Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3841/07.4TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
EMPRESA
REPRESENTADO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 23º, Nº 1 DO D. L. Nº 178/86, DE 3/07; 277º E 334º DO C. CIVIL
Sumário: I – Quando uma organização em cujo nome actue alguém a ela pertencente, em termos tais que, de acordo com os dados sócio-culturais vigentes e tendo em consideração a sua inserção orgânica nessa organização, pareça estar dotada poderes de representação, sem os ter, estamos perante uma representação aparente.

II – Nestes casos deve ser aplicado por analogia o regime do art.º 23º, nº 1 do Decreto-Lei 178/86, de 3 de Julho, porquanto a sua aplicação radicará numa solução prudente e equilibrada entre os interesses do terceiro e do representado.

III – Mas se o terceiro sabia que o funcionário em causa não dispunha de poderes para obrigar a sua entidade patronal, sendo imprescindível a intervenção de um dos administradores desta, não está presente um elemento essencial ao reconhecimento de efeitos a uma representação aparente.

IV – A mera colaboração de um terceiro na elaboração de uma candidatura a um concurso público duma empreitada, só por si, não integra uma fase preliminar de qualquer processo contratual de subempreitada, uma vez que essa colaboração, sem mais, consubstancia antes a prestação de um serviço e não qualquer diligência pré-ordenada à outorga de um futuro contrato.

V – Tem vindo a defender-se a existência de uma responsabilidade pela confiança, inserida num espaço intermédio entre a responsabilidade contratual e a aquiliana, distinta da responsabilidade pré-contratual.

VI – Esta responsabilidade tem apenas como requisito a existência duma situação de criação-defraudação de confiança, sem que seja necessária a verificação de qualquer violação de deveres de actuar, sendo a expressão duma justiça comutativa.

VII – Esta responsabilidade encontra amparo de iure constituto na relevância da figura do venire contra factum próprio, enquanto modalidade da figura do abuso do direito – artigo 334º do C. Civil -, o qual não é aqui encarado enquanto violação de deveres de comportamento, mas sim enquanto mera contradição de condutas lícitas, defraudatória de expectativas criadas

VIII – Verifica-se esta responsabilidade quando um funcionário de uma sociedade, sem poderes para a representar, nem operando uma representação aparente, garante a terceiro que a sua entidade patronal outorgará com ele determinado contrato, caso este adopte determinado comportamento, gerando uma legítima expectativa nesse terceiro que tal contrato se irá realizar, desde que ele corresponda ao que lhe é solicitado, não se tendo concretizado tal promessa.

IX – Mas os danos a ressarcir só podem ser os derivados da contraparte ter confiado na celebração do contrato (v.g. despesas realizadas antecipadamente), e nunca os que resultaram de não se ter efectivado esse contrato (lucro cessante).

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora instaurou a presente acção declarativa de condenação, com pro­cesso comum, sob a forma ordinária, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 128.184,42 €, acrescida de juros de mora desde a data de citação até integral paga­mento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que a Ré lhe pediu a elaboração de uma proposta para concorrer a um concurso público, tendo-lhe garantido que lhe adjudicaria a respectiva subempreitada caso ganhasse esse concurso, acabando, porém, por adjudicá-la a terceiros, assim frustrando a sua expectativas de lucro.

A Ré contestou, excepcionando a prescrição do invocado direito da Autora, e impugnando os fundamentos da acção, alegou que nunca se comprometeu a adjudicar à Autora a referida obra, nem a adquirir-lhe qualquer material ou equipamento ou a entregar-lhe a realização de trabalhos ou serviços, caso a empreitada em causa lhe fosse adjudicada, pelo que a Autora não podia ter qualquer expectativa válida ou legítima de que lhe adjudicaria a mencionada subempreitada; ademais, a Autora nunca poderia executar os trabalhos relativos a tal subempreitada uma vez que não era titular do certificado com a categoria necessária para tanto.
Concluiu, pedindo a sua absolvição do pedido e a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização.

