Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
366/10.4GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: AMEAÇA
AMEAÇA DE MAL FUTURO
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 153º CP
Sumário: 1 - Para a consumação do crime de ameaça a expressão proferida tem de anunciar a prática de um mal no futuro, que constitua crime;

2- Quando o arguido de forma súbita, pega numa sachola e dirige à ofendida as expressões “eu mato-te, eu mato-te” e, ”não há-de comer mais pão que Deus crie”, não está a anunciar um mal futuro.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado, no qual é arguido:
A..., residente na … ;
Foi proferida sentença, na qual se decidiu, julgar a acusação procedente por provada, e o pedido de indemnização civil deduzido, parcialmente procedente e em consequência:
a) Condenar o arguido pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153, nº 1 e 155, al. a), do Código Penal na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 400,00 (quatrocentos euros)
b) Condenar o arguido a pagar à assistente a quantia de € 200,00 (duzentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal de 4%, com vencimento a partir da a data da sentença, porquanto na sua fixação teve já o tribunal em conta o valor adequado e equitativo àquela data – Acórdão 4/2002, artigos 559, 804, 805, 806, 566, nº 2 e Portaria 291/2003 de 8 de Abril.
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Inconformado, da sentença interpôs recurso o arguido.
São do seguinte teor as conclusões formuladas na motivação do seu recurso e que delimitam o âmbito do mesmo:
1- O arguido foi acusado e condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, nos termos do artigo 153 n° 1 e 155 n° 1 a) do CP.
2- Uma correta e atenta audição da prova gravada e uma ponderada leitura e análise comparativa da transcrição da prova gravada e produzida na sessão da audiência de julgamento, na sua globalidade e não de forma meramente estanque, revela que o Tribunal não fez uma correta apreciação e valoração dos factos e das ambiguidades e contradições insanáveis entre os depoimentos prestados pela assistente e as suas testemunhas.
3- O arguido prestou declarações na 1ª Sessão de audiência de julgamento em 21-11-2011, às 15:02:01 até às 15:08:54 do minuto 00:00:01 até ao minuto 00:06:52 do CD, e explicou que havia tão só discutido com a assistente por esta colocar uma mota junto à sua porta, versão que foi confirmada pela filha, mulher e pela cunhada da assistente conforme esta lhe havia contado, não devendo assim, dar-se por provado que a discussão resultou de qualquer problema de passagem.
4- Do depoimento do arguido retiram-se os motivos para que a assistente apresentasse queixa. Mesmo que assim não fosse, importa referir que tal prova não incumbe ao arguido, nem poderia a MM. Juiz exigir que o arguido explique o porquê dessa queixa, já que se assim fosse o julgamento deixaria de ter fundamento, pressupondo que quem apresenta queixa refere a verdade dos factos.
5- Conforme se verifica do depoimento da assistente na 1ª Sessão de audiência de julgamento em 21-11-2011, às 15:09:31 até às 15:25:25 do minuto 00:00:01 até ao minuto 00:15:54 do CD, por nós transcrito integralmente, a MM. Juiz faz um resumo limitado às expressões que aquela imputa ao arguido, sem que as analise segundo as regras da experiência, sendo diferentes das constantes da acusação e indo além do objeto do processo. A assistente apresenta várias versões nos autos de como ocorreram os factos e das expressões que foram proferidas pelo arguido, dai que não se compreenda como se pode concluir que a assistente prestou um depoimento de forma clara e convincente.
6- A única pessoa que refere ter sido ameaçada é a assistente, o que no nosso entender não passam de expressões que não preenchem o tipo daquele crime.
7- Ora, nenhuma testemunha veio corroborar a versão da assistente, o que nos leva a perguntar como é que consegue só uma pessoa apresentar uma versão dos factos cheia de contradições, diferente das demais e considerar-se credível.
8- Não é concebível que alguém que está a ser ameaçada de morte, tendo o ameaçador uma sachola nas mãos, diga para este então mate, mate, se me quer matar mate, e venha depois dizer que tem medo, conforme refere a assistente.
9- Não se entende também, que a assistente estando acompanhada do filho não tenha fugido, pela outra entrada de sua casa, mas antes tenha persistido em entrar pela porta onde estava o pretenso ameaçador, esquecendo-se da presença do filho e venha referir que este estava afastado, e se existia medo por parte daquela, porque é que só momentos depois de entrar em casa venha chamar o filho de 8 anos e se tenha mantido em casa de porta aberta.
10- Da versão da assistente também não se compreende como e quando é que arguido agarra na sachola, já que inicialmente relata os factos como tendo sido em simultâneo das expressões, eu mato-te, eu mato-te, momento em que a assistente referiu então mate-me, porém, após as questões da Srª Procuradora, a assistente inverte a sua primeira versão que apresentou de forma espontânea.
11- Na fundamentação de facto, ponto II 1º da Sentença a Meritíssima Juiz limitou-se a transcrever a acusação, justificando que, para dar tais factos como provados, a convicção do Tribunal baseou-se na prova produzida em Audiência de Julgamento, transcrevendo para o efeito os depoimentos das testemunhas que lograram convencer o Tribunal porque credíveis no seu entendimento.
