Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
469/12.0PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DESISTÊNCIA DA QUEIXA
HERDEIRA DO OFENDIDO QUEIXOSO
FURTO QUALIFICADO
ESPAÇO FECHADO
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 06/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JC CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 113.º, 116.º E 204.º, N.º 2, AL. E), DO CP
Sumário: I - Quando o ofendido, “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, exerceu atempada e expressamente o seu direito de queixa, só o próprio da mesma pode desistir.

II - O legislador não quis colocar em qualquer outra pessoa que não no próprio ofendido, a possibilidade de desistir da queixa por si apresentada. Mesmo com a sua morte ocorrida depois de a queixa ser apresentada.

III - [Para ser qualificativa do crime de furto], o lugar ou “espaço fechado” deve ter uma conexão ou com a habitação, ou com o estabelecimento, sendo contíguos ou como que um prolongamento daqueles.

IV - Um concreto quintal/terreno, que nenhuma relação tem com a habitação da ofendida nem com qualquer estabelecimento comercial ou industrial seu, não justifica a qualificativa legal assinalada.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos autos de processo comum supra identificados, em que é arguido A... , solteiro, desempregado, natural de Coimbra, nascido a 20 de Março de 1967, filho de (...) e de (...) , residente na Rua (...) , Cantanhede, sendo-lhe imputado pelo Ministério Público:

            - um crime de violência depois da subtração p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210.º, nº1 e 211º do C. Penal e

            - um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º do C. Penal

           

          Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido:

          I. Condenar o arguido A... pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, pp. nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e) e 22.º do Código Penal, do Código Penal, em 20 (vinte) meses de prisão;

          II. Condenar o mesmo arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, pp. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, em 18 (dezoito) meses de prisão;

          III. Condenar o arguido A... , em cúmulo das penas identificadas em I. e II., na pena única de 2 anos (dois) e 4 (quatro) meses de prisão efetiva.

          IV. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por B... , condenando A... a pagar-lhe a quantia global de € 3.000,00 (três mil euros).

          V. Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo CHUC, EPE, condenando A... a pagar-lhe a quantia de € 569,50 (quinhentos e sessenta e nove euros e cinquenta cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de legal, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
      
       2. Desta sentença recorre o arguido A... , apresentando as seguintes conclusões:

A. Com o presente recurso, a versar sobre reapreciação da matéria de facto e prova gravada bem como matéria de Direito, na vertente penal e cível, não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, traduzido no direito de recorrer [art. 61º n.º 1 i) CPP e n.º 1 do art. 32º da CRP];

B. Entende o recorrente que deverá ser absolvido do crime de ofensa à integridade física simples, atenta a sua natureza semi-pública e em razão da declaração de não desejo de prossecução criminal contra o arguido, manifestado pela filha do ofendido, B... , e na qualidade de única herdeira do mesmo após o seu falecimento, como decorre de fls. 132 verso e 133 dos autos, em auto de inquirição datado de 21 de Janeiro de 2014, constante de fls. 136 dos autos, e cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido;

C. Tem-se por incorretamente julgado o ponto de facto n.º 7 por, ser desde logo contrário à própria ordem das coisas que um quintal com um portão/porta possa ser considerado local fechado para efeitos de tal qualificativa, importando o teor das declarações prestadas pela testemunha/ofendida C... pela segunda vez, ou seja, com início pelas 15:21:12, segmento a que pertencerão todas as passagens infra [tal testemunha C... foi peremptória ao afirmar que o local tinha uma rede, assim uma coisa artesanal com uma porta de madeira e um cadeado (passagem 00:55 a 01:05), referindo que apenas uma porta de madeira e era só na porta que tinha rede pois o demais tinha silvas, árvores e uma vala (passagem 02:48 a 03:07) e que o local não estava murado, não tinha muros em cimento e se alguém quisesse entrar, entrava (passagem 03.08 a 03:16)] pois, salvo o devido respeito, erra o Tribunal ao afirmar no ponto 7 da matéria de facto provada que o “o local se mostrava vedado”;

D. Ademais, tal corresponde a um conceito de direito e sempre se impunha ao Tribunal dar como provados os factos e não conclusões jurídicas pelo que o máximo até onde poderia ir era referir que “aquele local se mostrava delimitado por uma porta de madeira, com cadeado bem como por rede artesanal em tal porta e sendo o demais delimitado por silvas, árvores e uma vala, sem qualquer construção ou muros” pois não faz sentido que uma vala, silvas e árvores constituam vedação em sentido técnico-jurídico;

E. Julga-se poder concluir seguramente que não se mostra preenchido o tipo legal qualificador pasmado na alínea e) do art. 204º CP que alude a “espaço fechado” e um quintal, tal como é conhecido pelas regras da experiência e da vida, não poderá consubstanciar “espaço fechado” em termos de Direito sendo que aquele que está em causa nos autos não se mostrava murado em toda a volta mas apenas tinha uma porta de madeira na entrada, uma vala, silvas e árvores, não se mostrando assim preenchida tal qualificativa legal dado que “fechado” significará ausência de qualquer abertura e in casu o quintal era não só aberto pelo ar como pelos lados, à exceção da dita porta, a ponto de a ofendida expressamente ter referido que “quem lá quisesse lá entrar... entrava”;

F. Por outro lado, o Tribunal apenas deu como provado que o local se mostrava “vedado”, não que se mostrasse “fechado” e a norma legal pela qual o arguido veio a ser condenado aponta para “fechado” e não em “vedado”, pelo que, em razão de tais conceitos não serem sinónimos não há assim, também por esta via, preenchimento integral do elemento qualificador, uma vez que sob pena de violação do princípio da igualdade, não se pode comparar um quintal a uma garagem, habitação, fábrica ou estabelecimento comercial ou industrial, sendo deveras elucidativos os sumários dos doutos acórdãos citados em sede de motivação e cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido;