A Autora replicou, pronunciando-se sobre a matéria de excepção e sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, concluindo pela improcedência dos mesmos.

Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a acção impro­cedente, por não provada, e consequentemente absolver a ré do pedido.
Mais se julga improcedente o pedido de condenação da autora como liti­gante de má fé.

Insatisfeita com a decisão a Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão, tendo, no entanto, requerido a ampliação subsidiária do objecto do recurso, nos termos do art.º 684-A, do C. P. Civil.
Formulou as seguintes conclusões:
...
1. Do objecto do recurso interposto pela Autora
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da Recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:
a) As respostas dadas aos quesitos 14º a 24º formulados na base instrutória devem ser alteradas?
b) A Ré deve ser responsabilizada pelos actos praticados pelo Eng.º M… nos contactos havidos com a Autora?

2. Dos factos

São os seguintes os factos provados:

O direito aplicável
A Autora intentou a presente acção, visando que a Ré a compense do lucro que deixou de auferir por esta não ter celebrado consigo um contrato de subempreitada.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que a Ré lhe pediu a elaboração de uma proposta para concorrer a um concurso público, tendo-lhe garantido que lhe adjudicaria a respectiva subempreitada, caso ganhasse esse concurso, acabando, porém, por adjudicá-la a terceiros, assim frustrando a sua expectativa de lucro.
A sentença recorrida não acolheu esta pretensão, por ter entendido que não se apurou que a Ré se tenha vinculado negocialmente à celebração do referido contrato com a Autora, nem que tenha adoptado qualquer comportamento que a fizesse incorrer em responsabilidade pré-contratual.
A Autora recorre com o fundamento que o comportamento do funcionário da Ré que manteve contactos com a Autora, relativamente à obra em causa, o Eng. M…, determina a responsabilidade da Ré pela indemnização peticionada.
Não tendo procedido a impugnação da decisão da matéria de facto, cumpre apurar, face aos factos já apurados na 1.ª instância, se a Ré se constituiu na obrigação de indemnizar a Autora dos lucros que esta deixou de auferir, por não lhe ter sido adjudi­cada a realização da obra em causa, em regime de subempreitada.
Provou-se a seguinte factualidade aqui exposta em síntese:
- a Autora foi contactada pela Ré para elaborar uma proposta para instalação de equipamentos numa obra em concurso público a que a primeira pretendia concorrer;
- a Autora apresentou essa proposta e colaborou com a Ré na elaboração da candidatura desta ao referido concurso público, sendo certo que essa candidatura continha, em grande parte, a proposta da Autora, designadamente os estudos, as carac­terísticas dos materiais e os preços apresentados por si elaborados, bem como catálogos, folhas de características e esclarecimentos;
- a Autora ganhou o concurso tendo-lhe sido adjudicada a obra em causa;
- posteriormente decorreram contactos entre a Autora e a Ré no sentido de ser adjudicada a esta a instalação de equipamentos na referida obra, em regime de subempreitada;
- após a Ré ter comunicado à Autora que, para lhe ser adjudicada essa subempreitada, ela teria que rever os preços apresentados e a Autora ter apresentado uma proposta com preços reduzidos, mas com alteração das marcas de alguns equipa­mentos, a Ré celebrou com terceiro o referido contrato de subempreitada;
- durante a fase de apresentação dos elementos necessários à apresentação da candidatura da Ré ao concurso público, nos contactos com a Autora interveio o funcio­nário daquela, Eng.º M… que se apresentou como director comercial da Ré e como transmitindo o compromisso da Administração desta;
- fazia parte das funções que o Eng. M… desempenhava para a Ré estudar os processos de concurso, estudar os diversos preços, apresentá-los à Admi­nistração, elaborar propostas de concurso e apresentá-las à Administração, e acompa­nhar os concursos e comunicar o seu desenvolvimento à Administração, para que esta tomasse as deliberações necessárias;
- a Autora só acedeu ao pedido da Ré para colaborar na elaboração da candi­datura desta ao referido concurso, porque o Eng.º M… garantiu pessoal­mente ao legal representante da Autora que a subempreitada seria adjudicada a esta, caso a obra sujeita a concurso de empreitada fosse adjudicada à Ré;
- o Eng.º M… fez crer à Autora que a subempreitada da obra seria adjudicada a esta, caso a Autora ganhasse o concurso, pelo que esta ficou com a expectativa de que, verificada essa condição, seria ela a realizar a obra e que, com essa  realização, obteria um lucro no montante global de 190.202,43 €;