12- Ora, se assim é, não se percebe o porquê de se ter dado como provado que o arguido tenha referido a seguinte expressão: "se não for hoje hei-de matar-te outro dia", já que, se analisarmos o depoimento da assistente e restantes testemunhas em momento algum é referida tal expressão, sendo que apenas esta expressão preenche o tipo do crime de ameaça. Daí que, não havendo prova produzida em Audiência, não pode tal expressão ser dada como provada só porque se encontra na acusação.
13- A dar-se alguma credibilidade à assistente, o que não entendemos, e delimitada a cognição da Meritíssima juiz à acusação, as únicas expressões que poderia dar como provado, eram "Eu mato-te, eu mato-te", "não há-de comer mais o pão que Deus crie", já que coincidentes com a acusação e portanto absolver o arguido por as mesmas não preencherem o tipo do crime de ameaça.
14- Já em relação ás restantes expressões proferidas pela assistente em sede de julgamento, as mesmas não devem ser atendidas por não ter sido cumprido o disposto no artigo 358 e 359 do CPP.
15- Assim, também em relação ao depoimento da testemunha ..., não se tendo cumprido o preceituado naqueles dois normativos legais, não pode o mesmo ser valorado, já que relata factos não constantes da acusação, posteriores ao espaço temporal da mesma, e que importam uma alteração substancial dos mesmos. Mas mais, da matéria constante da acusação verifica-se que esta testemunha presta um claro testemunho indireto, visto ter referido que não esteve presente e o que sabe foi-lhe dito pela assistente.
16- Daí que não tendo sido cumprido o estatuído no artigo 359 do CPP, a Meritíssima Juiz não podia formar a sua convicção com os mesmos, por não ter havido acordo para o prosseguimento da audiência sobre os novos factos e nem ter sido dado à defesa o prazo de 10 dias para preparação da defesa.
17- Sem prescindir do exposto, analisando tal depoimento prestado na 1ª Sessão de audiência de julgamento em 21-11-2011, às 15:26:32 até às 15:38:56 do minuto 00:00:01 até ao minuto 00:12:24 do CD, é feito de forma claramente comprometida com intuito de favorecer a sua cunhada/ assistente e apresenta com esta as seguintes contradições:
- A assistente diz que estava só ela e o filho, porém a testemunha diz que estavam ambas cá fora.
- A assistente diz que o arguido queria atirar-lhe com a caixa do correio, porem a testemunha refere que o arguido deu uma pancada na caixa do correio.
- A assistente não relata quaisquer expressões que o arguido tenha proferido naquele momento, ao contrário da testemunha, que relata expressões supostamente ameaçadoras.
18- Os depoimentos de ... e ... prestados na 1ª Sessão de audiência de julgamento em 21-11-2011, vieram corroborar a versão do arguido, e não a versão da assistente como interpretou a MM. Juiz, já que estas testemunhas apenas ouviram o arguido a falar alto, mas sem saber para quem, não tendo o arguido negado a existência de uma discussão, pelo que, não pode interpretar-se que a existência de tal discussão pressupõe uma ameaça, e também a exaltação do arguido não é prova de que tenha proferido expressões ameaçadoras, pois, de contrário, estaremos a condenar o arguido com base em suposições.
19- Estas duas testemunhas, não relataram qualquer facto que comprove os constantes da acusação, ao invés, suscitam dúvidas se os mesmos verdadeiramente ocorreram e, sendo vizinhas do arguido e da assistente, se a matéria constante da acusação tivesse ocorrido, ambas teriam tomado qualquer medida e lembrar-se-iam das gravosas expressões que a assistente imputa ao arguido e que afirma terem sido proferidas por diversas vezes.
20- Do depoimento da testemunha … , conclui-se que a assistente não teve medo nem receio, uma vez que a assistente depois de supostamente ter sido ameaçada, veio para a rua, junto à casa do arguido, falar com aquela, para que a mesma fosse testemunhar no processo e tudo isto momentos depois da ocorrência dos factos, sujeita a que o arguido ouvisse, ou seja, aquele que diz que a ameaçou de morte.
21- Nestes termos, há erro notório, na apreciação e valoração da prova, a que se alude na al. c) do n° 2 do art. 410 do C.P. Penal, não tendo feito o Tribunal a quo uma correta aplicação dos princípios que regem a apreciação da prova em processo penal, designadamente do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do in dubio pro reo. (art. 32 nº 2 da CRP)
22- O Tribunal a quo deveria ter ficado com dúvidas quanto à versão dos factos apresentada pela assistente, em virtude da mesma não se mostrar totalmente sustentável e com lógica e ainda em face dos demais elementos de prova.
23- Porque o arguido admite a existência de uma discussão não poderia o tribunal usar tal facto a favor da assistente e formar uma convicção da existência dos factos tal como relatados pela assistente, inclusive como o fez com o depoimentos de ... e de ... que declararam tão só que ouviram o arguido a falar alto mas sem que soubessem para quem e o que dizia.
24- Portanto, o depoimento da assistente é contraditório, para além de não se mostrar totalmente sustentável e com lógica, e ainda em face dos demais elementos de prova, o que beneficia o arguido de acordo com o principio constitucional do in dúbio pró reu.