G. Temos assim por não preenchida tal qualificação legal restando a punição a título de crime simples, sendo que cumulativamente poderia haver a punição pelo dano provocado ao cadeado bem como pela prática do crime de introdução em lugar vedado, nos termos conjugados dos arts. 203º n.º 1, 212º n.º 1 e 191º CP mas deverá o arguido ser absolvido atenta a desistência de queixa por parte da ofendida C... , como decorre expressamente de fls. 3 da ata relativa à sessão de 10 de Novembro de 2016;

H. Olhada toda a factualidade subjacente aos presentes autos, é possível formular duas conclusões seguras: I) o arguido não ficou com nenhum bem, não tendo havido produto do alegado furto nem qualquer prejuízo para a proprietária; a ponto de II) a ofendida desistiu da queixa; e III) o bem a subtrair não tinha valor assim especialmente relevante pois era inferior a 1/5 do que se considera valor elevado bem como o teor dos factos provados 24 a 28 e retirados do seu relatório social, como seja o facto o arguido ter deixado de consumir produtos estupefacientes, ter apoio familiar e manifestar bom comportamento no estabelecimento prisional, não podem deixar de se considerar majoradas e injustas as penas parcelares e únicas impostas ao arguido;

I. Sendo um mês o limite mínimo das molduras aplicáveis concluiremos que o Tribunal não foi brando e aplicou acréscimos de 19 e 17 meses (ou seja, mais de um ano e meio de prisão num caso e quase um ano e meio no outro!) para um crime de furto qualificado tentado e outro de ofensa à integridade física simples, havendo assim manifestamente almofadas para atenuar tais penas por serem injustas e majoradas, não conformes à culpa e consequências dos factos (basta notar que igualmente o arguido foi agredido e necessitou de receber assistência hospitalar, sendo que por essa razão não foi julgado em processo sumário, como consta expressa e cristalinamente dos autos), sendo que a visão de conjunto dos factos não permitirá a aplicação de penas superiores a 9 meses de prisão pela prática de qualquer dos crimes e num eventual concurso não deverá a pena única ir além dos 14 meses;

J. Atenta a que se espera absolvição face ao crime de ofensa à integridade física simples, na sequência da declaração de não desejo de prossecução criminal por parte da única herdeira do ofendido, outra solução não restará que ser o demandado recorrente absolvido da instância cível, com revogação da douta decisão condenatória em razão da ausência de suporte factual, inutilidade superveniente e ilegitimidade;

K. Mostram-se violadas as seguintes I) normas jurídicas: nomeadamente arts. 49º e 51º CPP; arts. 1º n.os 1 e 3, 40º, 71º n. os 1 e 2 a), b), c) d) e f), 191º, 203º n.º 1, 204º n.º 2 e), 212º n.º 1º CP; art. 9º CC; art. 412º CPC; bem como os seguintes II) Princípios jurídicos: da oficialidade, da legalidade, da tipicidade, da proibição de recurso à analogia, da proteção da confiança e da segurança jurídicas, da materialidade, da igualdade, da apreciação da prova, da presunção de inocência, da culpa, da proporcionalidade e dos fins das penas bem como da legitimidade.

     Destarte, Sempre com o V/ mui douto suprimento, requer-se, mui respeitosamente a V/ Exas., a procedência do presente recurso e a consequente revogação do douto acórdão condenatório, em razão de

I) Vícios decisórios geradores de ausência de conformidade legal, atenta a prévia declaração da única herdeira do ofendido V (...) a atestar o propósito de não pretender continuar com o procedimento criminal (fls. 136 dos autos) e condenação a título de prática de crime semi-público (ofensa à integridade física simples);

II) errónea apreciação da matéria de facto (maxime ponto de facto n.º 7!), com base na peticionada reapreciação da prova gravada;

III) desacertada subsunção jurídica [maxime ao nível de convocação de norma legal qualificadora do furto tentado – art. 204º n.º 2 e) – por ausência de preenchimento e densificação do que seja “espaço fechado” e no campo interpretativo];

IV) manifesta majoração da responsabilidade penal assacada (dosimetria penal), quer ao nível das penas parcelares quer da pena única, pois numa visão global de conjunto será manifestamente disforme à justiça e culpa a aplicação ao arguido das penas em que se mostra condenado; e

V) ausência de fundamento/conformidade legal para condenação em sede cível na eventualidade de procedência da absolvição penal face ao crime de ofensa à integridade física simples.

V/ Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, na medida em que, citando Marquês de Condorcet e Dante Alighieri, uma alma nobre faz justiça, mesmo aos que a recusam, não deixando de pesar, em balanças diferentes, os pecados dos homens dissimulados e os dos sinceros! Todavia, nunca esquecendo que, acompanhando Anatole France

A justiça é a sanção das injustiças estabelecidas!

            3. O Ministério Público respondeu dizendo em síntese:

  1 – No acórdão recorrido valorou-se de forma correcta, dentro dos limites legais, todos os dados probatórios que cumpria analisar e ponderar, na sequência do que bem se decidiu em termos de fundamentação de facto e, depois, de decisão condenatória.

  2 – Na verdade, o tribunal fez uma apreciação objectiva, ponderada e motivável da prova, atentando também nas regras da experiência comum, num exame crítico condicionado pelo princípio da descoberta da verdade material.

  3 – O tribunal apreciou de forma adequada os depoimentos prestados em audiência de julgamento, mormente o da testemunha C... , deles retirando conclusões lógicas e congruentes.

  4 - A factualidade assente mostra-se correcta, mormente a constante do ponto impugnado pelo recorrente, não havendo que proceder-se a qualquer modificação.

  5 - O enquadramento jurídico-penal dos factos mostra-se adequado, designadamente considerando verificada a qualificativa prevista pela alínea e) do nº 2 do art. 204º do Código Penal.

  6 - Tendo sido expressa pelo ofendido V (...) a sua pretensão de proceder criminalmente contra o arguido “pelas agressões sofridas, das quais teve necessidade de receber tratamento hospitalar”, exercendo assim o seu direito de queixa, não poderá depois esta expressa manifestação de vontade ser contrariada pela sua filha e herdeira - que não queixosa -, desistindo de tal procedimento, sendo de referir que à não operacionalidade jurídica de tal desistência não obsta a redacção do art. 116º do CP.

  7 – As medidas das penas, parcelares e única, apresentam-se como justas e equitativamente fixadas.

