão da pena principal de multa, não cabe na previsão do artigo 97.º, n.º 2, do CEPMPL, para efeitos de declaração de contumácia, o qual só abrange a pena de multa aplicada a título principal”,

a Mª Juíza do TEP decidiu (decisão recorrida):Face a tudo o exposto, e por inadmissibilidade legal, não será proferida declaração de contumácia.”


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Inconformada com tal despacho, dele recorre a digna magistrada do MºPº, formulando, na respectiva motivação, as seguintes CONCLUSÕES:

1. A declaração de contumácia a que se reporta o artigo 97º do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade visa a legítima coacção do condenado a apresentar-se para cumprir a pena de prisão ou a medida de internamento, quando a tal se eximiu, e não faz a lei qualquer destrinça quanto à pena de prisão a cumprir, ou seja, não distingue se a prisão foi aplicada a título principal ou se resultou de conversão pelo não cumprimento da pena original;

2. A contumácia, com tal finalidade, vale, assim, tanto para o cumprimento da prisão principal como para a que foi subsidiariamente fixada;

3. Se um condenado não paga a multa aplicada em razão de condenação pela prática de crime, essa multa, posto que observados os demais requisitos e procedimentos legais, leva ao cumprimento de prisão subsidiária, sendo que, para efeitos de execução, é indiferente a origem dessa pena – cf. artigo 49º do código penal.

4. Ademais, repare-se que os artigos 335º a 337º do código de processo penal se aplicam a qualquer processo penal, para lá do tipo de crime em causa, da sua gravidade ou, até, da maior ou menor probabilidade de aplicação de penas de prisão, sendo que, quanto a isso, jamais foi suscitada, que se conheça, qualquer dúvida constitucional;

5. O legislador admite a privação da liberdade quando a pena inicialmente aplicada foi a de multa e, se a admite, não se percebe porque não haveria de admitir a privação de outros direitos fundamentais e que resultam dessa declaração de contumácia, posto que já há condenação por crime e o seu autor se escapou intencionalmente ao cumprimento da respectiva pena;

6. O entendimento que tem vindo a ser assumido pelo tribunal de execução de penas de Coimbra, e expresso no despacho em crise, esbarra em contradições, como sejam não considerar admissível a contumácia nas penas de multa convertidas em prisão subsidiária em razão da sua origem – pena não privativa da liberdade – mas, depois, considera-as para efeitos de liberdade condicional quando se encontram em cumprimento sucessivo com outras penas e aquelas excedem o mínimo de seis meses, máxime no cálculo dos cinco sextos, encontrados na soma de todas as penas em cumprimento sucessivo;

7. Em suma, o código da execução das penas e medidas privativas da liberdade não consente, para efeitos de contumácia, a diferenciação entre prisão principal ou prisão subsidiária;

8. O despacho recorrido viola, assim, o disposto nos artigos 97º, nº 2, do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade e 335º a 337º do código de processo penal.

9. Deve ser revogado e substituído por outro que considere legalmente admissível a declaração de contumácia nas situações em que um condenado se exime ao cumprimento de pena de prisão subsidiária, resultante da conversão da pena de multa não paga, declarando-a.


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Notificado o ilustre defensor nomeado ao arguido, não foi apresentada resposta.

Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido de que o recurso merece provimento, não obstante reconhecer a existência de jurisprudência em ambos os sentidos.

Corridos vistos, cumpre decidir


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Está em causa a interpretação do artigo 97º, nº2 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL) no caso de a pena a cumprir ser de prisão resultante da conversão da multa não paga em prisão subsidiária, visto ainda o disposto no artigo 49º C. Penal. Ou seja, a aplicação do instituto da contumácia no caso de a pena a cumprir não ser de prisão aplicada como pena principal mas antes de prisão subsidiária da multa.

Sob a epígrafe “Evasão ou ausência não autorizada”, postula o citado artigo 97º do CEPMPL: (…) 2- Ao condenado que dolosamente se tiver eximido, total ou parcialmente, à execução da pena de prisão ou de medida de internamento é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 335º, 336º e 337º do Código de Processo Penal, relativos à declaração de contumácia, com as modificações seguintes (…).

Perante o citado preceito legal, como vem equacionado na motivação do recurso e no douto parecer, encontra-se jurisprudência no sentido da decisão recorrida bem como no sentido propugnado na fundamentação do recurso. Cumprindo, por isso, adotar o entendimento que, dentro do âmbito consentido pela letra da lei, melhor se adequa ao seu escopo, bem como à racionalidade decorrente da natureza da prisão subsidiária e do instituto da contumácia.

Sob a epígrafe Interpretação da lei, postula o artigo 9º do Código Civil:

1. A interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a parir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

A letra da lei constitui o ponto de partida de toda a interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha apoio ou correspondência no texto da norma.

A apreensão literal do texto é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal.» - cfr. Prof. José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, Almedina, pág. 392.

Para reconstituir o pensamento legislativo a partir do texto, deve atender-se a elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam questões semelhantes (lugares paralelos); compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento geral, assim como a sua concordância com o espírito ou a unidade intrínseca do sistema.

O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e nas finalidades que pretende realizar – cfr. Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, trad. do Prof. Manuel de Andrade, 3.ª edição, pág. 138 e seguintes; e Prof. José Oliveira Ascensão, ibidem, pág. 377 e seguintes.