25- Porém, mesmo que assim não se entenda, analisando as expressões:
"eu mato-te eu mato-te" "não hás-de mais comer o pão que Deus crie", não aparecem, em termos de vir a ocorrer no futuro, antes constituem um ato de execução do crime de que, afinal, o recorrente "desistiu", não prosseguindo na sua execução.
26- Ademais, também não se verificou o preenchimento do critério da adequação da ameaça, de modo a causar medo ou inquietação à assistente, atendendo ao critério objetivo-individual, estabelecido para esse efeito. Ou seja, não foram tidas em conta pelo Tribunal "a quo" à luz da atuação do "homem comum", no caso concreto, as circunstâncias em que as expressões em causa foram proferidas, a personalidade do agente, a conduta da assistente. E nesse quadro de conflito, nunca, antes ou depois, teve o recorrente, qualquer conduta com as características do potencial significado ameaçador das expressões em causa nos autos, atendendo até ao registo criminal do arguido e ao depoimento da testemunha abonatória ....
27- Nada nos autos concorre para que se conclua pela presença de qualquer elemento, conhecido da assistente, que, no momento em que foram proferidas as expressões «ameaçadoras», lhe permitisse reconhecer no arguido uma capacidade e vontade para delinquir ao nível do significado literal das expressões, e, bem assim, que lhe permitisse admitir que este tinha intenção de matar ou agredir fisicamente a assistente. Em face do supra exposto, também o elemento subjetivo do tipo de crime de ameaça, que exige o dolo, não se encontra preenchido. Não passando o facto provado sobre esta matéria de um mero juízo conclusivo.
28- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo: 0414654, nº convencional: JTRP0037380, Relator Manuel Braz de 17-11-2004: "se a "ameaça" for de um mal a consumar no momento ("eu mato-te", pegando e vibrando no ar o cabo de uma enxada que transportava) porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objeto da ameaça ou, não entrando, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ter ficado o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante." (O Negrito é nosso).
29- Mais, ainda que, também assim não se entenda, deve então concluir-se como no Ac. Tribunal da Relação do Porto, Rec. Penal nº 2940/08.0TAVNG.Pl- 4ª Sec. Data - 25/03/2010
"A ameaça com um anúncio de morte, genericamente formulado, sem qualquer concretização quanto aos meios a empregar, cabe apenas na previsão do nº 1 do Artigo 153 do Código Penal"
30- Foi assim violado o disposto nos artigos 153, 155 nº 1 a) do C. Penal, 32 n° 2 da CRP, e artigos 129, 358 e 359 e 410 nº 2 al. c) do CPP.
Deve dar-se provimento ao recurso, julgando-se improcedente a acusação e consequentemente absolver-se o arguido da prática do crime de ameaça agravada.
Respondendo, o Mº Pº conclui:
I. A sentença não se encontra enferma do vício do erro notório sobre a apreciação da prova (art. 210, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal), que é um vício da sentença e não um vício de julgamento, não podendo tal vício resultar de quaisquer elementos externos à decisão, como invoca o Recorrente, mas antes da própria decisão recorrida.
II. As declarações prestadas por uma testemunha sobre factos que ouviu da Assistente, tendo esta sido ouvida igualmente em sede de audiência de discussão e julgamento, pode ser valorada, uma vez que o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido, como resulta dos artigos 128 e 129 do Código de Processo Penal, nem representa - respeitados o estatuído legalmente para a sua admissão, como é o caso - uma qualquer violação dos direitos do arguido que, no caso concreto, esteve sempre presente e as pode também contraditar.
III. A sentença não padece do vício ínsito no artigo 379, nº 1, al. c) do C.P.P., uma vez que, não obstante o alegado pelo Recorrente, não consta da sentença qualquer facto novo e, como tal, não poderá haver qualquer alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação, nem se poderá invocar qualquer outra factualidade que não tenha sido levada à sentença para se invocar tal vício (que é um vício da sentença), não se tendo violado, consequentemente o disposto nos artigos 358 e 359 do Código de Processo Penal.
IV. O Recorrente não delimita expressamente quais os pontos concretos de facto que considera incorretamente julgados, não dando assim cumprimento ao disposto no artigo 412, nº 3 do Código de Processo Penal.
V. Não obstante, a factualidade dada como provada, mesmo que expurgada da expressão “se não for hoje hei-de matar-te outro dia", não deixaria de impor uma decisão condenatória, porquanto as expressões "eu mato-te, eu mato-te", "não há-de comer mais o pão que Deus crie" são quanto baste para a verificação do crime de ameaça agravada em que o arguido foi condenado.
VI. As testemunhas foram claras e inequívocas quanto às circunstâncias de tempo e lugar em que a factualidade ocorreu, quanto ao facto de o arguido se ter dirigido à Assistente e se ter insurgido com esta, falando em tom alto e zangado.
VII. As testemunhas familiares do arguido (mulher e filha), entraram em contradição com o próprio arguido que disse claramente que estas nada ouviram da discussão, enquanto estas afirmaram ter assistido a tudo, não se recordando porém do que foi dito em concreto, apenas que nenhuma ameaça foi proferida pelo arguido, o que é bem demonstrativo da falta de credibilidade que foi-lhes e bem apontada na Sentença.