  8 - Não foi violado qualquer princípio ou norma jurídica, designadamente as referidas pelo recorrente.

  9 – O acórdão impugnado deverá ser mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.           

  10 - Sendo diferente a ponderação do Tribunal de recurso quanto ao plasmado em II, A e 6 destas conclusões, importa então, antes de mais, dar cumprimento ao disposto no art. 51º, nº 3 do CPP.

4. Nesta Relação, o Ex.mº PGA emitiu parecer dizendo que corrobora a resposta do Ministério Público em primeira instância, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

5. O arguido veio responder ao parecer, terminando pedindo o que já fizera no seu recurso.

6. Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência.

                                                                      

III

            Questões a apreciar:

            1. A extinção do procedimento criminal quanto ao crime de ofensas corporais por desistência da legítima e única herdeira do ofendido.

            2. A impugnação do teor do facto 7 do acórdão na parte em que afirma que “o local se mostrava vedado” e seus reflexos na qualificação jurídica dos factos.

            3. A medida da pena.

            4. Do pedido de indemnização civil.

           

IV

            1. Na sentença recorrida dão-se como provados e não provados os seguintes factos:

           

      Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. Na tarde do dia 21 de março de 2012, pelas 15.40 horas, o arguido entrou num quintal, sito nas traseiras do restaurante “T ... ”, na Avenida (...) , desta cidade, rebentando o cadeado do portão ali existente.

2. Para o efeito conduziu até à serventia que dá acesso ao quintal o veículo de matrícula (...) HA.

3. Quando estava a arrastar a moto enxada da marca “Lombordini”, modelo mini–dano, no valor de € 1.000,00, propriedade de C... , e já se encontrava na referida serventia, junto ao veículo por si conduzido, foi surpreendido pelo empregado desta de nome V (...) .

4. O referido V (...) ao surpreender o arguido tentou impedi-lo de praticar tal facto, dizendo-lhe que ia chamar a polícia.

5. Ao ouvir isto, o arguido, com o objetivo de eliminar a previsível oposição do V (...) e encetar a fuga para a rua, exibiu-lhe uma navalha, golpeando-o no braço esquerdo, desferindo-lhe ainda uma dentada no braço direito.

6. Em consequência desta conduta, V (...) sofreu as lesões melhor descritas a fls. 49 a 51, 98 a 99, 173 a 174, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e que lhe provocaram como consequência direta e necessária 114 dias de doença sem incapacidade para o trabalho.

7. Ao proceder da forma descrita o arguido sabia que não podia entrar naquele local que se encontrava vedado, que não podia rebentar o cadeado ali existente e que o objeto acima descrito de que se tentou apoderar não lhe pertencia e que atuava contra a vontade do respetivo dono e, quando foi surpreendido, quis pôr o V (...) ) na impossibilidade de resistir e de encetar a fuga.

8. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível.

       Mais se provou:

9. O arguido é, juntamente com uma irmã gémea, o mais novo de quatro irmãos, provenientes de uma família inserida em meio rural e sem grandes índices de problemáticas de marginalidade ou exclusão social, cuja dinâmica relacional se caracterizava pela coesão e capacidade de interajuda entre os seus elementos.

10. Os pais, já falecidos, eram ambos trabalhadores rurais em Lemede, Cantanhede, localidade onde sempre viveram.

11. Frequentou a escola na idade própria, tendo concluído o 6º ano de escolaridade aos 13 anos e iniciado, de seguida, o seu percurso laboral numa empresa de serralharia – “D (...) , SA – que, entretanto, faliu.

12. Aqui trabalhou até aos 18 anos, altura em que se deslocou para a Suíça, onde trabalhou num restaurante chinês, inicialmente a servir às mesas e, mais tarde, como cozinheiro.

13. Regressou a Portugal, com 22 anos, para cumprir o serviço militar obrigatório.

14. Após 18 meses de tropa, reintegrou o agregado de origem e foi trabalhar para junto de um cunhado, na empresa “C (...) ”, na área da marcenaria.

15. Entretanto voltou a sair do país, para Inglaterra, onde permaneceu 18 meses, a trabalhar em fábricas, por conta de uma agência de recrutamento de trabalhadores.

16. Regressado, novamente, ao agregado de origem, passa a apresentar um percurso pessoal e laboral marcado pela instabilidade, com períodos de trabalho quer na “D (...) ” quer nas “C (...) ”, intercalados com períodos de inatividade laboral.

17. Esta instabilidade, entretanto revelada, prender-se-ia com a problemática aditiva, iniciada após o cumprimento do serviço militar e agravada após a morte dos pais.

18. Neste contexto, fez duas tentativas de desintoxicação, uma numa clínica do norte do país, ainda os pais eram vivos e, mais tarde, outra no Sobral Cid, com posterior acompanhamento por parte do CAT de Pombal, onde a irmã tinha um médico conhecido que o apoiou no processo de desintoxicação/recuperação.

19. Nesta altura estava integrado no agregado da irmã mais velha e, novamente, a trabalhar junto do cunhado.

20. À data da prisão encontrava-se desempregado há cerca de ano e meio, vivendo de expedientes, na companhia de amigos, pernoitando na casa de uns e outros, sem paradeiro fixo.

21. Informações recolhidas no seu local de residência, aquando de uma solicitação no âmbito do Processo nº 1492/09.8PCCBR, de 01/10/2009, davam conta que A... havia desaparecido, do local de residência, no verão de 2008.

22. O arguido trabalhou para a empresa “D (...) ” desde finais de 2007 a Setembro de 2008, registando um comportamento instável e marcado pelo absentismo laboral, justificado por necessidades de tratamento à problemática aditiva.

23. Em 10 de Maio de 2013, foi preso no E.P. de Coimbra.

24. No meio social de residência, onde a família sempre viveu e onde pretende voltar a reinserir-se, junto da irmã e do cunhado, é um indivíduo conotado com a problemática do consumo de drogas, mas não se perspetivam dificuldades de integração.

25. Antes da prisão, na sequência de uma tentativa de assalto, refere ter sido espancado, situação que o conduziu a um mês de internamento no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.