- no entanto, a Autora sabia que o Eng. M… não dispunha de poderes para obrigar a Ré e que para garantir que a subempreitada lhe seria adjudicada era imprescindível a intervenção de um dos administradores da Ré;
- no quadriénio de 2004 a 2007, o Conselho de Administração da Ré era composto por três administradores: ...
Ora, perante este quadro fáctico, em primeiro lugar, logo se constata que, apesar do Eng.º M… ter garantido à Ré que a subempreitada em causa lhe seria adjudicada, caso a Autora ganhasse o concurso público, tal declaração não vincu­lou a Ré ao cumprimento dessa promessa, uma vez que aquele funcionário não dispu­nha de poderes de representação da Ré.
É certo que, fazendo parte das funções que o Eng. M… desem­penhava para a Ré estudar os processos de concurso, estudar os diversos preços, apre­sentá-los à Administração, elaborar propostas de concurso e apresentá-las à Adminis­tração, e acompanhar os concursos e comunicar o seu desenvolvimento à Administra­ção, para que esta tomasse as deliberações necessárias, e tendo esse Eng.º M… se apresentado perante a Autora como director comercial da Ré e como transmitindo o compromisso da Administração desta, era possível olhá-lo como um representante aparente da Ré.
O reconhecimento de efeitos a uma representação aparente, que apenas se encontra consagrado na lei na regulamentação do contrato de agência – art.º 23.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de Julho –, tem sido generalizado pela doutrina [1] e pela jurisprudência [2] a outras situações, nomeadamente quando uma pessoa de boa-fé, contrate com uma organização em cujo nome actue alguém a ela pertencente, em termos tais que, de acordo com os dados sócio-culturais vigentes e tendo em considera­ção a sua inserção orgânica nessa organização, seja aparente a existência de poderes de representação.
Tem-se entendido que no caso da procuração aparente, a existência de uma previsão legal a consagrar numa situação particular, permite, através do princípio da igualdade, justificar-se de modo particularmente nítido a aceitação de uma lacuna nas situações que por força desse princípio devam ser resolvidas de modo similar [3], esten­dendo o âmbito de aplicação daquele art.º 23º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de Julho, a todo o fenómeno da representação voluntária, porquanto a sua aplicação radicará numa solução prudente e equilibrada entre os interesses do terceiro e do representado, conforme resulta do próprio preâmbulo do referido diploma
Menezes Cordeiro [4], defende que no caso da situação se enquadrar numa orga­nização permanente, a confiança que gera o representante é imediata, não se exigindo que o terceiro exija àquele a justificação dos seus poderes, competindo ao empresário, manter a disciplina na empresa, assegurando-se da legitimidade dos seus colaboradores. Quando não: sibi imputet.  
Resulta daquela norma a exigência de verificação de requisitos para a eficá­cia do negócio perante o representado, nomeadamente a ocorrência de uma confiança justificada e a contribuição para a mesma do representado, de que, com razoabilidade, decorra a existência de poderes de representação.
Uma extensão da protecção de terceiros a partir do art.º 23º, n.º 1 do diploma referido deve considerar os dois requisitos de que essa disposição faz depen­der aquela protecção. Por um lado requer-se a presença de razões ponderosas que justifiquem a confiança do terceiro Por outro, exige-se “que o principal tenha igual­mente contribuído para fundar a confiança de terceiro”. Tal significa que não é o risco em si inerente à relação de agência, com a respectiva diferenciação de funções e o perigo indistinto de que o agente actue como falsus procurator, que chega para justifi­car a tutela de terceiros através da procuração aparente. Afigura-se necessária uma razão suplementar e qualificada em relação a esse risco. Não cremos que seja necessá­rio admitir que a “contribuição” do principal na criação da confiança do terceiro requeira uma conduta apertis verbis censurável; é comportável pela letra do preceito que apenas lhe seja imputável a criação de uma situação de risco acrescido de surgi­rem situações enganosas para terceiros.[5]
Contudo, neste caso, falta um elemento essencial ao reconhecimento deste tipo de representação – a confiança do contraente de boa-fé na real existência dos poderes de representação que apenas aparentam.