VIII. As demais testemunhas, com a exceção da ..., nada disseram em concreto sobre as expressões proferidas pelo arguido de que não se recordavam, apenas se referindo ao tom elevado das mesmas que lhes chamou a atenção.
IX. A testemunha ... confirmou as declarações da Assistente, nomeadamente quanto ao arguido ter-lhe dito que “não há-de comer mais o pão que Deus crie", expressão proferida à sua frente, a que esta assistiu e que, tal como a Assistente havia dito, o arguido proferiu reiteradamente (uma das vezes à frente desta testemunha).
X. A testemunha ... ainda ouviu o arguido dizer que “eu vou para a cadeia, mas ela também não come mais pão", o que é relevante para discernir da credibilidade da Assistente, bem da intencionalidade imprimida pelo arguido nas expressões que anteriormente proferira.
XI. Por conseguinte, não duvidou o tribunal a quo que A..., de forma deliberada, livre e consciente, no dia 26 de Julho de 2010, pelas 21 horas, no lugar de …. disse para a assistente “eu mato-te, eu mato-te" e “não há-de comer mais pão que Deus crie", atuando de modo suscetível e adequado, a causar receio e medo na assistente B..., dadas as circunstâncias e o modo como proferiu as expressões acima referidas, fazendo-a temer pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei Penal.
XII. O tribunal fez uma correta aplicação do princípio da livre apreciação da prova ínsita no artigo 127 do Código de Processo Penal.
XIII. Na verdade, nenhuma dúvida restou que o arguido praticou o crime de que vinha acusado, tendo a sua conduta sido confirmada de forma clara e inequívoca, resultando ainda tal conduta das regras da experiência face ao medo e receio que provocaram no filho da Assistente e nesta, bem como das advertências que iam sendo dadas à Assistente por terceiros, necessitando o arguido de ser constantemente agarrado face à animosidade que o movia contra a assistente.
XIV. Assim, o tribunal recorrido, e bem, não ficou em estado de dúvida em relação a qualquer dos factos que teve por provados, antes afirmou com convicção a sua verificação, pelo que não se estando perante uma situação de non liquet, de fora fica a possibilidade de recurso ao princípio in dubio pro reu (e assim da violação do disposto no artigo 32, nº 2 da C.R.P.)
XV. E, a tudo o dito, não releva a manutenção ou não na matéria de facto dada como provada da parte posta em crise pelo Recorrente (“se não for hoje hei-de matar-te outro dia"), que em nada acrescenta ou retira às demais dadas como provadas.
Deve ser negado provimento ao recurso.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº2 do CPP.
Foi apresentada resposta, na qual se conclui como no recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Para conhecer do objeto do recurso, interessa transcrever a matéria de facto apurada e motivação da mesma, na sentença recorrida, e que é a seguinte:
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Instruída e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1–No dia 26 de Julho de 2010, pelas 21 horas, no … , área desta comarca, o arguido A..., depois de uma breve troca de palavras com a assistente B..., devido à passagem, por esta, através de um terreno que dá acesso à propriedade daquela, o arguido, de forma súbita, pegou numa sachola que se encontra ao fundo das escadas de sua casa e disse para a assistente “eu mato-te, eu mato-te, senão for hoje hei-de matar-te outro dia…não há-de comer mais pão que Deus crie”.
2– O arguido A..., de forma deliberada, livre e consciente, atuou de modo suscetível e adequado, a causar receio e medo na assistente B..., dadas as circunstâncias e o modo como proferiu as expressões acima referidas, fazendo temer a visada pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.
3- O arguido é servente, está desempregado, auferindo cerca de € 417,00 a título de subsídio de desemprego; é casado, a esposa é doméstica; vive em casa própria, suportando empréstimo para aquisição de habitação no montante de cerca de € 300,00; tem um filho menor e outra de 18 anos que ainda está a seu cargo.
4– Tem o 3º ano de escolaridade.
5 – O arguido é considerado uma pessoa séria e honesta ano meio onde vive.
6 – Do Certificado de Registo Criminal do arguido junto aos autos a fls. 149 nada consta.
Factos provados relativos ao pedido de indemnização civil:
7 – A assistente com a conduta do arguido sentiu-se ameaçada, tendo andado atemorizada, temendo pela vida do seu filho.
8 – Uma passagem de entrada e saída da sua casa é passando à porta do arguido.
9 – Os factos acima descritos ocorreram, pelo menos em parte na presença do filho da assistente.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram os demais factos constantes do pedido de indemnização civil deduzido, designadamente:
- Que a única passagem de entrada e saída da casa do assistente seja à porta do arguido, e que não tenha outro caminho por onde passar.
- Que a assistente em virtude das deslocações efetuadas por causa dos presentes autos, tenha perdido dias de trabalho e tenha tido despesas.
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Á demais matéria do pedido de indemnização civil deduzido e da contestação à qual não se responde nem afirmativamente nem negativamente tal deve-se ao facto de se tratar de matéria conclusiva ou de direito e como tal irrespondível.