26. Neste período deixou de consumir substâncias psicoativas, não registando consumos desde então.

27. No E.P., onde se encontra há cerca de 3 anos, a sua conduta institucional tem-se revelado adequada, estando a frequentar o ensino, nível B3, com assiduidade, empenho e aproveitamento.

28. No exterior, conta com o apoio da sua irmã E (...) e do cunhado, que o visitam com regularidade.

29.  Por sentença datada de 31.05.1999, já transitada em julgado, foi o arguido condenado na pena de 70 dia de multa, à taxa diária de 900$00, pela prática, em 30.05.1999, de um crime de condução de veículo motorizado em estado de embriaguez (Processo Sumário n.º 76/99 do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede).

30. Por sentença datada de 16.06.2003, transitada em julgado em 24.09.2003, foi o arguido condenado na pena de multa de € 450,00, pela prática, em 11.04.2001, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 215/02.7GAMMV).

31. Por sentença datada de 03.10.2006, transitada em julgado em 18.10.2006, foi o arguido condenado na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 2 anos pela prática, em 2.2.2005, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 81/05.0GAMMV).

32. Por sentença datada de 29.06.2009, transitada em julgado em 29.07.2009, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano de prisão, suspensa por 1 ano pela prática em 29.05.2009, de um crime pp. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2 do Código Penal em concurso real com um crime pp. pelo artigo 347.º do Código Penal (Processo Sumário n.º 1492/09.8PCCBR).

33. Por Acórdão, datado de 22.02.2012, transitado em julgado em 07.05.2012, foi o arguido condenado na pena de 18 meses de prisão, suspensa por 18 meses pela prática, em 04.03.2010, de um crime pp. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Coletivo n.º 423/10.7PCCBR).

34. Por Acórdão datado de 21.12.2010, transitado em julgado em 30.09.2011, foi o arguido condenado na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, pela prática, em 8.10.2009, de um crime pp. pelo artigo 221.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, em concurso real com um crime pp. pelo artigo 204.º do Código Penal (Processo Comum Coletivo n.º 494/09.9GBCNT).

35. Por Acórdão datado de 22.02.2012, transitado em julgado em 07.05.2012, foi o arguido condenado na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática, em 04.03.2010, de um crime pp. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Coletivo n.º 423/10.7PCCBR).

36. Feito o cúmulo das penas descritas em 33 e 34, foi o arguido condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prião.

37. Por sentença datada de 04.12.2012, transitada em julgado em 11.06.2013, foi o arguido condenado na pena de 9 meses de prisão, pela prática, em 19.11.2011, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 1830/11.3PBCBR).

38. Por sentença datada de 16.05.2012, transitada em julgado em 08.07.2013, foi o arguido condenado na pena única de 17 meses de prisão, pela prática, em 16.04.2012, de um crime pp. pelos artigos 203.º, 204.º, n.º 1, alínea b) e 22.º do Código Penal e um crime pp. nos artigos 154.º e 22.º do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 114/12.4GDCBR).

39. Por sentença datada de 17.05.2012, transitada em julgado em 09.07.2013, foi o arguido condenado na pena de 10 meses de prisão, pela prática, em 10.03.2011, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 360/11.8PCCBR).

40. Por sentença datada de 00.02.2014, transitada em julgado em 12.03.2014, foi o arguido condenado na pena única de 16 meses de prisão, pela prática, em 22.07.2011, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal e pela prática de um crime pp. no artigo 291.º, n.ºs 1 e 3 (Processo Comum Singular n.º 699/11.2PBFIG).

41. Feito o cúmulo das penas aplicadas nos processo 699/11.2PBFIG, 360/11.8PCCBR, 1830/11.3PBCBR, 114/12.4GDCBR foi o arguido condenado na pena única de 30 meses de prisão.

42. Por sentença datada de 10.07.2014, transitada em julgado em 30.09.2014, foi o arguido condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa pelo prazo de 1 ano, pela prática, em 16.12.2011, de um crime pp. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (Processo Comum Singular n.º 653/11.4GBPLB).

Dos pedidos de indemnização civil:

43. No dia 21.03.2012 deu entrada na urgência dos CHUC V (...) , onde foi assistido.

44. A assistência que lhe foi prestada foi originada pelos ferimentos apresentados pelo assistido em consequência da agressão acima descrita perpetrada pelo arguido.

45. Os encargos com a assistência prestada pelo CHUC, EPE, ao ofendido V (...) , importam na quantia de € 569,50 (quinhentos e sessenta e nove euros e cinquenta cêntimos).

--

46. O demandante, sabendo que o arguido, à data dos factos, era toxicodependente, por indicação clínica, passou a ser seguido nas consultas externas de infeciosas.

47. Com o golpe provocado pela navalha e com a dentada que sofreu, o demandante sentiu dores.

*

       Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente que:

a) Ao proceder da forma descrita o arguido quis encetar a fuga, levando consigo a moto-enxada.

b) O ofendido usou de força excessiva com o arguido, deitando-o ao chão e aprisionando-o com uma gravata, acabando por finalizar com dois paralelos na cabeça.

c) O demandante sentiu vergonha ao ser alvo das agressões perpetradas pelo arguido.

d) As dores do demandante se mantiveram por 30 dias.

e) Em consequência dos factos descritos, o demandante ficou psicologicamente perturbado.

f) Nas noites em que se seguiram aos factos, o demandante tinha muita dificuldade em conciliar o sono,

g) Nas poucas horas que conseguia dormir, tinha um sono muito agitado, mexendo-se, revirando-se, acordando subitamente a intervalos curtos.

h) De manhã o sono revelava-se pouco reparador.

i) Durante o dia, o demandante apresentava grande sonolência, irritabilidade, incapacidade para raciocinar com facilidade e com lentidão de reflexos.
                                                                                  VI

Apreciando.

1ª Questão: a extinção do procedimento criminal quanto ao crime de ofensas corporais por desistência da legítima e única herdeira do ofendido.