Em matéria penal “O caso concreto tem de ser projectado no contexto do sistema teleológico-funcional e racional do direito penal, aí tratado e – ao menos de forma provisória – resolvido. Não fica com isto de todo excluída a possibilidade (certamente rara) de a solução encontrada se revelar injusta ou disfuncional à luz da própria teleologia político-criminal imanente ao sistema. Nesta hipótese, a “justiça do caso” deve em definitivo sobrepor-se a considerações puramente sistemáticas; mas deve também conduzir ao reexame ou reajustamento do significado meramente operacional e coadjuvante dos conceitos para a aplicação do direito” – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 31.

Voltando ao caso, certo é que a prisão subsidiária, por resultar da conversão de uma pena principal de multa, tem um regime específico relativamente à pena de prisão aplicada a título principal. Regime decorrente das várias alíneas do artigo 49º do Código Penal:

nº1 – tempo de duração reduzido a 2/3;

nº2 - possibilidade de o condenado poder a todo o todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado;

nº3 – se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável, pode a execução ser suspensa desde que a suspensão subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Em tudo o mais não excepcionado, o regime da prisão subsidiária é equiparado à prisão aplicada como pena principal que não contrariem aquelas imposições ou princípios materiais delas decorrentes.

Por sua vez a contumácia constitui uma medida de constrangimento ao arguido ou condenado para não se eximir à acção da justiça, ou de desincentivo da ausência.

Não possui a natureza substantiva de pena ou de outro tipo de sanção. Implica basicamente apenas a “suspensão dos termos posteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido” – cfr. art. 335, nº3 do CPP. Cessa quando o arguido ou condenado se apresentar ou for detido, assim permitindo que o processo prossiga os seus trâmites normais.

Aliás a contumácia, nos termos dos artigos 335º a 337º do Código de Processo Penal, a contumácia aplica-se em qualquer espécie de processo, independentemente do tipo de crime em causa, da sua gravidade ou, até, da maior ou menor probabilidade de aplicação de penas de prisão ou de multa.

O instituto da contumácia tem, pois, natureza marcadamente processual.

Por outro lado, em matéria processual ou adjectiva vigora o princípio da instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo - cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. de 1974, p. 33.

Vigorando ainda em matéria processual o princípio da adequação da lei adjectiva ao direito substantivo, nos termos previstos no art. 265º-A do CPC, aplicável ex vi do art. 4º do CPP.

Ora, estando em causa a prisão substitutiva da multa a cujo cumprimento o arguido se tem eximido, salvaguardado que fica o regime substantivo previsto no artigo 49º do Código Penal, constituindo o escopo ou finalidade da contumácia a salvaguarda do curso normal do processo até ao seu termo, não faria sentido que não pudesse ser declarada, no caso. Com efeito tal equivaleria a criar um vazio legal ou uma brecha no sistema que deixaria sem solução processual o não cumprimento da prisão subsidiária validamente decretada, no caso de o condenado se ausentar voluntariamente depois de condenado.

Como assinalado da motivação do recurso o entendimento oposto é ainda contraditório com a prática de considerar a pena de prisão subsidiária da multa para efeitos de liberdade condicional quando estão em cumprimento sucessivo com outras penas e aquelas excedem o mínimo de seis meses, maxime no cálculo dos cinco sextos, encontrados na soma de todas as penas em cumprimento sucessivo.

Em conclusão, não sendo afastado pela letra da lei, que não distingue, e sendo aquele que melhor se adequa ao escopo ou teleologia da contumácia, adota-se o entendimento de que o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade não consente, para efeitos de contumácia, a diferenciação entre prisão principal ou prisão subsidiária.

Este é também o sentido da jurisprudência que temos como claramente maioritária. Neste sentido, para além da citada nos autos: Acórdãos do TRC de 07.03.2012; 29.07.2017; Acórdãos do TRP de 16.09.2015, 09.12.2015, 10.02.2016, 16.03.2016, 11.05.2016; Acs. do TRL de 26.01.2016, 10.05.2016; Ac. do TRG de 29.09.2017; citados por Maria João Antunes – Inês Horta Pinto no seu Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, Ed. Almedina em anotação ao artigo 97º.

No mesmo sentido, ainda os Acórdãos do T.R.P. de 04/05/2016, 10/02/2016, 16/12/2015, 09/12/2015; do T.R.L., de 26/01/2016; do T.R.E., de 06/01/2017; todos disponíveis em www.dgsi.pt.;  Ac. T.R.P. de 11.05.2016, proferida no Proc. nº 1047-15.8TXPRT-A.P1; Acs. do T.R.L., de 26/01/2016, e T.R.E., de 06/01/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; Acórdãos do T.R.P. de 11.05.2016, proferido no Proc. nº 1047-15.8TXPRT-A.P1; de 26.01.2016, Proc. nº 36/09.6PFVFX-A.L1-5; de20.09.2016, Proc. nº 178/08.5GHVFX.L1-5.

Ainda no mesmo sentido vejam-se as decisões do Exmo. Presidente da 4ª Secção, Criminal, deste TRC, de: 21.03.2012, in processo nº 56/04.7TASPS-B.C1; de 12.03.2018, p. nº 172/13.4GBGVA-A1; e de 06.04.2016, p. nº 192/13.9GBGVA-B.C1, proferidas em processos de conflito de competência.

Diga-se, por último, que a conformidade deste entendimento com os parâmetros da Lei Fundamental foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nº 237/2017, nº 416/2017, nº 417/2017 e nº 419/2017, tendo decidido no sentido da não inconstitucionalidade da declaração de contumácia no caso da prisão subsidiária.

III DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que, considerando legalmente admissível a declaração contumácia no caso que o condenado se exime ao cumprimento de pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, proceda à respectiva aplicação nos autos. ---

Sem tributação.

Coimbra, 05-06-2019

Belmiro Andrade (relator)

Luís Ramos (adjunto)