III – MOTIVAÇÃO
a) Dos factos provados:
Para dar como provados os factos atrás expostos, a convicção do Tribunal baseou-se na prova produzida em audiência de julgamento, designadamente:
Nas declarações do arguido o qual apesar de ter negado a prática dos factos, admitiu que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na factualidade, o arguido e a ofendida discutiram por causa de a ofendida ter lá colocado uma mota em frente à casa dele.
B..., residente na … , assistente nos presentes autos, a qual não obstante o interesse no desfecho dos mesmos que detém pela qualidade que assume nos autos, prestou depoimento de forma clara e coerente, motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Disse que é vizinha do arguido, e que tudo começou porque ela colocava umas bicicletas na passagem que fica do lado da casa do arguido e ele implicava com isso. Disse que lhe disse “tu aqui não passas mais” e disse-lhe “eu mato-te, eu mato-te”. Disse que, após o arguido ter proferido esta expressão foi buscar a sachola virado a ela, e disse-lhe “tu hás-de morrer” e “não hás-de mais comer o pão que Deus crie, nem ver o sol”. Disse que a mulher do arguido agarrou-o e disse-lhe “está quieto António”.
Disse que o arguido repetia as expressões muitas vezes. Disse que quando já estava dentro do telheiro da casa dela o arguido ainda foi virado a ela, só que uma pessoa impediu-o. Disse que o arguido se agarrou à caixa do correio e tentou atirar-lha. Disse que estava no telheiro, porque dentro de casa não tem rede (rede TMN). Disse que antes disto nunca tinha tido problemas com o arguido. Disse que no próprio dia também houve um problema com os vasos. Disse que levou as ameaças a sério, ficou com medo. Disse que andou atemorizada, deixou de passar naquela porta para evitar conflitos. Naqueles dias também teve receio do filho. É doméstica, não perdeu dias de trabalho.
..., casada, empregada de limpeza, reside na … , disse que conhece o arguido desde pequena, e está de relações cortadas com ele por causa deste processo, tendo salientado que foi ele que lhe deixou de falar, não obstante esse facto, prestou depoimento de forma clara e coerente, motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Referiu que, não se lembra o dia, mas era Verão, já no passado, junto à noite, junto à casa da cunhada e do arguido, quando a declarante chegou estava a cunhada dela (a assistente) e o filho a gritarem, perguntou o que se passava e ela disse-lhe que tinha sido o arguido que a ameaçou. Disse que o arguido desceu da casa dele e o cunhado dele vinha a descer atrás dele e dizia que “ninguém fazia pouco dele” e arrumou com a mão na caixa de correio e disse “eu vou para uma cadeia, mas ela também não come mais pão”. Disse que se estava a referir à cunhada dela. Disse que no entender dela disse aquilo a sério e entendeu-o como que a queria matar.
Nessa altura o arguido não trazia nada na mão. Disse que a assistente estava a gritar, a chorar e dizia que ele a tinha ameaçado, ela ficou transtornada com isto, estava com medo e o filho também. Disse que a assistente andava mesmo com medo e até a acompanhava à fazenda, o sobrinho até dormiu essa noite em casa hoje tem receio. Disse que costuma ir muitas vezes a casa da cunhada e normalmente vai a pé, e quando vai de mota estaciona no lado da associação. Disse que a cunhada tem mota e bicicleta e costuma estacioná-las do lado da garagem. Disse que a assistente lhe disse que foi por causa da mota ter sido por ela colocada naquele local. Disse que também a declarante ligou para a GNR.
..., casado, reformado como cantoneiro, reside em …, disse que conhece o arguido e que ele lhe deixou falar mas por factos que nada têm a ver com este processo, mas não obstante esse facto, prestou depoimento de forma clara e coerente, motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Disse que não se recorda quando se passou, mas acha que já foi no ano passado, no verão, já era noite. Disse que estava na casa dele e ouviu o arguido a falar alto, veio à varanda e viu-o a discutir. Disse que o arguido devia ter gente ao pé dele. Disse que a assistente depois é que lhe contou. Disse que a assistente lhe contou no dia seguinte, que tinha discutido com o arguido. Disse que a casa é do lado dos problemas da passagem. Disse que quando foi à varanda foi desse lado.
Disse que a assistente estava normal, não notou nada estranho nela.
..., casada, doméstica, residente na …, conhece o arguido, não fala com o arguido há muito tempo, mas não tem a ver com este processo, tendo prestado depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal. Disse que tem a casa do lado contrário ao lado onde foi o barulho. Disse que estava em casa e ouviu a falar muito alto e foi à varanda e estava o arguido a falar muito alto. Disse que não viu lá ninguém, só a filha. Disse que não viu lá uma sachola, nem a B...e o menino dela. Disse que ele estava zangado e andava a caminhar. Disse que depois recuou para dentro, não sabe o que se passou mais. Disse que nesse mesmo dia a B...lhe contou o sucedido, dizendo que a tratou mal. Disse que a assistente estava nervosa.
..., casada, doméstica, reside em … , é esposa do arguido, a qual prestou depoimento de forma claramente comprometida com a versão do arguido, motivo pelo qual só na parte em que o seu depoimento se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios logrou convencer o Tribunal. Disse que as coisas se passaram no verão de 2010, ao final da tarde, ainda de dia, admitindo como possível a data que consta da factualidade provada. Disse que o arguido e a assistente discutiram na rua.