1. Diz o recorrente na conclusão B):

          “Entende o recorrente que deverá ser absolvido do crime de ofensa à integridade física simples, atenta a sua natureza semi-pública e em razão da declaração de não desejo de prossecução criminal contra o arguido, manifestado pela filha do ofendido, B... , e na qualidade de única herdeira do mesmo após o seu falecimento, como decorre de fls. 132 verso e 133 dos autos, em auto de inquirição datado de 21 de Janeiro de 2014, constante de fls. 136 dos autos, e cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido”.

            2. A esta pretensão do recorrente responde o Ministério Público dizendo:

“A lei confere o direito de queixa a pessoas determinadas, que, directa ou indirectamente, se relacionam com crimes de natureza semi-pública, mas sendo determinante a titularidade “dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (art. 116º, nº 1 CP).

A apresentação da queixa corresponde ao exercício de um direito pessoal, ou, pelo menos, à prática de um acto pessoal (Leal-Henriques e Simas santos, CP de 1982 anotado, Vol. I, p. 555).

In casu, o ofendido V (...) , “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, exerceu atempada e expressamente o seu direito de queixa.

Refere o nº 2 do art. 116º do CP que “o queixoso pode desistir da queixa”, não comtemplando este artigo, para efeitos da desistência da queixa, regime idêntico ao fixado nos números 2 e 3 do art. 113º do CP.

Poderá dizer-se que, apesar disso, prevendo o legislador a possibilidade de, por exemplo, o descendente do ofendido falecido - que não chegou a apresentar queixa, nem a ela renunciou -apresentar queixa, seguramente pretende que o mesmo descendente possa igualmente desistir da queixa, assim se harmonizando o sistema.

 

Mas terá realmente o legislador pretendido que, depois de o verdadeiro e directo ofendido, originário titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, ter manifestado a sua pretensão de proceder criminalmente contra o autor do crime de que foi vítima, venha depois um seu descendente e herdeiro - que não queixoso - afastar tal pretensão expressa, desistindo da queixa?

Parece-nos que não, que tal solução não se mostraria curial, por contrariar a manifestação de vontade em devido tempo expressa pelo ofendido, através do exercício do seu direito de queixa.

Neste pressuposto, não se mostrando juridicamente operante a manifestação de vontade da filha do ofendido, consubstanciadora de desistência de queixa, nada há a apontar à condenação do arguido pelo crime p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do CP, de que foi vítima V (...) .

           

            3. Resulta dos autos o seguinte[1]:

            Em 21-03-2012 o ofendido V (...) , em declarações prestadas perante a PSP, declarou desejar “(…) procedimento criminal pelas agressões sofridas, das quais teve necessidade de receber tratamento hospitalar (…)” - cfr fls 10 dos autos.

            Entretanto, o ofendido faleceu - cfr fls 126.

Identificada a sua única herdeira, a sua filha B... , foi a mesma inquirida e declarou que “(…) nessa qualidade não pretende continuar com o procedimento criminal contra o arguido (…)” - cfr fls 136 e 267, 268.

Interrogado o arguido, o mesmo não prestou declarações e não se pronunciou sobre a posição assumida pela filha do ofendido - cfr fls 150.

O Ministério Público veio a deduzir acusação por um crime de natureza pública - arts 210º, nº 1 e 211º do CP (fls 178 e ss) -, no seguimento do que a B... se constituiu assistente e deduziu pedido de indemnização civil - cfr fls 217, 224 e 293.

A tramitação processual verificada, designadamente com a repetição do julgamento - cfr fls 353, 354, 529v., 551 a 552 v., 633 a 634, 662 e v. - culminou com a condenação do arguido, além do mais, na pena de 18 meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do CP, na pessoa do ofendido e queixoso V (...) , assim como no pagamento de uma quantia indemnizatória, na procedência do pedido cível efectuado pela B... .

4. A questão a apreciar traduz-se na possibilidade legal de a filha do ofendido V (...) , - B... – na qualidade de sua única herdeira, poder desistir validamente da queixa crime apresentada pelo seu pai.

Na verdade, a queixa foi apresentada pelo ofendido V (...) em 21-03-2012, vindo entretanto, no decurso da investigação, a falecer.

            A apresentação da queixa pelo ofendido nos crimes designados de semi-públicos, como é o caso da ofensa à integridade física simples (v. artigo 143º, nº 2, do Código Penal), é um pressuposto da legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal – artigo 49º, do Código de Processo Penal.

            Todavia, nos presentes autos, finda a investigação, deduziu o Ministério Público acusação contra o arguido pela prática de um crime de violência depois da subtração p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 210.º, nº1 e 211º do C. Penal, que tem natureza pública.

            O que significa que, até ao momento em que o Tribunal recorrido alterou a qualificação jurídica dos factos e condenou o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples na pessoa do ofendido V (...) , não se colocava a questão da relevância e validade da “desistência da queixa “ pela filha B... , nos autos.

            Mas se eventualmente for de considerar esta relevância válida em termos substantivos, com certeza que a mesma deve/pode produzir os seus normais efeitos.

            Ora, em caso de falecimento do originário titular da queixa, o ofendido, sendo este o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (art. 113º, nº 1 CP) -

a lei confere o direito de queixa às pessoas identificadas no número 2 daquele preceito (art. 113º), nele se incluindo os descendentes. Logo, sendo B... filha do ofendido e falecido V (...) , a ela caberia exercer este direito se porventura o ofendido não o tivesse exercido em vida.

            Tendo o direito de queixa sido legal e validamente exercido pelo próprio ofendido, não se coloca esta questão.

            Não se pronuncia o legislador sobre a situação da desistência da queixa em caso de morte do ofendido.

            Será que tendo o ofendido apresentado queixa em sua vida e entretanto falecido, o legislador pretende ou permite/admite que essa queixa possa ser retirada (desistindo dela), por qualquer das pessoas mencionadas no dito nº 2 do artigo 113º, do Código Penal?

            Entendemos que não.

            Como refere Leal-Henriques e Simas santos, CP de 1982 anotado, Vol. I, p. 555, “a apresentação da queixa corresponde ao exercício de um direito pessoal, ou, pelo menos, à prática de um acto pessoal”.