Na verdade, provou-se que, apesar de existir essa aparência, para a qual contribuiu o modo de organização e actuação adoptado pela Ré, a Autora sabia que o Eng. M… não dispunha de poderes para obrigar aquela e que, para garantir que a subempreitada lhe seria adjudicada, era imprescindível a intervenção de um dos administradores da Ré.
Não está, pois, presente um elemento essencial ao reconhecimento de efeitos a uma representação aparente da Ré, pelo seu funcionário, Eng.º M…, pelo que não é possível considerar que a Ré ficou obrigada a contratar com a Autora pelo facto daquele funcionário lhe ter garantido que esse contrato se realizaria se a Ré ganhasse o concurso público.
Resta, pois, apurar se, apesar da Ré não se ter vinculado a contratar com a Autora, a não adjudicação da obra àquela, após a sua participação no processo de elaboração da candidatura ao concurso público e as posteriores negociações que ocorre­ram entre as duas partes, constitui a Ré na obrigação de indemnizar a Autora do lucro que esta deixou de obter com a realização da obra.
Um dos preceitos em que a Ré fundamenta a sua pretensão indemnizatória é o artigo 277º, nº 1 do C. Civil, o qual tem sido apontado pela doutrina e pela jurispru­dência como integrando a previsão de uma responsabilidade pela ruptura das negocia­ções preparatórias de um contrato.
Dispõe o nº 1 do art.º 277º do C. Civil:
Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
A obrigação, decorrente desta norma, de actuação de boa-fé tanto nos preli­minares como na formação do contrato, permite a conclusão que a responsabilidade pré-contratual abrange a fase de negociações que decorre desde o início dos contactos e das negociações até à obtenção de acordo sobre todas as condições e termos tidos como relevantes, incluindo a aceitação da proposta contratual e a fase da perfeição e execução do acordo conseguido que inclui a formalização do contrato.
Assim, o simples facto das partes se relacionarem com vista à realização de determinado negócio é suficiente para assumirem certos deveres, ficando reciproca­mente obrigadas a comportar-se nas negociações com boa-fé e lealdade, traduzindo-se, nesta fase, a ilicitude na violação das regras da boa-fé subjacentes aos deveres de protecção, de informação verdadeira e de lealdade.
Tem-se defendido que a relação estabelecida com os contactos e negociações entre as partes e os deveres de se comportarem com lealdade e boa-fé implicam que, se no decurso das negociações uma das partes faz surgir na outra uma confiança razoável de que o contrato que se negoceia será concluído e, posteriormente, interrompe as negociações ou recusa a conclusão do contrato sem justo motivo, fica obrigada a reparar os danos sofridos pela outra parte com a dita ruptura.
Por conseguinte, desde que as negociações, pelo modo como foram conduzi­das, hajam induzido numa das partes a confiança e expectativa razoável da sua conclu­são e celebração do contrato, a ruptura das negociações e a recusa em concluir o con­trato negociado, sem justificação plausível, faz incorrer o respectivo autor em responsa­bilidade civil, com a consequente obrigação de indemnizar os danos causados à contra­parte.
No caso em análise a mera colaboração da Ré na elaboração da candidatura da Autora ao concurso público, só por si, não integra sequer uma fase preliminar de qualquer processo contratual [6], uma vez que essa colaboração, sem mais, consubstancia antes a prestação de um serviço e não qualquer diligência pré-ordenada à outorga de um futuro contrato.
Quanto às negociações que ocorreram posteriormente à adjudicação à Ré da obra em concurso, não se provou que nessa altura tenha existido qualquer comporta­mento da Ré adequado a criar na Autora uma confiança fundada de que o negócio se iria realizar.
É certo que se provou que a Autora só acedeu ao pedido da Ré para colabo­rar na elaboração da candidatura desta ao referido concurso, porque o Eng.º M… garantiu pessoalmente ao legal representante da Autora que a subempreitada lhe seria adjudicada, caso a obra sujeita a concurso de empreitada fosse adjudicada à Ré, o que criou a expectativa à Autora de que, verificada essa condição, seria ela a realizar a obra e que, com essa realização, obteria um lucro no montante global de € 190.202,43.
Assim, verifica-se que um funcionário da Ré, que desempenhava um papel de relevo na participação desta na referida candidatura ao concurso público e nos contactos com a Autora, pelo seu comportamento, fez criar na Autora a expectativa da celebração de um contrato futuro, sem que isso tenha ocorrido no âmbito de quaisquer negociações para a outorga desse contrato.