..., solteira, tem 18 anos, estudante, residente em …, o arguido é pai da declarante, a qual prestou depoimento de forma claramente comprometida com a versão do arguido, motivo pelo qual apenas na parte em que o seu depoimento se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios logrou convencer o Tribunal. Disse que tem conhecimento que houve um desentendimento entre o arguido e a assistente. Disse que estava na varanda da casa dela e houve exaltamentos de ambos os lados e depois começaram a discutir.
Disse que tudo começou por causa da mota, de ser colocada na passagem. Disse que pensa que foi em Agosto deste ano, mas não se recorda. Disse que costumam ter sacholas, mas não lá em casa, só num barracão noutro prédio onde cultivam.
Disse que o pai estava rua, e a declarante num nível superior, mas não conseguia ver a casa dos vizinhos, nem os viu. Disse que viu lá o filho da assistente que estava sentado no parapeito de uma porta sentado mais à frente. Disse que quando o arguido começou a discutir e se dirigiu à assistente o menino começou a chorar e a declarante foi ter com ele, ao início da discussão para o acalmar, como não conseguiu voltou para a varanda. Disse que a mãe tentou ir acalmar o arguido.
Disse que o pai não pegou em nada e julga que quando a mãe o foi acalmar já não teria nada as mãos. Disse que depois da discussão a assistente foi para casa e nessa altura já não sabe onde estará o filho da assistente. Disse que o tio da declarante veio acalmar o arguido, dentro de casa. Antes disto nunca tinha havido nenhuma discussão, até se davam bem.
Quanto à situação pessoal e económica, do arguido o Tribunal considerou as declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelo mesmo, bem como as declarações prestadas por ..., casado, reformado por invalidez, reside na … , o qual prestou depoimento de forma clara e coerente motivo pelo qual logrou convencer o Tribunal.
O Tribunal teve ainda em consideração o Certificado de Registo Criminal da arguida junto a fls. 149 dos autos.
Em suma, diremos que a versão da assistente mostrou-se credível, conjugada com as regras da experiência, bem como com os depoimentos das testemunhas acima indicadas as quais confirmaram o grau de exaltação do arguido nas circunstâncias descritas na factualidade, sendo que a testemunha Fátima ainda presenciou parte dos factos em causa, os quais relatou de forma coerente.
Acrescente-se que não obstante as testemunhas … e … , esposa e filha do arguido, terem prestado depoimento de forma claramente comprometida com a versão deste pretendendo fazer crer que tudo não passou de uma simples discussão sem ameaças, o certo é que foram relatando factos que contrariaram essa versão nos termos acima expostos.
Assim, diremos que a versão do arguido de que só discutiram não logrou convencer o Tribunal, tanto mais que, o arguido nenhuma razão apresentou para que a assistente tivesse interesse em “fantasiar uma história destas” que descreveu de forma pormenorizada, e com toda a coerência.
A este propósito saliente-se ainda que a testemunha ..., casada, doméstica, reside em … , esposa do arguido, a qual prestou depoimento de forma claramente comprometida com a versão do arguido, motivo pelo qual só na parte em que o seu depoimento se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios logrou convencer o Tribunal, nos termos acima já expostos. Disse que não ouviu nenhuma ameaça do arguido para a assistente, que não o fez, que não havia lá nenhuma sachola, nem o marido pegou nela. Disse que o filho da assistente estava dentro de casa, não sabe se saiu de casa ou não, pelo menos, não o viu. Disse que nesse dia a GNR não foi lá. Disse que passado um bocado apareceu a … . Disse que quando apareceu o irmão da declarante já a discussão tinha terminado. Disse que o irmão se chama … . Não obstante ter negado as expressões proferidas, não apresentou qualquer razão credível para o facto de a assistente as imputar ao arguido.
..., solteira, tem 18 anos, estudante, reside na …, o arguido é pai da declarante, a qual prestou depoimento de forma claramente comprometida com a versão do arguido, motivo pelo qual apenas na parte em que o seu depoimento se mostrou corroborado pelos demais elementos probatórios logrou convencer o Tribunal, nos termos já acima expostos. Ora o depoimento da declarante na parte em que a mesma tentou corroborar a versão do arguido, mostra-se inverosímil e incoerente, pois, não é credível que tendo a mulher do arguido tentado acalmá-lo, e estando o filho da assistente a chorar que não tenham sido proferidas quaisquer expressões (ainda que diversas das imputadas ao arguido).
b) Dos factos não provados:
. Os factos não provados resultaram da ausência de prova ou da prova do contrário nos termos acima expostos.
***
Conhecendo:
As questões suscitadas no recurso prendem-se com:
- Impugnação da matéria de facto apurada;
- Erro notório na apreciação da prova;
- Violação do princípio in dúbio pro reo;
- Os factos que devem ser dados como provados não preenchem os elementos do tipo de crime pelo qual o recorrente foi condenado.
Matéria de facto:
Aponta-se a errada interpretação da prova produzida, nomeadamente em relação ao ponto 1 dos provados, alegando-se não ter sido proferida a expressão, “se não for hoje hei-de matar-te outro dia”.