            É no interesse direto do ofendido que a queixa é apresentada. É o seu interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 113º, nº1, Código Penal).

            Este interesse não será efetivamente protegido se, por qualquer motivo, o ofendido não puder exercer o direito de queixa como acontece com a sua morte. Salvaguardando esta hipótese, prevê o legislador que este direito possa ser exercido pelas pessoas que identifica no artigo 113º, nº 2, do Código Penal.

            Ao ser exercido esse direito por qualquer uma destas pessoas, está a fazê-lo protegendo não um interesse próprio mas o interesse do ofendido.

            Com o exercício de queixa pelo ofendido o seu interesse mostra-se já assegurado.

            Não previu o legislador que, qualquer uma das pessoas identificadas no número 2 do artigo 113º, do Código Penal, possa desistir da queixa apresentada pelo ofendido, no caso de morte deste.

            É que esta situação é exatamente o inverso da primeira, do exercício do direito de queixa.

            A desistência de queixa está prevista no nº 2 do art. 116º do Código Penal dizendo: “o queixoso pode desistir da queixa”.

            É este preceito omisso quanto à desistência da queixa por outrem, que não o ofendido, mesmo em caso de morte.

            Ora, se o legislador pretendesse um regime para a desistência idêntico ao regime do exercício do direito de queixa, fácil seria tê-lo previsto e dito.

            A conclusão legítima a retirar do legalmente previsto e regulado sobre esta matéria, é que o legislador não quis colocar em qualquer outra pessoa que não no próprio ofendido, a possibilidade de desistir da queixa por si apresentada. Mesmo com a sua morte ocorrida depois de a queixa ser apresentada.

            Inclinamo-nos, todavia, a aceitar que, caso a queixa tenha sido apresentada por uma das pessoas mencionadas no nº 2 do artigo 113º, do Código Penal, essa mesma pessoa possa do mesmo modo desistir da queixa. Pois do mesmo modo que a lei lhe confere o direito de a exercer, também do mesmo modo se deve entender que dela pode desistir.

            Não o poderá fazer, entendemos nós, se apresentada pelo próprio ofendido e entretanto este falecer.

            Nestes termos, não se considera válida a declaração da filha do ofendido no sentido de não desejar a continuação do procedimento criminal.

            2ª Questão: a impugnação do teor do facto 7 do acórdão na parte em que afirma que “o local se mostrava vedado” e seus reflexos na qualificação jurídica dos factos.

            1. O ponto 7 tem o seguinte teor:

            “Ao proceder da forma descrita o arguido sabia que não podia entrar naquele local que se encontrava vedado, que não podia rebentar o cadeado ali existente e que o objeto acima descrito de que se tentou apoderar não lhe pertencia e que atuava contra a vontade do respetivo dono e, quando foi surpreendido, quis pôr o V (...) na impossibilidade de resistir e de encetar a fuga”.

            O recorrente manifesta-se quanto ao facto de o Tribunal recorrido ter considerado que o local em causa, o quintal, “se encontrava vedado”.

            Embora não resulte expressamente do factualismo provado, é aceite quer pelo recorrente quer pelo recorrido Ministério Público, que o quintal onde ocorreram os factos, estava ladeado por uma vala, silvas e árvores. E que no acesso normal, se encontrava um portão com um cadeado.

            Nesta concreta situação, apesar de o quintal não se encontrar murado pela ação do seu dono, a verdade é que a vala e as silvas, mais as árvores, constituíam uma vedação natural. De tal modo que o arguido não acedeu ao mesmo por outro lugar a não ser pelo portão. Faz parte das regras da experiência que uma vala é um obstáculo natural a qualquer lugar, maior ou menor conforme a sua dimensão. O mesmo se diga das silvas e das árvores, mais ou menos silvestres.

            E sendo intenção do arguido retirar do quintal uma moto enxada, entendeu ele que só através do portão o poderia fazer, pois só por este lugar poderia entrar. Se o acesso fosse possível pela dita vala ou pelas silvas, com certeza que o arguido não rebentaria com o cadeado do portão. Ou pelo menos entendeu que seria mais fácil rebentar o cadeado – que efetivamente fez - do que eliminar as silvas ou de improvisar uma ponte sobre a vala.

            Portanto, o arguido teve necessidade de rebentar o cadeado que existia no portão para entrar no quintal.

            Perante esta descrição do quintal e o procedimento do arguido para nele entrar, não se nos suscitam dúvidas de que o quintal constituía um lugar vedado ao público.

            Suscita ainda o recorrente a questão de que o disposto na alínea e) do nº2, do art. 204º Código Penal, exige ou fala de um “espaço fechado” e não vedado.

            Neste aspeto parece-nos que também não tem o recorrente razão, pois é de entender que espaço fechado ou vedado, deve ter o mesmo sentido para o legislador. Assim se manifesta Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica, 2008, nota 19 ao artigo 204. A fls. 560. Dizendo: “o conceito de “espaço fechado” identifica-se com o conceito de “espaço vedado ao público”.

           

            Mas a questão essencial a dirimir e sobre ela o recorrente manifesta clara divergência sobre o decidido, é de ter sido considerado que este concreto espaço, o quintal, ainda que vedado ao público nas circunstâncias assinaladas, integre os requisitos do citado artigo 204º Código Penal, nº2, alínea e), do Código Penal.

            Entendemos que lhe assiste razão.

            Diz exatamente aquele preceito:

            2 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:

            …

            e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas.

            Integrando os factos dos presentes na previsão desta alínea, então todo e qualquer espaço, fechado ou vedado, aqui se ajustaria necessariamente.

            Mas se assim fosse, bastava o legislador referir-se apenas a qualquer lugar fechado ou vedado, sem mais, sendo desnecessária a referência também a habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial.

            Sabe-se que a habitação ou um estabelecimento, comercial ou industrial, merece para o legislador e para a sociedade, em geral, maior proteção que um qualquer lugar. Ainda que vedado ao público por qualquer obstáculo, muro ou portão.