Não sendo, pois, aqui convocável o instituto da responsabilidade pré-con­tratual consagrado no artigo 277º, nº 1 do C. Civil, pergunta-se se a criação daquela expectativa por um funcionário da Ré, determina a responsabilidade desta por danos, quando essa expectativa não se vem a concretizar.
Tem vindo a defender-se a existência de uma responsabilidade pela con­fiança, inserida num espaço intermédio entre a responsabilidade contratual e a aquiliana, e também distinta da responsabilidade pré-contratual [7].
Esta responsabilidade tem apenas como requisito a existência duma situação de criação-defraudação de confiança, sem que seja necessária a verificação de qualquer violação de deveres de actuar, sendo a expressão duma justiça comutativa.
Como diz Carneiro da Frada, o seu reconhecimento radica intimamente na indeclinável exigência do Direito segundo a qual, aquele que origina a confiança de outrem e a frustra deve responder, ao menos em certas circunstâncias, pelos danos causados [8].
Uma dessas circunstâncias será seguramente a situação, como ocorre no pre­sente caso, em que um funcionário de uma sociedade, sem poderes para a representar – nem operando uma representação aparente – garante a terceiro que a sua entidade patronal outorgará com ele determinado contrato, caso este adopte determinado com­portamento, gerando uma legítima expectativa nesse terceiro que tal contrato se irá realizar, desde que ele corresponda ao que lhe é solicitado.
Situando-se esta responsabilidade num espaço heterogéneo, em que se justi­fica a aplicação da responsabilidade pelo risco daquele que encarrega outrem de qual­quer comissão pelos danos que este causar no exercício da função que lhe foi confiada – art.º 500º, nº 1 do C. Civil –, recai sobre a Ré a responsabilidade de indemnizar a Autora, relativamente aos prejuízos que esta sofreu por ter confiado que o contrato de subempreitada em causa lhe seria adjudicado, confiança que lhe foi incutida pelo comportamento do funcionário da Ré, Eng.º M…, revelando-se essa expectativa defraudada.
Se a falta de poderes de representação deste funcionário e a impossibilidade do reconhecimento duma procuração aparente não permitiu considerar que a Ré se tivesse vinculado ao cumprimento duma obrigação de contratar, já o comportamento do mesmo no exercício de funções de que a Ré o incumbiu não pode deixar de responsabi­lizá-la pelos prejuízos que cause a terceiros.
Esta responsabilidade encontra amparo de iure constituto na relevância da figura do venire contra factum próprio, enquanto modalidade da figura do abuso do direito – art.º 334º do C. Civil –, o qual não é aqui encarado enquanto violação de deveres de comportamento, mas sim enquanto mera contradição de condutas lícitas, defraudatória de expectativas criadas [9].
Não vislumbramos nenhum obstáculo decisivo a que a tutela da confiança não possa conduzir a uma responsabilidade objectiva, independentemente de culpa e de qualquer juízo de desconformidade da conduta com a ordem jurídica. Do carácter em si não contrário com o que a ordem jurídica reclama de um comportamento que frustra a confiança alheia não se extrai de modo algum que essa confiança não mereça ser tutelada. Tal tutela justifica-se numa ideia de protecção adequada dos sujeitos de acordo com um princípio de responsabilidade pelas expectativas que a actuação individual engendra no meio social.
Para nós, pois, o que é mister assegurar é que ninguém fique injustamente prejudicado por uma alteração de conduta quando acreditou na constância ou coerên­cia de outrem. Concebemos, portanto a responsabilidade por venire enquanto ordem de compensação (não retributiva) do desequilíbrio provocado por uma conduta em si não ilícita (e, logo, lícita) [10].
A Autora pede que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização cor­respondente ao lucro que deixou de obter ao não celebrar o contrato em que confiou.
Contudo, não se pressupondo neste tipo de responsabilidade a existência de uma vinculação que corresponda à confiança suscitada na conclusão do contrato, não faz sentido atribuir ao deceptus uma indemnização correspondente aos danos consis­tentes na não realização dessa expectativa. Isso seria manifestamente incompatível com a inexistência de um dever de contratar. Os danos a ressarcir só podem ser, pois, os derivados da contraparte ter confiado na celebração do contrato (v.g. despesas realiza­das antecipadamente), e nunca os que resultaram de não se ter efectivado esse contrato [11].
Por esta razão não merece acolhimento o pedido indemnizatório deduzido pela Autora, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente e confirmar-se a decisão recorrida, embora com uma fundamentação diferente, ficando prejudicada a apreciação da ampliação subsidiária do recurso efectuada pela Ré.

Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida, com uma diferente fundamentação.
Custas do recurso pela Recorrente. 

Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Regina Rosa


[1] Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, pág. 104 e seg., ed. 2005, Almedina, Pedro Albuquerque, in Representação Voluntária em Direito Civil, pág. 1054, ed. 2004, Almedina, Paulo Mota Pinto, in Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros, no BFD, n.º 69 (1993), pág. 587 e seg., e Carneiro da Frada, in Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 44, ed. 2004, Almedina.

[2] Ac. do S. T. J. de 25.3.2009, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, 
  Ac. do T. R. L., de 25.11.2011, relatado por Manuela Gomes,
  Ac. do T. R. L., de 29.4.2003, relatado por Pimentel Marcos, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[3] Pedro de Albuquerque, ob. cit., pág. 1056-1057.

[4] Ob. cit. pág. 106.

[5] Carneiro da Frada, na ob. cit, pág. 59.
[6] Neste sentido, a crítica de Sousa Ribeiro, em Responsabilidade Pré-Contratual. Breves anotações sobre a natureza e o regime, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. II, pág. 749, nota 10, a Acórdão do S.T.J. de 27 de Março de 2001, acessível em www.dgsi.pt, que, num caso semelhante, o situou no âmbito da responsabilidade pré-contratual.
[7] Carneiro da Frada, in Teoria da confiança e responsabilidade civil, ed. 2004, Almedina.

[8] Na ob. cit., pág. 901.
[9] Sobre esta perspectiva do venire enquanto fundamento da responsabilidade pela confiança, Carneiro da Frada, ob. cit., pág. 402 e seg.

[10] Carneiro da Frada, na ob. cit., pág. 421-422.

[11] Carneiro da Frada, na ob cit., pág. 519-520.