Alega-se o erro na análise da prova, no sentido de mal apreciada a prova produzida.
O tribunal tem de decidir, após apreciação da prova nos termos do disposto no art. 127 do CPP, e só em caso de dúvida decide em benefício do arguido.
A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos, pareceres, documentos, reconhecimento, reconstituição) conjugada com as regras da experiência comum.
Também, se dirá que o recurso não tem como funcionalidade reexaminar a matéria de facto e o recurso não serve para um novo julgamento.
O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.
Os recorrentes questionam a matéria de facto, que lhe imputa a prática, em coautoria de um crime de roubo, colocando em causa, desse modo, a prova e a apreciação da mesma.
A prova é valorada, tal qual é produzida em audiência, sendo a prova testemunhal perante os depoimentos orais e a imediação.
No nosso ordenamento jurídico/processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art. 127 do C. P. Penal.
O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art. 374/2 do Código de Processo Penal.
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objeto de formulação de deduções ou induções baseadas na correção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A atribuição de credibilidade ou da não credibilidade a uma fonte de prova por declarações assenta numa opção motivável do julgador na base da sua imediação e oralidade que o tribunal de recurso só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum. O juiz é livre de formar a sua convicção no depoimento de um só declarante em desfavor de testemunhos contrários, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 207 (sublinhado nosso).
No mesmo sentido, recurso desta Relação nº 3127/99 de 2-2-2000, no qual se refere que “as declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar como provados os factos”.
Assim que, se entenda que é possível dar como provados factos fundando-os num só depoimento, desde que o mesmo seja convincente.
Concretizando:
Como se refere na sentença, motivação da matéria de facto, são da assistente B... e a testemunha … os únicos depoimentos que referem expressões que teriam sido proferidas pelo arguido.
Porém, de nenhum desses depoimentos consta a expressão “se não for hoje hei-de matar-te outro dia”.
Sendo que o Mº Pº na resposta concorda que os fundamentos da motivação ”correspondem fielmente ao sucedido na audiência de discussão e julgamento”.
E, ouvido o depoimento gravado prestado pela assistente, em momento algum por ela é referida aquela expressão.
Assim que não se descortina qual o fundamento para se dar como provada esta expressão. Há falta de análise crítica da prova.
Face à motivação e, neste particular, entendemos que não se indica a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do disposto no art. 374 nº 2 do CPP.
Haveria que ser justificado o motivo de se dar como provada aquela expressão, a qual encerra o elemento objetivo do crime de ameaças.
Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (sublinhado nosso).
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo –Ac. do STJ de 12-04-2000.
A insuficiente justificação (ou falta dela), constitui falta de análise critica da prova, que gera nulidade da sentença, nos termos do art. 379 nº 1 al. a) do CPP.
Porém, no caso vertente e ouvindo o depoimento da ofendida é manifesto que a mesma em momento algum refere que o arguido tenha dito que “se não for hoje hei-de matar-te outro dia”.
A conclusão que se impõe é pois que, perante o texto da decisão recorrida, matéria de facto apurada e motivação da mesma, ressalta que se verifica apreciação notoriamente errada da prova produzida.
No caso concreto, o alegado pelo recorrente abala os fundamentos da convicção do julgador, pelo que não os podemos ter conformes às regras da experiência.
E, contrariamente ao que se indica na sentença, a convicção do tribunal não se poderia ter baseado “na prova produzida em audiência de julgamento”.
Assim, temos que se verifica erro na apreciação da prova (não o erro vício como se alega), e a convicção do julgador, relativamente àquela expressão, não tem suporte nos depoimentos.
Assim, há que alterar a matéria de facto tal como fixada na sentença, eliminando-se do ponto 1 dos provados a expressão “se não for hoje hei-de matar-te outro dia”, que passará a integrar os factos não provados.
Erro notório na apreciação da prova:
O erro notório na apreciação da prova existe quando se verifica:
Erro na crítica dos factos provados. Não erro na sua apreciação em ordem a aplicar o direito;
Contra o que resulta de elementos que constam dos autos e cuja força probatória não foi infirmada, ou de dados de conhecimento público generalizado, se emite juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.
In casu entendemos que o erro vício é mal invocado e, o que se verifica é a desconformidade entre a decisão de facto e a prova produzida, situação já analisada e não o erro vício, que não se verifica.
Crime de ameaças:
Perante a matéria de facto assim alterada, vejamos se os restantes factos preenchem os elementos do tipo de crime, ameaças.
Os factos relevantes constam do ponto 1 da matéria provada, sendo relevante a expressão “eu mato-te, eu mato-te” e, ”não há-de comer mais pão que Deus crie”.
A expressão em si não encerra qualquer prenúncio de mal futuro, mas apenas, e tendo-a como relevante, de mal atual, presente e não futuro.
Quem pega numa sachola e diz para a assistente aquelas expressões, não será para futuramente causar mal, mas quiçá no imediato, o que também não aconteceu.
O mesmo se passando com o querer atirar a caixa do correio contra a assistente.