            É neste sentido que se vem entendendo que o dito lugar ou “espaço fechado”, deve ter uma conexão quer com a habitação quer com o estabelecimento, sendo contíguos ou como que um prolongamento daqueles. E aqui se integra facilmente um anexo da habitação ou do estabelecimento, o pátio, jardim e garagem, entre outros.

            Não sendo a habitação ou o estabelecimento, existe todavia uma relação tão próxima e dependente, que se justifica uma proteção da mesma natureza.

            No ac. deste TRCoimbra de 30-10-2013[2], proferido nos autos nº 11/10.8GCCTB.C1[3], decide-se sobre esta matéria:

            “Porém, já assiste razão ao recorrente, quando diz que um barracão de campo utilizado para guardar bens do tipo dos subtraídos, embora fechado à chave, não é passível de preencher o conceito “espaço fechado” constante da al. e) do n.º 2 do artigo 204º, como veio a ser considerado pelo tribunal a quo.

            Antes de mais, se atentarmos na definição de arrombamento da alínea d) do artigo 202º do CP aí se refere ao rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente. Este lugar mais não é do que o recinto que dá acesso à casa.

Assim, o “espaço fechado” está relacionado, conexionado, com a habitação e com o estabelecimento comercial ou industrial.

            Como se afirma no Assento n.º 7/000 «A expressão «espaço fechado» que consta da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º do Código Penal [e também referida na alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito] tem, forçosamente, de ser entendida com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa, entendimento este reforçado pelo facto de o conceito definido na alínea d) do artigo 202.º do Código haver sido alvo, relativamente ao que se estipulava no n.º 1 do artigo 298.º do Código Penal de 1982, de uma redução no seu âmbito, por virtude da supressão do segmento «ou de outros móveis destinados a guardar quaisquer objectos».

            O que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico. – Ac. RP de 16-5-2012 in www.dgsi.pt.”

            No mesmo sentido apontam outros acórdãos, entre eles os citados pelo recorrente:

            Ac. TRP de 11-07-2012, aí se decidindo:

            A introdução em espaço fechado, só por si, não representa um dano acrescido que justifique a previsão da qualificação proposta para a ação do furto [veja-se que os crimes de Violação de domicílio ou perturbação da vida privada, do artigo 190.º, n.º 1 e de Introdução em lugar vedado ao público, do artigo 191.º, ambos do Cód. Penal, punem as respetivas ações com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias e pena de prisão até três meses ou pena de multa até 60 dias]. O que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem os espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico.

            E se assim é, então o espaço de construção de um edifício [estaleiro de obra], ainda que vedado, nenhuma conexão tem com as realidades subjacentes aos conceitos de habitação e de estabelecimento comercial ou industrial e seus espaços fechados dependentes – pelo que não configura a previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º, do Cód. Penal.

            Ac. TRP de 16-05-2012 , sumário retirado da CJ, Tomo III, 2012, pág.243: I. O que caracteriza e justifica a agravante «espaço fechado», enquanto qualificativa do furto, não é o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas a circunstância de este estar conexionado com a habitação ou um estabelecimento comercial ou industrial. II. Não constitui, assim, «espaço fechado» para este efeito o estaleiro de uma obra de construção civil, ainda que vedado. III. Assim, aquele que depois de subir a respectiva vedação, se introduz no estaleiro de uma obra de construção civil e daí retira um cabo de cobre com cerca de 25m, dois rolos de arame queimado, uma peça indiferenciada e dois rolos de metal, tudo num valor não superior a 102,00€, comete um crime de furto, eventualmente em concurso real com um crime de introdução de um lugar vedado ao público.

            Ac. TRP de 26-03-2015, relatado por Artur Oliveira, in CJ, 2014, T2, pág.237: I. O que carateriza e justifica a agravante qualificativo do furto não é o facto de o agente se introduzir num espaço fechado, mas a circunstância de esse espaço estar conexionado com uma habitação ou com um estabelecimento comercial ou industrial. II. Por isso, a subtração de objetos de um estaleiro (átrio, terreiro) ainda que vedado, integra a prática do crime de furto, e não a de crime de furto qualificado.

            Ac. TRP de 26-05-2015 : Integra a prática de um crime de furto simples do artº 203º1 CP, a apropriação de bens móveis retirados de «uns anexos» existentes numa propriedade vedada em que o arguido se introduziu por escalamento do muro de vedação, por nenhuma conexão ter com os conceitos de habitação e de estabelecimento comercial ou industrial e seus espaços fechados dependentes, do artº 204º 2 f) CP.

 

            Nesta linha de orientação que se afigura a mais consentânea com o pensamento legislativo, o concreto quintal/terreno, que nenhuma relação tem com a habitação da ofendida nem com qualquer estabelecimento comercial ou industrial seu, não justifica a qualificativa legal assinalada.

            O que significa que os factos praticados pelo arguido não se subsumem à tentativa de furto qualificado por que o arguido foi condenado mas apenas a uma tentativa de um furto simples, p e p pelo artigo 203º, do Código Penal.

           

            Mas como refere o recorrente e resulta dos autos – ata de 10.11.2016, a fls. 630 a 635 -, a ofendida C... disse desistir da queixa apresentada, não pretendendo o prosseguimento dos autos contra o arguido”.

            Até ao presente momento, tendo o Tribunal recorrido qualificado a conduta do arguido como integrando a prática de um crime de furto qualificado, não era possível proceder à homologação desta desistência da queixa na medida em que a mesma não é legalmente admissível para este concreto crime.

            O mesmo não acontece para o caso do crime de furto simples do artigo 203º, do Código Penal, em que a desistência é admissível, pois também o procedimento de queixa exige a apresentação de queixa crime – nº3 daquele preceito.

            Exige a lei que, perante a desistência de queixa, deve o arguido ser ouvido para dizer se a ela se opõe – v. artigo 116º, nº2, do Código Penal e 51º, nº3, do Código de Processo Penal.

            Acontece que o arguido já se manifestou expressamente, o que até reivindica, que o procedimento criminal seja extinta em consequência da referida desistência de queixa por parte da ofendida. Pelo que seria inútil estar a ouvi-lo agora para estes efeitos.

            Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 51º,nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, homologa-se a desistência da queixa por parte da ofendida C... e, consequentemente, julga-se extinto o procedimento criminal contra o arguido recorrente, no que respeita à prática do crime de furto simples, na forma tentada.

             O que significa, obviamente, que a condenação do arguido A... pela prática do crime de furto qualificado na forma tentada, pp. nos artigos 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e) e 22.º do Código Penal, do Código Penal, na pena de 20 (vinte) meses de prisão, fica sem efeito ou se se quiser, é da mesma absolvido.

            3ª Questão: a medida da pena.

            1. O arguido manifesta-se contra a medida das penas aplicadas pelo julgador a quo, pugnando pela aplicação de penas mais leves, conforme fundamentos expressos nas suas conclusões.

            Cumpre dizer que, face à extinção do procedimento criminal no que respeita ao crime de furto, resta apreciar a questão apenas quanto ao crime de ofensas à integridade física, crime pelo qual foi o arguido condenado na pena de 18 meses de prisão.

            O Tribunal recorrido fundamenta a medida da pena nos seguintes termos:

            “Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, importa determinar a pena em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, não olvidando a necessidade de reprovação dos crimes.

            No que à prevenção geral diz respeito, note-se que as exigências se afiguram muito elevadas, considerando que os crimes de furto e ofensa à integridade física são dos crimes mais praticados não só na área da comarca mas um pouco por todo o país. De realçar, ainda, que estes crimes causam grande alarme social, exigindo a sociedade rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento.

            Em sede de medida concreta da pena, há que ponderar, ainda, o grau de ilicitude do facto, que se reputa de mediano no que se refere ao crime furto qualificado, atendendo ao valor do bem e mais elevado no crime de ofensas, atendendo ao período de doença que o ofendido sofreu e a utilização de uma navalha.

            O arguido agiu, ainda, com dolo direto, na sua modalidade mais intensa.

             Quanto à conduta do agente anterior e posterior à prática dos factos, há que fazer menção, mais uma vez, ao vasto rol de antecedentes criminais do arguido, sendo de realçar a condenação pelo crime de ofensa à integridade física qualificada e as oito condenações pela prática de crimes de furto. À data dos factos o arguido já tinha sido condenado em penas de prisão suspensas que não lhe serviram de suficiente advertência, o arguido continuou a praticar crimes indiferente não só às condenações anteriores como àqueles que iria sofrer. É, outrossim, importante referir que, à data dos factos, o arguido tinha uma vida errante, consumia estupefaciente, estava desempregado, vivendo de expedientes e sem paradeiro fixo.

            Também é de assinalar que deixou de consumir estupefacientes, tem apoio da irmã e do cunhado e tem bom comportamento no E.P.

            Relativamente ao crime de ofensas, teremos de considerar as lesões sofridas pela vítima que lhe demandaram 114 dias de doença”.

            2. Não merece censura a pena aplicada pelo julgador a quo.

            Quanto a este crime resulta provado que:

            “O referido V (...) ao surpreender o arguido tentou impedi-lo de praticar tal facto, dizendo-lhe que ia chamar a polícia.

            Ao ouvir isto, o arguido, com o objetivo de eliminar a previsível oposição do V (...) e encetar a fuga para a rua, exibiu-lhe uma navalha, golpeando-o no braço esquerdo, desferindo-lhe ainda uma dentada no braço direito.

            Em consequência desta conduta, V (...) sofreu as lesões melhor descritas a fls. 49 a 51, 98 a 99, 173 a 174, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, e que lhe provocaram como consequência direta e necessária 114 dias de doença sem incapacidade para o trabalho”.

            Estes factos revelam um elevado grau de culpa e da ilicitude, pois o arguido, que de resto foi surpreendido em flagrante a praticar os factos referentes ao crime de furto da moto enxada, em vez de simplesmente parar com a sua conduta e eventualmente afastar-se do local, desfere uma navalhada no ofendido V (...) ao mesmo tempo que também lhe dá uma dentada no braço.

            É manifestamente censurável esta conduta, que atinge a integridade física da vítima, a quem causa 114 dias de doença.

            Acresce ainda todo o comportamento anterior do arguido que prima por uma carreira delituosa, onde já se inclui a prática de ofensas à integridade física qualificadas. Significa que à prevenção geral, acresce forte necessidade de prevenção especial. A pena de 18 meses mostra-se adequada e justificada.

            Pena que, conforme decidido em primeira instância, não deve ser suspensa na sua execução, pois não é possível fazer qualquer juízo de prognose favorável ao arguido, pois a simples censura do facto e a ameaça da prisão já não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, pelos fundamentos supra expostos.

            4ª Questão: do pedido de indemnização civil:

            O recorrente manifesta-se contra a fixação de indemnização na sequência da prática do crime de ofensa à integridade física simples porque entende que deve ser considerada válida a desistência de queixa, supra apreciada.

            Ora, já se concluiu que tal desistência não deve ser julgada válida, razão por que se mantém a condenação na pena de prisão. O mesmo se diga quanto ao pedido de indemnização civil, pois não se vislumbra qualquer fundamento para que a mesma não seja devida e, consequentemente fixada.

                VI   

Decisão

            Por todo o exposto, decide-se:

            1. Alterar a qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de furto praticado na forma tentada pelo arguido A... que, em vez de qualificado, se considera apenas um crime de furto simples, também na forma tentada, pelos fundamentos expostos.

            2. Consequentemente, julgar extinto o procedimento criminal contra o arguido no que respeita à prática do crime de furto simples na forma tentada face à desistência da queixa por parte da ofendida C... , que se homologa.

            3. Julgar improcedente o recurso do arguido quanto ao demais, mantendo-se a condenação do mesmo pela prática do crime de ofensa à integridade física simples na pena de 18 (dezoito) meses de prisão efetiva bem como no pedido de indemnização civil.


Sem custas, dada a procedência parcial do recurso.

Coimbra, 7 de Junho de 2017

            (Luís Teixeira – relator)

            (Vasques Osório – adjunto)


[1] De acordo com a síntese que o recorrido Ministério Público faz da questão.
[2] Referido pelo recorrente.
[3] Relatora Elisa Sales.