Não havendo ameaça do arguido à ofendida com a prática de crime (anúncio de mal futuro), não se entende como pode ser adequada a provocar medo, inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação, para se referir como facto provado que a assistente “sentiu-se ameaçada, tendo andado atemorizada, temendo pela vida do seu filho”.
Como é que sendo ameaçada uma pessoa esta pode temer pelo que possa acontecer a outra? A assistente anda atemorizada temendo pela vida do filho –ponto 7 dos provados.
De acordo com o preceituado no artigo 124, nº1 do Código de Processo Penal, “constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”.
Neste artigo, onde se define qual o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da responsabilidade civil conexa.
Por sua vez, o artigo 127º do Código de Processo Penal prescreve:
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
É o chamado princípio da livre apreciação da prova, cujo tem duas vertentes. Na sua vertente negativa, significa que, na apreciação (valoração, graduação) da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente preestabelecidos. Tem o poder-dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador. Do lado positivo, significa que os factos são dados como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material probatório validamente constante do processo, quer ele provenha da acusação, quer da defesa, quer da iniciativa do próprio" (Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Fevereiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXV, Tomo I, Pág. 51).
Segundo os ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão” (Direito Processual Penal, vol. II, pág. 111). Também, o S.T.J., em acórdão datado de 13 de Fevereiro de 1992, referiu que “a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Col. Jur. ano XVII, tomo I, pág. 36). Por sua vez, o Tribunal Constitucional, acórdão n.º 464/97/T se pronunciou por não julgar inconstitucional a norma do artigo 127 do Código de Processo Penal. Neste acórdão, após ter-se chamado à colação os ensinamentos dos Profs. Castanheiro Neves e Figueiredo Dias escreve-se que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso «mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está «apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça” (D.R. n.º 9/98 de 12 de Janeiro de 1998, II Série, pág. 499).
Nos termos do prescrito no artigo 374, nº 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal deve na sentença indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Conforme refere Marques da Silva o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
Do exposto se pode concluir:
Inexistindo o facto objetivo, ameaça a outrem com a prática de um crime (o ponto 1 dos factos provados –corrigido - não encerra em si essa ameaça), segundo as regras da experiência, não se pode concluir que a ofendida “se sentiu ameaçada e tem andado atemorizada, temendo pela vida do seu filho”, (ponto 7 dos provados).
Assim, este facto tem, igualmente, de ser julgado não provado.
***
Para constituir o crime de ameaça, a expressão proferida tem de prenunciar, ou como refere o Ac. da Relação do Porto, de 12-12-1984, in Col. Jurisp. Tomo II, pág. 291 anunciar um grave e injusto dano, necessariamente futuro. E, anunciar a prática de um mal, no futuro, é que é ameaçar.
Ameaça é o anúncio, pelo agente, de um grave e injusto dano, necessariamente futuro.
Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 342/343, “são três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente...o mal tem de ser futuro. Isto significa que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal”.
Para ser uma verdadeira ameaça tem de estar na primeira pessoa do singular e em discurso direto, o anúncio do mal.
A ver-se a ameaça apenas no facto de o arguido ter aparecido munido de uma sachola, e considerando que a sachola tinha a finalidade exclusiva de intimidar, a haver mal era para ser praticado, cometido de imediato. E daí (aparecer na altura munido com a sachola) não continha anúncio de mal futuro, não preenchia os elementos do tipo de crime.
Não houve nenhum anúncio de mal, para a ofendida tomar em conta.
E a haver receio do uso da sachola, era receio de execução do mal de forma iminente (na hora), e não futura.
Esta interpretação vai de encontro à orientação da doutrina citada na sentença, Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, Tomo I, página 343: «O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma: "hei-de-­te matar"; já se tratará de violência, quando alguém afirma: "vou-te matar já”».
Face aos factos provados, a conduta objetiva do arguido, não é anúncio de mal futuro, pelo que não integra o tipo do crime de ameaça.
Assim, entendemos, que o arguido tem de ser absolvido, por os factos não preencherem os elementos do tipo de crime.
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Parte Cível:
O arguido demandado foi condenado no pagamento parcial da indemnização peticionada, a qual era diretamente decorrente da prática do crime imputado ao arguido.
Como também se salienta na sentença, o arguido está obrigado a indemnizar o demandante pelos danos resultantes do facto ilícito e culposo que haja praticado.
Constituem pressupostos da responsabilidade do lesante, a existência de um facto voluntário e ilícito, subjetivamente imputável e responsável pela produção de danos como sua consequência direta e adequada.
Tendo em conta estes princípios, arts. 129 do CP e 483 do Código Civil, inexistem danos ocasionados pela prática de um crime, pelo que não impende sobre o demandado qualquer obrigação de ressarcir.
Inexiste qualquer conduta do arguido, que fosse direta e adequada para a produção de danos no ofendido.
Assim, também nesta parte tem o arguido demandado que ser absolvido.
Decisão:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra conceder provimento ao recurso trazido pelo arguido/recorrente A... e, em consequência, absolvê-lo do crime de ameaças que lhe era imputado.
Consequência direta daquela absolvição, é a absolvição da indemnização cível peticionada.
Sem custas a parte crime.
Custas da parte cível a cargo da demandante.

Jorge Dias (Relator)
Brízida Martins